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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE

PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 21
Jan/Abr 2007

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe Quadrimestral


História da Educação Pelotas n. 21 p. 1-276 Jan/Abr 2007
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
ASPHE
Presidente: Maria Helena Câmara Bastos
Vice-Presidente: Maria Stephanou
Secretário: Claudemir de Quadros

Conselho Editorial Nacional Conselho Editorial Internacional


Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Alain Choppin
Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) (INRP, França)
Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Antonio Castillo Gómez
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) (Univer. de Alcalá – Espanha)
Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luís Miguel Carvalho
Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) (Univer. Técnica de Lisboa)
Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Rogério Fernandes
Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) (Univer. de Lisboa)
Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS)
Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Comissão Executiva Editoração eletrônica e capa


Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Flávia Guidotti
Profa. Dra. Eliane Teresinha Peres flaviaguidotti@hotmail.com

Consultores Ad-hoc Imagem da capa


Dra. Beatriz Daudt (Unisinos) Deux mères de famille
Dr. Claudemir Quadros (Unifra) Elizabeth Gardner
Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Le Salon de 1888
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Paris

História da Educação
Número avulso: R$ 15,00
Single Number: U$ 10,00 (postage included).
História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense
de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 21
(Jan/Abr 2007) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral.
ISSN 1414-3518
v. 1 n. 1 Abril, 1997

1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel

CDD: 370-5

Indexação:
CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades)
Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC
EDUBASE (FE/UNICAMP)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .........................................................................................5

FAZER A HISTÓRIA DO ENSINO DAS LÍNGUAS E DAS


CIVILIZAÇÕES ESTRANGEIRAS NO ENSINO SUPERIOR
FRANCÊS NO SÉCULO XX
HISTORICIZING LANGUAGE AND FOREIGN CIVILIZATION
TEACHING IN FRENCH UNIVERSITIES IN THE 20TH CENTURY
Emmanuelle Picard; Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz ;Revisão Maria
Helena Camara Bastos......................................................................................9

UM MODELO DE ESCOLA NA FRANÇA EM TORNO DE 1660-


1740: A ESCOLA CRISTÃ
A SCHOOL MODEL IN FRANCE AROUND 1660-1740: THE
CHRISTIAN SCHOOL
Marcel Grandière; Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz; Revisão Maria
Helena Camara Bastos.................................................................................... 23

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (BRASILEIRA): FORMAÇÃO DO


CAMPO, TENDÊNCIAS E VERTENTES INVESTIGATIVAS
HISTORY OF THE EDUCATION (BRAZILIAN): FIELD
ESTABLISHMENT, TENDENCIES AND RESEARCH AREAS
Carlos Monarcha ............................................................................................ 51

O ENSINO E A PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO


BRASILEIRA NA CADEIRA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO (1933-1962)
THE TEACHING AND THE RESEARCH ON THE HISTORY OF THE
BRAZILIAN EDUCATION IN THE SUBJECTS OF PHILOSOPHY
AND HISTORY OF EDUACTION (1933-1962)
Bruno Bontempi Júnior .................................................................................. 79

AS PESQUISAS NA ÁREA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A


HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: CONSTRUINDO A HISTÓRIA DO
ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS PEQUENAS NO BRASIL
CHILDHOOD EDUCATION RESEARCHES AND HISTORY OF
EDUCATION: BUILDING THE HISTORY OF EARLY CHILDHOOD
EDUCATION IN BRAZIL
Alessandra Arce............................................................................................ 107
A ZOOLOGIA FILOSÓFICA NO BRASIL: EXPLORANDO AS
MODERNAS CORRENTES DO PENSAMENTO CIENTÍFICO NO
COLLÉGIO DE PEDRO II EM MEADOS DO SÉCULO XIX
THE PHILOSOPHICAL ZOOLOGY IN BRAZIL: EXPLORING THE
MODERN APPROACHES OF THE SCIENTIFIC THINKING IN THE
“D. PEDRO” SCHOOL AT THE BEGINNING OF THE XIX CENTURY
Karl M. Lorenz ............................................................................................ 133

A LIVRARIA GARNIER E A HISTÓRIA DOS LIVROS INFANTIS


NO BRASIL – GÊNESE E FORMAÇÃO DE UM CAMPO LITERÁRIO
(1858 – 1920)
GARNIER BOOKSHOP AND THE HISTORY OF THE BOOKS FOR
CHILDREN IN BRAZIL – GENESIS AND DEVELOPMENT OF A
LITERARY FIELD
Andréa Borges Leão...................................................................................... 159

HISTÓRIA E ROMANCE: A IDÉIA DE HISTÓRIA EM AS


AVENTURAS DE TELÊMACO E AS RELAÇÕES ENTRE O TEXTO
HISTÓRICO E A PROSA FICCIONAL NA PASSAGEM DOS
SÉCULOS XVII-XVIII
HISTORY AND ROMANCE: THE CONCEPT OF “HISTORY” IN “AS
AVENTURAS DE TELÊMACO” AND THYE RELATIONSHIPS
BETWEEN THE HISTORICAL TEXT AND THE FICTIONAL PROSE
BETWEEN THE XVII AND THE XVIII CENTURIES
João Paulo Martins....................................................................................... 185

RESENHA
PENSADORES SOCIAIS E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
Hercules P. Santos....................................................................................... 215

DOCUMENTO
APRESENTAÇÃO: A LIGA DO ENSINO NO BRASIL E A REVISTA
LIGA DO ENSINO (1883-1884)
Maria Helena Camara Bastos......................................................................... 225
REVISTA DA LIGA DO ENSINO (n.1, janeiro de 1884, p.1-30)................. 247

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES ............................................. 275


APRESENTAÇÃO

A revista História da Educação em seu número 21


mais uma vez reafirma sua definição editorial no sentido de
apresentar a seu público leitor trabalhos de excepcional
qualidade na área de História da Educação.
Agradecemos, desde logo, a atenção que a revista
tem merecido dos pares da área de História da Educação do
Brasil e do exterior no sentido de enviarem para análise
trabalhos qualificados que têm contribuído para que este
periódico continue a desfrutar alto prestígio na comunidade
acadêmica.
A professora Emmanuelle Picard nos brinda com
um excepcional trabalho sobre o ensino superior francês:
Fazer a história do ensino das línguas e das civilizações
estrangeiras no ensino superior francês no século XX. Esta
interação com a prática escolar na França sem dúvida é um
aspecto cada vez mais dinamizado na área da História da
Educação no Brasil.
No artigo seguinte, também da França, o professor
Marcel Gradière discorre a imergência da escola cristã na
França: Um modelo de escola na França em torno de 1660-
1740: a escola cristã. É consenso para os historiadores a
importância deste fenômeno educacional para a consolidação
do modelo educacional no período do iluminismo francês.
O professor Carlos Monarcha apresenta uma
excepcional visão panorâmica do “estado da arte” da história
da educação no Brasil em seu texto: História da educação
(brasileira) formação do campo, tendências e vertentes
investigativas.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 5-7, jan/abr 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
No quarto artigo o professor Bruno Bontempi
Junior analisa um aspecto relevante da área de história da
educação brasileira: a relação entre filosofia e história da
educação. O ensino e a pesquisa em história da educação
brasileira na cadeira de filosofia e história da educação
(1933-1962) sem dúvida contribuirá para elucidar esta
relação tão importante na gênese do campo da História da
Educação.
A professora Alessandra Arce trabalha em seu texto:
As pesquisas na área da educação infantil e a história da
educação : construindo a história do atendimento às crianças
pequenas no Brasil constrói um entendimento sobre esta
temática sobre a qual a mesma é reconhecida pesquisadora.
Karl Michael Lorenz da Sacred Heart University –
Connecticut trata em seu artigo A zoologia filosófica no
Brasil: explorando as modernas correntes do pensamento
cientifico no Collégio de Pedro II em meados do Século XIX
de aspectos vinculados à ideologia do tradicional educandário
que moldou o ensino secundário no Brasil no Século XX.
A professora Andréa Borges Leão no texto A
Livraria Garnier e a história dos livros infantis no Brasil –
gênese e formação de um campo literário (1858-1920)
resgata a história de uma das mais tradicionais livrarias do
século XIX e de sua contribuição inestimável para a história
da educação brasileira.
João Paulo Martins investiga um dos textos
clássicos na Área da História da Educação mundial As
aventuras de Telêmaco relacionando-o ao fazer histórico.
História e Romance: a idéia de história em As Aventuras de
Telêmaco e as relações entre o texto histórico e a prosa
ficcional na passagem dos séculos XVII-XVIII. Este
trabalho contribui para a compreensão da relação entre
6
história e prosa ficcional aspecto este muito presente na área
de historia da educação em termos teórico-metodologicos.
Na seção Documentos, que já é tradicional em
nossa revista, publicamos um dos documentos clássicos da
história da educação do século XIX relacionado á Liga do
Ensino no Brasil apresentado pela Drª Maria Helena
Câmara Bastos.
Com essa publicação, mais uma vez a ASPHE e a
revista História da Educação reafirmam seus compromissos
com a pesquisa histórica e sua divulgação. Esperamos que os
leitores apreciem mais este trabalho.

A comissão executiva

7
.
FAZER A HISTÓRIA DO ENSINO DAS LÍNGUAS
E DAS CIVILIZAÇÕES ESTRANGEIRAS NO
ENSINO SUPERIOR FRANCÊS NO SÉCULO XX1
Emmanuelle Picard
Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz
Revisão Maria Helena Camara Bastos

Resumo
O ensino de língua e literatura estrangeiras no ensino superior
francês, na época contemporânea, só foi o objeto de um número
restrito de trabalhos. Este artigo se propõe, a partir do caso do
germanismo, traçar a história destas disciplinas desde sua aparição
dentro da universidade por volta de 1830 até à época posterior à
reforma de 1968. Três grandes etapas aparecem, em um processo
contínuo de construção disciplinar: um período de indeterminação,
dos anos 1830 aos anos 1880, durante o qual se fala de línguas
estrangeiras em geral; um período de especialização, na virada do
século, com a aparição das cadeiras de estudos alemães, italianos...; e,
enfim, na metade do século XX, um movimento de respeitabilidade
que visa elevar estas disciplinas dentro da hierarquia universitária.
Palavras-chave: Ensino superior; Línguas estrangeiras; França;
Época contemporânea.

HISTORICIZING LANGUAGE AND FOREIGN


CIVILIZATION TEACHING IN FRENCH UNIVERSITIES
IN THE 20TH CENTURY
Abstract
In contemporary period, the study of language and foreign literature
teaching in French Universities was the target of a reduced number
of works. Since the Germanist case, this article intends to describe
these disciplines’histories up to their University introduction around
1830, until the period after the 1968 University Reform. Three big
stages of constant process of disciplinary organization appear: an
undeterminated process, from the 1830’s to the 1880’s, when we
talk about foreign languages in general; an specialization period, at
the century turning, with Germain, Italian disciplines and studies.

1
Texto especialmente escrito para publicação na revista. Título original: «Faire
l’histoire de l’enseignement des langues et civilisations étrangères dans
l’enseignement supérieur français au XXe siècle». Recbido em setembro de 2005.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 9-21, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
Finally, in the middle 20th century, a respectfulness movement
which proposes to elevate these disciplines within academic hierarchy
take place.
Keywords: Further education; Foreign languages; France;
contemporary

HACER LA HISTORIA DE LA ENSEÑANZA DE LAS


LENGUAS Y DE LAS CIVILIZACIONES EXTRANJERAS
EN LA ENSEÑANZA SUPERIOR FRANCESA EN EL
SIGLO XX
Resumen
La enseñanza de lengua y literatura extranjeras en la enseñanza
superior francesa, en la época contemporánea, sólo fue objeto de un
número restricto de trabajos. Este artículo se propone, a partir del
caso del germanismo, trazar la historia de estas disciplinas desde su
aparición dentro de la universidad alrededor de 1830 hasta la época
posterior a la reforma de 1968. Tres grandes etapas aparecen, en un
proceso continuo de construcción disciplinar: un período de
indeterminación, de los años 1830 a los años 1880, durante lo cual
se habla de lenguas extranjeras en general; un período de
especialización, en la virada del siglo, con la aparición de las cátedras
de estudios alemanes, italianos...; y, en fin, en la mitad del siglo XX,
un movimiento de respetabilidad que visa elevar estas disciplinas
dentro de la jerarquía universitaria.
Palabras-clave: Enseñanza superior; Lenguas extranjeras; Francia;
Época contemporánea.

10
Dentre todas as disciplinas ensinadas no seio do ensino
superior francês, as línguas e civilizações estrangeiras só foram os
objetos de um número restrito de trabalhos. A principais
referência ainda é a tese de Michel Espagne, consagrada às
cadeiras de literatura estrangeiras nas universidades francesas do
século XIX2 e os três volumes que dirigiu com Michael Werner e
Françoise Lagier3. Centrados no século XIX, esses estudos
colocam em evidência as condições do surgimento dessas
disciplinas, num primeiro momento indiferenciadas (um professor
muda ao longo de sua carreira de uma literatura estrangeira a
outra, e até mesmo para a literatura francesa), e que se
especializam progressivamente com a implantação das carreiras de
maîtrises des conférences4, por volta de 1880, antes de se tornarem
cadeiras específicas por volta de 1900. Para o século XX, a
produção historiográfica é menos fecunda. Certamente o
germanismo foi objeto de alguns trabalhos, mesmo que nenhum
deles seja verdadeiramente sintético5, assim como algumas línguas
raras6. Mas nenhuma visão de conjunto foi proposta, no que diz
respeito a esse domínio de formação específico. O presente artigo
propõe uma reflexão metodológica sobre a história do ensino de
línguas e de literatura estrangeiras no ensino superior francês do

2
Michel Espagne, Le paradigme de l’étranger. Les chaires de littérature étrangère
au XIXe siècle, Paris, Éditions du Cerf, 1993.
3
Michel Espgane et Michael Werner (dir.), Philologiques I, II et III, Paris,
Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 1990-1992.
4
Maîtrise de conférence: cargo de mestre de conferência, criado em 1880 (Nota
do tradutor).
5
Em particular: Michel Espagne e Michael Werner, Les études germaniques en
France, 1900-1970, Paris, CNRS-Éditions, 1994; dossier sobre « Les études
germaniques en France », Lendemains, n° 103-104, 2001.
6
Por exemplo: Gabriel Garçon, « 1926-1986: soixante années d’enseignement
du polonais aux facultés catholiques de Lille », Fédération universitaire et
polytechnique de Lille. Ensemble d’écoles supérieures et de facultés catholiques,
2, 1987.

11
século XX, tendo por base os resultados da pesquisa realizada pelo
autor sobre o germanismo e completada por outros autores que
abordam essa questão. Essa última permite propor um modelo
cronológico de construção das disciplinas e, ao mesmo tempo, a
elaboração de uma perspectiva dos diferentes espaços lingüísticos.
Uma dificuldade preliminar está na questão da definição.
Se as disciplinas universitárias nos parecem hoje facilmente
identificáveis, a tal ponto que questionamos raramente sua
definição exata, não era assim no século XIX, nem na primeira
metade do século XX. As categorias atuais são o resultado de um
processo classificatório de longa duração. No espaço de 150 anos,
partes inteiras do saber foram "confiscadas" por um grupo que,
fixando fronteiras aos conhecimentos de sua responsabilidade e
determinando os critérios segundo os quais seriam recrutados seus
pares e sucessores, construiu progressivamente um conjunto de
categorias do saber claramente identificadas, que chamamos
disciplina. Este processo se apóia em dois movimentos
concomitantes e indissociáveis, apesar de suas cronologias estarem
desencontradas: a definição progressiva de um sub-campo do saber
e a elaboração das condições de acesso aos cargos (concurso,
recrutamento...). O estudo destes procedimentos de qualificação
intelectual e social é uma condição essencial à história das
disciplinas universitárias. É preciso, no entanto, ter cuidado com
uma reificação muito rápida: as disciplinas universitárias foram
efetivamente constituídas dentro de um processo interno ao
mundo universitário e ao sub-grupo que as compõe; não podemos
negar, apesar disso, que elas se inscrevem desde a origem num
espaço mais amplo que o campo universitário, quer se trate do
campo intelectual no seu conjunto, ou ainda do campo político, e
que é preciso se interessar, durante todo o período estudado, às
relações que mantém uma disciplina em via de construção com os
espaços exteriores sobre os quais ela interfere.
Na ocasião da minha tese de história, fui levada a me
perguntar sobre as transformações que conhecia o germanismo
universitário francês na metade do século XX, no contexto
12
particular das ocupações sucessivas da França pela Alemanha
(1940-1944), depois da Alemanha pela França (1945-1949,
depois 1955)7. A disciplina, instituída, de fato, quando da criação
de cadeiras especializadas nos primeiros anos do século, teve um
papel fundamental no conhecimento que as elites francesas
tinham da Alemanha no entre guerras. Um professor como
Edmond Vermeil, titular da cadeira da Sorbonne a partir de
1936, encarnava a figura do especialista cuja uma das principais
atribuições era a explicação do inquietante vizinho ao público
intelectual. Era em resposta a esse imperativo que publica em
1940 um imponente volume, L’Allemagne, essai d’explication8, em
que tenta explicar o Terceiro Reich por uma perspectiva cultural
erudita de tipo filológico. A grande maioria dos germanistas, que
exerciam o cargo nessa época, encarnava amplamente a função de
"embaixadores" culturais, descrita por Christophe Charle9,
inscritos nas trocas culturais dos dois países (que continuavam
apesar da chegada de Hitler ao poder), mas endossavam
igualmente a de vulgarizadores das realidades alemãs
contemporâneas, através de uma intensa atividade editorial nas
revistas10. Ao contrário, os germanistas do pós Segunda Guerra
Mundial só se ocupam com estudos eruditos sobre a literatura
alemã clássica. Essa tendência é muito interessante já que ela se
desenvolve em um contexto que oferece aos germânicos

7
Emmanuelle Picard, Des usages de l’Allemagne. Politique culturelle française
en Allemagne et rapprochements franco-allemand, 1945-1963. Politique
publique, trajectoire, discours, Tese de história do Instituto de estudos políticos
de Paris, janeiro 1999.
8
Gallimard.
9
Christophe Charle, La République des universitaires, 1870-1940, Paris, Le
Seuil, 1994, p. 345 sq.
10
O exemplo mais impressionante, em relação ao número de artigos produzidos,
é o caso de Robert d’Harcourt, titular da cadeira de estudos germânicos no
Instituto Católico de Paris. Ver as bibliografias publicadas pelos Cahiers Robert
d’Harcourt.

13
verdadeiras oportunidades de conhecer a Alemanha
contemporânea, e, até mesmo, de exercer um papel no plano
cultural dessa última. De fato, os quatro anos de ocupação militar
do país vencido por seus quatro vencedores, seguido ainda de seis
anos de um regime de controle11, foram a ocasião para que os
ocupantes implantassem dispositivos culturais importantes,
oferecendo numerosos cargos aos jovens germanistas. Porém, esses
últimos só os utilizaram enquanto estratégia de carreira individual
e não consagraram nenhum trabalho universitário à Alemanha
contemporânea, só ocuparam nas revistas francesas essas posições
de especialistas da Alemanha contemporânea destinadas às elites
francesas que eram as de seus predecessores. Os germanistas, que
ficaram na França, na mesma época seguiram percursos
intelectuais idênticos, operando um distanciamento da posição da
geração precedente, deixando, dessa forma, o território livre a
novos especialistas, não vindos do meio universitário e engajados
em disciplinas ou em setores então em construção como a ciência
política ou a educação popular12. Se analisarmos as características
escolares dos germanistas franceses, das duas gerações (antes e
depois da Segunda Guerra Mundial), observamos uma forma de
respeitabilidade da disciplina que se traduz pelo aumento sensível
dos normalistas, anteriormente presentes de modo mais anedótico.
Essa reorientação para os objetos canônicos (a cultura alemã
clássica), marcada pela presença cada vez mais importante de
indivíduos com trajetórias escolares bastante clássicas e bastante
prestigiosas, é um forte indicador de um trabalho interno de

11
Em 1945, a Alemanha é dividida em quatro zonas confiadas aos Ingleses, aos
americanos, aos russos e aos franceses, que a administram sob um regime de
Governo militar até 1949. Depois dessa data, a RAF reconstituída continua
submissa ao controle de três altos comissários: um francês, um inglês e um
americano em um certo número de atribuições. Esse dispositivo desaparece
apenas em 1955.
12
As duas personalidades marcantes, nesse caso, são Joseph Rovan e Alfred
Grosser. Cf. E. Picard, Des usages de l’Allemagne, op. cit.

14
legitimação de uma disciplina cuja principal função era a de
responder a uma demanda social e que se torna autônoma desse
imperativo chega a uma alta posição na hierarquia das
disciplinas13.
Esse trabalho preliminar sobre o germanismo permite a
elaboração de um conjunto de hipóteses e a construção de
ferramentas para respondê-las. Projetando a partir dos trabalhos
existentes e das pesquisas sobre os germanistas, é possível propor
um modelo de desenvolvimento das disciplinas de língua e
civilização estrangeiras, desde metade do século XIX, que permite
a observação da construção da disciplina, suas transformações
sucessivas e, ao mesmo tempo, sua conquista de uma legitimidade
acadêmica.
O primeiro período é da indeterminação. O ensino de
línguas e civilizações estrangeiras se estabelece no meio da
Faculdade de Letras, com a criação da primeira cadeira dessa
matéria na Sorbonne, em 1830, depois com a inscrição de uma
cadeira no programa de todas as faculdades existentes em 183614 e
sua criação progressiva nos vinte anos seguintes. Durante esse
primeiro período, que se estende até os anos 1870-1880, existe
uma grande plasticidade no perfil dos professores e uma grande
heterogeneidade nas matérias ensinadas. Esse período, durante o
qual a universidade não tem outra função que a de conceder o
grau, sem oferecer o ensino necessário para isso, é o momento do
desenvolvimento máximo de uma oferta de cursos públicos,
visando o público intelectual, durante os quais a capacidade
oratória e a erudição desempenham um papel de primeiro plano.
Para ensinar as línguas e literaturas estrangeiras, basta fingir que
as conhece (o doutorado não é obrigatório, e se o professor possui

13
Cf. Pierre Bourdieu, Homo Academicus, Paris, Éditions de Minuit, 1984.
14
M. Espagne, Le Paradigme..., op. Cit., p. 42 sq. Trata-se de um momento de
reorganização geral das faculdades de letras com a fixação de uma lista de seis
cadeiras, dentre as quais a de língua e literatura estrangeiras.

15
esse título, ele só se apóia marginalmente na literatura
estrangeira), ter viajado e, sobretudo, estar integrado em redes, ou
seja, ter contatos. Um mesmo professor, durante toda sua carreira,
falará de assuntos e de países muito diversos, e bastante afastados
uns dos outros. Em uma universidade que funciona sobre o prisma
das humanidades clássicas, as línguas e literaturas estrangeiras só
podem estar na posição de dominadas. A falta de regras
acadêmicas (forma e conteúdo do ensino, título dos candidatos...)
é prova mais evidente; que podemos completar pela observação das
estratégias de carreira dos normalistas: em um período durante o
qual o acesso à universidade é difícil, por causa do número restrito
de cargos, eles recorrem ao ensino de língua e literatura
estrangeiras para iniciar uma carreira universitária, mas
abandonam esse ensino assim que lhes é oferecida a possibilidade
de voltar à literatura francesa.
É com a criação das maîtrise de conférence e das bolsas de
licenciatura e da agrégation15 que observamos as primeiras etapas
de uma especialização e o esboço de disciplinas autônomas. A
reforma dos anos 1880-1890 impõe uma visão científica do
trabalho universitário, induz a uma modificação do perfil dos
professores. Os maîtres des conférences são a partir deste momento
recrutados segundo uma especialidade em correspondência direta
com o objeto de suas teses, especialidade que passam a ensinar
permanentemente. O resultado desse movimento de especialização
é a criação de cadeiras específicas: "língua e literatura alemã",
"língua e literatura italiana"... que provocam uma modificação das
condições de eleição dos sucessores. Não se pode mais utilizar os
contatos pessoais sem levar em conta critérios mais acadêmicos.
Resta, no entanto, uma grande fluidez nos contornos das
disciplinas assim instituídas. O título das cadeiras é muito geral e
os interesses científicos de seu detentor muito variados: pode
tratar-se tanto de literatura medieval quanto de estudos sobre a
15
Agrégation: concurso para lecionar nos liceus e em alguns cursos superiores
(Nota do tradutor).

16
política contemporânea. A única constante parece ser o prisma
cultural herdado dos primeiros anos de ensino de língua e
literatura estrangeiras, que tem como conseqüência trabalhos
orientados para um conhecimento histórico geral e cultural dos
vizinhos. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, as disciplinas
universitárias parecem, então, constituídas. Tornamos-nos
germanistas, no sentido universitário especializado na Alemanha e
nos países de língua alemã, seguindo um procedimento bem
definido e cujas principais etapas são a agrégation de alemão e uma
tese sobre a língua ou a literatura alemã. Diferentemente do
período anterior, não se pode mais passar de uma língua à outra.
A especialização progressiva se traduz definitivamente pela
imposição de fronteiras disciplinares tão rígidas quanto as
fronteiras políticas, e muitas vezes sobrepostas. Ao mesmo tempo,
essas disciplinas deram apenas um pequeno passo na construção de
sua legitimidade. Não podendo rivalizar com as humanidades
clássicas na formação do homem culto, elas utilizam para sua
promoção e sua afirmação um outro instrumento que lhes permite
se inscreverem solidamente nos quadros de formação de um
público esclarecido. As universidades especialistas dos países
estrangeiros preenchem uma função essencial de resposta a uma
demanda social e política, sujeitando-se à exigência de explicação a
respeito da outra. Essa posição de especialista se constrói sobre
uma mistura de registros de escrita com uma importante produção
editorial publicada por revistas ou por casas de edição destinadas a
um público erudito16. Essa capacidade de intervenção nos espaços
públicos é sem dúvida um dos meios que dispõem esses professores
para estabelecer sua legitimidade dentro da instituição, pois mostra
sua necessidade em um período onde essas jovens disciplinas são
ainda pouco reconhecidas na universidade.
No período seguinte, a mutação disciplinar se faz por
uma operação de respeitabilidade. Uma vez a disciplina

16
Cf. P. Olivera, La politique lettrée.

17
suficientemente reconhecida, para ter uma relativa perenidade no
interior da universidade, falta lhe dar uma legitimidade intelectual
à qual ela não pode pretender enquanto encarna-se em escritos
destinados ao público erudito. Entramos, então, em um período de
uma tomada de autonomia em relação ao campo político com um
modelo a alcançar, que é o das disciplinas academicamente
prestigiosas: letras clássicas, filosofia, história..., nas quais as
funções sociais de especialista são raras. É o período de
concentração sobre os objetos canônicos, a literatura clássica, a
filologia, as línguas medievais. Os estudos de alemão ganham
assim um lugar elevado na hierarquia universitária, a partir da
metade do século XX. Alguns indicadores17 mostram um
fenômeno menos marcado para as outras línguas que se situam
mais próximas da geografia ou das ciências sociais, ou seja, mais
abertas socialmente durante o recrutamento e mais voltadas para o
prático e o empírico. Uma das explicações poderia ser a parte
respectiva consagrada, em cada uma dessas disciplinas, às práticas
mais antigas e mais canônicas (filologia) e as mais modernas e
científicas (lingüística). O alemão remete à formação mais
clássica, segundo um modelo dominante no mundo acadêmico
francês que é o das Humanidades. A tradução e o tema alemães
podem ser postos em perspectiva com a tradução e o tema latim,
exercícios que conservam, mesmo depois da Segunda guerra
mundial, as marcas da distinção escolar. Redirecionar a disciplina
do germanismo para objetos literários é, então, desvincular-se de
uma formação puramente mercantil (o alemão de conversação e,
portanto, de comércio) e permitir a aquisição de uma verdadeira
cultura letrada.
A reforma universitária, do fim dos anos 1960, introduz
uma ruptura nesse processo com o questionamento do sistema de
cadeiras anterior e o desenvolvimento de ramos profissionais,
dentro dos quais as línguas estrangeiras ganharam um lugar

17
Cf. P. Bourdieu, Homo Academicus, op. Cit., pp. 159-160.

18
importante através, principalmente, das LEA ("Línguas
Estrangeiras Aplicadas"). A criação de novas universidades na
região parisiense será a ocasião do renascimento material de um
ensino de civilização, em Vincennes e depois no Instituto Alemão
de Asnière, dependente de Paris III. A partir desse momento, a
divisão entre os adeptos de uma disciplina literária e os partidários
de uma abertura civilizatória se inscreve em uma partição entre os
diferentes ramos, mas também entre as universidades, algumas
delas se engajando na defesa do germanismo criado após a
Segunda Guerra Mundial.
Esse esquema cronológico, relativamente bem conhecido
hoje em dia para o germanismo, pode ser proposto pelo estudo das
disciplinas adjacentes, a fim de esclarecer o que vem de um
processo geral de construção disciplinar e que distingue cada uma
das áreas culturais. Para fazer isso, um certo número de pistas
deve ser explorado, começando por uma reflexão sobre a
construção das hierarquias universitárias e o lugar que aí ocupam
essas disciplinas de língua e civilização estrangeiras. O estudo das
condições de construção de uma disciplina universitária poderia,
assim, ser considerado como a reconstituição de sua evolução
dentro do espaço da legitimidade acadêmica. Uma das formas de
medir tal fenômeno é a de se interessar pelas características sociais
de seus professores, comparando-as às características sociais dos
outros professores. Pierre Bourdieu faz esse tipo de pesquisa sobre
a universidade dos anos sessenta em Homo Academicus, a presença
dos normalistas e dos agrégés sendo utilizada como indicador
principal dentro das faculdades de letras. A modificação dos perfis
dos professores recrutados, que podem ser facilmente
reconstituídos graças aos instrumentos biográficos clássicos
(dicionários, notícias necrológicas, títulos e trabalhos...), serve,
então, para medir as transformações internas à disciplina.
Uma segunda pesquisa paralela pode ser feita em torno
da questão da produção intelectual própria à disciplina, de seus
modos de controle, de seus critérios de avaliação. Ela pode ser
percebida tanto pelas publicações dos professores, como também
19
pela lista de temas de teses e de programas dos concursos, em
particular o da agrégation. Torna-se possível, então, medir quais
são as normas intelectuais próprias à disciplina que deve respeitar
aquele que quer fazer carreira nessa profissão. O centro da
legitimidade definido pelo conjunto de temas tratados, no quadro
do tríptico "concurso-doutorado-revistas especializadas", permite
medir os afastamentos possíveis e impossíveis e o benefício ou o
preço a pagar, que são a conseqüência disto, a partir do momento
em que colocamos a carreira e as publicações de um professor em
perspectiva. Surgem, então, os perfis de excelência, as estratégias
de desvio ou de compensação e as trajetórias marginais.
Resta assinalar que este estudo disciplinar não seria
totalmente satisfatório se ele se limitasse aos quadros
universitários, humanos e intelectuais, desta categorização dos
saberes. Como destacamos na introdução, o processo de
construção disciplinar deve sempre ser pensado em suas interações
com os outros campos, sejam eles intelectuais ou políticos. De
fato, no caso do germanismo, não podemos compreender as
condições de possibilidade da respeitabilidade, da metade do século
passado, se não analisarmos, ao mesmo tempo, o desdobramento
exterior da função de perícia política até então reservada aos
germanistas. Em uma perspectiva de longa duração, é que o
ensino de língua e civilização estrangeiras está longe de se limitar
às disciplinas universitárias que o organizam, em particular por
causa da tradição, que fazia dos professores de língua e literatura
estrangeiras do século XIX "mediadores culturais", destinados ao
público letrado. Na época, a distinção entre os viajantes, que
faziam discursos sobre os estrangeiros no âmbito "privado" das
revistas ou dos salões, e aqueles cuja palavra se inscrevia num
âmbito público (cursos universitários), era, no mínimo, tênue.
Esta proximidade persiste durante todo o período de criação das
disciplinas (III República Francesa), no qual os estudantes e o
público culto receberam "ensinamentos" comparáveis. A distinção
que implica a concentração da disciplina sobre os objetos eruditos
(literatura clássica, língua, filosofia...) cria, então, um espaço vazio
20
no qual vão se inscrever outros perfis e outras disciplinas. Assim, a
Alemanha contemporânea se torna um objeto importante para a
ciência política em plena renascença nos anos cinqüenta. Esta
constatação deve conduzir os pesquisadores a não limitar sua
pesquisa à disciplina universitária constituída, numa lógica
puramente teleológica, mas, de preferência, considerá-la como um
elemento central dentro de um dispositivo geral de informação das
elites francesas sobre os países estrangeiros.

Emmanuelle Picard - Professora concursada em História, doutora em


História pelo Institut d’études politiques de Paris (Tese: Des usages de
l’Allemagne. Politique culturelle française en Allemagne et rapprochement
franco-allemand, 1945-1963. Politique publique, trajectoires, discours, sous la
direction de Jean-Pierre Azéma, 1999). Pesquisadora no Service d’histoire de
l’éducation, INRP-ENS (45 rue d’Ulm, 75005 Paris), responsável pela pesquisa
« Histoire de l’enseignement supérieur français au XXe siècle ». Lista de
publicações no site: http://www.inrp.fr/she/pages pro/picard.htm E-mail:
Emmanuelle.picard@inrp.fr

Sabina Ferreira Alexandre Luz - Aluna do sexto semestre do Curso de


História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de
Iniciação Científica CNPq/PUCRS (2006/1).

Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação - História e


Filosofia da Educação (USP); professora do Programa de Pós-graduação em
Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul;
pesquisadora do CNPq. E-mail: mhbastos@pucrs.br

Recebido em: 20/11/2006


Aceito em: 15/03/2007

21
.
UM MODELO DE ESCOLA NA FRANÇA EM
TORNO DE 1660-1740: A ESCOLA CRISTÃ1
Marcel Grandière
Tradução Sabina Ferreira Alexandre Luz
Revisão Maria Helena Camara Bastos

Resumo
A Igreja ajuda a construir um modelo de escola cristã, na segunda
metade do século XVII, na França: uma escola contra a desordem da
sociedade. Este texto destaca como a organização da escola, a
maneira de ensinar, os gestos e hábitos de vidas impostos, e os
conteúdos de ensino, participam para essa finalidade de instrução das
crianças pobres.
Palavras-chave: Regulação social, religião, maneira de ensinar,
ordem do tempo, habitus, conteúdo de ensino.

A SCHOOL MODEL IN FRANCE AROUND 1660-1740:


THE CHRISTIAN SCHOOL
Abstract
In the second half of seventeenth century, the Catholic Church helps
to build a Christian school model in France: a school against society
disorder. This text underlines how school organization, teaching
methods, imposed gestures, life habits, and subjects taught contribute
to the purpose of instructing poor children.
Keywords: Social regulation, religion, teaching methods, time
ordering, habitus, teaching contents

UN MODELO DE ESCUELA EN FRANCIA ALREDEDOR


DE 1660-1740: LA ESCUELA CRISTIANA
Resumen
La Iglesia ayuda a construir un modelo de escuela cristiana, en la
segunda mitad del siglo XVII, en Francia: una escuela contra el
desorden de la sociedad. Este texto destaca como la organización de
la escuela, la manera de enseñar, los gestos y hábitos de vidas

1
Do original: «Un modèle d’école en France vers 1660-1740: l’école chrétienne.
IN: GRANDIÈRE, Marcel; LAHALLE, Agnès (Dir.) L’innovation dans
l’enseignement français (XVI – XX siècle). Lyon: INRP; Nantes: CRDP de
Pays de Loire, 2004. p.35-51. Autorizado pelo autor para publicação na revista
História da Educação/ASPHE-UFPel.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 23-50, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
impuestos, y los contenidos de enseñanza, participan para esa
finalidad de instrucción de los niños pobres.
Palabras-clave: regulación social, religión, manera de enseñar,
orden del tiempo, habitus, contenido de enseñanza

24
Um modelo de escola se constrói, na segunda metade do
século XVIII, na França: uma escola contra a desordem da
sociedade. É essa desordem que preocupa as elites, com seu cortejo
de misérias, de mortalidades e de violências. Os pobres e os
protestantes são considerados responsáveis por esta situação.
A imagem de pobre não é nada favorável. A ignorância
popular inquieta os membros da Companhia do Santo
Sacramento, particularmente a ignorância religiosa2. O bispo de
Vence, Antoine Godeau, no seu Discours sur l’établissement de
l’hôpital général fondé à Paris [...] publicado em 1657, chama a
eminente dignidade dos pobres, que todos devem venerar, mas
aponta igualmente sua ignorância das verdades da religião, sua
natureza desregrada, que os leva a roubar, pilhar e mendigar. A
privação da liberdade, que organiza o hospital geral, tem por
objetivo restabelecer "o status mais santo da pobreza em sua
primeira reputação"3.
O modelo de escola, do fim do século XVII e início do
século XVIII, participa dessa complexa atitude diante dos pobres e
da plebe. O movimento que impõe a criação de escolas acompanha
o esforço da instituição das casas de caridade, dos hospitais gerais,
para aprisionar e reerguer os pobres. A escola aparece como uma
resposta, entre outras, aos males da sociedade. O grande professor
primário das escolas de Lyon, Charles Démia, também da
Companhia do Santo Sacramento, faz a ligação entre a pobreza, a
"profunda ignorância" e "a última libertinagem" da juventude das
cidades4. A luta contra a pobreza passa então por uma reforma

2
A Companhia foi fundada em 1629 por um laico, o Duque de Ventadour; um
oratoriano, o padre de Condren; um jesuíta, o padre Suffren; e um capuchinho,
Philippe d’Angoumois. Seu objetivo era unir as forças católicas para agir na
sociedade e cristianizar o corpus social. Ver Alain Tallon, La Compagnie du
Saint Sacrement. Paris, Éditions du Cerf, 1990.
3
Alain Tallon, Ibid., p.145.
4
Charles Démia, Règlemens pour les écoles de la ville et diocèse de Lyon [...]. A.
Olyer, (s.d), « avis au lecteur ».

25
moral. È também a que praticam as irmãs de Saint-Charles
d’Angers, cujo ato de estabelecimento data de 1714: quando
visitam os doentes, os inquirem sobre os conhecimentos de religião
das famílias, do cuidado dispensado com a educação das crianças,
das ocasiões de excesso5. O pobre é por sua vez figura de Cristo,
"templo animado", natureza desregrada e ameaça social.
Essa imagem complexa se observa particularmente
naquelas crianças mais miseráveis. São os rejeitados que são
deformados pelos maus costumes e que, em conseqüência, devem
ser reerguidos. Démia, no seu Remontrances para as autoridades
das cidades6, escreve a propósito dos jovens maus alunos: eles
"caem ordinariamente na preguiça; só fazem levar uma vida de
libertinos e a vadiar, os vemos em grupos, conversando sobre
assuntos devassos, se tornam indóceis, libertinos, jogadores,
blasfemos, brigões, entregam-se à imoralidade, ao furto e ao
banditismo [...]". Então, deve-se cortar aquilo que é ruim, fazer
crescer as sementes de Deus asfixiadas pela desordem. É o que
deve ser feito com o pobre de Deus, é reerguê-lo, o liberar dos seus
entraves, extirpar o vício que é ativo nele.
Que papel a escola pode ter para levar as crianças no
caminho correto.

A organização da escola

A escola é uma organizadora de ordem: ela procura


materializá-la no espaço onde as crianças evoluem. Existe toda
uma construção modelada do espaço escolar. Parece que a ordem,
assim como o tempo, exige a materialização espacial.

5
Règlement pour les écoles de charité gouvernées par Mademoiselle Jallot, (s.d),
archives de la communauté.
6
Remontrances [...] aux prévosts des marchands, eschevins [...], Lyon, 1666.

26
O espaço da sala de aula
Podemos representar o espaço modelo da sala de aula
segundo L’école paroissiale de Jacques de Batencourt7. O prédio,
em primeiro lugar, deve estar preferencialmente situado perto da
igreja paroquial, mas em um canto, longe da agitação da rua.
Batencourt prevê salas grandes, para cem a cento e cinqüenta
crianças, iluminadas de cada lado por grandes janelas, e aquecidas
por lareiras. Uma pia de água benta permite que as crianças se
benzam ao entrarem na sala: a escola é, de fato, segundo l’Essai
d’une école chrétienne, publicado em Paris em 1724, "a igreja das
crianças".
O centro da sala é o lugar escolhido para receber a
imagem do crucifixo: trata-se, em Paris, de uma imagem de papel
em talho-doce, de dois pés e meio de altura (ou seja, 81 cm); essa
imagem é acompanhada de outras, como da Virgem e dos santos,
e de um grande retábulo representando o julgamento final. A
imagem do Cristo é a referência da sala, o centro simbólico da
escola. Por isso, esse lugar é protegido, desprendido, as carteiras
dos alunos encontrando-se afastadas dele. Ele constitui-se até
mesmo em pequeno oratório para as freiras do padre Barré em
Rouen. Todos os alunos viram-se, individualmente, na direção
dessa imagem ao entrarem na sala e todos, de joelhos, ao menos
quatro vezes por dia, na direção do mestre.
Cada um e cada coisa em seu lugar!8 A regra é que cada
um esteja exatamente no lugar marcado, e que os diversos
materiais escolares estejam "encerrados" em um lugar apropriado.
O mestre encontra-se em sua cadeira com braços, as crianças

7
L’escole paroissiale ou la manière de bien instruire les enfans dans les petites
escoles, Em Pierre Targe, livreiro do arcebispo de Paris, 1654. Utilizamos nesse
texto (p. 48 a 50) a edição de 1669: Instruction méthodique pour l’école
paroissiale, dressée en faveur des petites écoles, par MIDB, prestre, Paris, Pierre
Trichard.
8
"Chacun et chaque chose à sa place!". Nota do tradutor.

27
sentam-se nos bancos que ocupam toda a extensão das paredes,
reagrupados em pequenos grupos de nível, chamados de "classes",
"bancos" ou "bandas", dirigidas por oficiais9. Os bancos podem ter
alturas diferentes segundo o nível de leitura que comanda
geralmente a organização pedagógica da sala. Existem lugares
reservados aos novos alunos, para que sejam reconhecidos pelo
mestre e "enquadrados nas práticas da escola" 10 pelas crianças
mais avançadas. Quando há mesas para escrever, elas são
colocadas perto das janelas; ou senão, a sala possui escrivaninhas
quadradas para duas pessoas utilizadas na hora do exercício.
Tudo deve ser posto em seu lugar. As cestas do almoço
sobre uma prateleira, com um pequeno cesto para recolher as
esmolas, os objetos pessoais sobre ponteiras ou portas-casaco;
existe também um armário que é fechado à chave para guardar os
livros atribuídos aos pobres, cada um sendo estritamente
individualizado, os do mestre, a cesta dos terços levada todo dia
para a missa pelo oficial nomeado para isto, os registros e os
catálogos da sala, as imagens dos santos. Existe ainda uma estante
para receber a cesta de papel e o necessário para a escrita, ou seja,
a tinta, os tinteiros portáteis, o pó para secar e as plumas. Essas
questões materiais não são apenas detalhes: podemos contar uma

9
"O mestre dividirá sua Escola em quatro ou cinco bancos, segundo a
quantidade e capacidade de seus alunos; colocando no primeiro os mais capazes,
como são os que aprendem a ler em francês, e nas Letras, a escrever, e a
aritmética. No segundo, os que lêem razoavelmente no livro de orações. No
terceiro, os que sabem soletrar e associar as palavras. E no quarto, os que
aprendem a conhecer suas letras e a juntar as sílabas.", Em Lettre pastorale de
Monseigneur l’Évêque de Bayeux touchant les petites écoles, avec une méthode
pour apprendre en peu de temps à lire, écrire, faire la catéchisme, et chanter,
Caen, 1690, "Manière de conduire une école", p. 59-60. Segundo os Règlements
de Charles Démia, op. cit., p. 19, "o mestre dividirá sua Escola em salas
diferentes, com relação à capacidade dos Estudantes [...]. Quando a Escola for
numerosa, pode-se subdividir cada uma dessas salas em diversas bandas [...]".
10
Jacques de Batencourt, op. cit., chap. II, art. 3.

28
pinta11 de tinta por mês em Moulins, e uma centena de pincéis
por ano!12
Até mesmo as crianças são cuidadosamente registradas
na escola cristã. Trata-se de pôr em ordem as inscrições, ou seja,
impedir as mudanças descontroladas de escola, verificar que os
mestres não se encarregam de mais estudantes do que o possível
para ganhar mais dinheiro (em Paris, a escola paroquial limita a
cem o número de estudantes por sala quando o mestre é ajudado
por um assistente, e a sessenta quando não o é)13; em Moulins, em
Poitiers, a previsão era de cem para o grupo dos grandes, cento e
cinqüenta para os pequenos. O registro rigoroso dos estudantes
visa ainda o controle das entradas nas escolas de caridade
reservadas aos pobres, ou mais pedagogicamente, a classificá-los
em grupos de capacidades diferentes que estruturam a escola.
O registro existe em todos os lugares: nele estão
inscritos, segundo a data de chegada devidamente estabelecida, os
nomes e sobrenomes das crianças, os dados dos pais e mães, do
parente que representa a criança órfã, o nome da rua, do pavilhão,
da paróquia onde mora a família; algumas informações mais
detalhadas próprias para guiar a ação do mestre também são
registradas: hábitos e caráter das crianças, sacramentos recebidos
(o registro dos Lasallistas marca uma cruz para as crianças que

11
Medida antiga. Nota do tradutor.
12
Règlement concernant la conduite et la direction des écoles charitables établies
dans la ville de Moulins, sous le titre et la protection du Saint Enfant Jésus,
manuscrito, p. 34, Arch. départ de l’Allier, D. 145.
13
Segundo Batencourt, op. cit., chap. III, "Sobre a admissão das crianças na
escola", "É preciso que o mestre seja prudente na admissão das crianças afim de
não se sobrecarregar além de suas forças, o que traria um grande prejuízo às
crianças [...]", p. 62. As medidas efetuadas por Martine Sonnet, L’éducation des
filles au temps des Lumières, Paris, Éditions du Cerf, 1987, nos levam a pensar
que as turmas das escolas de caridade de moças em Paris acolhiam efetivamente
60 a 70 alunos, enquanto que os professores e professoras de canto ensinavam
menos de 20 crianças.

29
comungaram, e um "c" para aquelas que foram confirmadas),
incômodos e enfermidades que podem justificar as ausências, se
eles sabem ler e escrever... Como a criança é registrada pelos pais,
ou o adulto a quem ela foi confiada, o mestre deve aproveitar esse
momento para saber se outra escola já foi freqüentada por ela, se a
criança é mimada pela família, ou, ao contrário, tratada de forma
muito rude, se convive com más companhias. A este primeiro livro
pode ser adicionado outro, renovado cada mês, para anotar o
pagamento da escolaridade, quando esse último é praticado.
Os Lasallistas são os mais rigorosos na precisão da
inscrição: ao catálogo habitual dos alunos admitidos na escola, se
acrescentam outros dois: um "catálogo das ordens da lição", onde
cada criança é inscrita em seu nível, com a data precisa de sua
entrada, e também com uma contagem precisa dos atrasos, das
faltas justificadas e o número de vezes que a criança não soube seu
catecismo, e enfim o "catálogo para servir à troca de lição dos
estudantes da escola" destinado aos inspetores, para lhes dar as
indicações necessárias ao controle das mudanças das lições. Fora
das escolas Lasallistas, há um sistema de catálogo (diferente do
registro) que permite uma rápida visualização dos presentes e dos
ausentes: em Paris, murais de madeira para colocar o nome dos
oficiais e de todos os alunos sobre pequenas cartolinas amarradas
com cordinhas e, portanto, facilmente desamarradas. Em
Moulins, um mural com furos (seis diante de cada nome, um para
cada dia da semana) permite o mesmo controle das faltas.

A organização do tempo
A ordem da escola necessita ainda da tomada de
consciência da passagem do tempo pelas crianças para que elas
tenham um bom domínio sobre ele. Aprender a se situar no tempo
cotidiano, semanal e anual, ser capaz de compreender e de ter
percepção da duração, essas são aquisições essenciais realizadas na
escola. Elas são suscetíveis de evitar a desordem da vida habitual
aos pobres, segundo uma imagem frequentemente retomada. A

30
não-ocupação, o ócio, na realidade a desordem temporal,
conduzem ao vício, à libertinagem e à violência.
Daí a vontade de organizar bem o tempo na escola,
ritmado pelo sininho do mestre, o sinal do irmão lasallista, o
batimento de suas mãos, o lançamento de curtas invocações
religiosas. Chegar "na hora marcada" é uma exigência repetida dos
métodos. As aulas duram quatro/cinco horas, às quais é preciso
acrescentar um tempo de repetição antes da chegada do mestre de
manhã e à tarde, mais o tempo de celebração do sacrifício da
missa, obrigatória.
Eis uma "disciplina das escolas" tipo, segundo a
expressão da Lettre pastorale de Bayeux: suponhamos que as
escolas abram às 7 e meia, sabendo que existe praticamente em
todos os lugares uma diferença de meia hora entre o inverno (entre
o dia de todos os Santos e a Páscoa) e o verão. Os oficiais, sob a
direção dos intendentes, dirigem, então, a escola. A chegada do
mestre às 8 horas é marcada pela recitação das preces da manhã,
de joelhos, a classe inteira virada para o crucifixo. É o primeiro
exercício da turma, já que ele permite a memorização de todas as
preces que ritmarão sua vida de adulto. Até às nove horas são
feitas as lições de leitura, graças a uma hábil organização na qual
os alunos mais adiantados fazem os outros estudarem. Quando
terminam a lição, continuam a repetir sozinhos, sem barulho, ou
podem pegar seus trabalhos manuais, como as meninas de Rouen.
Às 9 horas, as leituras estão globalmente terminadas, ao menos
para os mais avançados. Preces rápidas marcam a hora: o tempo
pertence a Deus e é bom que as crianças construam o tempo
cotidiano em referência a ele. Também é o tempo do almoço para
todos, inclusive para os mais pobres que recebem uma esmola de
seus companheiros. Na volta, os exemplos de escrita preparados
pelo professor ou o professor assistente, são distribuídos, assim
como as plumas rigorosamente arrumadas em um catálogo
específico que pode ser uma tábua pequena com furos onde são
inscritos os nomes daqueles que escrevem. Os menos adiantados
que ainda não tinham lido, podem fazê-lo agora. A manhã
31
termina às 10 horas com preces: as crianças são tão logo
conduzidas em filas, duas a duas, à igreja para a missa.
Depois do jantar, a aula é conduzida da mesma forma:
preces, leituras, depois escrita. Há, no entanto, na segunda hora,
uma meia-hora consagrada ao cálculo com a pluma ou com o
"jet"14 para os mais avançados, e o último quarto de hora é
reservado ao pequeno catecismo, que é feito todos os dias no final
da tarde.
A construção do tempo da semana é adquirida graças a
alguns momentos específicos que a ritmam: o dia ou meio-dia de
folga nas quintas geralmente, os dois grandes catecismos das
quartas e dos sábados, a partir de quinze para as três da tarde. A
escola também procura situar as crianças no tempo do ano, graças
a preparação dos mistérios de cada festa dominical ou de
obrigação, com momentos mais marcados correspondendo às
grandes festas religiosas do calendário litúrgico. As férias se situam
em torno do mês de outubro. A ordem da escola tende, dessa
forma, a garantir uma formação completa das crianças, uma
educação total, onde o espaço, o tempo, a ordem das coisas são
rigorosamente organizados. A ambição da escola é a de ensinar as
crianças a regularem suas vidas.

A maneira de ensinar

A maneira de ensinar mostra igualmente essa busca pela


ordem que caracteriza o período 1660-1740. O modelo de escola
que é construído então pode ser caracterizado segundo três pontos
essenciais: a seqüência da aprendizagem, a organização dos alunos
em classes, a disciplina exigida das crianças.

14
Peça chata e geralmente redonda que servia antigamente para fazer cálculos.
Nota do Tradutor.

32
Organização em seqüência da aprendizagem
Os pedagogos querem impor a organização em seqüência
da aprendizagem, a ordenação meticulosa dos gestos para
aprender, e fazem uma análise tão precisa quanto o possível de
todas as etapas dessa operação. Procuram estabelecer uma
verdadeira estratégia que pode se assemelhar à taxionomia
moderna, com seus numerosos itens.
Vamos pegar o exemplo da escrita, particularmente
significativo. O método supõe primeiramente uma organização
séria. Os alunos oficiais ou "intendentes da escrita" são
encarregados da gestão dos montes de papel apertados em um
armário ou em uma caixa, da distribuição das folhas do dia e dos
exemplos preparados pelo mestre, ou comprados na cidade na casa
de um mestre da escrita. Quanto a maneira de aprender a escrita,
ela é, segundo os métodos, muito rigorosa. Trata-se de pôr em
harmonia os dedos, o punho, o braço e o conjunto do corpo. Tudo
deve ser perfeitamente controlado, ou senão corre-se o risco de ter
borrões de tinta, bicos de pluma esmagados, "orelhas" que
destroem os cantos das folhas! Escrever é uma técnica do corpo
que só é aprendida com muito método, exercícios e correções.
A primeira dificuldade a ser vencida é a de segurar a
pluma, ou seja, de aprender a posição do polegar (à esquerda), do
indicador e do dedo médio (à direita). Soltar a mão é uma
operação tão delicada que os Lasallistas propõem, no começo, dar
às crianças bastonetes marcados com três cavidades para elas
aprendam a posicionar corretamente os dedos. A harmonia dos
dedos depende também da maneira como as falanges estão
dobradas. Quanto ao punho, ele não deve encostar-se à mesa, mas
deve ser mantido ligeiramente alto pelos outros dedos. O braço
esquerdo, ao contrário, fica sobre a mesa e sustenta o corpo. Até
mesmo o porte do corpo é imposto: "nem muito inclinado sobre o
papel, nem muito reto, mas numa agradável média" segundo

33
Batencourt15. Ele aconselha ainda de "baixar medianamente a
cabeça e os ombros em direção à escrita" e de não apoiar seu
estômago sobre a mesa.
Evidentemente, isso não é tudo! Pois, quando o corpo é
endireitado, é preciso pensar no movimento da pluma. Isto
significa que é necessário ser capaz de escrever direito sobre as
folhas. Os mestres utilizam para isso transparentes, ou folhas que
"endireitam-se" elas mesmas, a primeira linha somente para as
crianças que começam a manter corretamente suas mãos. Quanto
ao movimento circular, as crianças normalmente o adquirem
exercitando com o o e o i (ou o c), aprendidas as primeiras letras,
absorvendo assim os modelos que o mestre fez e que eles têm sob
os olhos. O método de Bayeux propõe uma espécie de transparente
feito de osso desengordurado aplicado sobre o exemplo, e sobre o
qual eles podem traçar e apagar as letras do alfabeto16. Depois do o
e do i, as crianças das escolas de Bayeux passam ao a (feito de um
o e de um i), ao f, m e n, que são todas consideradas "letras
iniciais" que preparam a escrita das outras letras.
Durante a aprendizagem começa a difícil operação de
talho da pluma. Trata-se aqui também de um conjunto de gestos
extremamente técnicos e delicados, pois eles dependem tanto da
escrita que queremos praticar (redonda, bastarda) quanto do
material (pluma mais ou menos seca). É preciso abrir a ponta do
tubo, o talhar bem levemente, e fazer um bico17. Podemos ver toda
a arte de controlar a si mesmo que supõe a aprendizagem da
escrita.

15
Jacques de Batencourt, L’école paroissiale, op. cit., p. 199.
16
Lettre pastorale de Monseigneur l’Évêque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680, p.
69.
17
Para saber "como é preciso talhar a pluma", ver o Livre d’écriture [...] escrit et
gravé par Louis Senault, Paris, 1668.

34
A pedagogia do monitorado
As crianças são organizadas em "classes", segundo seu
nível, sobre a responsabilidade de um oficial. Sua fileira no grupo
depende também do seu progresso e mérito. O lugar ocupado na
sociedade da escola é adquirido, mas é preciso defendê-lo a todo
instante contra as pretensões dos colegas. Quando o mestre, ou o
oficial encarregado da leitura, reúne mais ou menos dez crianças
diante do alfabeto18 pendurado em uma prateleira de madeira, ele
começa sempre interrogando o primeiro da "classe", ou seja, o
mais avançado. Ele pratica da mesma forma com os grupos que
chegaram à leitura de um livro: determina todas as mudanças de
leitores, do mais avançado ao último, com uma vareta ou o toque
de um sininho, tendo confirmado no início que todas as crianças
possuem a mesma obra, com a mesma impressão. Todos devem
manter o dedo sobre a palavra lida, dizendo baixo o que o leitor
pronuncia em voz alta.
A organização da escola pela nomeação de oficiais é uma
das características principais da pedagogia das pequenas escolas.
Eles atendem sob o título de mestres, intendentes, capelães,
visitantes, porteiros, decuriães, "dizainières"...19 Esses oficiais são
numerosos: vinte "dizainières" nas escolas do padre Barré,
aproximadamente o mesmo em Lyon quando se conta os
decuriães, encarregados de um "grupo" de crianças. E visto que
eles mudam muito (segundo os métodos e as tarefas, a cada quinze
dias, a cada mês ou de outra forma), podemos pensar que a
maioria das crianças, durante os três ou quatro anos que passam
na escola, tem acesso a essa honra de receber um cargo do mestre.
Esses oficiais não fazem figuração: eles exercem o cargo
na escola de manhã e à tarde, antes da chegada do mestre, e o

18
Lettres pastorales de Monseigneur l'Évêque de Bayeux, op. cit., Caen, 1680,
p. 69.
19
Dizainière: pessoa encarregada de uma quantidade de crianças. É um ofício,
uma função confiada a uma aluna que é chamada "dizainière".

35
ajudam em seguida na atividade pedagógica da turma. Dessa
forma, são os mestres assistentes ou intendentes que fazem reinar
a ordem no começo de cada meio-dia, que vigiam o resto de seus
colegas, inclusive os outros oficiais, garantem que cada um faz sua
tarefa, que as crianças se dirigem aos seus lugares e que não
conversam. Eles anotam os culpados para que sejam punidos. O
mestre os utiliza ainda durante a aula para os exercícios de leitura
e de escrita de maneira a atenuar a sobrecarga das crianças. O
porteiro tem autoridade para impedir a entrada na sala daqueles
que não estão vestidos de maneira correta. Quanto aos decuriães,
seu papel é importante, pois são eles que fazem recitar as lições e
dirigem em seguida o pequeno grupo do qual são responsáveis.
Existe até oficiais visitantes que investigam as condutas
domésticas nas famílias: a obediência e o respeito devido aos pais,
assim como a saudação de manhã e à noite, as relações entre
meninos e meninas, a prece comum que deve ser dita todos os
dias. É, portanto, pela prática que a desordem inerente às crianças
é controlada na escola.

As relações na classe. Os castigos


As relações entre o mestre e os alunos são marcadas por
uma grande reserva. A familiaridade não existe, nos regulamentos
pelo menos: não se pode brincar. Existe uma ordem nas relações
que não se deve romper. Se a escola é a igreja das crianças, ela
deve ensinar o respeito e a dignidade do porte.
As comunicações são as mais breves possíveis. Sinais
sonoros, pequenas preces ou exortações anunciam as diferentes
atividades da escola. O mestre deve manter-se distante em
qualquer ocasião. Também é recomendado aos mestres que fiquem
afastados da vida social, que se divirtam longe da visão dos pais e
das crianças.
As crianças, que não se comovem com o silêncio do
mestre e que infringem as regras, devem ser punidas. A obrigação
de proceder dessa maneira, a menos que o mestre tenha cometido

36
um erro grave, mas também a prudência que requer o castigo, são
considerações importantes que fazem parte do modelo de escola.
Trata-se de endireitar naturezas marcadas pelo pecado original e
permitir que as graças depositadas por Deus desabrochem. Os
textos das Escrituras são sem nenhuma ambigüidade sobre a
necessidade de endireitar as crianças. Mas se os princípios são sem
falha, a prática não o é e necessita muitas precauções: é preciso
fazê-los reconhecer seus erros, evitar de castigar sem razão, evitar
também de fazê-lo em um momento de raiva e de exaltação. É
preciso ainda impedi-los de gritar durante o castigo, de murmurar
depois. Um bom castigo é aceito pela criança castigada. Os
mestres devem evitar tocar na cabeça da criança e ter atenção de
nunca bater com as mãos; eles aplicam a sentença, sobretudo, nas
mãos (palmatória) ou nas nádegas quando usam o chicote. Por
isso a precaução de aplicá-la em um lugar separado, ou atrás de
uma cortina, para o exemplo de todos, preservando, no entanto, o
pudor: pode ser perigoso mostrar uma criança em uma posição
impudica, mesmo que para castigá-la.

O ensino

A noção de ordem prevalece sempre no que concerne o


ensino dado. O que deve saber uma criança que sai da escola
depois de somente alguns anos de presença mais ou menos
regular? Ler sem dúvida, escrever, e no melhor caso, contar. Isto é
clássico, mas é preciso ir mais longe.

A hierarquia da sociedade
A criança aprende a se situar em relação às outras
pessoas que a cercam. A primeira preocupação dos métodos é de
construir uma hierarquia de pessoas, de conscientizar,
particularmente as crianças pobres, que existe uma ordem de
relações na qual elas devem se inserir. É, sem dúvida, um dos
primeiros benefícios da escola, o que define melhor seu papel
37
simbólico em uma sociedade vista como profundamente
perturbada.
A criança deve dominar a ordem de relações entre as
pessoas com as quais vive. A ordem de sua vida depende dessa
conscientização. A relação com Jesus, filho de Deus, é,
evidentemente, a primeira, já que ele é o coração da escola. É ele
que saudamos ao entrar na sala, retirando o chapéu, pegando água
benta na pia batismal, ajoelhando-nos diante do crucifixo, ou
fazendo uma reverência, como as meninas de Rouen nas escolas de
Nicolas Barré20. Os exercícios de leitura começam pelo sinal da
cruz21. Todo dia há missa, ou na parte da manhã antes das aulas,
ou em torno de 10-11 horas, depois de duas ou três horas de
trabalho. É com Cristo que falamos na escola, através das preces
da manhã, das orações recitadas a cada hora, das preces do fim da
aula. Aliás, a criança só fala praticamente com ele, acrescentando
também a Virgem e os Santos, já que ela deve ficar em silêncio
durante toda a aula, só falar com o mestre caso seja necessário, a
comunicação na sala se faz principalmente através de sinais. E
para que as crianças compreendam bem a preeminência absoluta
do Cristo na hierarquia social, as faltas de atenção e os barulhos
feitos na relação com ele não merecem o perdão e são punidos
com o castigo do chicote22.

20
Sobre a obra de R.P. Barré, ver: Nicolas Barré, Oeuvres complètes, Paris
1994, et Nicolas Barré, L’éducation des pauvres aux XVIIe et XVIIIe siècles,
Actes du colloque Nicolas Barré, religieux minime, 1621-1686, Cahiers
scientifiques de l’université d’Artois, 1998, estudos reunidos por Marie-Claude
Dinet e Marie-Thérèse Flourez.
21
Segundo L’école paroissiale, "De la méthode à montrer les lettres", p. 173,
"para mostrar bem as letras, é preciso que eles comecem fazendo bem o sinal da
cruz".
22
Na Conduite des écoles chrétiennes, de Jean-Baptiste de La Salle, chap. V,
"Des corrections en general", p. 147-149, a correção por varas, e até a expulsão
da escola, são aplicadas às crianças desobedientes, pouco estudiosas, brigonas, as
que não rezam na igreja e as que se mostraram "imodestas" na missa e no
catecismo.

38
As outras imagens da escola são a Virgem, São José, o
anjo guardião, os santos da diocese e da paróquia, todos
representados por imagens. Os santos principais do calendário
cristão só são colocados em uma prateleira de madeira na ocasião
de sua festa para que se conheça o mistério de cada um deles. A
hierarquia entre eles é manifestada pelo tempo durante o qual
permanecem na dita prateleira e pelo tamanho dos cartazes23. A
ordem de relações se estende evidentemente às pessoas com
autoridade que cercam a escola, ou seja, primeiramente ao padre
cuja autoridade é sempre afirmada, depois aos diretores que tem a
seu cargo a gestão das aulas, quando um bureau das escolas foi
constituído, segundo o modelo de Lyon de Charles Démia24. É o
caso, por exemplo, em Moulins, em Poitiers, em Bayeux e em
Toul25.
A criança também deve situar o mestre na ordem de
relações: sua imagem é claramente desenhada pelos métodos. O
esforço para colocá-lo em evidência é considerável. Em primeiro
lugar fisicamente, pois ele se instala sobre um estrado em uma
cadeira com braços. Em seguida simbolicamente, porque ele
representa Jesus Cristo diante de suas crianças. O discurso
episcopal dos métodos não hesita em desenhar uma imagem dos
mestres e das mestras de escola que os afastam do comum, os
aproximando do ministério divino. Quais são as características

23
Ver Batencourt, op. cit., "Les meubles de l’école", p. 51 et sq, et Démia, op.
cit., p. 29-30. Esse último prescreve para cada escola "uma pequena cartolina ou
moldura para colocar a imagem do catecismo, que é mudada a cada festa".
24
Segundo uma ordem dada pelo bispo de Lyon datando de 1672, e cartas de
porte de 1680.
25
Esses escritórios das escolas, criados com a iniciativa dos bispos, são sempre
presididos por um eclesiástico e compostos de "diretores" escolhidos entre os
principais eclesiásticos e os notáveis laicos da cidade onde são estabelecidos, esses
últimos geralmente vindos das cortes de justiça. O tesoureiro é sempre laico.

39
dessa imagem ideal do mestre?26. Os clichês repetidos da função
são a "santidade do emprego", sua dificuldade e o pouco
reconhecimento do público, o exemplo devido às crianças27. A
humilhação e os sofrimentos são praticamente inseparáveis do
emprego. No entanto, lhes é necessária muita bondade e caridade
para suportar a irregularidade das crianças e a desordem dos pais,
dos quais a escola também tenta impor a autoridade, assim como a
dos oficiais da escola a quem o mestre confiou uma tarefa
particular que os situa acima de seus colegas. Nada como a prática
de uma responsabilidade para situar-se a si mesmo na hierarquia
da sociedade civil e respeitá-la!
Se a escola cristã tenta construir a corrente da
integração social, ela procura romper, paralelamente, certas
relações existentes. É uma característica do modelo de escola lutar
contra as festas de máscaras, na ocasião do carnaval. Os mestres
de Lyon retêm especialmente os estudantes depois do jantar da
terça-feira gorda para impedir "qualquer ocasião de dissipação e de
libertinagem" 28. Nos dias de carnaval, eles organizam debates de
catecismo para reter as crianças na aula. A escola cristã luta ainda
contra as más companhias e os jogos do cabaré, contra tudo que
representa a desordem do corpo e do espírito. No entanto, procura
agrupar as crianças em uma confraria, como a de Saint-Enfant-

26
Apesar dos esforços da Igreja, no entanto, essa imagem não corresponde à
realidade. Em uma carta destinada ao bispo de Oloron de 15 de março de 1737,
o intendente de Béarn, M. de Balosre, fala dos regentes como sendo "cópias de
domésticos" dos padres, "homens mercenários e pouco capazes". Archives
nationales, Fonds du Clergé, G8 643.
27
"Acima de tudo, a vida dos Mestres e Mestras deve ser exemplar e edificante,
porque as crianças absorvem com mais facilidade os defeitos de seus Mestres, do
que as suas virtudes: e como o que elas vêem marcam-nas mais do que o que elas
ouvem, [...] quando os primeiros exemplos que lhes foram dados, são exemplos de
libertinagem e de desordem", Lettre pastorale de Monseigneur l’Évêque de
Bayeux, op. cit., Caen, 1690, p. 28.
28
Charles Démia, op. cit., p. 17. Jacques de Batencourt, op. cit., p. 99, também
quer "desviar as crianças da libertinagem do Carnaval".

40
Jésus na escola da diocese de Lyon, e chega, inclusive, a ajudar
aqueles que mereceram se estabelecer na casa de um mestre para
aprender uma profissão29. A escola interpreta bem, portanto, o seu
papel de reconstrutor da ordem junto as crianças que são
consideradas como vivendo, por natureza, na desordem da vida.

A disciplina dos gestos


O segundo aprendizado importante da escola é o
domínio de si, um domínio que os afasta da rudeza e que torna
mais digna a categoria de criança de Deus. É por isso que a
disciplina dos gestos é uma aquisição importante, como nos
mostra Georges Vigarello em Le Corps redressé: "o corpo é o
primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança"30. Quais
gestos, quais atitudes a escola espera ensinar?
A principal noção que guia os mestres e mestras de
escola é a da modéstia31. A modéstia é a disciplina do corpo, dos
gestos, da voz, das roupas. A escola caça os impulsos que levam
aos socos, às "pancadarias", à exaltação do discurso, às palavras
grosseiras, às injúrias e aos insultos; ela ataca ainda toda falta de
pudor referente à parte baixa do corpo. As imundices do corpo são,
doravante, escondidas, e as crianças que vão às suas necessidades
assinalam com precaução sua presença.
A parte mais visível da modéstia concerne à limpeza e à
conduta. O porteiro vigia particularmente os cabelos penteados,
sem parasitas, as roupas abotoadas, que estejam mais limpas

29
Charles Démia, Ibid, p. 49.
30
Le corps redressé. Histoire d’un pouvoir pédagogique, Paris, Jean-Pierre
Delarge, 1978. Introduction.
31
Segundo o dicionário de Furetière, a modéstia fica próxima do pudor e da
moderação. "A modéstia dos eclesiásticos edifica muito o povo: é preciso que a
modéstia deles apareça muito em suas ações, à sua mesa, no seu trem." O
Dictionnaire de l’Académie (1672) marca ainda mais a evolução da palavra em
direção a moderação na maneira de se conduzir, de falar, de se vestir.

41
possíveis e que não estejam rasgadas, mesmo que eles sejam muito
humildes. A modéstia da roupa exclui qualquer vestígio de vaidade
e de orgulho, como as plumas, os frisados e o pó-de-arroz nos
cabelos. As crianças contaminadas com doenças como a sarna, a
acaríase e as escrófulas não são aceitas na aula. A modéstia
concerne também o passo, regular, a atenção para não fazer
barulho com seus tamancos entrando na sala, o controle de seus
gestos (é proibido se coçar na missa e durante as preces, de respirar
ruidosamente, de olhar tudo sem reserva). "A maneira de ficar em
silêncio é que as crianças estejam cobertas, os braços cruzados, o
olhar baixo, sem que elas abaixem no entanto a cabeça, nem que
curvem o corpo, comportando-se como hipócritas..." 32. São ainda
assinalados como impudicos, pelos oficiais, aqueles que falam, que
empurram os colegas nas filas, que fazem barulho nas ruas...
O controle dos gestos é particularmente sensível nos
rituais de entrada na aula, bem descritos nos métodos. Entra-se na
sala como em uma igreja33. As crianças aprendem a pôr seu corpo
em harmonia com o lugar que elas freqüentarão durante toda sua
vida: a igreja paroquial. Os corpos tornam-se menos rudes na
escola e se liberam das asperezas do populacho. A gestual de
entrada se desenrola sempre dessa forma: tirar o chapéu,
colocando-o debaixo do braço, pegar água benta, ficar em silêncio,
caminhar modestamente, ajoelhar-se diante do crucifixo ou
reverenciar-se, rezar preces curtas em voz baixa (Pater e Ave Maria
geralmente), caminhar até o lugar atribuído. Tendo a criança
controlado seu corpo, ela se preparou em espírito para repetir em
voz baixa suas lições e as respostas do catecismo, antes da chegada
do mestre.

32
Règlements concernant la conduite et la direction des écoles charitables
établies dans la ville de Moulins, op. cit., art. 50.
33
Ver Marcel Grandière, "les petites écoles ou les églises des enfants", p. 7-37,
L’idéal pédagogique en France au dix-huitième siècle, op. cit.

42
Esse último, aliás, não é poupado da exigência de
modéstia: moderação dos gestos, cor escura da roupa, controle da
voz, ar severo; o mestre cria uma compostura que faz as crianças e
os pais lhe respeitarem. É fazendo referência aos eclesiásticos, um
modelo para os mestres, que o dicionário de Furetière define o
termo da modéstia. A virtude da modéstia dos mestres, segundo
Batencourt, "tempera as ações relacionadas à visão, à audição e ao
toque. É por isso que o mestre deve ser bastante cauteloso para
não ter uma visão dispersa, mas modesta: não enferrujar os olhos e
fazer gestos de touro contra suas crianças; nunca bater nelas com
seu chapéu, ou boina, mas somente com a vara, a palmatória, ou a
vareta, nos dedos e nunca na cabeça"34.
Existe ainda toda uma gestual do chapéu bastante
simbólica do controle de si e da aprendizagem da relação com os
outros. O chapéu é generalizado, daí a importância de conhecer
seu uso. O princípio é, evidentemente, de descobrir a cabeça para
saudar, e de recobri-la um pouco depois, quando somos íntimos ou
da mesma categoria. Na escola cristã, os alunos descobrem a
cabeça toda vez que fazem o símbolo da cruz, ou seja, quando
entram na sala, no começo da leitura quando o "banco" de leitores
se levanta, e toda vez que uma prece vai ser dita. Em Poitiers,
quatro badaladas do sino ritmam o fim do almoço das 9 horas e a
recitação das graças: a primeira é para tirar o chapéu, a segunda
para se levantar, a terceira para virar em direção ao crucifixo, a
quarta, enfim, para cantar a prece. Os alunos retiram ainda seu
chapéu cada vez que eles falam com o mestre para recitar suas
lições ou lhe pedir alguma coisa, ou ainda quando uma pessoa
importante entra na sala.

A disciplina dos gestos na aprendizagem


A aquisição da leitura não escapa dessa disciplina dos
gestos. Lembremos que a leitura está no centro da organização

34
Jacques de Batencourt, op. cit., art. V, p. 23.

43
pedagógica da aula e que ela comanda a distribuição dos alunos
nas diferentes "classes", segundo o progresso nessa aprendizagem:
as crianças percorrem nove níveis de leitura35, começam a escrita
(seis níveis) no sétimo nível de leitura, e a aritmética (cinco níveis)
no quarto nível de escrita. A longa duração da aprendizagem da
leitura, sua estrita gradação segundo as etapas precisas, a exigência
de um rigoroso respeito do método, tudo mostra que se trata de
adquirir bem mais que uma simples competência operacional.
Essa aprendizagem é primeiramente, para muitos alunos
do povo, uma formação humana de rigor e de controle de si. As
longas e repetitivas seções de aprendizagem sistemática das letras e
das sílabas, depois a soletração rigorosa das palavras que são
decompostas em elementos, a leitura por palavras, por linhas e por
frases, tudo nessa aprendizagem estritamente regulamentada
lembra que a leitura é, em primeiro lugar, um exercício de controle
de si mesmo. O domínio da voz faz parte do exercício: é necessário
lutar contra a balbuciação das crianças nas preces que só
pronunciam sons misturados sem compreender nada. Sem dúvida
é também o caso dos adultos... De onde a insistência dos mestres,
que nos parece incompreensível hoje em dia, na pronunciação
exata das letras e das sílabas, na acentuação determinada de todas
as letras que devem ser ouvidas, inclusive as últimas como o r no
sanctificetur do Pater Noster. Todas as preces são recitadas
destacando-se as sílabas para marcá-las bem36. Não insistimos o
suficiente até aqui sobre a difícil saída do mundo da oralidade das

35
Os nove níveis de leitura são os seguintes: lista do alfabeto; lista das sílabas;
silabário (soletrar apenas); silabário (para a leitura destacando as sílabas); segundo
livro: leitura acompanhada; terceiro livro: pontuação, números; saltério (livro dos
salmos) para ler em latim; cortesia; manuscritos e registros. Ver Yves Poutet,
Génèse et caractéristiques de la pédagogie lasallienne, éditions Don Bosco, 1995.
36
É preciso, segundo L’école paroissiale, op. cit., p. 6, "aprender bem a
pronunciar o Pater, a Ave Maria, o Credo, o Confiteor, em latim e em francês, e
também o Benedicite, e as preces do exercício do cristão". Essa recomendação é
geral.

44
massas populares, onde os dialetos misturavam consideravelmente
as sonoridades, talvez porque os pesquisadores se colocam
naturalmente do lado do mestre que ensina, e não do ponto de
vista da criança que aprende, da cultura de onde saíram. Essa
exigente saída do mundo da oralidade foi feita através da
aprendizagem das sílabas e da marcação das letras importantes
para colocar em evidência as palavras, para isolar os elementos que
constituem as produções sonoras efetuadas. Tudo é, então,
arrumado na escola modelo, inclusive a voz, e, sobretudo, a ordem
das palavras, que as crianças se esforçam para aprender fazendo
exercícios de determinação de cada elemento.
No campo da aritmética, a escola procura o mesmo rigor
dos gestos pela adoção de uma iniciativa bastante precisa dos
métodos, em parte teórico evidentemente, já que existe uma
grande distância na educação entre a demanda institucional e as
realizações concretas. As crianças que chegam até esse nível de
cálculo aprendem a "controlar a mão e a pena", a praticar as
quatro operações e a resolver os problemas que estão relacionados
a uma dessas operações. O "jet" na mão (p. 50-51) permite
conhecer e manipular as diferentes ferramentas de conta do
Antigo Regime para dominá-las. A criança aprende numa primeira
etapa o valor dos caracteres, depois o jeito de colocar os "jetons".
Os exercícios consistem a nomear as "somas" (os números) num
primeiro momento, a somar, ou seja, reagrupar as unidades de sol
e de livres37 em 5, 10, 20 e 100.
O essencial do trabalho concerne, no entanto, o uso do
"jet" à pluma: a aprendizagem dos números árabes, das técnicas
operacionais que são aprendidas com muita precisão, de maneira a
compreender bem as regras de numeração. O rigor, a ordem da
iniciativa são absolutamente necessários para a realização das
diferentes operações, com os livres, sous e deniers, como na
multiplicação (p. 52). Quanto às divisões, L’école chrétienne de

37
Moedas do Antigo Regime francês. Nota do tradutor.

45
Jacques de Batencourt dá apenas explicações sucintas: as regras de
divisão podiam, certamente, ser aprendidas na escola, mas,
sobretudo, nas salas dos mestres escritores ou nas escolas de
matemática que prolongavam para alguns alunos o curso das
pequenas escolas.

Conclusão

O modelo de escola que constroem os clérigos durante o


reinado pessoal de Luis XIV aparece como uma ferramenta para
pôr em ordem uma sociedade agitada pela violência e pela miséria.
Essa escola privilegia a ordem moral, a aquisição das regras, dos
gestos, da ordem em geral. Ela se interessa pelas aprendizagens
que permitem a integração na sociedade, a entrada na corrente de
relações que a estruturam. É por esse lado que ela vai pouco a
pouco se secularizar e se afastar da imagem de "igreja das crianças"
que a impregnam fortemente no final do século clássico.

46
Imagens

47
48
49
Fonte das imagens

Instruction méthodique pour l'école paroissiale, dressée en faveur des


petites écoles, divisée en quatre parties [...], Jacques de Batencour,
Paris, P. Trichard, 1669.

Marcel Grandière - Professor universitário, colabora com as pesquisas do


SHE - Service d'histoire de l'éducation de l'INRP (Paris) e da equipe de pesquisa
l'IUFM des Pays-de-la-Loire. Pesquisa sobre a escola como dispositivo de
regulação social, do século XVII ao XIX. Tem publicado, entre outras obras:
L'Idéal pédagogique en France au dix-huitième siècle (Oxford, 1998) e La formation
des maîtres en France. 1792-1914, INRP, 2006. E-mail: grandiereM@aol.com

Sabina Ferreira Alexandre Luz - Aluna do sexto semestre do Curso de


História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bolsista de
Iniciação Científica CNPq/PUCRS (2006/1).

Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação - História e


Filosofia da Educação (USP); professora do Programa de Pós-graduação em
Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul;
pesquisadora do CNPq. E-mail: mhbastos@pucrs.br

Recebido em: 11/12/2006


Aceito em: 15/03/2007

50
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (BRASILEIRA):
FORMAÇÃO DO CAMPO, TENDÊNCIAS E
VERTENTES INVESTIGATIVAS
Carlos Monarcha

Resumo
As reflexões apresentadas a seguir resultam de estudos que venho
realizando sobre a constituição e institucionalização da história da
educação como domínio de conhecimento disciplinar. Por meio
desses estudos, procuro situar, analisar e interpretar o
desenvolvimento da pesquisa e produção do conhecimento histórico
em educação, no Brasil, a partir da década de 1930, e, dentre outros
objetivos, esboçar a trajetória da formação do campo de
conhecimento e ao mesmo tempo identificar e problematizar
tendências e vertentes historiográficas. Para esta exposição organizei
um roteiro de exposição em quatro momentos por mim considerados
cruciais.
No primeiro momento procuro acompanhar a trajetória dos estudos
históricos em educação como demanda do Estado, aqui o período
privilegiado remete aos anos 30 a 50; no segundo momento: o foco
recai sobre o que denomino de "escola paulista" de estudos históricos
em educação nos anos 50 a 70; o terceiro momento tem pano-de-
fundo a criação e a expansão dos programas de pós-graduação em
educação, no Brasil, a partir da década de 1970; e por fim, o quarto
momento, o presente contemporâneo.
Palavras-chave: História da Educação; Tendências e vertentes
investigativas.

HISTORY OF THE EDUCATION (BRAZILIAN): FIELD


ESTABLISHMENT, TENDENCIES AND RESEARCH
AREAS
Abstract
The following reflexive thoughts resulted from the studies I have been
doing about how the History of Education has been constituted and
institutionalized as a discipline. Through these studies I have tried to
situate, analyze and understand the development of the research and
the production of the historical knowledge in Education, in Brazil,
since the 1930s. Among other aims, I tried to understand the way in
which the field of knowledge was shaped and, at the same time,
identify and question the historiography tendencies and directions.
This paper was organized in four different moments, which I
considered crucial. At first I tried to trace the way the studies about
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 51-77, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
the History of the education were conducted as matters of state (from
1930s to 1950s); Secondly the focus was on the historical studies on
education of the so called “escola paulista” (from 1950s to 1970s).
The third moment has as its background the creation and
development of the post-graduation programs in Education in Brazil
since the 1970s; and finally, the moment we are living in.
Keywords: History of the Education; Tendencies and Research
Areas.

HISTORIA DE LA EDUCACIÓN (BRASILEÑA):


FORMACIÓN DEL CAMPO, TENDENCIAS Y
VERTIENTES INVESTIGATIVAS.
Resumen
Las reflexiones que se presentan en ese texto resultan de estudios que
he realizado sobre la constitución e institucionalización de la historia
de la educación como dominio de conocimiento disciplinar. Por
medio de esos estudios, busco ubicar, analizar e interpretar el
desarrollo de la investigación y producción del conocimiento histórico
en educación, en Brasil, a partir de la década de 1930, y, además de
eso, esbozar el camino de formación del campo de conocimiento y,
al mismo tiempo, identificar y poner en discusión tendencias y
vertientes historiográficas. Para esta exposición organicé un guión en
cuatro momentos por mí considerados cruciales.
Primeramente, busco acompañar el camino de los estudios históricos
en educación como demanda del Estado, aquí el periodo privilegiado
se refiere a los años 30 a 50; el segundo momento: el foco recae
sobre lo que llamo de “escuela paulista” de estudios históricos en
educación en los años 50 hasta 70; el tercer momento tiene como
escenario la creación y la expansión de los programas de posgrado en
educación, en Brasil, a partir de la década de 1970; y por fin, el
cuarto momento, el presente contemporáneo.
Palabras-clave: Historia de la Educación; Tendencias y Vertentes
Investigativas.

52
De imediato, gostaria de formular duas cláusulas de
reserva: (i) a organização da exposição em quatro momentos tem
como propósito facilitar a expressão do meu ponto de vista, não
possuindo, portanto, propósitos de rígida periodização ou
faseologia; e (ii) as reflexões apresentadas têm caráter provisório e
devem ser retomadas e adensadas em outras oportunidades, se for
possível.
No Brasil, a prática de interpretar e reinterpretar o
passado, visando a conferir um sentido a formação social,
intensificou-se nos anos 30, aprofundando-se com isso a
institucionalização dos "estudos brasileiros" e/ou "estudos sociais",
conforme terminologia de época. Nos domínios universitários e
organismos estatais recém-criados, iniciava-se o fenômeno
polemicamente denominado de "fase científica" e/ou "era
universitária" das ciências humanas e sociais, no Brasil, conforme
formulações de Fernando de Azevedo e Manoel Bergström
Lourenço Filho. Contudo, vale ressalvar que, para tais autores, os
antecedentes desse processo de institucionalização remontavam às
reformas de ensino concretizadas nos anos precedentes, quando,
dentre outros, foram introduzidos nos currículos das escolas
normais conteúdos de sociologia e psicologia aplicadas à
educação.1 De fato, nos anos 30, o processo de institucionalização
das ciências humanas e sociais ganhou maior visibilidade,
ensejando a configuração de campos disciplinares e temáticas de
investigação.
Sabemos que o interesse renovado pelos estudos
brasileiros ocorreu num contexto de unificação política e cultural,
desencadeado pela revolução outubrista e projetos de construção

1
A respeito das formulações "fase científica" e/ou "era universitária", utilizadas
como categorias de análise do crescente e contraditório processo de
institucionalização do pensamento social, no Brasil, Wanderley Guilherme dos
Santos observa: "Compromisso diferente, todavia, e mais grave, é assumido por
quem lê na periodização institucional uma periodização epistemológica, ou
teórica". Cf. Santos (2002).

53
do Estado-Nação. Nesse contexto, vicejaram interpretações
globalizantes de natureza histórico-sociológica empenhadas
sobremaneira na apreensão das grandes linhas evolutivas da
formação social e da identidade nacional. Em suma: num
contexto político e cultural simultaneamente modernizador e
autoritário, no qual o Estado reforçava seu poder institucional e
simbolizador, consolidou-se uma consciência historiográfica
nacional.

Estudos históricos em educação

Hoje, é possível verificar que, entre os anos 30 a 50,


presenciou-se um esforço relativamente denso e concentrado que
objetivava conferir visibilidade e sentido à trajetória da educação
brasileira na Colônia, Império e República. Nesses anos, foram
instituídos conteúdos de história da educação geral e do Brasil nos
currículos acadêmicos das escolas normais, institutos de educação
e faculdades de filosofia. Data de então o aparecimento de
manuais didáticos destinados a suster o ensino da matéria História
da Educação, como, por exemplo, Noções de História da Educação,
de Afrânio Peixoto, História da Educação: evolução do
pensamento educacional, de Raul Briquet, Pequena história da
educação, de Francisca Peeters e Maria Augusta de Cooman; e
Lições de história da educação: rigorosamente de acordo com
programa das escolas normais, de Teobaldo Miranda Santos.
Grosso modo, esses manuais apresentam uma
configuração assemelhada, referindo-se à "evolução da educação"
por períodos: educação na Antigüidade Clássica, na Idade Média
cristã, Idade Moderna renascentista e Idade Contemporânea laica
e científica, sendo que, nos períodos concernentes às idades
Moderna e Contemporânea, o foco tende a recair nas construções
dos Estados nacionais europeus e nos respectivos sistemas de
educação, reservando-se para o "caso brasileiro" um apêndice
ilustrativo, no qual se sobrelevavam os fatos que concerniam à

54
"reconstrução educacional", ou seja, ao chamado "movimento da
Escola Nova".
No que se refere especificamente à esfera da Educação,
além das reorientações enfáticas do sistema de ensino, estruturou-
se um sistema institucional de dimensões nacionais destinado à
investigação e aos estudos em educação, cabendo papel de relevo
ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), criado, em
1938, como órgão do Ministério da Educação e Saúde Pública,
então sob o comando do controverso Gustavo Capanema.
Dirigido inicialmente por Lourenço Filho, o INEP,
uma das instituições representativas do processo de modernização
do Estado brasileiro, que então trazia para si novas funções de
ação e gestão, empenhou-se também na organização de material
bibliográfico, estatístico e legislativo, visando a auxiliar "o trabalho
na obra comum da educação nacional" (Lourenço Filho, 1945).
No decreto-lei de criação do INEP, assinado por Getúlio
Vargas e Gustavo Capanema, competia a esse órgão federal, entre
outros objetivos: "Organizar documentação relativa à história e ao
estudo atual das doutrinas e das técnicas pedagógicas, bem como
das diferentes espécies de instituições educativas", propondo planos
de "levantamento da bibliografia Pedagógica Brasileira, desde os
tempos coloniais"; e de "sistematização da documentação
pedagógica do país, nos seus diferentes aspectos de legislação,
federal e estadual, movimento escolar e fatos dignos de aí
figurarem como subsídios para a história da educação" (Lourenço
Filho, 1964).
Durante as gestões de Lourenço Filho e Murilo Braga,
os técnicos do INEP, tendo como referência o ano 1808 — data
que assinalou o início do processo de centralização dos poderes
administrativo, militar e político, em decorrência da transferência
da Corte portuguesa para o Brasil — publicaram na Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos a seção "Bibliografia pedagógica
brasileira" e a série de boletins Subsídios para a história da
educação brasileira, destinada à "coleta sistemática da
documentação ocorrente" nas três esferas do poder público —
55
federal, estadual e municipal — e definida pelos idealizadores
como "ementário dos fatos e atos de maior relevo, na vida
educacional do país".
É nesse momento que vem a público a célebre
"Bibliografia pedagógica da América Latina" organizada por
Ernesto Galarza e Lourenço Filho e publicada no Handbook of
Latin American studies for 1938 (Cambridge: Massachusetts,
1938).
De par às iniciativas e realizações do INEP que
pretendiam estabelecer bibliografias e eleger fontes históricas para
o estudo da educação, concretizou-se o que Francisco Venancio
Filho denominou de "obra ciclópica", de Primitivo Moacyr. Esta
consistia basicamente de recopilações de legislação sobre instrução
pública, nos períodos imperial e republicano, elaborada pelas
autoridades provinciais e estaduais.
Com efeito, Primitivo Moacyr publicou seis títulos
volumosos na prestigiosa série Brasiliana, então dirigida por
Fernando de Azevedo: A instrução e o Império. Reformas do
ensino: 1854-1888 (1938); A instrução e o Império. Subsídios
para a história da educação no Brasil: 1854-1889 (1938); A
instrução e as províncias. Subsídios para a história da educação no
Brasil: 1835-1889. Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo
(1939); A instrução e as províncias. Subsídios para a história da
educação no Brasil: 1834-1889. Das Amazonas às Alagoas
(1939); A instrução e as províncias. Subsídios para a história da
educação no Brasil: 1834-1889. Espírito Santo, Minas Gerais,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás (1940); e,
por fim, A instrução pública no estado de São Paulo. Primeira
década republicana: 1890-1893. 2 v. (1942).
Já incentivado por Lourenço Filho, Primitivo Moacyr
elaborou, especificamente para o setor de documentação histórica
do INEP, sete volumes contendo material recopilado sobre
instrução pública no Brasil. E com o selo do Ministério da
Educação e Saúde e Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, o
autor publicou: A instrução e a República – A Reforma Benjamin
56
Constant (1941); A instrução e a República – Código Fernando
Lobo. (1941); A instrução e a República – Código Epitácio Pessoa.
(1941); A instrução e a República – Reformas Rivádavia e Carlos
Maximiliano (1942); A instrução e a República – Reforma João
Luiz Alves-Rocha Vaz. (1944); A instrução e a República – Ensino
Técnico Industrial: 1892-1928 (1941); A instrução e a República
– Ensino agronômico. (1941).
É fato que, outrora, o sociólogo norte-americano Emilio
Willems tenha elogiado a obra de Primitivo Moacyr, afirmando
que ela "constitui valiosíssima fonte para investigações no terreno
da Sociologia Educacional" (Willems, 1939). Igualmente se sabe
que Lourenço Filho ressaltou que "o autor vem realizando um
notável trabalho de sistematização dos documentos históricos da
educação no Brasil". Entretanto, Roque Spencer Maciel de
Barros, em A ilustração brasileira e a idéia de universidade (1959),
introduziu uma série (pertinente) de cláusulas de reserva em
relação ao conjunto da obra de Primitivo Moacyr, constatando
paráfrases equivocadas, omissão da indicação das fontes, "de modo
tal que não podemos sequer saber se omitiu, como faz mais de
uma vez em relação a outros documentos, qualquer coisa do texto
original" (Barros, 1959).
Mas, seja como for, podemos dizer que, ao longo dos
anos 30 e início dos anos 40, uma conjugação de fatores — tais
como a consolidação do Estado nacional, a voga ascendente dos
estudos brasileiros, a estruturação e expansão da educação
nacional e a centralidade do tema da educação nacional no
imaginário político-social — favoreceram sobremaneira o
surgimento uma consciência duplamente sociológica e histórica do
passado cultural e educacional do país.
Certamente, um dos índices mais visíveis dessa
consciência remete à obra monumental A cultura brasileira:
Introdução ao estudo da cultura no Brasil (Rio de Janeiro: Serviço
Gráfico do IBGE, 1943), de Fernando de Azevedo, cujo parecer
para publicação foi exarado curiosamente pelo padre inaciano

57
Leonel Franca, outrora severo contraditor do chamado
"movimento da Escola Nova".
Como sabemos, a obra volumosa constituiu o texto de
abertura do primeiro censo demográfico e econômico realizado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, retomando-se,
assim, a iniciativa dos realizadores do censo demográfico e
econômico de 1920, primeiro censo concretizado com
metodologia confiável, cujo ensaio introdutório Evolução do povo
brasileiro, foi elaborado por Oliveira Vianna.
No que diz respeito A cultura brasileira, trata-se de obra
que, parafraseando François Furet, promoveu a "conciliação da
idéia nacional com a idéia enciclopédica", isto é, conjugou o
estudo da genealogia da nação e a cronologia do progresso técnico-
científico e cultural.
Na terceira parte do livro — "A transmissão da cultura"
—, tem-se uma abordagem específica da evolução da educação
brasileira, mediante seleção de fatos do passado. Objetivava, pois,
preparar aquilo que o autor pretendia anunciar como segmento
áureo de uma linha de evolução ascendente e progressiva da
educação ou ainda como cúpula da modernidade educacional
brasileira: o "movimento de reconstrução educacional" do qual fora
um dos protagonistas. Posteriormente, a parte terceira do livro foi
editada separadamente, sob o título Transmissão da cultura, e
utilizada como bibliografia de referência nas faculdades de
filosofia.
Autor de uma das primeiras resenhas críticas de A
cultura brasileira, Antonio Candido considerava: "As suas
conclusões — este é felizmente um livro que conclui — brotam do
rigoroso trabalho de pesquisa documental e bibliográfica, à qual o
autor nos dá a impressão, na grande maioria das vezes, de se ter
dirigido com espírito desprevenido de pré-noções diferentes"
(Candido, 1944, p.57).
As iniciativas e realizações do INEP, concernentes aos
estudos e pesquisas sobre bibliografia pedagógica e subsídios
históricos, a "obra ciclópica" de Primitivo Moacyr e a "obra
58
monumental" de Fernando de Azevedo explicitavam o empenho de
pensar e explicar a nação em perspectiva estrutural e genética.
Portanto, podemos dizer que essa produção intelectual destinava-
se a promover uma espécie de fusão entre ciência do passado e
ciência da nação: tratava-se de dotar a nação de uma genealogia e
de um sentido, bem como de formar uma consciência nacional,
não por imposição de moldes institucionais, mas por esforço da
cultura.
Nessa conjuntura intelectual e política, movimentada
pelo afã de registrar e dar a conhecer a bibliografia relacionada aos
estudos brasileiros, insere-se também o célebre Manual bibliográfico
de estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Record, 1949), dirigido por
Rubens Borba de Morais e William Berrien, o primeiro subdiretor
dos Serviços Bibliotecários da ONU, o segundo professor da
Universidade de Harvard.
O manual contém balanços introdutórios e bibliografia
especializada sobre arte, direito, educação, etnologia, filologia,
folclore, geografia, história do Brasil, literatura, música, sociologia
e teatro, assinados por autores representativos do sistema
intelectual: Alice Canabrava, Astrojildo Pereira, Caio Prado
Junior, Donald Pierson, Gilberto Freire, Francisco de Assis
Barbosa, Herbert Baldus, Manuel Bandeira, Mattoso Câmara
Junior, José Honório Rodrigues, Mário de Andrade, Odilon
Nogueira de Mattos, Pierre Monbeig, Sérgio Buarque de
Holanda, Raul Briquet e Lourenço Filho.
A seção "Educação" encontrava-se organizada em dois
tópicos: "(De 1500 a 1889) – Brasil Colônia – Brasil Reino", de
autoria de Raul Briquet e "(De 1889 a 1941) – Brasil República",
de autoria de Lourenço Filho.
Nos respectivos balanços introdutórios, Briquet e
Lourenço Filho analisaram e explicaram o movimento geral
relativo "à formação histórica do país", os percalços advindos da
inexistência de uma "orientação nacional do ensino" e, por fim – e
sobretudo – a progressiva construção da educação nacional, nos
anos 30 e 40. Todavia, a despeito das iniciativas e realizações
59
citadas anteriormente, o eminente historiador José Honório
Rodrigues, no final dos anos 40, ajuizava de maneira inclemente
que

A história da educação no Brasil ainda não foi escrita. Os


estudos publicados sobre a evolução geral do ensino em
seus vários graus carecem de pesquisa, desconhecem as
fontes e repetem-se na compilação dos fatos sumariados.
O levantamento bibliográfico já feito, não
exaustivamente, pode servir como um roteiro inicial, para
estudo mais sério. (RODRIGUES, 1949, p. 196)

Honório Rodrigues fundamentava seu juízo no


argumento de que "os educadores ou publicistas que têm escrito a
história da educação desconhecem os princípios da pesquisa
histórica e se limitam a repetir os trabalhos anteriores". Noutras
palavras, na visão do historiador, a produção do conhecimento
histórico não havia atingido, ainda, a sua forma científica e
propriamente universitária.
Por fim, convém lembrar que, um pouco mais tarde, isto
é, já em pleno clima do nacional-desenvolvimentismo, quando se
debatiam os impasses inerentes à modernização brasileira,
aprofundou-se ainda mais o processo de institucionalização das
ciências humanas e sociais, na vertente aplicada e intervencionista.
Fenômenos tais como a retomada da democracia, a
aceleração da urbanização e a industrialização contribuíram para
que o tema da educação nacional e de sua reforma se tornasse
central, no pensamento social modernizador configurado por uma
inteligência socialmente engajada e sumamente empenhada na
apreensão dos mecanismos que acelerassem a transição da
sociedade patrimonial para a ordem aberta e competitiva. É desse
período, por exemplo, a criação do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), em 1956, e do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais (CBPE), em 1955.
Idealizado por Anísio Teixeira, então diretor do INEP,
como "centro de pesquisa e de assessoria técnica", o CBPE

60
integrava antropólogos, sociólogos e educadores, objetivando
equacionar os problemas brasileiros de educação mediante
articulação da perspectiva nacional com as singularidades
regionais; para tanto, propôs-se integrar o planejamento
educacional com a pesquisa social. Com o advento do CBPE e de
seus congêneres regionais, localizados no Rio de Janeiro, São
Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul,
explicitava-se novamente o desejo de intervir e reorientar os rumos
da educação nacional.
Para esta discussão, que pretende traçar um esboço
histórico da história da educação (brasileira) enquanto domínio
disciplinar, é oportuno salientar que, dentre outras iniciativas,
coube à Divisão de Documentação e Informação Pedagógica do
CBPE viabilizar projetos editoriais destinados à divulgação de
bibliografia pedagógica e fontes históricas, como, por exemplo, o
volume intitulado "Bibliografia sumária da história da educação no
Brasil" (1959). O órgão igualmente idealizou a série
"Levantamentos bibliográficos", de que infelizmente publicou
apenas o volume Fontes para o estudo da educação no Brasil —
Bahia (CBPE, 1959), de Luís Henrique Dias Tavares; contudo,
editou anualmente a série Bibliografia brasileira de educação, única
bibliografia nacional do campo das ciências humanas e sociais, de
tipo analítico e de circulação sistemática. Por fim e sobretudo, ao
encerrar este tópico, é preciso observar que essa fase fecunda da
progressiva institucionalização dos estudos históricos em educação
e de construção de fontes encontrava-se em contigüidade com as
mutações da esfera da cultura política.

Sobre a "escola paulista" de história da educação

No caso do estado de São Paulo, desde a criação da


Escola Livre de Sociologia e Política, em 1932, da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em
1934, as ciências humanas e sociais cristalizaram-se, desde o

61
ponto de vista institucional e universitário, colocando em cena
profissionais com formação acadêmica dotada de graus de
excelência.
Conquanto Fernando de Azevedo, na condição de titular
da cátedra de Sociologia da FFCL-USP e autor de Princípios de
sociologia (1935) e Sociologia educacional (1940), estimulasse a
pesquisa em educação segundo as exigências do espírito
sociológico, a produção desse tipo de pesquisa ocorreu de modo
incisivo, entre os anos 50 e 60, tendo como pano de fundo as
questões relativas ao processo de modernização urbano-industrial e
a Campanha de Defesa da Escola Pública, a qual culminou com a
edição do "Manifesto dos educadores. Mais uma vez convocados"
(1959), redigido por Fernando de Azevedo e assinado por 189
pessoas — acadêmicos, professores, cientistas e escritores,
educadores — contrárias ao substitutivo apresentado pelo
deputado Carlos Lacerda ao projeto de Diretrizes e Bases da
Educação, então em fase de tramitação no Congresso Nacional.
Noutras palavras, tal produção acadêmica se concretizava numa
conjuntura intelectual marcada pela afirmação da pesquisa em
moldes acadêmicos rigorosos e pela campanha de "reconstrução
educacional", movimentada não só pelos debates sobre a LDBEN,
mas também pela constatação dramática da degradação dos
sistemas públicos de ensino e permanência dos índices históricos
de analfabetismo da população, então, em torno de 50%.
Sabemos que, nessas décadas, a Sociologia havia se
tornado a disciplina científica por excelência, originando a "escola
paulista de sociologia", com Florestan Fernandes, regente da
cadeira de Sociologia I da FFCL-USP, tanto à frente do esforço
de autonomização da sociologia científica, fundada no método
empírico-indutivo, quanto igualmente envolvido na defesa da
escola pública e de reformas estruturais na sociedade nacional.
Pertence a esse momento tenso e conflitante de posições
político-ideológicas o aparecimento dos volumes coletâneos
Diretrizes e Bases da Educação (São Paulo: Pioneira, 1960),
organizado por Roque Spencer Maciel de Barros, o qual contava
62
com um extenso rol de autores colaboradores — Almeida Jr;
Carlos Mascaro, Fernando de Azevedo, Fernando Henrique
Cardoso, Florestan Fernandes, João Villalobos, Laerte Ramos de
Carvalho, Maria José G. Werebe, Moysés Brejon, entre outros; e
Educação e sociedade no Brasil (São Paulo: Dominus, 1966) de
Florestan Fernandes, publicação composta pela reunião de artigos
de intervenção. Certamente, esses dois volumes constituem
excelentes índices para a compreensão do clima de opinião
(acadêmica e paulista) sobre defesa da escola oficial e a necessidade
de reformar as políticas públicas em prol de algo maior, a saber, a
"reconstrução educacional", que tinha como escopo sincronizar
desenvolvimento nacional, democracia, melhora de condições de
vida e expansão da educação popular.
No contexto acadêmico, concebia-se a "sociologia
educacional", assim se dizia, não como uma das ciências da
educação, mas sim como área da Sociologia enquanto domínio
disciplinar matricial. Para melhor exemplificar essa discussão,
convém dar voz às petições de princípios de dois intelectuais
atuantes à época.
Na comunicação científica "O papel do estudo
sociológico da escola na sociologia educacional", apresentada no I
Congresso Brasileiro de Sociologia, Antonio Candido ponderava:

Notemos que a sociologia da educação pouco existe como


teoria e quase nada como pesquisa. No campo teórico
avultam relativamente poucos esforços, como os de
Waller e Fischer, que veremos em separado, ou de
Fernando de Azevedo; no mais a argumentação vai
escorregando francamente para a Filosofia ou a Teoria da
Educação. As pesquisas são em número limitado e de
qualidade duvidosa. E as mais das vezes escapam
igualmente à sociologia rumo às sondagens e
levantamentos administrativos, de um lado, às
investigações psicológicas, de outro. Assim a sociologia da
educação tem-se apresentado sobretudo como matéria de
ensino — e a maioria absoluta da produção, no gênero,
compunha-se até há bem pouco, e no Brasil ainda se

63
compõe, de compêndios, manuais e tratados.
(CANDIDO 1955, p.119)

Ou, como considerava Luiz Pereira, no livro A escola


numa área metropolitana, sub-intitulado "monografia sociológica
sobre o funcionamento interno e as relações da escola primária
com o meio social local". Dizia ele: "Considerar a sociologia da
educação como mais uma sociologia especial representaria
colaborar para a manutenção do estado de pequena ou frouxa
integração do conhecimento sociológico do campo educacional na
sociologia em geral" (PEREIRA, 1960, p.141). E concluía seu
pensamento, afirmando uma necessidade premente: "Passar
decididamente da era dos manuais para a da investigação da
realidade", para assim formular diagnósticos objetivos.
Com efeito, a essa época, a matéria Sociologia da
Educação, ensinada em escolas normais, institutos de educação e
faculdades de filosofia, sobrevivia graças ao auxílio de manuais,
então bastantes populares, como, por exemplo, Sociologia
educacional e Lições de sociologia educacional, de Aquiles Archêro
Junior; Sociologia educacional: introdução ao estudo dos fenômenos
educacionais e de suas relações com os outros fenômenos sociais e
Sociologia aplicada: para as escolas de professores dos Institutos de
Educação e Faculdades de Educação, Ciências e Letras, de
Delgado de Carvalho; Noções de sociologia educacional: de acordo
com os programas das faculdades de filosofia, e dos institutos de
educação, de Teobaldo Miranda Santos; Sociologia educacional, de
David Snedden.
É desse período, em que se outorgava à Sociologia o
poder (e a virtude) de descrever e explicar cientifica e
objetivamente a realidade social, a emergência de uma produção
intelectual vinculada ou não à obtenção de títulos acadêmicos, e
difundida no formato de publicações internas da FFCL-USP,
artigos em periódicos, comunicações cientificas e volumes
coletâneos. Sem ter a pretensão de esgotar a enumeração da
produção acadêmica engendrada no clima intelectual da cadeira de

64
Sociologia I, — produção que, de certa maneira, constituiu a
identidade disciplinar da sociologia educacional como área da
Sociologia Geral — é importante relembrar alguns títulos que
garantiram um lugar expressivo nos debates intelectuais da época,
no que dizia respeito ao status e às finalidades dos estudos
sociológicos em educação.
Dentre outros, cabe ressalvar: "Contribuição ao estudo
de problemas do ensino rural", de Antonio Candido e José
Querino Ribeiro, tese originariamente apresentada no IV
Congresso Normalista de Educação Rural, realizado em São
Carlos,SP, em outubro de 1951 (cf. Pequenos estudos sobre
grandes problemas educacionais (alguns aspectos do ponto de vista
da administração escolar). São Paulo: 1952);; A estrutura da
escola: contribuição sociológica dos Cursos especializados de
administração escolar (Caderno n.5, São Paulo: FFFCL –USP,
1953) e "As diferenças entre o campo e a cidade e o seu
significado para a educação" (Pesquisa e Planejamento, São Paulo,
1957, p.51-65), ambos de Antonio Candido; Ensaio de uma teoria
da administração escolar, de José Querino Ribeiro (1952);
"Educação e planejamento: aspectos da contribuição de Karl
Mannheim para análise sociológica da educação (Boletim n.252,
FFCL-USP, 1960) de Marialice Foracchi; Educação e sociedade:
leituras de sociologia da educação (São Paulo: Nacional, 1964),
antologia de escopo didático organizada por Marialice Foracchi e
Luiz Pereira.
Boa parte desses títulos exibe uma armadura conceitual
rígida, pois, antes de tudo, tratava-se de firmar o quadro
conceitual próprio da nascente sociologia acadêmica, centrada
preferencialmente no estudo sociológico da escola e da cultura que
lhe era própria. Já no transcurso da década de 70, a pesquisa
sociológica em educação evoluiria mais abertamente para o estudo
das políticas públicas.
Simultaneamente ao quadro anteriormente descrito,
ocorria a retomada dos estudos históricos em educação, com a
participação de sujeitos do discurso acadêmico que, então,
65
adentravam na cena universitária, portando valiosos títulos obtidos
na FFCL-USP e conquistando postos na hierarquia acadêmica,
como foi o caso de Laerte Ramos de Carvalho, catedrático de
História e Filosofia da Educação, e Roque Spencer Maciel de
Barros, Livre-docente na cadeira de História e Filosofia da
Educação e Assistente-docente da mesma cadeira.
No clima de comemorações do IV Centenário da cidade
São Paulo, em 1954, efeméride que estimulou o aparecimento de
interpretações do processo de formação de São Paulo, em
perspectiva histórico-cultural, tais como, História e tradições de
São Paulo, de Ernani Silva Bruno, e De comunidade a metrópole:
biografia de São Paulo, de Richard Morse, Ramos de Carvalho
concluía, no texto intitulado "O ensino em S. Paulo" publicado
em Ensaios paulistas (1956):

Não é fácil escrever a história do ensino em São Paulo,


desde o estabelecimento dos jesuítas aos dias atuais, pois,
apesar da boa vontade de alguns estudiosos, estamos
muito longe de dispor dos elementos indispensáveis a um
trabalho de síntese. Não há legítima história sem sério e
criterioso levantamento de dados de toda ordem e,
infelizmente, no caso do ensino paulista, quase nada a
esse respeito existe.(CARVALHO, 1956, p. 56)

Por ora basta dizer que, mediante a adoção de modelos


teórico-explicativos e métodos críticos, professores pesquisadores
vinculados, ou ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais de
São Paulo, ou à FFCL, mais especificamente à Seção de
Pedagogia, ou, ainda, aos recém-criados institutos isolados de
ensino superior, localizados no interior do estado, passaram a se
dedicar à produção do conhecimento histórico em educação com a
finalidade de, entre outras, avaliar (e intervir) nas políticas
educacionais da época; ou seja, a retomada dos estudos históricos
estava em correspondência com as reformas de ensino, no Brasil, e
a elaboração de políticas públicas alternativas.

66
É quando o CRPE — dirigido, sucessivamente, por
Fernando de Azevedo, Laerte Ramos de Carvalho, Querino
Ribeiro, Carlos Corrêa Mascaro, José Mário Pires Azanha — e a
Seção de Pedagogia tornaram-se centros de convergência e
irradiação da pesquisa educacional comprometidos de certo modo
com o planejamento educacional e as reformas de ensino nos
níveis estadual e federal, então em andamento.
Por conseguinte, nos anos 60, ladeado por Casemiro dos
Reis Filho, Heládio César Gonçalves Antunha, Jorge Nagle,
Maria de Lourdes Mariotto Haidar, Rivadavia Marques Júnior e
alunos da Seção de Pedagogia, Ramos de Carvalho converteu-se
em figura central na empresa intelectual que resultou na retomada
dos estudos históricos, em moldes tipicamente científicos e
universitários. Com efeito, Ramos de Carvalho empenhou-se na
teoria e na prática historiográfica, com o objetivo de organizar e
concretizar uma "ampla pesquisa sobre a educação nacional, de
1930 a nossos dias", conforme assinalava Maciel de Barros.
Um dos resultados dessa retomada diz respeito à
elaboração de um extenso levantamento de "fontes primordiais",
assim se dizia, intitulado "Bibliografia referente à História da
Educação Brasileira de 1925/1935 existente nas bibliotecas de S.
Paulo (Capital)", texto datilografado inédito, datado de 1961.
Formou-se assim um valioso e inédito corpus documental, que
viria a suster a produção do conhecimento histórico em educação
nas décadas seguintes. Gradativamente, esse corpus foi ampliado
por diversos professores dos institutos isolados, mediante
localização, reunião e classificação de fontes documentais,
organizando-as em índices remissivos, inventários, listas e
repertórios, publicados em anais, revistas acadêmicas, boletins e
livros ou, ainda, anexados a dissertações e teses.
De uma parte, a iniciativa de Ramos de Carvalho e
colaboradores consistiu, de um lado, em diferenciar de outros
campos científicos os estudos históricos em educação,
compreendidos como domínio disciplinar dotado de método crítico
próprio, fundado na objetividade científica e em reconstruções
67
exaustivas, mediante enquadramento monográfico erudito,
baseado em documentação copiosa, para retirar sua substância de
fontes primárias; de outro, procurou determinar a relevância social
dos estudos históricos em educação, mediante justificativa de
"aprender com o passado" (para poder intervir no presente),
segundo suas palavras, proferidas no célebre I Seminário de
Internacional de Estudos Brasileiros, realizado em São Paulo, em
1971, evento científico-acadêmico que suscitou balanço crítico da
situação das ciências sociais e humanas, conforme se vê nos anais
do referido evento. Em suma: esse esforço de objetividade, levado a
efeito por diferentes sujeitos, objetivava conferir legitimidade
intelectual e relevância social aos estudos históricos em educação,
com recurso à construção de objetos, métodos e lugar específico
entre as humanidades.
Configurava-se, dessa forma, a escola historiográfica
paulista, cujas características podem assim ser sumariadas:
documento como sinônimo de fato histórico, enquadramento
monográfico, narração descritiva e aparelho de notas copioso como
prova e demonstração, uma vez que tal escola ambicionava
restituir integralmente o passado. Configurava-se, portanto, uma
espécie de "história historicista", cujas sínteses históricas se
constituíram em referência permanente.
Sob o influxo da produção acadêmica elaborada por
professores empenhados também na obtenção de títulos
acadêmicos, os estudos históricos em educação passaram a ser
concebidos como ciência destinada a interpretar o sentido geral da
evolução da educação, no Brasil, como podemos observar em
Educação e sociedade na Primeira República, de Jorge Nagle, A
Reforma de 1920, de Heládio César Antunha, O ensino secundário
no império brasileiro, de Maria de Lourdes Mariotto Haidar, A
educação e a ilusão liberal, de Casemiro dos Reis Filho, O ensino
normal no estado de São Paulo no período da Primeira República, de
Leonor Maria Tanuri. Pouco a pouco, foram sendo conjugadas
práticas antes separadas: o magistério da disciplina e a produção de

68
conhecimento, isto é, a teoria e a prática da história da educação
tornaram-se atividade profissional e universitária.

Clivagens historiográficas e reorientações heurísticas:


grandes visagens históricas (e finalistas) & pequenos (e
inéditos) objetos

Nas últimas três décadas, os estudos históricos em


educação foram beneficiados com a institucionalização, seguida de
consolidação e expansão, dos programas de pós-graduação em
Educação. Em conseqüência, inserta numa estrutura acadêmica de
ensino e pesquisa, a história da educação (brasileira)
paulatinamente se consolidou como disciplina acadêmica, nos
currículos de cursos de graduação e pós-graduação, emancipando-
se gradativamente de outros domínios disciplinares conexos, a
saber: a História da Educação Geral, da qual constava como
apêndice, da Filosofia da Educação, com a qual tendia a
confundir-se como história das idéias sobre educação, e, por vezes,
da Sociologia da Educação. Paralelamente aos programas de pós-
graduação em Educação, criaram-se instâncias reguladoras da
produção do conhecimento histórico em educação, originando
uma discussão em âmbito nacional relativamente à produção do
conhecimento histórico.
Desse modo, a paisagem intelectual, delineada pela
matriz historiográfica herdada das décadas anteriores, passou por
sucessivas clivagens, das quais decorreu a adoção de outros
modelos teórico-explicativos e métodos críticos, reorientando-se
enfaticamente os rumos da teoria e prática da história da
educação. Essas clivagens partilham de desígnios comuns: romper
com teorias e práticas historiográficas antecedentes e
contemporâneas consideradas ultrapassadas, a fim de promover
ampliações originais do campo de estudos. De certo modo, essas
tendências e vertentes foram beneficiadas pelas intensas revisões

69
e/ou reorientações da historiografia, processadas pela crítica
universitária.
Num olhar de sobrevôo, é possível dizer que uma
primeira clivagem na paisagem intelectual seguida de reorientações
enfáticas explicitou a vontade de diferentes sujeitos dos discursos
acadêmicos de produzir um outro tipo de conhecimento histórico
em educação, visando à apreensão totalizadora do fenômeno
educativo, por meio da apreensão dialética da interconexão entre
educação e estruturas sociais e econômicas. Para tanto, elegeram-
se outros modelos teórico-explicativos e métodos críticos
derivados, por exemplo, ou dos marxismos — acadêmicos ou não
(Marx, Gramsci, Althusser, Establet, Shaff, Enguita) —, ou da
sociologia (Bourdieu, Passeron), ou do estruturalismo (Foucault),
ou, ainda, da teoria crítica (Adorno, Benjamin, Horkheimer,
Habermas), por exemplo. Foi-se dando, assim, lugar a uma
problemática que colocou como questões centrais as relações entre
educação, base material da sociedade de classes, atividade
ideológica, relações de produção, exercício de poder, reprodução
ideológica, crítica ideológica, crítica da cultura, revisão da
periodização e assim por diante.
Denotando forte empenho político, essa clivagem, cujas
primeiras manifestações remontam aos anos 70, década de
reorientações enfáticas, no ensino, concretizadas por políticas
educacionais que defluiam do regime autoritário em vigência,
incorporou nos domínios dos estudos históricos, em educação, as
perspectivas analíticas concernentes ao tema da luta de classes e da
crítica ideológica. Isso se deu de maneira mais consistente, no
momento em que mudanças na grande política conduziam à
retomada da vida democrática e à expansão das oportunidades de
escolarização, no Brasil. Naquele momento, foram reativadas as
energias utópicas e promessas de um futuro melhor, de sorte que
se relevou, novamente, a Educação como uma das grandes
questões da política nacional, tendo sido necessário rever o modo
de pensá-la, com vistas a mudanças sociais e políticas sentidas
como justas e necessárias.
70
Por conseguinte, diferentes sujeitos alteraram os
percursos da prática acadêmica, nos estudos históricos em
educação (e na pesquisa educacional como um todo), e passaram a
operar com determinadas filosofias da História, de modo a
sustentar a prática historiográfica (por vezes, em detrimento da
pesquisa documental sistemática), de sorte que diferentes sujeitos
do discurso acadêmico articularam a análise retrospectiva à
prospecção histórica, para, assim, poderem validar teórica e
politicamente mudanças socialmente desejadas.
Temas de pesquisas, tais como organização escolar,
doutrinas pedagógicas, instituições de ensino, políticas
educacionais, Estado e educação, educação e sociedade,
formulados nas décadas antecedentes à instalação dos programas
de pós-graduação, permaneceram legitimados e vigentes. Todavia,
houve, então, uma interpenetração desses temas com análises
políticas, face às urgências sociais colocadas pela retomada da
democracia, no país.
Uma análise preliminar da cultura histórica subjacente a
essa clivagem possibilita a identificação de um conjunto
representativo de autores e textos também preocupados em fixar o
sentido da educação nacional, mediante concessão de privilégio à
cronologia de fatos históricos considerados irrefutáveis e
comprovadores daquele movimento teleológico anteriormente
detectado e que possibilitou o advento de uma educação
progressivamente laicizada, científica, moderna e nacional, contudo
não universalizada.
Na abordagem dos fatos da educação, ocorreu uma certa
aproximação com a cultura política, elegendo-se a esfera da
política como matéria preferida, pois, por meio dela, entendia-se
que se concretizariam as possibilidades de mudanças, devendo-se,
portanto, atentar para as transformações em curso. Noutras
palavras, tratava-se de configurar uma "história como ciência da
transformação", digamos assim, reafirmando-se, tal como
acontecera nas décadas anteriores, a pertinência acadêmica e a
relevância social da pesquisa em educação. De um modo ou de
71
outro, havia na produção historiográfica um diálogo crítico com a
conjuntura política e intelectual que lhe era presente.
Mas, é bem verdade que ainda vigia em certos nichos
acadêmicos a oposição entre discurso ideológico e discurso
científico, aquele lacunar, este pleno e cuja objetividade permitiria
a ansiada determinação completa do objeto, muito embora já se
debatesse com mais clareza a história da educação como
representação ou conhecimento produzido e se decidisse pela
retomada do contato estreito com a loquacidade das fontes
históricas e se defendesse o direito à subjetividade, isto é, à
interpretação.
Uma outra clivagem na paisagem intelectual
concretizada na década de 1990, seguida também de reorientação
enfática nos estudos históricos em educação, explicitou novamente
o desejo de diferentes sujeitos, dos discursos acadêmicos, de
produzir um outro tipo de conhecimento histórico em educação.
Nessa empreitada, foram adotados outros modelos teórico-
explicativos e métodos críticos, dessa feita, derivados da Nova
História (Le Goff, Nora, De Certeau) e da (Nova) História
Cultural (Chartier), seguidos de uma ampliação do estoque de
objetos de investigação e temas de estudos, mediante incorporação
de teorizações de autores que analisam a educação em perspectiva
histórica (Nóvoa, Vinão-Frago, Narodowski, Julia) e sociológica
(Petitat, Apple, Hérbrard, Forquin, Chervel, Scott, Vincent),
objetivando esclarecer os nexos internos e dinâmicos dos processos
internos à esfera escolar e seus derivativos. E, ainda que com certa
perda de empenho político e certa dispersão, no campo da pesquisa
científica, essa segunda clivagem expandiu o âmbito do campo de
conhecimento, tornando-o mais sensível a outras problemáticas e
interpelações, assim como demandando a construção de outras
fontes documentais e de outros métodos, para analisá-las e
interpretá-las.
Gradativamente, num contexto acadêmico caracterizado
pelo intercâmbio e internacionalização da pesquisa e impacto
constante de novidades temáticas e metodológicas, fundamentadas
72
no pressuposto gnosiológico de que "tudo é objeto histórico",
foram acolhidos e legitimados, nos estudos históricos em
educação, outros temas e objetos de conhecimento, como, por
exemplo: gênero, infância, identidades, tempo, disciplinas e
formas escolares, modos de ler, métodos de ensino, profissão
docente, instituições escolares, periodismo pedagógico e,
sobretudo, cultura escolar; temas e objetos hoje amplamente
trivializados, no sistema intelectual acadêmico.
Com efeito, as filiações de diferentes sujeitos do discurso
acadêmico a outros modelos e métodos, articuladamente à
expansão da construção de temas e objetos, visam a identificar,
descrever, explicar e interpretar a educação em perspectiva
microscópica, no momento histórico que coincide duplamente
com a crise da identidade moderna do sistema escolar brasileiro e
com a chamada "crise de paradigmas" (isto é, o aparente
esgotamento das grandes visagens histórias) de investigação e
conhecimento científicos (isto é, estruturalismo, funcionalismo e
marxismo). Todavia, nessa segunda clivagem, observa-se uma
prática acadêmica preocupante, qual seja, a tendência de colocar à
prova determinados modelos teórico-conceituais, em detrimento
do escrutínio da heurística documental. Noutras palavras, cede-se
à velha e conhecida tentação, característica das ciências humanas e
sociais, de conformar e validar a análise e interpretação da
aplicação de grades de conceitos e categorias.

Breve balanço: o presente contemporâneo

De uma parte, ao longo do tempo, diferentes sujeitos dos


discursos acadêmicos, empenhados na elevação do padrão
acadêmico-científico dos estudos educacionais, contribuíram
decisivamente para os seguintes aspectos: (i) autonomização dos
estudos históricos em educação enquanto domínio disciplinar; (ii)
configuração de tendências e vertentes historiográficas; (iii)
prolífica expansão desses estudos, possibilitando discernir com

73
mais clareza entre as concretizações de processos educativos e os
discursos sobre educação; (iv) advento da teoria e prática
historiográfica, envolvendo debates de ordem epistemológica,
ontológica e metodológica, ao colocarem em circulação uma
profusão de estudos teóricos de larga repercussão, no decorrer dos
debates (e dissensos) acadêmicos; (v) alteração na concepção de
fontes históricas e no uso do documento, portanto, crítica à noção
de fato histórico como dado objetivo; (vi) compreensão mais clara
da escrita da história como prática social circunstanciada; (vii)
crítica à ideação clássica referente às relações entre infra-estrutura
e superestrutura, ou seja, negação da anterioridade e/ou
determinação das estruturas econômicas e sociais sobre a produção
espiritual.
De outra parte, contemporaneamente, a produção do
conhecimento histórico em educação (assim como nas demais
ciências humanas e sociais) encontra-se ainda sobressaltada pela
crise dos –ismos e pelas vagas sucessivas de modelos teórico-
explicativos e métodos críticos, provocando desaparecimento e
surgimento de temas e objetos de investigação, pelo aparente
esgotamento de esquemas analíticos legitimados.
Contudo, podemos dizer que, neste momento, estamos
diante de um certo paradoxo, a saber: em conseqüência do descarte
da noção de totalidade (que obviamente não deve ser confundida
com abordagem macrossocial), boa parte da expansão dos estudos
históricos vem se processando graças à retração tendente a reduzi-
los ao estudo da escola e fenômenos derivativos. Todavia, não é
desejável e oportuno reduzir tais estudos à esfera escolar fechada
sobre si mesma.

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Carlos Monarcha - Professor Adjunto (Livre-Docente) na Faculdade de


Ciências e Letras – Universidade Estadual Paulista/campus de Araraquara.

Recebido em: 15/12/2006


Aceito em: 15/03/2007

77
.
O ENSINO E A PESQUISA EM HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA CADEIRA DE
FILOSOFIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (1933-
1962)1
Bruno Bontempi Júnior

Resumo
Este artigo apresenta a trajetória da cadeira de Filosofia e História da
Educação, desde a sua constituição em 1933 até 1962, quando, na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, o professor Laerte Ramos de Carvalho deu início às primeiras
pesquisas acadêmicas em história da educação. Explora fatores
"internos" e "externos" da história das disciplinas, tais como os perfis
institucionais, as prescrições curriculares, as disputas ocorridas no
mundo acadêmico e as relações entre as "disciplinas vizinhas", a fim
de tecer uma rede de personagens e acontecimentos que confira à
disciplina a sua "identidade histórica".
Palavras-chave: história das disciplinas, Filosofia e História da
Educação, Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho.

THE TEACHING AND THE RESEARCH ON THE


HISTORY OF THE BRAZILIAN EDUCATION IN THE
SUBJECTS OF PHILOSOPHY AND HISTORY OF
EDUACTION (1933-1962)
Abstract
This article presents the trajectory of the Cathedra of Philosophy and
History of Education, since its constitution in 1933, until 1962,
when, at the College of Philosophy, Sciences and Literature of the
University of São Paulo, the professor Laerte Ramos de Carvalho
commenced the very first academic researches on history of
education. The article explores both "internal" and "external" factors
in the history of disciplines, such as institutional profiles,
prescriptions of the curriculum, struggles occurred in the academic
world, and relationships between "neighbouring disciplines", in order
to weave a net, made by characters and facts, that gives to the
discipline its "historical identity".

1
Meus agradecimentos a Kazumi Munakata pela leitura crítica e sugestões feitas
à primeira versão deste artigo.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 79-105, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
Keywords: history of disciplines, Philosophy and History of
Education, Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho.

LA ENSEÑANZA Y LA INVESTIGACIÓN EN HISTORIA


DE LA EDUCACIÓN BRASILEÑA EN LA CÁTEDRA DE
FILOSOFÍA Y HISTORIA DE LA EDUCACIÓN (1933-
1962)
Resumen
Este artículo presenta el camino de la cátedra de Filosofía y Historia
de la Educación, desde su constituición en 1933 hasta 1962,
cuando, en la Facultad de Filosofía, Ciencias y Letras de la
Universidad de São Paulo, el profesor Laerte Ramos de Carvalho dió
início a las primeras investigaciones académicas en historia de la
educación. Explora factores “internos” y “externos” de la historia de
las disciplinas, tales como los perfiles institucionales, las prescriciones
curriculares, las disputas ocurridas en el mundo académico y las
relaciones entre las “disciplinas vecinas”, a fin de tejer una rede de
personajes y sucesos que confira a la disciplina su “identidad
histórica”.
Palabras-clave: historia de las disciplinas, Filosofía y Historia de la
Educación Roldão Lopes de Barros, Laerte Ramos de Carvalho.

80
De acordo com Lepenies (1983), o passado da filosofia
difere do passado das ciências especializadas por permanecer vivo,
mantendo-se capaz de engendrar infinitas polêmicas. Um filósofo
pode discordar de Descartes, Leibniz ou Hegel, mas não pode
jamais repudiá-los como ultrapassados, como o fazem
eventualmente o químico ou o físico, por exemplo, com seus
predecessores. Deriva dessa peculiaridade um problema para as
histórias da filosofia, conquanto do mesmo presentismo que nutre a
pujança filosófica resultam, na maior parte das tentativas de
historiar o passado, narrativas que são puras classificações, simples
cronologias ou meras oportunidades para criticarem-se dogmas e
doutrinas. De acordo com o autor, é também inerente às
tradicionais histórias da filosofia o tratamento de cada modalidade
do conhecimento como um todo unificado e auto-suficiente, tal
como um edifício isolado e independente que, embora situado na
cidade, pode ser dela abstraído para uma boa compreensão de sua
economia interna (cf. 1983, p.37-39).
Pode-se dizer que a História das Ciências tenha
reforçado o "internalismo" que recebeu como legado das histórias
da filosofia ao despedaçar-se em uma miríade de histórias das
ciências, que em suas narrativas passaram a "criar-se por si
próprias, a si próprias, como se existissem independentemente e se
desenvolvessem em sistema fechado" (cf. Serres, 1974, p. 161).
Em adição, a noção de que a história da ciência eqüivaleria a um
processo gradativo pelo qual fatos, teorias e métodos foram sendo
adicionados ao estoque de conhecimentos presentemente reunidos,
restringiu o trabalho dos historiadores a duas tarefas principais:
determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei científica
contemporânea foi descoberta ou inventada; descrever e explicar
"os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a
acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno
texto científico" (cf. Kuhn, 2001, p. 20).
Assim, premidos pela obsessiva busca de objetividade por
parte de seus praticantes e consumidores, os historiadores das
ciências incumbiram-se de construir para elas um passado
81
destituído das formas da pseudociência, moldando-as à maneira
dos artigos científicos, ou seja, como narrativas ultra-racionais em
que só se relata o que, a posteriori, parece útil, racional e científico
(cf. Fourez, 1995, p. 167). "Desse ponto de vista – afirma Fourez
– o ‘progresso’ avança sempre com uma lógica implacável,
racionalizando os caminhos percorridos para se chegar onde se
está", com o que são descartados a subjetividade do cientista, a
interferência de fatores "externos", as descontinuidades, em outras
palavras, os processos históricos que presidem ao que Chalmers (cf.
1994, p. 14) denomina "fabricação das ciências".
Tal como na imagem clássica de Charles Beard (apud
Schaff, 1991, p. 65), lançados para fora pela porta principal, os
fatores "externos" retornam à história das ciências pelos fundos.
Considerando plausível a assertiva de que "a competição entre
segmentos da comunidade científica é o único processo histórico
que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de
outra" (cf. Kuhn, 2001, p. 27), não pode haver dúvidas sobre a
grande utilidade, para uma disciplina ou campo de estudos, de um
discurso competente sobre a sua própria história, que faça o
passado conduzir ao presente pela trilha racional do progresso do
conhecimento.
Evidentemente, os historiadores das ciências cumprem
um papel imprescindível nas lutas travadas no campo intelectual,
uma vez que a eles cabe justamente a tarefa de produzir memórias
e erigir tradições. As reconstruções do passado de uma disciplina
ou ciência consagram-se freqüentemente à invenção e à atribuição
de vínculos e legados a seus praticantes, por meio de resgates ou
descartes de autores e obras que passam a ostentar nas narrativas
significados pertinentes ao que se pretende definir como conteúdo
ou método próprio ou alheio, com o fim de estabelecerem entre
"sucessores" e "predecessores" desejáveis identidades históricas.
Essa partilha resolve, a posteriori, as desarmonias e
descontinuidades passadas, produzindo uma pacificada "memória"
ou "tradição", e o faz apagando a história conflituosa das disputas
por posições hierárquicas, reconhecimento dos pares ou
82
hegemonização de um discurso objetivo sobre o mundo, erigindo
em seu lugar um inimigo imaginário: a pseudociência, a metafísica
ou a religião.
A história das ciências e das disciplinas atrelada seja à
forma "presentista" e "epistemológica" da tradicional história da
filosofia, com sua obstinação objetivista, seja ao "partidarismo"
acadêmico travestido de história, em regra oculta os processos
pelos quais o conhecimento se produz, é apropriado, difundido,
reciclado ou abandonado por seus praticantes. Se a segunda forma
persiste como "memória", resta, em favor do avanço do
conhecimento sobre a área, inverter a razão que comanda a
primeira modalidade, ou seja, subordinar as inquirições filosóficas
aos resultados da investigação histórica. Para Warde (cf. 1998, p.
89), tal inversão teria pelo menos duas vantagens: a de alimentar
novas pesquisas históricas, porque contribuiria para ampliar o grau
de liberdade da História com relação à Filosofia e assim abrir um
diálogo mais franco com outras disciplinas, e a de contribuir para
alargar o horizonte de erudição dos pesquisadores.
Se, ao menos desde os ensaios de Kuhn (1962) aceita-se
que toda pesquisa científica encontra-se estruturada por elementos
sociais, ditos "externos", cabe ainda aos historiadores das ciências e
disciplinas assumir a sua presença e valor, e então identificá-los,
pesá-los, relacioná-los, a fim de produzirem um conhecimento
cada vez mais completo e relacional sobre os processos "internos" e
"externos" de que ela é composta. Para tal, é necessário partir de
um interesse menos imediato, dito "de resgate", e realizar mais
sistematicamente a crítica das fontes e a ampliação do corpus
documental para a construção dos objetos. A tal história das
disciplinas, privilegiar as séries de influência e as relações de
continuidade que conformariam internamente os princípios e os
caracteres diferenciais presentemente identificados é um
procedimento menos relevante do que seria a busca por restaurar
os dinâmicos e múltiplos "processos de domesticação e de
peregrinação" que fazem da história de cada disciplina a história de
uma rede de relações interdisciplinares, sejam elas de aliança,
83
emulação, imitação ou desprezo com relação a suas
contemporâneas (cf. Lepenies, 1983).
Se é verdade que as idéias e procedimentos que cada
disciplina defende como seus em cada momento histórico
remetem-se à base social e institucional em que puderam florescer
e circular, entretanto, a hipertrofia do "contexto" de produção
comumente faz com que se aprisione o movimento das idéias a
uma cadeia infalível de determinações, ou que se encarcerem os
praticantes das ciências em classes sociais portadoras de ideologias
fechadas, ou ainda que se reduzam as ciências e disciplinas "aos
jogos miúdos e mesquinhos dos departamentos e cátedras" (cf.
Warde, 1997, p.313). Talvez seja possível construir o objeto da
história das disciplinas mediante a articulação de elementos
variados, tais como a análise interna de obras, a biografia de seus
praticantes, a reconstrução dos programas e da organização das
instituições acadêmicas, mas também as disputas em torno de
fronteiras disciplinares, as hierarquias inerentes ao campo
intelectual, as redes de sociabilidade e a memória dos que
circularam pelas instituições de ensino e pesquisa, pela mídia e
pelos partidos e agremiações.
Partindo das premissas até aqui expostas e
fundamentado nos resultados das pesquisas realizadas para a
elaboração de minha tese de doutoramento A cadeira de História e
Filosofia da Educação da USP entre os anos 40 e 60: um estudo
das relações entre a vida acadêmica e a grande imprensa (2001), este
artigo procura apresentar a trajetória do ensino e da pesquisa em
história da educação brasileira na cadeira de Filosofia e História
da Educação, desde 1933, quando ela é instituída no Instituto de
Educação, a 1962, véspera de sua "departamentalização" na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo (FFCL). Embora não queira se impor como modelo de
aplicação dos princípios já evocados, a narrativa que ora se
apresenta contempla em parte algumas das possibilidades de
"cruzamentos" entre os ditos fatores "internos" e "externos", tais
como os perfis das instituições, as prescrições curriculares e
84
programáticas, as disputas do mundo acadêmico, as relações de
vizinhança entre as disciplinas, com os quais teceu-se uma rede de
personagens e acontecimentos em vista da construção de um
objeto plausível: a configuração da disciplina, entendida, afinal,
como o produto histórico dessas interseções.

Primeiros tempos da Filosofia e História da Educação:


disciplina subsidiária

Quando a Escola de Professores da Escola Normal da


Capital foi incorporada ao Instituto de Educação "Caetano de
Campos" (1933), a disciplina Filosofia e História da Educação
passou a compor o quadro curricular do curso de formação
profissional, ao lado de Biologia Educacional, Psicologia
Educacional, Sociologia Educacional, Educação Comparada e
Metodologia do Ensino Secundário (cf. Universidade de São
Paulo, 1953a, p.14)2.
O status das disciplinas componentes do currículo do
Instituto de Educação não era, entretanto, equivalente: enquanto
a Sociologia, a Biologia e a Psicologia, consideradas "ciências
matriciais" da Educação, eram destinadas à formação científica
dos professores, a Filosofia e História da Educação, compósito de
duas matérias que não eram propriamente denominadas de
ciências, tinha a função auxiliar de ministrar-lhes a formação
moral. Isto significa, de acordo com Warde (cf. 1998, p.91), que a
História da Educação implantou-se como apêndice da Filosofia da
Educação e que passou a ter, em função dos objetivos previamente
traçados no ideário escolanovista, sua eficácia medida pelo que
poderia oferecer de justificativas para o presente e de guia para a

2
As disciplinas ditas de "formação profissional" foram instituídas no currículo
das escolas normais primeiramente nas reformas de Minas Gerais (1927),
Distrito Federal (1928) e Pernambuco (1928), compondo o "ciclo profissional"
de dois anos, subseqüente ao "propedêutico", de três (cf. Tanuri, 2000, p.70).

85
construção do futuro, e não pelo que fosse capaz de explicar e
interpretar dos processos históricos objetivos da educação.
A regência da cadeira de Filosofia e História da
Educação coube ao normalista Roldão Lopes de Barros (1884-
1951), que iniciara a sua longa trajetória no magistério em 1911,
ao tomar posse da cadeira de Pedagogia e Educação Cívica na
Escola Normal Primária. Quanto à formação e orientação teórica
do lente pouco se sabe, a não ser que não tinha formação específica
em História ou Filosofia e que freqüentou um dos cursos de Ugo
Pizzoli no Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia
Experimental (cuja tônica residia na contrafação da "pedagogia
filosófica" pela "pedagogia científica"), tendo produzido uma
monografia a respeito da memória, calcada nas formulações de
Alfred Binet (cf. Monarcha, 1999, p.275-276).
Em que pese o presumível impacto dos cursos de Pizzoli
no Gabinete, o fato é que nem todos os seus participantes
quiseram ou tiveram oportunidade de praticar, como professores
do ensino normal, o que nele aprenderam. De acordo com Tavares
(cf. 1995, p.137-138), Lopes de Barros preferiu manter na
cadeira de Pedagogia e Educação Cívica as diretrizes de antigos
regentes Cyridião Buarque e Sampaio Dória, mais inclinados à
filosofia do que propriamente à psicologia científica e às questões
experimentais da disciplina. Segundo apurou Monarcha (cf. 1999,
p.258), Lopes de Barros esmerou-se na "vulgarização dos temas
fundamentais de determinadas escolas de psicologia", divulgando o
pensamento de William James como "base doutrinária do método
analítico para o ensino da leitura".
Se Lopes de Barros não se inclinava às experiências,
também as restrições regimentais do Instituto de Educação
trataram de afastá-lo da pesquisa. É que, quando da fundação da
Universidade de São Paulo (1934), foram estipuladas nos
regulamentos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FFCL) e do Instituto de Educação (IE) diferentes funções e
responsabilidades para os seus respectivos catedráticos: enquanto
que, para os da FFCL a pesquisa e produção do conhecimento
86
ocupavam um lugar privilegiado, para os do IE a exigência maior
era a de ministrar um "ensino eficiente" (cf. Evangelista, 1997).
Mesmo com a reforma de 1937, que a seu modo procurou corrigir
tal discrepância de funções e de status entre os professores das
duas instituições vinculadas, coube a Lopes de Barros a regência
de uma cadeira desobrigada de produzir conhecimento, mas
encarregada apenas de sua transmissão: a cadeira IV, de Filosofia
e História da Educação (cf. Evangelista, 1997). Somando-se a
isto a verdadeira aversão de Lopes de Barros a ver suas idéias
impressas (cf. Azevedo, 1961), tem-se uma boa explicação para o
fato de não haver textos por ele assinados e datados dos anos em
que esteve à testa da cadeira.
Segundo Evangelista (1997, p.162-163), o curso de
Filosofia e História da Educação dado por Lopes de Barros
dividia-se em duas partes: em História, o professor tratava da
educação entre os gregos, romanos, medievos e renascentistas,
abordava os filósofos da educação" Locke, Rousseau, Pestalozzi,
Herbart, Fröebel, Spencer e Dewey, e encerrava com um aceno
para a educação brasileira, apresentando o Manifesto dos pioneiros
da escola nova, do qual ele próprio fora signatário. Em Filosofia da
Educação, Lopes de Barros abordava os fins da educação, os graus
de ensino e suas relações, a organização do currículo na escola
secundária e os princípios para a orientação do professor.
Na cadeira IV a Filosofia, que ocupava dois anos do
curso, prevalecia sobre a História (um ano), e mesmo no programa
de História a ênfase recai sobre às idéias pedagógicas de autores
"universais", tendo a história da educação brasileira um espaço
insignificante, aparecendo como "apêndice" ao final do curso, a
exemplo do que ocorria nos livros didáticos da época (Nunes,
1996). Vale observar que, muito embora Lopes de Barros sequer
professasse religião (Azevedo, 1961), predominava como caráter
geral do programa o que Nunes (1996) e Warde (1998)
interpretaram como sendo um padrão "cristão", ou seja, uma
narrativa contínua, que parte dos modelos de formação
supostamente adotados pelas sociedades antigas e medievais para
87
completar-se com os pensadores da educação das idades Moderna e
Contemporânea (cf. Warde, 1998, p.92). Tal padrão, impresso
desde cedo nas instituições de formação do magistério, deveu-se
principalmente à origem da maioria de seus professores e à
natureza da bibliografia por eles utilizada (cf. Warde e Carvalho,
2000):
Finalmente, quanto à inclusão do manifesto no
programa de História, é preciso considerar que os programas
examinados referem-se aos anos anteriores a 1938, em que o
documento ainda era, para alunos e professores do curso normal,
uma peça política viva. Sua inclusão no programa, portanto, não
foi uma abertura de Lopes de Barros à história da educação
brasileira, mas apenas o aproveitamento de uma ocasião para que o
lente difundisse as idéias que subscrevera – ele que, há muito,
militava nas lutas pela modernização e pela democratização da
educação nacional. Um outro elemento reforça essa hipótese: de
acordo com Milton da Silva Rodrigues, Roldão Lopes de Barros
provava a qualidade de "idealista" em sua maneira de lecionar, pois
em seus cursos procurara "muito mais influir sobre a mentalidade
de seus alunos, do que simplesmente fornecer-lhes informações,
fazendo sempre disso um instrumento para aquilo" (cf.
Universidade de São Paulo, 1953b, p.167-168).
Roldão Lopes de Barros esteve vinculado à Sociedade de
Educação, instituição que, fundada em 1922 por Lourenço Filho,
Fernando de Azevedo e Renato Jardim, congregava membros do
magistério paulista e profissionais representativos de diversas áreas
de atuação e tinha como principais finalidades difundir idéias
educacionais renovadoras e estabelecer relações com o Estado, a
fim de interferir nas políticas educacionais. Como membro da
Sociedade de Educação, que publicou, de agosto de 1923 a
dezembro de 1924, a Revista da Sociedade de Educação, Lopes de
Barros alinhou-se entre os que defendiam o método analítico de
ensino da leitura, repudiavam os "receituários técnicos" oferecidos
aos professores primários pela Revista Escolar (cf. Mortatti, 2000,
p.181) e afirmavam-se adeptos da "pedagogia científica" e da idéia
88
de promover, no ensino e nos impressos a ele destinado, elementos
para uma formação cultural adensada e de escopo geral para o
magistério.
Em 26 de julho de 1923, na quarta sessão ordinária da
Sociedade de Educação, Lopes de Barros apresentou à entidade
uma "proposta de se lembrar aos poderes públicos a possibilidade e
as vantagens do arrendamento das terras pertencentes ao Estado,
revertendo os lucros em benefício da instrução" (cf. Nery, 1999,
p.33). No levante paulista de 1924 integrou a Polícia Municipal,
em 1932 participou direta e ativamente da chamada Revolução
Constitucionalista (cf. Universidade de São Paulo, 1953c, p.163-
164) e, naquele mesmo ano, assinou o Manifesto dos pioneiros da
educação nova, documento que, como foi visto, passou a incluir em
seus programas de curso no Instituto de Educação.

A transferência da cadeira para a Faculdade de


Filosofia

Em 1938, entendendo ser um dos principais objetivos


da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras preparar o magistério
secundário, o Governo do Estado de São Paulo extinguiu o
Instituto de Educação para atribuir a formação pedagógica em
nível universitário à FFCL, criando assim a Seção de Educação,
que funcionou até a reforma federal de 1940, transformando-se
em seguida na Seção de Pedagogia. O mesmo Decreto 9.268-A,
de 25 de junho de 1938, que regulamentou o fechamento do
Instituto, determinou a transferência dos professores efetivos da
Escola de Professores – e de seus assistentes – para a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
fazendo com que esta passasse a contar, a partir do segundo
semestre daquele ano, com os professores Antônio de Almeida
Júnior (Biologia Educacional), Noemy da Silveira Rudolfer
(Psicologia Educacional), Fernando de Azevedo (Sociologia
Educacional), Milton da Silva Rodrigues (Estatística e Educação

89
Comparada) e Roldão Lopes de Barros, de Filosofia e História da
Educação (cadeira XLV).
O assistente de Lopes de Barros, José Querino Ribeiro
(apud Bernardo, 1989), lembra que a recepção e os primeiros
tempos dos professores e assistentes transferidos do Instituto de
Educação para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo não foram momentos agradáveis3. As
situações desconfortáveis vividas por alunos e professores ligados às
novas cátedras e aos novos cursos da parte pedagógica indicam ter
vigido uma espécie de "estatuto informal" ao incorporarem-se os
novos cursos e cátedras no conjunto da FFCL. A reposição
reiterada desse "estatuto" ajuda a explicar as vicissitudes que as
cadeiras da Seção de Pedagogia viveram no período de sua
permanência na FFCL.
Segundo Antunha (1974, p.112) o "provimento
automático" das cadeiras da Seção de Educação afetava o regime
de contratos então vigente na Faculdade de Filosofia, gerando
inquietude e hostilidade da parte dos aspirantes, uma vez que,
como catedráticos, os novos professores do Instituto
automaticamente assumiam posições de liderança na Faculdade4.
Com efeito, após a Segunda Guerra, quando grande parte dos
professores estrangeiros contratados retornava aos seus países de
origem e aumentavam as pressões internas a fim de levar a

3
José Querino Ribeiro (1907-1990) foi nomeado assistente da cadeira de
Administração e Legislação Escolar do Instituto de Educação. Licenciou-se em
Ciências Sociais, obteve grau de doutor em História da Civilização Brasileira na
FFCL, onde ocupou sucessivamente os cargos de 1o assistente na cadeira de
História e Filosofia da Educação (1938); assistente, e depois catedrático, da
cadeira de Administração Escolar e Educação Comparada (respectivamente, em
1948 e 1953).
4
Dentre os privilégios inerentes ao posto de catedrático incluíam-se não só a
"propriedade" do conhecimento de sua área, mas também a participação, com
direito a voz e voto, nos mais importantes órgãos deliberativos e executivos dos
institutos universitários. Aos catedráticos cabia, "de fato, o governo da
Universidade" (cf. Antunha, 1974, p.140).

90
Faculdade a se organizar segundo o regime vigente nas demais
unidades da Universidade, deu-se o rompimento da breve
experiência de "moratória do regime de cátedras" e teve seu lugar a
corrida desabalada pela efetivação de catedráticos.
Assim, ainda que resultando na alegação já clássica da
"inferioridade científica" dos assuntos pedagógicos de que se
ocupavam as cadeiras oriundas do Instituto de Educação, a
discriminação para com os professores e alunos recém-chegados à
FFCL foi em grande parte alimentada por um sentimento de
angústia dos "filósofos" diante da invasão de espaços e da
conspurcação das vias legítimas de ascensão hierárquica pelos
"pedagogos". Além do mais, a antigüidade do Instituto de
Educação, nascido da Escola Normal de São Paulo, trazia para a
"nova" faculdade o ranço inconveniente das "velhas" instituições e
de seus padrões de formação profissional, tão distantes dos
primeiros e seminais sonhos "desinteressados" dos mentores da
Universidade, Júlio de Mesquita Filho, Paulo Duarte e Fernando
de Azevedo.
Alguns professores estrangeiros da casa não só
desprezavam as disciplinas que compunham a formação
pedagógica, como também faziam campanha aberta contra elas.
Contrários às disciplinas pedagógicas, mestres como o matemático
italiano Luigi Fantapié, por exemplo, defendiam que bastava a
formação científica de qualidade para que o professor tivesse
condições de operar a transformação do conteúdo aprendido em
conteúdo a ser ensinado nas escolas normais e secundárias (cf.
Castrucci apud Freitas, 1993, p.74). Os aconselhamentos
fundamentados nessa concepção não só intensificavam a
discriminação, como contribuíam para reproduzir, pelo menos nas
seções de Ciências da Faculdade de Filosofia, a velha prática de
destinar apenas os "fracassados" à carreira do magistério
secundário.
Dentro da própria Seção de Pedagogia vigiam estatutos
diferentes para os cursos e para os praticantes das diversas
disciplinas. O curso de Pedagogia era "desinteressado", enquanto o
91
de Didática era "profissional", tendo derivado disto a oposição
entre os dois tipos de profissionais que nelas se formavam, que
passaram a "competir pela autoridade científica de definir qual o
discurso e o saber-fazer legítimos acerca do ensino" (cf. Garcia,
1994, p.48).
O curso de Pedagogia, por seguir a organização e o
formato dos demais cursos da FFCL, era tido como um espaço
legítimo para a reflexão e produção de conhecimento acerca do
ensino, em detrimento do curso de Didática, este considerado um
desdobramento inútil, uma vez que as disciplinas Psicologia da
Educação, Sociologia Educacional, Fundamentos Biológicos da
Educação e Administração Escolar, de função essencial nas
licenciaturas, eram apenas subsidiárias nos cursos de Pedagogia
(cf. Garcia, 1994, p.105). Assim, seja porque passaram a
constituir a substância de outros cursos (como os de Sociologia ou
Psicologia), seja porque representavam a parte central do curso de
Pedagogia, algumas das disciplinas pedagógicas que não
integravam o núcleo das "didáticas" foram se aproximando
gradativamente das chamadas disciplinas "de conteúdo" (cf.
Castro, 1992, p.234). Era este o caso de Filosofia e História da
Educação, que constituíam disciplinas obrigatórias do curso de
Pedagogia e do curso de Didática para pedagogos, e que, na parte
geral do curso de Didática, atendiam pelo nome de Fundamentos
Filosóficos da Educação (cf. Tomazetti, 2000).
A transferência para a faculdade não trouxe à Filosofia e
História da Educação a alteração do estatuto original de disciplina
auxiliar, complementar ou depositária das ciências matriciais do
campo, que herdara dos modelos de currículo criados nos anos 30
para as escolas normais. No Anuário da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, a História da Educação aparece como "matéria
subsidiária da formação da consciência pedagógica e da formação
técnica do ensino primário" (cf. Universidade de São Paulo,
1935b, p.391). Modificações, entretanto, houve em certos
aspectos de sua organização e funcionamento.

92
Quanto à orientação didática da cadeira (que em 1942
passou a se chamar História e Filosofia da Educação), o Anuário
informa que a praxe era "partir sempre de uma visão geral dos
assuntos para concluir, nos fins de curso, com estudos
monográficos", tal como se procedia em várias outras cadeiras
daquela faculdade. Isto indica que, embora tenha-se mantido a
antiga divisão dos cursos em duas partes (História Geral e
Filosofia da Educação), o translado para a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras implicou mudanças no teor e na condução dos
cursos da cadeira, em favor de uma equiparação às demais cadeiras
daquela escola superior. Um acréscimo importante aos cursos
regulares deu-se a partir de 1940, quando, paralelamente ao curso
de História Geral, instituiu-se o curso de História do Brasil, a
cargo do assistente José Querino Ribeiro (cf. Universidade de São
Paulo, 1953b, p.465).
O conteúdo do curso de História do Brasil era extenso e
partia das "condições gerais da Educação na Europa e
especialmente em Portugal na época do descobrimento" até a
"Influência da Universidade de Coimbra", para o segundo ano; e
de "D. João VI: intenção e ação da obra educacional neste período;
advento das influências francesas" até "A Educação no Brasil
atual: O Manifesto dos Educadores Brasileiros. A Reforma
Francisco de Campos", para o terceiro (cf. Universidade de São
Paulo, 1943, p.289-290). Todo este percurso, entretanto, não foi
cumprido. No ano letivo de 1945, por exemplo, Querino Ribeiro
tratou apenas dos tópicos "A instrução em Portugal antes do
descobrimento" e "A educação no Brasil antes dos jesuítas"5, de
modo que, como o curso não prosseguia no 3o ano, à turma de
1945 foi ensinada apenas a história da educação jesuítica em
Portugal.
5
As informações a respeito do programa da cadeira XLV, que são aqui cotejadas
com os registros publicados nos Anuários, foram obtidas nos diários de
lançamento de matéria (cf. Arquivo pessoal de Laerte Ramos de Carvalho. Centro
de Memória da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo).

93
Não obstante, para a exigüidade geral do programa pode
ter contribuído a maleabilidade da carga horária efetivamente
cumprida nos cursos daquela faculdade em suas três primeiras
décadas de funcionamento. Assim, embora estivessem reservadas
quatro horas semanais para "aulas teóricas" no curso de História
da Educação da segunda série, e três horas no de Filosofia da
Educação para a terceira série, sabe-se que "a carga horária não era
rígida" e que "o horário era realmente decidido pelo professor
conforme as necessidades do seu curso" (cf. Freitas, 1993, p.93).
Desse modo, a "cultura institucional" da faculdade encarregou-se
de reduzir a carga dos cursos da cadeira.
Em 1946 e 1947, tendo Lopes de Barros se afastado em
virtude de doença, ficaram a cargo de Querino Ribeiro grande
parte das aulas. Com relação ao curso de História do Brasil, tendo
reduzido o número de aulas sobre a educação jesuítica, o assistente
logrou estender em 1946 o conteúdo até o "panorama do ensino
no Brasil no fim do século XVIII", indicando com isso sua
familiaridade com o tempo histórico pertinente à pesquisa que
realizara para fins de doutoramento em História da Civilização
Brasileira6. Em 1947, incluíram-se as seguintes modificações no
programa: a introdução de um Seminário de Filosofia, de que
participaram como convidados os catedráticos da FFCL João Cruz
Costa e André Dreyfus, e a inclusão, à frente da seqüência
tradicional, ou seja, do percurso histórico que vai dos jesuítas a D.
João VI, dos temas "O meio físico e sua influência na formação
cultural brasileira" e "O elemento étnico na formação da cultura
brasileira". Pela primeira vez verifica-se nos diários menção à

6
Querino Ribeiro defendeu em 12/11/43 a tese de doutoramento A memória de
Martim Francisco sobre a reforma dos estudos da Capitania de São Paulo (Ribeiro,
1945), primeira tese acadêmica sobre história da educação brasileira apresentada
na FFCL-USP. Orientada por Alfredo Ellis Jr., catedrático de História da
Civilização Brasileira e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a
obra segue o tradicional modelo do IHGB, ou seja, uma narrativa em que
prevalece a "reunião de informações, atos, legislativos e regulamentares, as
notícias e os fatos pertinentes" (cf. Carvalho, 2000, p.921).

94
pesquisa documental: "Trabalho de pesquisa nos Arquivos do
Estado sobre documentos inéditos", no dia 29/9/1947.
Em 1948, Querino Ribeiro conseguiu a sua
transferência definitiva para a cadeira de Administração Escolar e
Educação Comparada. Para a substituição do assistente de Lopes
de Barros foi convidado um jovem licenciado em Filosofia, Laerte
Ramos de Carvalho (1922-1972), que naquele momento ocupava
o cargo de assistente de Cruz Costa na cadeira I de Filosofia7. A
Ramos de Carvalho, que assumiu cumulativamente as duas
assistências, foi a princípio entregue o curso de História do Brasil;
menos de dois anos depois, ou seja, no mesmo ano em que
defendeu a tese de doutoramento em Filosofia (1951), o professor
assumiu a cadeira de História e Filosofia da Educação em caráter
interino, em razão do falecimento de Roldão Lopes de Barros. Em
1955, ao obter o primeiro lugar no concurso para a mesma
cátedra, conseguiu galgar o posto mais alto da hierarquia
acadêmica. Essa trajetória meteórica (que poderia ter sido ainda
mais rápida se o concurso, realizado em 1952, não tivesse sido
impugnado, fazendo com que a nomeação demorasse quase três
anos) demonstra que a opção de Ramos de Carvalho pela mudança
de área poderia estar escorada na mais viva confiança de que os
caminhos para a ascensão acadêmica lhe estavam franqueados.
Ramos de Carvalho havia sido aluno de Cruz Costa no
Departamento de Filosofia8, tendo sob sua orientação publicado
um substantivo trabalho em História da Filosofia: a tese A
formação filosófica de Farias Brito (1951). Mesmo que com este

7
Nascido em Jaboticabal (SP), Ramos de Carvalho ingressou em 1940 na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
concluiu o bacharelado em 1942 e a licenciatura em 1943, assumindo em
janeiro de 1944 o cargo de primeiro assistente da cadeira de Filosofia, a convite
de Cruz Costa, permanecendo nessa condição até 1955.
8
Entenda-se "departamento" como o conjunto das cadeiras de Filosofia. Esta
denominação só foi oficializada em 1963, embora fosse de uso corrente entre
alunos e professores.

95
trabalho Ramos de Carvalho tenha afrontado em muitos aspectos
as opiniões dos "filosofantes municipais" ligados a Miguel Reale e
ao Instituto Brasileiro de Filosofia, rivais declarados da cadeira de
Filosofia da Universidade de São Paulo, a verdade é que a
repercussão da obra em seu próprio "departamento" não foi muito
positiva. É que, para a nova geração que nele surgia (e cujos
nomes de maior destaque eram Bento Prado Jr. e José Arthur
Giannotti), a inclinação para a história do pensamento brasileiro,
linha de pesquisa a que Cruz Costa conduzia o seu "sucessor
natural", era mesmo desprezível (cf. Arantes, 1994). Assim, a
migração de Ramos de Carvalho da prestigiada cadeira I, de
Filosofia, para a desprestigiada Seção de Pedagogia, poderia ser
em parte explicada pela oportunidade que o assistente de Cruz
Costa encontrou de livrar-se da condição desconfortável que o
legado de seu mestre lhe impingira, e de quebra, alcançar mais
cedo do que se poderia esperar o posto de catedrático na
Universidade, uma vez que, com a saída de Querino Ribeiro, não
haveria um "sucessor natural" para Lopes de Barros a pleitear a
regência da cadeira de História e Filosofia da Educação.
Além desse, havia ainda outro fator a atrair Ramos de
Carvalho para a cadeira de História e Filosofia da Educação: a
demanda de conhecimento sobre educação (e de autoridade
acadêmica reconhecida na área) para fomentar e legitimar os
comentários educacionais que o professor vinha publicando em O
Estado de S. Paulo (OESP) desde 1946. A convite de Júlio de
Mesquita Filho, que dessa forma procurava restaurar o discurso
político do periódico, interrompido no Estado Novo, Ramos de
Carvalho encarregou-se (a partir de 1946, como colaborador, e de
1947, como responsável pelas colunas não assinadas de "Notas e
Informações") de comentar os assuntos da educação à luz dos
ideais liberais do jornal, erguendo, desde o momento em que o
lançamento do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional passou a exigir uma nova aliança dos "educadores

96
paulistas" em prol da educação brasileira, as bandeiras da escola
pública e da universidade9.
A posse da cadeira, tanto quanto a inclinação para o
estudo das "idéias pedagógicas", que materializou na tese de
cátedra As reformas pombalinas da instrução pública, podem ser
creditadas em maior grau aos interesses derivados da atuação
jornalística de Ramos de Carvalho em O Estado de S.Paulo, do
que propriamente à formação acadêmica inicial do professor
(calcada no programa filosófico de Maugüé e mesclada do
nacionalismo de Cruz Costa e do rigor metodológico de Lívio
Teixeira). Esta "demanda externa", que pesou decisivamente na
ocupação do posto máximo da disciplina por um homem ligado ao
jornal, prolongou sua ação por muitos anos. No período de sua
regência (1955-1968), Ramos de Carvalho nomeou
sucessivamente dois ex-alunos da Filosofia para o cargo de
assistente, Roque Spencer Maciel de Barros e João Eduardo
Villalobos, conduzindo-os também às colunas de "Notas e
Informações" do jornal O Estado de S. Paulo. Com isto, o regente
proporcionou aos homens de sua confiança a possibilidade de
reproduzirem a sua própria trajetória acadêmica, vinculando a
ascensão na hierarquia acadêmica à conquista do direito e da
legitimidade de proferir o discurso educacional de OESP. Dessa
forma, no mesmo movimento de tomada definitiva da cadeira
XLV pelos imigrantes do Departamento de Filosofia, conquistava
a História e Filosofia da Educação o direito à última palavra no
discurso político-educacional da época, haja vista que seus homens
falaram por três decênios (de meados da década de 1940 a fins da
década de 1970) pela boca do jornal que cedo se tornara o veículo
autorizado das idéias dos liberais paulistas.

9
Ver, a esse respeito, o livro organizado por Roque Spencer Maciel de Barros,
Diretrizes e Bases da Educação. São Paulo: Pioneira, 1960.

97
A história da educação brasileira reconfigura a cadeira

Em que pese o justificável interesse pela história da


educação brasileira que despertavam aqueles debates no front da
grande imprensa paulista, nos primeiros anos de atividade de
Ramos de Carvalho como assistente da cadeira XLV o curso de
História do Brasil não recebeu maior atenção do que nos tempos
de Roldão e Querino; entre 1948 e 1950 houve até mesmo uma
redução drástica do conteúdo e das aulas. Em princípio, isto
poderia ser explicado pelo fato de Ramos de Carvalho encontrar-se
ocupado com sua tese de doutoramento em Filosofia, para que
despendia tempo e esforços que seriam necessários para a
atualização no assunto; além disso, a atualização requerida não se
afigurava como tarefa possível porque, do ponto de vista de um
bacharel formado nos padrões da Faculdade de Filosofia, ainda
não havia à disposição um montante de conhecimentos sobre
história da educação no Brasil que pudesse ser reconhecido como
cientificamente válido.
Em 1955, quando foi homologado o seu título de
catedrático, Ramos de Carvalho deu início a um processo de
reformulação da cadeira de História e Filosofia da Educação, em
que a história da educação brasileira passou a ocupar um lugar de
destaque, em que as práticas de ensino e pesquisa fizeram-se mais
assemelhadas às de outras cadeiras da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em que o status
relativo da disciplina foi alterado para melhor. Diversos fatores
contribuíram para essa configuração: a legitimidade granjeada pelo
respeito da comunidade acadêmica ao regente (cujo artigos se
estampavam nos editoriais de OESP, e que ostentava dois títulos
acadêmicos de peso, obtidos naquela mesma instituição); a adoção
de certas práticas de ensino vigentes nas demais cadeiras da
faculdade; a dedicação à pesquisa acadêmica original, destinada à
formação de doutores em educação.
Embora Ramos de Carvalho tenha mantido, ao longo
dos anos em que exerceu a regência da cadeira de História e

98
Filosofia da Educação, a estrutura curricular básica da antiga
cadeira do Instituto de Educação, percebe-se que práticas mais
afins à FFCL foram sendo paulatinamente adotadas, tais como o
uso de livros clássicos em detrimento dos manuais, a
intensificação das atividades de escrita e comunicação oral feitas
por alunos, a sintomática substituição do antigo termo "sabatina",
marcadamente normalista, pelo acadêmico "argüição", para se
referir às provas orais (Universidade de São Paulo, 1953c) e,
finalmente, a produção das primeiras pesquisas acadêmicas em
história da educação no Brasil.
A intenção de produzir monografias para fundamentar o
estudo da história da educação brasileira baseava-se na constatação
de que o conhecimento acumulado sobre o assunto era ainda
insuficiente para alimentar os cursos regulares da cadeira. Sendo
assim, Ramos de Carvalho visava a promover a realização de
pesquisas originais, justamente para produzir o conhecimento que
faltava ser incorporado ao ensino da história da educação
brasileira, uma vez que acreditava não haver "legítima história sem
sério e criterioso levantamento de dados de toda ordem" (cf.
Carvalho, 1956, p.600).
As pesquisas foram sendo estimuladas pelo regente no
interior dos próprios cursos regulares da cadeira de História e
Filosofia da Educação, destacadamente no curso de
Especialização, cumprido no quarto ano por alunos escolhidos,
tendo em vista o doutoramento em futuro próximo. A tese de
doutoramento de Heládio Antunha, A reforma de 1920 da
instrução pública no Estado de São Paulo (1967), por exemplo,
surgiu da combinação de um seminário realizado sobre a Reforma
Sampaio Dória com a organização de uma pesquisa baseada em
entrevistas feitas com educadores coetâneos.
Em 1962, Ramos de Carvalho convocou antigos alunos
de Pedagogia, dentre os quais Jorge Nagle e Casemiro dos Reis
Filho, para que participassem de um projeto pioneiro de
investigação e escrita da História da Educação Brasileira, que
consistia na produção de monografias que pudessem gerar em seu
99
conjunto uma visão mais alargada de nossa história educacional.
Segundo testemunhos de alguns dos participantes, as diretrizes do
orientador incluíam a localização e a socialização das fontes
documentais e a necessidade de criar uma periodização específica
para a história da educação brasileira, que fosse independente dos
critérios político-administrativos até então utilizados (cf. Nagle,
1999; Tanuri, 1999).
Além da orientação de Ramos de Carvalho e das
discussões coletivas e periódicas, os doutorandos passaram a contar
com o decisivo apoio do Centro Regional de Pesquisas
Educacionais de São Paulo (CRPE-SP), dirigido à ocasião pelo
próprio regente, que lançou mão de sua estrutura e pessoal a fim
de facultar aos doutorandos o acesso ao maior número de
documentos e fontes bibliográficas. Tal iniciativa lhes permitiu
usar, por exemplo, o Serviço de Documentação e Intercâmbio,
onde podiam aceder à documentação legislativa referente à
República e até mesmo reproduzi-la. Beneficiando-se das
instalações e do auxílio dos funcionários do CRPE-SP, os
doutorandos realizavam a contrapartida participando de
seminários e palestras ou escrevendo artigos para o periódico
Pesquisa e Planejamento.
A relação simbiótica entre a cadeira de História e
Filosofia da Educação e o CRPE-SP contribuiu para que fossem
realizados alguns dos projetos de pesquisa que originaram as teses
defendidas pelos licenciados na USP e nos Institutos Isolados de
Ensino Superior do Estado de São Paulo (reunidos na atual
UNESP) no decorrer dos anos 60 e 70. A escrita histórica de
toda uma geração de pesquisadores deve ser, pois, em grande parte
creditada à atuação de Ramos de Carvalho, não só como
orientador direto das pesquisas, mas como regente da cadeira de
História e Filosofia da Educação, posição em que conduziu a
disciplina rumo a uma nova configuração, na qual a História
sobrepujou a Filosofia, a História do Brasil comandou os
interesses de pesquisa, e foi instituída a investigação científica com
fontes documentais inéditas. Pode-se dizer, especialmente quando
100
se atenta para o esforço verificado de estabelecer uma periodização
autônoma para a história da educação brasileira, ou seja, livre dos
marcos de nossa história político-administrativa, que uma
"identidade cognitiva" diversa daquela original então se esboçava:
um método de produção do conhecimento já colocava em cheque
as interpretações veiculadas nos livros canônicos e nos manuais de
ensino.

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Bruno Bontempi Júnior é Doutor em Educação: História e


Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professor do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política,
Sociedade da PUC-SP. Seus últimos trabalhos a respeito do tema
do presente artigo foram "O Estado de S.Paulo e a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: o
pensamento educacional convergente", publicado na Revista do
Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe (n.4,
2000) e "A educação brasileira e a sua periodização: vestígio de
uma identidade disciplinar", publicado na Revista Brasileira de
História da Educação (n.5, 2003). Coordena o grupo de pesquisa
Internacionalização-nacionalização de padrões pedagógicos e escolares
do ensino secundário e profissional (São Paulo, meados do século
XIX ao pré-Segunda Guerra Mundial) e integra o grupo de pesquisa
Americanismo e educação: a fabricação do "homem novo",
coordenado por Mirian Jorge Warde.
Endereço para correspondência: Rua Harmonia, 445 apto. 63
CEP 05435-000 Sumarezinho São Paulo-SP. Endereço
eletrônico: bontempijr@pucsp.br

Recebido em: 20/01/2007


Aceito em: 15/03/2007

105
.

106
AS PESQUISAS NA ÁREA DA EDUCAÇÃO
INFANTIL E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
CONSTRUINDO A HISTÓRIA DO
ATENDIMENTO ÀS CRIANÇAS PEQUENAS NO
BRASIL1
Alessandra Arce

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo, através da análise da produção
acadêmica na área de Educação Infantil e de História da Educação
presente nas teses e dissertações defendidas entre 1987 e 2001 nos
programas de Pós-Graduação de nosso país, apresentar elementos que
forneçam uma visão ampla do que se tem pesquisado a respeito da
história da Educação Infantil, apontando para as lacunas existentes
neste campo.
Palavras-chave: História da Educação, Educação Infantil, Pesquisa
Educacional.

CHILDHOOD EDUCATION RESEARCHES AND


HISTORY OF EDUCATION: BUILDING THE HISTORY
OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN BRAZIL
Abstract
The aim of this paper is to present an analysis of the academic
production in early childhood education and history of education that
appears in doctorate thesis and masters degree dissertations between
1987 and 2001 in Brazil. This paper intends to present the variety
of researches done in the field of early childhood education, looking
forward for its floss.
Keywords: History of Education, Early Childhood Education,
Educational Research

1
Este artigo foi apresentado na forma de trabalho na 27 Reunião Anual da
ANPEd no grupo de trabalho de História da Educação. Este trabalho contou
com financiamento da FAPESP para sua realização. Gostaria de agradecer em
especial a Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos pela leitura cuidadosa do
texto e por suas sugestões.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 107-131, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
LAS INVESTIGACIONES EN EL ÁREA DE LA
EDUCACIÓN INFANTIL Y LA HISTORIA DE LA
EDUCACIÓN: CONSTRUYENDO LA HISTORIA DEL
ATENDIMIENTO A LOS NIÑOS PEQUEÑOS EN
BRASIL
Resumen
Este trabajo tiene el objetivo de presentar elementos que suministren
una visión amplia de lo que ha investigado la historia de la educación
de la primera niñez a través del análisis de la producción académica
en el área de la Educación Infantil y de la Historia de la Educación
presente en las teses y disertaciones defendidas entre 1987 y 2001 en
los programas de Pos-Graduación de nuestro país, apuntando así, los
huecos existentes en este campo.
Palabras-clave: Historia de la Educación, Educación Infantil,
Investigación Educacional.

108
Considerações Iniciais

Este artigo é fruto de pesquisa realizada dentro da


agenda de trabalhos/2003 do grupo nacional de pesquisa
"História, Sociedade e Educação no Brasil"(HISTEDBR),
visando fornecer elementos para a construção do projeto de
pesquisa coletivo do grupo intitulado provisoriamente
"Reconstrução Histórica da Educação Pública no Brasil". O
objetivo deste artigo é através da análise da produção de teses e
dissertações nas áreas de Educação Infantil e História da
Educação de 1987 a 2001, nos programas de Pós-Graduação de
nosso país, apresentar elementos que forneçam uma visão ampla
do que se tem pesquisado a respeito da história da Educação
Infantil.
Para tanto, este texto encontra-se dividido em três
partes: a primeira ‘Considerações Iniciais’ descreve como foi
realizado este trabalho; a segunda parte, intitulada ‘As Pesquisas
na área de Educação Infantil e seus protagonistas’, tem por
objetivo apresentar sucintamente de que forma os pesquisadores e
grupos de pesquisa têm investigado a história da Educação; a
terceira parte intitulada ‘A Educação Infantil e a História da
Educação – uma ainda tímida porém promissora relação’, elenca e
analisa os resultados da pesquisa realizada apontando para
possíveis caminhos de pesquisa que viriam a fortalecer os trabalhos
de construção da história do atendimento educacional às crianças
pequenas em nosso país.
O material utilizado neste artigo foi fruto do
levantamento realizado junto ao banco de teses da CAPES, que se
constitui atualmente no maior banco de dados referente à
produção dos Programas de pós-graduação no Brasil. Programas
esses que centralizam e organizam os grupos de pesquisas dos quais
derivam os trabalhos produzidos tanto na área de Educação
Infantil como de História da Educação. Para chegar ao

109
levantamento que apresentarei tive que utilizar diversos descritores
na localização das dissertações e teses que procurava, pois esta
produção encontra-se muito difusa e muitas vezes em programas
de pós-graduação que não pertencem à área de educação. Os
descritores utilizados foram os seguintes: educação infantil,
educação pré-escolar, educação pré-primária, creche, jardim-de-
infância, parque infantil, Pestalozzi, Froebel, Montessori, história
da educação, salas de asilo, Freinet, Decroly, Dewey, jogo,
brinquedo, roda de expostos e infância, criança, crianças,
psicologia infantil, psicologia do desenvolvimento. Assim,
utilizando-me destes descritores procurei ano por ano de 1987 a
2001 os trabalhos relacionados à história da educação de crianças
menores de 06 anos, ou seja, história da educação infantil, lendo
os resumos, para mais tarde acessar os trabalhos. Para
complementar a busca e precisar mais as informações, recorreu-se
ainda ao CD Rom produzido pela ANPEd que mapeou, também,
as teses e dissertações produzidas, entretanto, somente nos
programas de pós-graduação em educação desde a década de 70 até
o ano de 1997. Passo, agora, portanto, à segunda parte desse
trabalho onde apresento as primeiras pesquisas realizadas no
âmbito da História da Educação Infantil, bem como seus
protagonistas.

As Pesquisas na Área de Educação Infantil e seus


protagonistas

A primeira pesquisa com caráter histórico foi o de Sônia


Kramer na forma de dissertação de mestrado defendida em 1981
(publicada em livro com sua 5º edição datada de 1995),
intitulando-se "História e Política da Educação Pré-Escolar no
Brasil – uma crítica à educação compensatória". Nessa obra a
autora procura traçar a trajetória histórica do atendimento a
crianças menores de 6 anos no Brasil desde a República Velha até
a segunda metade da década de 70. Esse trabalho foi um dos

110
primeiros a levantar críticas à predominância da psicologia como
norteadora dos trabalhos na área e das propostas educacionais que,
em sua maioria, adotavam a abordagem da educação
compensatória. A autora, por meio da apresentação das
instituições destinadas à assistência e educação das crianças no
período estudado, denuncia o descaso e a falta de políticas
definidas para a educação infantil. A crítica, efetuada no trabalho,
é construída a partir dos estudos a respeito da infância como
categoria histórica. Como referência teórica principal aparece o
trabalho de Ariès "História Social da Criança e da Família".
A dissertação de Kramer trouxe ainda características que
marcaram muitas das produções subseqüentes que procuraram
reconstruir a história deste atendimento, são elas: o fato do
pesquisador/a ser alguém que pesquisa sobre a educação de
crianças menores de 6 anos e a partir de seus trabalhos (que
geralmente envolvem o estudo das políticas públicas ou
investigação de metodologias e práticas pedagógicas) procura, com
o auxílio do resgate histórico, fortalecer ou desvelar posições e/ou
discursos vigentes, seja para criticá-los como para lançar novas
luzes sobre antigas questões da área; a estreita ligação entre a
reconstrução histórica e a análise das políticas públicas destinadas
à educação infantil; a presença constante de uma preocupação
com as práticas pedagógicas implementadas no cotidiano das salas
de aula travando-se quase sempre uma batalha na busca da
definição da função deste tipo de atendimento; por fim o
privilegiamento do estudo de instituições nas investigações de
caráter histórico tendo-se como fontes documentos oficiais e
periódicos.
O segundo trabalho de pesquisa foi produzido por Rosa
Lutero Oliveira em forma de dissertação de mestrado em 1985
sob o título "Educação Pré-Escolar: uma análise crítica de
dissertações e teses (1973-1983)", na qual a autora analisa 17
dissertações de mestrado e duas teses de doutorado defendidas em
programas de pós-graduação localizados em São Paulo e no Rio de
Janeiro, no período de 1973 a 1983. A autora apresenta como
111
temas recorrentes de pesquisa nos trabalhos analisados os
seguintes: monitoria de mães, políticas de educação pré-escolar,
objetivos da pré-escola e proposta curricular; havendo uma grande
influência nestes estudos da educação compensatória calcada na
teoria da privação cultural. Este estudo ilustra a presença forte da
psicologia como norteadora das pesquisas realizadas na área, o que
reduzia o campo de investigação prescindindo de pesquisas de
cunho histórico, antropológico, filosófico e sociológico. Esse
segundo trabalho é diferente do primeiro, pois não aborda a
história da educação infantil, mas sim as pesquisas que tinham por
objeto a educação infantil. Sua importância reside na apresentação
da produção da área onde ficam visíveis as lacunas existentes e as
áreas mais enfatizadas.
O terceiro trabalho apresentado sob a forma de tese de
doutorado em 1986, foi produzido por Tizuko Morchida
Kishimoto intitulando-se "A Pré-Escola em São Paulo (das
origens a 1940)". Este trabalho (publicado em livro em 1988)
analisa a evolução das instituições que existiram no período
escolhido para amparar e atender a infância paulista, destacando a
legislação específica para este atendimento, as modalidades
adotadas (escolas maternais, jardins-de-infância, salas de asilo e
outros) e o significado das mesmas bem como a influência dos
teóricos como Montessori, Decroly, Dewey, Froebel entre outros
na definição de uma orientação educativa. Este trabalho é o
primeiro a trazer uma investigação regionalizada da educação
infantil e sua história, por centrar-se somente no estado de São
Paulo.
O quarto trabalho foi defendido sob a forma de tese de
doutorado por Lucia Regina Goulart Vilarinho, em 1987,
intitulando-se "A Educação Pré-Escolar no Mundo Ocidental e
no Brasil: perspectivas históricas e crítico-pedagógicas". A autora
procura, através da reconstituição da história do atendimento pré-
escolar no mundo, analisar no Brasil dois momentos distintos
deste atendimento: o período pioneiro (1896-1973) e o período
considerado atual na pesquisa (1973-1986); com esta análise
112
procura-se mostrar a decisiva influência internacional na área em
nosso país. Este trabalho é o primeiro a apontar as ligações entre a
expansão e a história do atendimento pré-escolar no mundo
ocidental, com a expansão deste tipo de atendimento em nosso
país.
O quinto trabalho, também produzido em 1987,
apresentado sob a forma de dissertação de mestrado por Lívia
Maria Fraga Vieira intitulou-se "Creches no Brasil: de mal
necessário a lugar de compensar carências: rumo a construção de
um projeto educativo". Utilizando-se de documentos oficiais, a
autora acompanha a trajetória da instituição creche no Brasil
abrangendo um período longo que vai desde 1940 ao final da
década de 1970. A autora procura defender a creche não como
espaço de compensar carências, mas sim como opção de educação
e socialização da criança. Este trabalho é o primeiro a traçar o
tortuoso caminho das políticas sociais destinadas ao atendimento
de crianças de baixa renda em creches no Brasil. Como
conseqüência tornou-se referência dentro da área. Chamo a
atenção para um fato já descrito anteriormente, a autora procura
na historicização do atendimento defender uma proposta
pedagógica por meio da discussão da função que esta instituição
deveria ter no contexto brasileiro.
O sexto e último trabalho foi produzido por Maria V. B.
Civiletti como dissertação de mestrado em 1988 sob o título "A
creche e o nascimento da nova maternidade". Este trabalho
dedicou-se a descrever e analisar os discursos e práticas existentes
no Brasil do século XIX relativos ao atendimento de crianças
menores de 06 anos, destacando-se o surgimento do discurso a
respeito das creches e salas de asilo bem como as relações destas
instituições com a chamada das mães das classes populares para
abandonarem o trabalho e tomarem conta sua própria prole,
melhorando com isso o desempenho masculino no trabalho.
A divulgação destes trabalhos, engajados na definição da
função e da necessidade de um atendimento de qualidade na
educação infantil, bem como o calor das discussões que
113
envolveram o processo da constituinte brasileira no final dos anos
oitenta, trouxeram a força necessária para a luta pela consolidação
das instituições de atendimento a menores de seis anos em nosso
país. Este movimento levou a um crescimento nas pesquisas na
área. Segundo Rocha (1999) o número de trabalhos de mestrado
de 1990 a 1993 era de 18 ao ano, enquanto que de 1994-1996
este número saltou para 39. Já em nível de doutorado entre 1995
e 1996 foram produzidas 13 teses. Esta qualificação maior dos
profissionais da área em nível de pós-graduação levará também à
criação de grupos de pesquisas fortes dos quais provem a maioria
das produções identificadas no período proposto para este estudo.
Faz-se necessária, portanto, a apresentação destes grupos
para um entendimento melhor de como a produção tem ocorrido
na área de educação infantil. Um dos primeiros grupos a
estabelecer-se na década de oitenta encontra-se na Fundação
Carlos Chagas, localizada em São Paulo, e é formado pelos
seguintes pesquisadores: Fúlvia Rosemberg, Maria Lucia de A
Machado, Maria M. Malta Campos e Moysés Kuhlmann Junior.
Fúlvia Rosemberg e Maria Malta através de seus trabalhos de
estudo a respeito das políticas públicas para a infância fomentaram
muitas pesquisas. Apesar de seus enfoques não serem
necessariamente voltados para a história, seus/as orientados/das de
mestrado e doutorado produziram muitos trabalhos de cunho
investigativo histórico. O trabalho de mestrado de Kuhlmann
Junior, orientado por Maria Malta, finalizado em 1990,
intitulando-se "Educação Pré-Escolar no Brasil (1899-1922):
exposições e congressos patrocinando a ‘assistência científica’",
passará a figurar como um dos principais trabalhos e seu autor
como um dos nomes de referência no campo das pesquisas em
história da educação infantil em nosso país. São estudadas por
esse grupo as "políticas e os mecanismos administrativo-
financeiros para a área, ligados às questões das creches e pré-
escolas, bem como se analisam os processos educativos
implementados nos equipamentos de atendimento às crianças,

114
trabalha-se com a história educacional do tema"(www.fcc.org.br,
2003).
Outro grupo de pesquisas consolidou-se em torno da
criação do "Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos" -
(LABRIMP), na Faculdade de Educação da USP/São Paulo em
1987, sob a coordenação de Tizuko Morchida Kishimoto.
Kishimoto assim como Kuhlmann também figura como uma
referência para as pesquisas históricas na educação infantil, tendo
essa pesquisadora orientado muitos dos trabalhos levantados neste
artigo. O laboratório ao explorar o brinquedo e o material
pedagógico como essenciais na formação de docentes para as
escolas infantis produziu artigos, dissertações e teses que
reconstroem a história deste atendimento tendo na sua maior
parte a prática pedagógica como foco central
(www.fe.usp.br/laboratorios/labrimp/histla.htm).
Na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
encontramos o terceiro grupo de pesquisa que se localiza no
interior do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e
Diferenciação Sócio-Cultural (GEPEDISC) formado por
professores Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à
Educação da Faculdade de Educação. Esse grupo foi criado em
1995 com o objetivo de "estabelecer um intercâmbio entre
pesquisadores de questões sócio-antropológicas relacionadas à
diferenciação étnico-sócio-cultural, bem como um melhor
relacionamento com especialistas e alunos da área de Educação"
(www.lite.fae.unicamp.br/grupos/infantil/gepedisc.html). No
interior desse grupo, Ana Lúcia Goulart Faria é a pesquisadora
que coordena o Grupo de Estudos em Educação Infantil.
Destacar-se-ão pesquisas que buscam uma perspectiva sócio-
antropológica e histórica da área.
Na região Sul do país encontram-se dois grupos: o
primeiro na Universidade Federal de Santa Catarina situado no
Centro de Ciências da Educação (CED) denominado Núcleo de
Estudos da Educação de 0 a 6 anos (NEE0A6ANOS),
organizado em 1990. Este núcleo de pesquisa possui quatro
115
grandes áreas temáticas: História e Política das Instituições de
Educação, Identidade das Profissionais da Educação Infantil,
Teoria e Prática Pedagógica na Educação Infantil e outras
pesquisas associadas. Todos os trabalhos de pesquisa são realizados
tendo-se em vista contemplar os seguintes objetivos: "1-aprofundar
o conhecimento sobre as instituições que ofertam educação
infantil (0 a 6 anos), suas práticas e organização; 2- subsidiar a
elaboração de políticas para a área e participar de fóruns e
associações; 3- subsidiar o trabalho de formação de educadores nos
diversos níveis: graduação, pós-graduação e formação em serviço;
4- organizar e manter Bases de Dados sobre informações que
interessem à área"(www.ced.ufsc.br/~nee0a6/aprenee.html).
Destacam-se, deste grupo, por suas produções na área de educação
infantil os seguintes pesquisadores: Eloísa Acires C. Rocha, Ana
Beatriz Cerizara e João Josué da Silva Filho (atual coordenador do
núcleo). O segundo grupo GEIN (Grupo de Estudos em
Educação Infantil) localiza-se na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul vinculado à área de Educação Infantil do
Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de
Educação. Consolidado em 1996 o grupo tem por objetivos:
"reunir professoras/es pesquisadoras/es da área de educação infantil
para discussão de temas ligados à educação de crianças de zero a
seis anos, visando fortalecer as pesquisas já existentes e estimular a
produção de novas pesquisas e estudos nesse campo; organizar e
promover seminários, palestras, debates e cursos sobre temas
pertinentes à educação infantil; divulgar publicações e pesquisas
produzidas pelas/os professoras/es da área e prestar assessorias e
consultorias em função de demandas de órgãos públicos e/ou
privados" (www.ufrgs.br/faced/gein/Gein03.htm). Destacam-se,
neste grupo, as seguintes pesquisadoras com várias publicações na
área: Leni Vieira Dornelles, Jane Felipe Neckel, Maria Isabel E.
Bujes, Maria Célia B. de Amodeo, Gladis E. P. da Silva
Kaercher, Maria Carmen Silveira Barbosa, Maria Bernadette C.
Rodrigues.

116
Embora esses grupos de pesquisa não estejam
diretamente vinculados à área de História da Educação, deles
provem a maioria dos estudos sobre a História da Educação
Infantil no Brasil. Diante da existência de alguns grupos por mais
de uma década penso que os mesmos também se constituem em
objetos de estudos para compreensão da história das pesquisas e da
difusão de teorias e práticas pedagógicas para a educação de
crianças menores de seis anos no Brasil. "(...) já que o exame dos
produtos não exclui a análise dos lugares e das práticas que os
instituíram" (Nunes e Carvalho 1993, p.10).

As Pesquisas em Educação Infantil voltadas para a


História da Educação – uma ainda tímida porém
promissora relação

A partir da exposição realizada no item anterior, como se


configurou a produção de teses e dissertações no período de 1987
a 2001? Localizei neste período um total de 29 dissertações de
mestrado e 09 teses de doutorado voltadas para uma investigação
histórica do objeto educação de crianças menores de 06 anos no
Brasil. Dentre estes trabalhos chamou-me a atenção a presença de
três estados da arte: o primeiro já apresentado neste texto
defendido sob a forma de tese de doutorado por Eloísa Acires
Candal Rocha em 1999 no Progama de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual de Campinas; o segundo
defendido sob a forma de dissertação de mestrado em 2000, por
Giandréa Réus Strenzel no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina intitula-se
"A Educação Infantil na produção dos Programas de Pós-
Graduação em Educação no Brasil: indicações pedagógicas das
pesquisas para a educação das crianças de 0 a 3 anos"; o terceiro
defendido também sob a forma de dissertação de mestrado em
2001 por Lucyelena Amaral Picelli, no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia,

117
intitulando-se "Produção Científica sobre a Educação Infantil nos
Mestrados e Doutorados em Educação Física no Brasil".
Portanto, a produção de estados da arte ainda é algo forte dentro
das pesquisas na área.
Os demais trabalhos foram subdivididos nos seguintes
eixos e/ou linhas de pesquisa (os eixos e/ou linhas de pesquisa
foram selecionadas a partir das palavras chave utilizadas pelos
autores e das linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação a
que pertencem as produções):
• Instituições Educacionais (10 trabalhos): FARIA,
Ana Lúcia Goulart de (1994) – Direito à infância:
Mario de Andrade e os Parques Infantis para crianças
de família operária na cidade de São Paulo (1935-
1938); LIMA, Maria de Fátima (1994)- LBA:
Tratamento pobre para o pobre; BATISTA, Maria
Aparecida C. (1996) – O primeiro Kindergarten de
São Paulo visão da família e educação dos
Protestantes Americanos e a Metodologia
Froebeliana; PICANÇO, Mônica B. M. de (1997) –
A creche na rede pública municipal (1978-1996);
FAGUNDES, Magali R. dos (1997) – A creche no
trabalho... O trabalho na creche: um estudo do
centro de convivência infantil da UNICAMP,
trajetória e perspectiva; MARCON, Irineu (1999) –
A creche como Instituição Educacional: um estudo
documental de Votorantim/MG; MELLO, Ana
Maria Araújo de (1999) – A História da Creche
Carochinha: uma experiência para a educação de
crianças abaixo de três anos em creche; RAMOS,
Maria Martha S. (2001) – História da Educação
Infantil Pública Municipal de Campinas – 1940-
1990; VANTI, Elisa dos Santos (1998) - Fio da
infância na trama da história: um estudo da história
da infância e da Educação Infantil em Pelotas;
MELLO, Débora (1998) - As ações assistenciais na
118
criação da creche na Porto Alegre da década de 30:
entre a qualidade e a filantropia;
• O Pensamento Educacional: seus intelectuais e sua
difusão (10 trabalhos): KUHLMANN JR, Moysés
(1990) – Educação Pré-Escolar no Brasil (1899-
1922)- Exposições e Congressos patrocinando a
‘Assistência Científica’; GOULART, Áurea Maria
(1994) – O Projeto Pedagógico de Maria
Montessori; MONÇÃO, Ana Amélia Carneiro
(1995) – A Política de Educação Infantil no
município de Piracicaba: o discurso pedagógico-
1989 a 1992; KUHLMANN JR, Moysés (1996) –
As grandes festas didáticas, a educação brasileira e as
exposições internacionais – 1862-1922; PINAZZA,
Mônica Appezzato (1997) - A Pré-Escola Paulista à
luz das idéias de Pestalozzi e Froebel: memória
reconstituída a partir de periódicos oficiais; FILHO
LEITE, Aristeo G. (1997) – Educadora de
Educadores: trajetória e idéias de Heloisa Marinho;
OLIVEIRA, Solange L. de (1999) – Sistema
Montessori de Educação no Brasil: memórias das
pioneiras nos cursos de formação de professores;
CONRAD, Helga Margarete (2000) – O Desafio de
ser pré-escola, as idéias de Friedrich Froebel e o
início da educação infantil no Brasil; ARCE,
Alessandra (2001) – A Pedagogia na ‘Era das
Revoluções’ – uma análise do pensamento de
Pestalozzi e Froebel; ALMEIDA, Ordália Alves de
(2001) – O dito e não feito – o feito e não dito: em
busca do compasso entre o falar e o fazer na educação
infantil;
• Estado e Políticas Educacionais (09 trabalhos):
GIACOMO, Ana Maria (1994) – Condicionantes
Históricos Políticos e Legais da Educação Pré-

119
Escolar: um estudo sobre especificações e normas;
HERMANN, Jussara Neptune (1995) – Poder local
e Educação Infantil em Piracicaba/SP: 1977 a
1995; ANDRADE, Marci (1996) – Cem anos de
pré-escola pública paulista: a história de sua expansão
e descentralização; GOMES, Marineide O. de
(1996) – As creches na trajetória de Governos
Democráticos: a experiência de Diadema-SP (1983-
1996); SILVA, Anamaria S. da (1997) – Políticas
de atendimento à criança pequena em MS – 1983-
1990; GARCIA, Eliane O de (1998) – O
Ministério da Educação e do Desporto e a Política
Nacional para a Educação Infantil no Brasil: 1993-
1996; SALOMÃO, Julio César (1999) – Infância e
Educação Infantil nos documentos e legislações
nacionais e internacionais; SERRÃO, Célia Regina
B. (2000) – Atos, Sombras e Fatos: o programa
creche/pré-escola secretaria do menor – São Paulo
(1987-1995); VEIGA, Márcia M. (2001) – O
Movimento de Luta pró-creche e a política de
Educação Infantil em Belo Horizonte;
• Estados da arte e análise da literatura especializada
(04 trabalhos); SOUZA, Gisele de (1997) – Pré-
Escola é Escola? Um estudo sobre a contribuição da
literatura especializada na constituição da pré-escola
como educação escolar no Brasil; ROCHA, Eloísa
A. C. (1999) – A Pesquisa em Educação Infantil no
Brasil: Trajetória Recente e Perspectivas de
Consolidação de uma Pedagogia; STRENZEL,
Giandréa R. (2000) – A Educação Infantil na
Produção dos Programas de Pós-Graduação em
Educação no Brasil: indicações pedagógicas das
pesquisas para a educação das crianças de 0 a 3 anos;
PICELLI, Lucyelena A. (2001) – Produção

120
Científica sobre Educação Infantil nos Mestrados e
Doutorados em Educação Física no Brasil;
• Práticas escolares (02 trabalhos): GUIMARÃES,
Horácio G.(1999) – Canto e Ocupação no Jardim de
Infância anexo a Escola Normal de São Paulo nas
primeiras décadas da República; BARBOSA, Maria
Carmem S. (2000) – Por amor e por força: rotina na
Educação Infantil;
• Profissão docente e gênero (02 trabalhos): ARCE,
Alessandra (1997) – Jardineira, Tia e Professorinha
– a realidade dos mitos -; SOUZA, Jane Felipe de
(2000) – Governando Mulheres e Crianças: Jardins
de Infância em Porto Alegre na primeira metade do
século XX.
Não posso deixar de mencionar que muitos trabalhos
possuem estudos que perpassam mais de um eixo, procurei
classificá-los de acordo com a linha norteadora das pesquisas
realizadas. As fontes adotadas são primordialmente documentos
oficiais, periódicos, jornais, impressos, livros e depoimentos. Os
períodos estudados abrangem desde o final do século XVIII até
1996, sendo mais estudados o período de 1970 a 1996 e a
segunda metade do século XIX. No exame da bibliografia
encontrei referências a autores utilizados também nas pesquisas da
área de História da Educação tais como: Ariès P., Chartier R.,
Scott J., Bourdieu P., Foucault M., Hobsbawn e Marx K. Porém
existe uma predominância de referências aos trabalhos das
precursoras e protagonistas (apresentadas no item anterior) na
realização de pesquisas na área de educação infantil. Dentre os
autores que produzem e atuam na área de História da Educação
Kuhlmann Jr. e seus estudos a respeito da infância e o
atendimento a ela destinada destacam-se em número de citações.
Reforçando a constatação de que as relações são ainda
tímidas entre os pesquisadores da área da História da Educação e

121
da área de Educação Infantil encontram-se estes trabalhos em sua
maioria ligados a pesquisadores pertencentes às seguintes áreas de
pesquisa em seus programas de pós-graduação:
1. políticas educacionais (06 trabalhos);
2. prática pedagógica e formação do educador (03
trabalhos);
3. sociedade cultura e educação (03 trabalhos);
4. processos de desenvolvimento e educação (03
trabalhos);
5. saberes e práticas escolares (02 trabalhos);
6. educação infantil: estudos e pesquisas sobre a
educação da criança de 0 a 6 anos e a produção de
conhecimento nesta área (01 trabalho);
7. questões epistemológicas e metodologia da pesquisa
em psicologia da educação (01 trabalho);
8. métodos educação infantil e materiais (01 trabalho);
9. processos de desenvolvimento humano (01
trabalho);
10. linguagem subjetividade e educação (01 trabalho);
11. epistemologia do trabalho educativo (01 trabalho);
12. ensino-aprendizagem (01 trabalho);
13. universidade e formação de professores para o
ensino fundamental (01 trabalho);
14. ensino de ciências e matemática (01 trabalho).
Contudo os trabalhos defendidos em 2000 e 2001 já
começam a aparecer como frutos de pesquisas realizadas em áreas
de pesquisa, onde se encontram pesquisadores pertencentes
tradicionalmente à área de História da Educação, destinadas

122
exclusivamente à investigação histórica, nos programas de pós-
graduação, como as seguintes:
1. intelectuais, impressos e instituições educacionais (04
trabalhos);
2. filosofia e história da educação no Brasil séculos XIX
e XX (01 trabalho);
3. história, historiografia e idéias educacionais (01
trabalho);
4. tendências do pensamento educacional brasileiro (01
trabalho).
Pude encontrar ainda um trabalho de doutorado
defendido no programa de pós-graduação em história social da
USP.
Quanto às instituições nas quais os trabalhos foram
produzidos encontramos um amplo espectro: USP, USP/RP,
PUC/SP, PUC/RJ, PUC/PR, PUC/Campinas., UFF, UFU,
UNICAMP, UFSC, UNIMEP, UFSCar, UNESP/Araraquara,
UFMS, UFMG, UFRGS, UFP e USF. Entretanto USP/SP
concentra a maior parte dos trabalhos 08, seguida pela PUC/SP
com 07 e UNICAMP com 05.
Como se pode observar os trabalhos em sua grande
maioria têm sido produzidos dentro da área de Educação Infantil.
A história, na maior parte dos casos, é inserida como um acessório
às discussões que se pretende travar. Ainda permanece como forte
eixo o ‘Estado e Políticas Educacionais’, apesar do eixo
‘Pensamento Educacional: seus intelectuais e sua difusão’
concentrar o maior número de produção. Entretanto, poucos
trabalhos concentram-se no estudo da história da educação infantil
anterior à década de 70, perde-se assim, uma perspectiva de longa
duração, das (des)continuidades que permitiriam captar os
conflitos e rupturas na história desse atendimento. Observamos
um número baixo de pesquisas dedicadas ao estudo histórico da

123
profissão docente para esta faixa etária, assim como da infância
como categoria histórica. Não se estaria explorando pouco esses
dois protagonistas e ao mesmo tempo objetos das práticas
pedagógicas? Ou o tímido contado com as pesquisas realizadas no
campo da história da educação têm contribuído para pequena
expressividade dessas investigações na área de educação infantil?.
A história regional tem uma aparição significativa, contudo, como
a maior parte da produção está concentrada na região sudeste, esta
domina expressivamente o cenário das pesquisas, portanto,
observa-se uma tendência à falta de representatividade do olhar
local e regional para a compreensão das diversidades. Com relação
às pesquisas que possuem como foco o Pensamento Educacional
gostaria de ressaltar a forte presença de estudos voltados para a
aplicação e ideário pedagógico de Friedrich Froebel, Pestalozzi e
Montessori, sem, entretanto, trabalhar-se a difusão do ideário
desses autores em consonância com sua divulgação fora do Brasil.
Não posso deixar de ressaltar que muitos autores importantes para
a cristalização de práticas educacionais na educação de crianças
menores de 06 anos encontram-se inexplorados ou
superficialmente re-visitados, tais como: Claparède, Dewey, Paper-
Carpantier, Pauline Kergomard, Comenius entre outros. A
existência de somente um trabalho dedicado ao estudo de
educadores/as brasileiras/os que se dedicaram à consolidação da
educação de crianças menores de 06 no Brasil destaca-se
apontando para uma lacuna profunda na difusão do pensamento
educacional destinado a essa faixa-etária. A história dos conteúdos
de ensino aparece apenas nos estudos sobre rotinas de trabalho na
educação infantil, havendo assim uma carência no estudo dos
manuais produzidos para serem utilizados com as crianças, bem
como os produzidos para a formação de professores. Apenas um
trabalho debruçou-se sobre a questão da educação comparada de
forma detalhada, a inserção da história da educação infantil
brasileira necessita ser visualizada dentro do contexto mundial de
estabelecimento de práticas e de produções dedicadas à área.

124
Este estudo constata que houve uma ampliação no
campo das pesquisas em história da educação infantil, abriu-se o
leque de opções investigativas superando-se paulatinamente a
quase exclusiva relação com a psicologia. Todavia, confirma-se o
que já fora constatado por Rocha (1999, p. 109), ou seja, ainda
são poucos os trabalhos de pesquisa que têm como foco a pesquisa
histórica, diante do boom da produção nos mestrados e doutorados
destinados a educação de crianças menores de 6 anos. Este fato
deve-se à ainda existente crença na área de que a história da
educação infantil não passa de uma sucessão recente de fatos, ou
seja, ainda não se reconhece a historicidade das práticas e
produções da área. O que leva muitos pesquisadores a realizar
sínteses generalistas desta história como forma de superação do
passado, ou seja, o passado aparece como algo distante e muitas
vezes ausente das discussões estando o presente quase que
desconectado do que o antecedeu. Assim produz-se um número
ainda pequeno de investigações que evitem reducionismo e
superficialismos e a área torna-se aberta a modismos que muitas
vezes não fazem mais do que repetir idéias existentes ou
apresentadas em outros períodos da história da educação brasileira
e mundial.
Por outro lado, a recorrência desse tipo de equívoco nas
pesquisas a respeito da história da educação infantil decorre
também da tímida aproximação existente entre os pesquisadores da
área de História da Educação e os pesquisadores da área de
Educação Infantil. Esta relação frágil foi confirmada no trabalho
de Catani e Faria Filho (2001), que realizou um levantamento da
produção do G.T. de História da Educação de 1985-2000, aonde
se percebe a escassa presença de pesquisas voltadas para a
Educação Infantil. O diálogo entre as duas áreas de pesquisa:
Educação Infantil e História da Educação é fundamental e será
frutífero. A história da educação de crianças menores de 06 anos
suas práticas, seu pensamento educacional, sua formação docente,
suas instituições educacionais, suas relações de gênero e etnia, seus
intelectuais e sua memória ainda carecem de estudos detalhados e
125
investigações que as tomem como constituintes de um campo de
pesquisa que possa unir interdisciplinarmente essas duas áreas de
produção.

Referências

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Consolidação de uma Pedagogia – Campinas/SP: UNICAMP,
tese de doutorado.
SALOMÃO, Júlio César (1999) – Infância e Educação Infantil
nos documentos e legislações nacionais e internacionais –
Uberlândia/MG: UFU, dissertação de mestrado
SERRÃO, Célia Regina B. (2000) – Atos, Sombras e Fatos: o
programa creche/pré-escola secretaria do menor – São Paulo
(1987-1995) – São Paulo/SP: USP, dissertação de mestrado
SILVA, Anamaria S. da (1997) – Políticas de atendimento à
criança pequena em MS – 1983-1990 – Campinas/SP:
UNICAMP, dissertação de mestrado
SOUZA, Gizele de (1997) – Pré-Escola é Escola? Um estudo
sobre a contribuição da literatura especializada na constituição da
pré-escola como educação escolar no Brasil – 1989-1996 – São
Paulo/SP: PUC, dissertação de mestrado
SOUZA, Jane Felipe de (2000) – Governando Mulheres e
Crianças: Jardins de Infância em Porto Alegre na primeira metade
do século XX – Porto Alegre/RS: UFRGS, tese de doutorado.
STRENZEL, Giandréa R. (2000) – A Educação Infantil na
Produção dos Programas de Pós-Graduação em Educação Infantil
no Brasil: indicações pedagógicas das pesquisas para a educação
das crianças de 0 a 3 anos – Florianópolis/SC: UFSC, dissertação
de mestrado
VANTI, Elisa dos Santos (1998) – Fio da Infância na trama da
história: um estudo da história da infância e da Educação infantil

130
em Pelotas – Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, dissertação
de mestrado.
VEIGA, Márcia M. (2001) – O Movimento de Luta pró-creche e
a política de Educação Infantil em Belo Horizonte – Belo
Horizonte/MG: UFMG, dissertação.
VIEIRA, Lívia, M. F. (1986) – Creches no Brasil: de mal
necessário a lugar de compensar carências; rumo à construção de
um projeto educativo – Belo Horizonte/MG: UFMG, dissertação
de mestrado.
VILARINHO, Lúcia R. G. (1987)- A educação pré-escolar no
mundo e no Brasil: perspectivas histórica e crítico-pedagógica –
Rio de Janeiro: UFRJ, tese de doutorado.

Alessandra Arce - Professora do Departamento de Educação da


Universidade Federal de São Carlos, e-mail alessandra.arce@uol.com.br.

Recebido em: 23/02/2007


Aceito em: 15/03/2007

131
.
A ZOOLOGIA FILOSÓFICA NO BRASIL:
EXPLORANDO AS MODERNAS CORRENTES DO
PENSAMENTO CIENTÍFICO NO COLLÉGIO DE
PEDRO II EM MEADOS DO SÉCULO XIX1
Karl M. Lorenz

Resumo
As Ciências Naturais foram ensinadas na escola secundária pública
brasileira a partir de 1837 com a fundação do Imperial Collégio de Pedro II
no Rio de Janeiro. Em 1841 foi introduzida no currículo a Zoologia
Filosófica, uma matéria teórica, complementar aos estudos tradicionais da
Zoologia, que permaneceu até ser suprimida em 1855. A Zoologia
Filosófica era uma matéria intrínseca ao Colégio de Pedro II, uma vez que
não existia nos colégios brasileiros da época outra semelhante, nem
mesmo nos liceus franceses. Embora não haja informações sobre os
conteúdos de que tratava, tem-se o programa de exames de 1850, em que
quarenta pontos são listados. Mediante uma análise dos pontos, foi
possível identificar os conteúdos ensinados. A análise demonstra que, em
contraste com os conceitos tradicionais da Zoologia Descritiva, a Zoologia
Filosófica abordou conceitos, grandes teorias e especulações sobre a
origem, as transformações e o crescimento dos animais, que circulavam na
Europa, e particularmente na França, na primeira metade do século XIX.
No estudo, constata-se que foi uma matéria excepcional por ser a única no
Brasil a tratar da Zoologia teórica nos moldes da Naturalfilosofie,
prevalecente na Alemanha e explorada na França por Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire, Étienne Serres e outros cientistas de renome.
Palavras-chave: Ensino de Ciências; História Natural; Ensino
Secundário; História das Disciplinas; Collégio de Pedro II.

THE PHILOSOPHICAL ZOOLOGY IN BRAZIL: EXPLORING


THE MODERN APPROACHES OF THE SCIENTIFIC
THINKING IN THE “D. PEDRO” SCHOOL AT THE
BEGINNING OF THE XIX CENTURY
Abstract
The natural sciences were taught in the public secondary schools in Brazil
beginning in 1837 with the founding of the Imperial College Pedro II in
Rio de Janeiro. In 1841, the course, Philosophical Zoology, was
introduced as a theoretical discipline that complimented the standard
content taught in the more traditional course of Zoology and that

Este trabalho foi apresentado no VII Congresso Iberoamericano de Historia da


1

la Educación Latinoamericana, em Quito, Ecuador, em setembro de 2005.


História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 133-158, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
remained in the curriculum until 1855. It was a course unique to the
College Pedro II, since it was not offered in other Brazilian colleges of the
period, or in French lyceums. While there is no information available
about the contents taught in the course, there does exist the final
examination of the course for the year 1850, in which forty questions are
listed. Based on an analysis of these questions, it was possible to identify
the contents taught in the course. The analysis shows that, in contrast to
the traditional content of descriptive zoology, Philosophical Zoology dealt
with concepts, grand theories and speculations about the origin,
transformation and development of animals, all of which that were
circulating in Europe, and particularly in France, in the first half of the
XIX century. The study shows that Philosophical Zoology was exceptional
because it was the only course offered in Brazil that dealt with theoretical
zoology within the Naturalfilosofie tradition prevalent in Germany, and
promoted in France by Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne Serres,
and other renowned scientists.
Keywords: Science Teaching; Natural History; Secondary Education;
History of Disciplines; Colégio de Pedro II.

LA ZOOLOGÍA FILOSÓFICA EN BRASIL: EXPLORANDO


LAS MODERNAS CORRIENTES DEL PENSAMIENTO
CIENTÍFICO EN EL COLLÉGIO DE PEDRO II A
MEDIADOS DEL SIGLO XIX
Resumen
Las Ciencias Naturales fueron enseñadas en la escuela secundaria pública
brasileña a partir de 1837 con la fundación del Imperial Collégio de Pedro
II en Rio de Janeiro. En 1841 fue introducida en el currículo la Zoología
Filosófica, una materia teórica, complementar a los estudios tradicionales de
la Zoología, que permaneció hasta ser suprimida en 1855. La Zoología
Filosófica era una materia intrínseca al Colegio de Pedro II, una vez que no
existía en los colegios brasileños de la época otra semejante, ni mismo en los
liceos franceses. Aunque no haya informaciones sobre los contenidos de que
trataba, hay el programa de exámenes de 1850, en que cuarenta puntos son
listados. Tras un análisis de los puntos, fue posible identificar los contenidos
enseñados. El análisis demuestra que, en contraste con los conceptos
tradicionales de la Zoología Descriptiva, la Zoología Filosófica abordó
conceptos, grandes teorías y especulaciones sobre el origen, las
transformaciones y el crecimiento de los animales, que circulaban en
Europa, y particularmente en Francia, en la primera mitad del siglo XIX.
En el estudio, se constata que fue una materia excepcional por ser la única
en Brasil a tratar de la Zoología teórica en los moldes de la Natura lfilosofie,
prevaleciente en Alemania y explorada en Francia por Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire, Étienne Serres y otros renombrados expertos científicos.
Palabras-clave: Enseñanza de Ciencias; Historia Natural; Enseñanza
Secundaria; Historia de las Disciplinas; Collégio de Pedro II.

134
Introdução

Entre os anos de 1838 e 1900, constaram no currículo


do Colégio de Pedro II sete disciplinas básicas de Ciências: Física,
Química, Astronomia/Cosmografia, Zoologia, Botânica,
Mineralogia e Geologia. Em momentos distintos, mas efêmeros,
ensinavam-se também as disciplinas de Higiene, Biologia e
Meteorologia. No currículo oitocentista, a seqüência dos estudos
científicos normalmente começava com Zoologia e Botânica, era
seguida por Física e Química e terminava com Mineralogia e
Geologia. Os pares de disciplinas apareceram na mesma série ou
em séries contíguas (Lorenz, 2003, p. 67).
Em 1841, apareceu no último ano do currículo a
matéria Zoologia Filosófica, que figurou no currículo até 1855,
quando foi suprimida. Como demonstraremos, a inclusão dessa
matéria no currículo do Colégio de Pedro II representa um
fenômeno singular na história do Ensino Secundário no Brasil,
visto que não aparece nos colégios brasileiros da época outra
disciplina semelhante – e tampouco nos programas secundários
emitidos pelo Ministère de l’Instruction Publique da França.2 Por
não terem existido programas de estudos para as matérias
ofertadas no Colégio antes de 1856, não há informações sobre os
conteúdos da Zoologia Filosófica. O que se tem é o programa de
exames de 1850, que inclui os pontos a serem testados.
O objetivo deste trabalho é desvelar a natureza da
disciplina mediante uma análise dos tópicos propostos no exame.
Pretende-se, portanto, identificar e colocar em seu contexto

2
Nos atos legislativos da França, entre 1800 e 1860, indicados por Belhoste,
não se registra nenhuma disciplina autônoma que vincula o estudo da Zoologia
com a especulação filosófica ou teórica, conforme evidenciado na Zoologia
Filosófica ministrada no Colégio de Pedro II. Ver Belhoste, B. Les Sciences
dans l’enseignement secondaire français. Textes officiales. Tomo 1: 1789-1914.
Paris: Institut National de Recherche Pédagogique, 1995, p. 135-139.

135
histórico os tópicos discutidos em sala de aula, sempre levando em
consideração que, por falta de fontes primárias referentes à
matéria, a caracterização do seu ensino é, em parte, hipotética.

Zoologia

Para melhor entender a organização e o significado da


Zoologia Filosófica, é importante, primeiro, descrever o estudo da
Zoologia no Colégio de Pedro II. A partir de meados do século
XIX, a disciplina estava bem estabelecida no currículo daquela
instituição. Na época, definia-se a Zoologia como o estudo dos
caracteres, usos e costumes dos animais. Dividiu-se a ciência em
Zoologia Geral, que estuda a anatomia e a fisiologia comparada
dos animais, e em Zoografia ou Zoologia Descritiva, que agrupa os
animais de acordo com um sistema de classificação. Alguns
autores também distinguiam a Paleontologia Zoológica, que se
ocupa dos animais fósseis; a Teratologia, que trata das
monstruosidades animais; e a Antropologia, que investiga a
história natural da espécie humana..3 Todos os livros didáticos
adotados no Colégio incluíam conceitos sobre a Zoologia
Descritiva (Lorenz, 1986).
Os textos de Zoologia do Colégio focalizavam a
discussão da anatomia e das funções fisiológicas dos animais, isto
é, respiração, nutrição, digestão, circulação, sensações etc. O
estudo da anatomia e da fisiologia facilitava comparações e
discussões das semelhanças e diferenças das várias espécies e a
organização dos animais em grupos, com base nos órgãos
homológicos e analógicos que possuíam. Durante aquele século, os

3
As subdivisões da Zoologia aparecem no "Quadro Synoptico a Divisão das
Sciencias Naturaes" em Maia, Emilio. Quadros synopticos do reino animal, onde
se adopta o methodo natural de Cuvier com as precisas modificações conforme o
estado atual da sciencia, organizados para facilitar o estudo da zoologia no
internato e externato do Collegio de Pedro II. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1858.

136
textos costumavam dedicar um grande número de páginas à
classificação de animais em tipos e subtipos, de acordo com as
linhas gerais do sistema taxonômico de Cuvier, o zoólogo e
anatomista francês mais afamado da primeira metade do século.
Georges Cuvier (1769-1832) regeu a cadeira de
Anatomia Comparada do Muséum d’Histoire Naturelle em Paris
de 1802 a 1832 e a cadeira de Fisiologia Comparada da mesma
instituição em 1837 e 1838. Ocupou vários cargos oficiais no
Ministère de l’Instruction Publique e comissões que estabeleceram
os programas e métodos de ensino de História Natural em todo o
país. Até meados do século XIX, suas idéias sobre a classificação
dos animais foram as que mais influenciaram a trajetória da
pesquisa e do ensino de Zoologia na França e no exterior. Em seu
trabalho Le règne animal (1817), Cuvier argumenta que os animais
podem ser classificados em quatro grupos, cada qual representando
um tipo anatômico, de acordo com seu sistema nervoso. Segundo
ele, os grupos são: a) os Vertebrados, que têm cérebro e coluna
vertebral; b) os Moluscos, que manifestam um sistema nervoso
constituído de massas neurais separadas; c) os Articulados, que
apresentam um sistema nervoso que consiste de dois cordões
ventrais; e d) os Radiados, que englobam os animais com simetria
radial, e não simetria bilateral, conforme observado nos animais
dos outros três grupos. Cuvier subdividiu os quatro grupos em
dezenove classes (Mason, 1962, p. 381).
No decorrer dos anos, vários zoólogos fizeram leves
modificações do sistema de Cuvier. Um dos mais destacados a
partir da década de 1840 foi o sistema de Henri Milne-Edwards
(1800-1885), professor de Zoologia da Sorbonne e regente de
duas cadeiras no Muséum d’histoire naturelle. Milne-Edwards
criou um sistema taxonômico que mantinha os grupos de Cuvier,
mas o subdividia em oito subdivisões e vinte e seis classes
(Desplats, 1887, p. 507). Nos livros de Zoologia do Colégio
predominou a classificação dos animais segundo os quatro grupos
de Cuvier, acrescidas das modificações feitas por Milne-Edward.

137
O professor que ensinava Zoologia no Colégio de Pedro
II era Emilio Joaquim da Silva Maia (1808-1859), diretor da
Secção de Zoologia e Anatomia Comparada do Museu Nacional
de História Natural no Rio de Janeiro. Bacharel em Filosofia
Natural pela Universidade de Coimbra e Doutor em Medicina pela
Faculdade de Paris, foi membro de várias associações profissionais
brasileiras e européias. De 1838 a 1859, Maia foi lente da cadeira
de Ciências Naturais do Colégio. No final de seu mandato, Maia
publicou o primeiro texto brasileiro de História Natural utilizado
no Colégio, os Quadros synópticos do reino animal (1858). O livro
mostra cinco quadros que sumarizam a organização das Ciências
Naturais e os quatro grandes ramos do sistema de Cuvier, com
suas classes, famílias etc., apresentados em ordem descendente. O
texto foi adotado na instituição de 1858 até possivelmente 1876
(Vechia & Lorenz, 1998, p. 29).

Zoologia Filosófica

Além das quatro matérias tradicionais de História


Natural, Maia também ensinava a Zoologia Filosófica. A
disciplina, de uma hora-aula semanal, foi introduzida no sétimo
ano do programa de 1841, permanecendo até 1855, quando foi
suprimida pela reforma do Ministro Couto Ferraz. Em seus
Quadros synopticos, Maia identificou seis subdivisões da Zoologia,
entre elas a Zoologia Filosófica, que ele definiu como o estudo do
desenvolvimento orgânico dos animais.4 Em contraste com a
Zoologia Geral e a Descritiva, que se ocupavam da transmissão de
grande quantidade de fatos sobre fisiologia, anatomia e taxonomia
dos animais, a Zoologia Filosófica explorava as idéias, algumas
controversas, sobre os campos de estudo ignorados nos textos
tradicionais de Zoologia. Tratou, sob vários pontos de vista, do

4
A definição aparece no "Quadro Synoptico a Divisão das Sciencias Naturaes"
em Maia, op. cit.

138
desenvolvimento orgânico dos animais, como explorado pelos
proponentes da Naturalfilosofie, prevalecente na Alemanha, e nos
trabalhos menos ortodoxos de Jean Lamarck, Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire e Étienne Serres. Na primeira metade do século
XIX, esse era um campo de estudo polêmico que, por ser
considerado demasiado especulativo, não foi tratado nos textos
tradicionais de Zoologia.
A denominação "Zoologia Filosófica" é derivada do
"Philosophie Zoologique", termo que se refere ao estudo teórico da
Zoologia. O título era coerente com um movimento que se
manifestou no final do século XVIII e início do século XIX, que
promoveu maior especulação no campo das ciências empíricas. O
tratamento mais "filosófico" das ciências resultou em vários
trabalhos, como Philosophie chimique (1792) de Fourcroy,
Philosophie zoologique (1809) de Jean Baptiste Lamarck, Philosphie
anatomique (1822) e Principes de philosophie zoologique (1830) de
Étienne Geoffroy Saint-Hilaire. Destas, a última obra merece um
comentário especial.
Em março de 1830, uma série de debates entre Cuvier e
Saint-Hilaire, os dois anatomistas mais afamados do continente
europeu, cativou a comunidade científica francesa. Perante a
Académie, Cuvier e Saint-Hilaire debateram suas doutrinas e,
especialmente, a "Unidade de Composição" dos animais. Nessa
questão, estava implícita a noção de que existe uma forma
anatômica única na Natureza; uma idéia que Saint-Hilaire
aceitou, mas que Cuvier rejeitou. Após o encontro, Saint-Hilaire
publicou um relato dos argumentos do debate em seus Principes de
philosophie zoologique (1830). O trabalho levantou muito interesse
nos círculos científicos da Europa e logo gerou discussões sobre o
significado do debate. Com o tempo, numerosas publicações dos
discípulos de ambos caracterizavam o debate como um confronto
entre duas metodologias. Cuvier, que representava um lado do
debate, argumentou que a Zoologia era uma ciência baseada em
observações sistemáticas do mundo animal. Segundo ele, a função
do zoólogo é coletar e organizar os fatos, e não teorizar sobre eles.
139
Saint-Hilaire, por sua vez, adotava a posição de que o zoólogo não
devia restringir-se à observação e classificação dos animais, mas
também devia especular sobre as diferenças entre os organismos,
seu desenvolvimento anatômico e a maneira como eles aparecem
na Terra (Appel, 1987, p. 170-174). Como será demonstrado, as
doutrinas dos dois anatomistas refletiram nos tópicos discutidos
na Zoologia Filosófica.

O exame de 1850

A primeira referência à Zoologia Filosófica é feita em


1841, quando a reforma educacional do Ministro do Império,
Carlos Ribeiro de Andrade, inseriu-a no currículo do Colégio de
Pedro II. Informações sobre o programa da matéria são
inexistentes, pois somente a partir do estabelecimento do
Ministério da Instrução Pública, em 1856, começaram a ser
publicados os programas oficias do Colégio. Porém, há um
documento oficial, o Programa de exame para o ano de 1850, que
lista quarenta questões ou pontos a serem testados na matéria
(Vechia & Lorenz, 1998, p. 1). Na época, os alunos prestavam
exame final, no qual tinham que fazer uma exposição sobre um
número determinado de pontos, selecionados de uma lista maior,
elaborada pelo professor.
A relação dos pontos demonstra que os temas abordados
são variados e sintéticos, alguns repetitivos – pois tratam do
mesmo assunto – sobre conceitos já estabelecidos, como o sistema
de classificação de Cuvier; e conceitos em ascensão, como os
relacionados à Organogenia, à Embriogenia e à Teratologia. Os
pontos do Exame sobre a Zoologia Filosófica são apresentados a
seguir.

140
Programa de exame

1. O que he Zoologia Philosophica?


2. Em toda a serie de animaes existentes ha verdadeira
progressão?
3. Qual a marcha seguida pela natureza na
organização animal?
4. O que he Organogenia?
5. O que he Embriogenia?
6. O que é Epigénese?
7. O que he Perigénese?
8. Sacos germinadores, e sua composição.
9. Existe escala animal?
10. Na collocação methodica dos animaes, a qual dos
dous grandes ramos se deve dar a precedencia, aos
Articulados ou aos Molluscos?
11. Qual a marcha seguida pela natureza no
desenvolvimento dos orgãos animaes? – será elle
centrifugo ou centripeto?
12. Quaes as leis que se observão no desenvolvimento de
todos os animaes?
13. Representar-nos-ha o Homem a organologia de
todos os ouros animaes?
14. Primeira folha do saco germinador?
15. Segunda folha do saco germinador?
16. Qual a lei da dualidade e da symmetria dos
organismos?
17. Qual a lei do equilíbrio dos organismos?

141
18. Quantos serão os typos da organização animal?
19. O grande ramo dos Radiados poderá constituir hum
typo?
20. O meio em que o animal vive influirá na sua
organização, usos e costumes?
21. Qual a lei da conjuncção ou união dos órgãos?
22. Que peso se deve dar á opinião dos antigos, quando
chamavão ao homem microcsomo?
23. O que he disco prolifero?
24. Metamorphoses animaes?
25. Terceira folha do saco germinador?
26. Será exacta a existencia de quatro typos na
organizacão animal?
27. Existirá hum só typo na organizacão animal?
28. Quaes os caracteres para podermos dizer com
certeza o que seja hum animal?
29. Permanencia das especies zoologicas.
30. Como se poderão explicar as grandes lacunas que
hoje existem entre ordens, e até entre classes de
animaes?
31. Entre o homem e os outros animaes existem
semelhanças reaes, ou está elle inteiramente
separado?
32. Unidade na organização animal.
33. Na opinião dos que admittem mais de hum typo,
quaes os caracteres de cada um delles?
34. Qual a opinião de Geoffroy-Saint-Hilaire sobre os
typos animaes?
142
35. Anamolias, e monstruosidades.
36. O conhecimento das monstruosidades servirá para a
questão dos typos animaes?
37. Monstros simples, e monstros compostos.
38. Todo animal procederá de hum ovo?
39. A organogénia do coração dos animaes superiores
reproduzirá successivamente a estructura
permanente e fixa das classes inferiores?
40. A organogénia do apparelho de nutricão dos
animaes superiores reproduzirá successivamente a
estructura do das classes inferiores?
Embora o Programa de exame de 1850 seja um
documento sucinto, ainda é possível deduzir dos pontos nele
contidos os conteúdos do programa de estudos da Zoologia
Filosófica. Assim, quando um ponto do exame é relacionado aos
argumentos e às suposições apresentados neste trabalho, é
identificado no texto pela letra "P" e o número do ponto. Por
exemplo, se a narração refere-se ao ponto seis do exame, "O que é
Epigénese?", aparece no texto "P-6".

Transmutação das espécies

Nossa análise começa com a observação do professor


Maia, que em seus Quadros synopticos escreveu: "todos os animaes
grandes ou pequenos, terrestres ou aquáticos, passão por
metamorphoses, quer na vida ovariana, quer fora della" (Maia, 1858,
p. xi). Constata-se, então, que a Metamorphose Animal, P-24, era
o tema geral abordado na Zoologia Filosófica, e que foi dividida
em dois eixos temáticos: a Transmutação das Espécies e a
Transmutação do Organismo. Quanto à Transmutação das

143
Espécies, foram estudados conteúdos relacionados aos conceitos de
escala animal, da evolução e do plano anatômico universal.

Escala Animal e Evolução

O P-9 do Exame de 1850 indaga se existe uma "escala


animal". Essa noção teve sua origem com Jean Baptiste Robinet
(1735-1820), naturalista francês que, entre 1761 e 1768,
publicou uma obra de cinco volumes, na qual argumentou que
todas as espécies animais, no presente e no passado, formam uma
escala linear baseada em sua estrutura. A escala, que é sem
lacunas, ou duplicação de grades, vai da espécie mais simples à
mais complexa, com o homem no ápice. A noção de escala animal
foi incorporada na explicação da evolução do mundo animal, que
propôs que as espécies, através do tempo, continuamente se
transformam para alcançar níveis mais altos em seu
desenvolvimento (P2 e P3). Uma variação dessa tese evolucionista
foi apresentada pelo naturalista suíço Jean Charles Bonnet (1720-
1793), que, em 1770, teorizou que, no passado, catástrofes
naturais eliminaram algumas espécies e as substituíram por outras
mais desenvolvidas.
O conceito de escala animal assumiu importância nas
lições de Zoologia Filosófica por introduzir as discussões sobre as
mudanças sofridas pelo reino animal através do tempo. Sabe-se,
por exemplo, que a formulação e a articulação do conceito por
Robinet influenciaram Jean Baptiste Lamarck (1744-1829),
venerável naturalista francês, quando este desenvolveu sua teoria
sobre a evolução das espécies no final do século XVIII. Em sua
destacada obra Philosofie zoologique (1809), Lamarck teorizou que
existe uma disposição interna em cada animal que, na tentativa de
alcançar a perfeição, leva-o a adaptar-se a seu ambiente. Nesse ato
de adaptação, o animal usa certos órgãos e desiste de usar outros.
Por seus esforços, os órgãos utilizados se desenvolvem, e os não

144
usados se atrofiam, com as devidas mudanças anatômicas
aparecendo em gerações subseqüentes.
Lamarck formulou duas leis que governavam esse
processo evolucionário: a Lei de Uso e Desuso dos órgãos e a Lei de
Transmissão das Características Adquiridas dos órgãos às novas
gerações (Lamarck, 1809). Devem ser estas algumas das leis
sugeridas no P-12 do exame: "Quaes as leis que se observão no
desenvolvimento de todos os animaes?". Anos mais tarde, o
eminente zoólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844)
concordou com a tese de Lamarck de que existe uma relação
dinâmica entre o desenvolvimento do animal e seu ambiente, mas
com a ressalva de que as variações anatômicas das espécies são
devidas ao efeito da Natureza sobre o desenvolvimento do embrião
– e não do uso e desuso dos órgãos. Assim, ao tratar da
transmutação das espécies, os alunos na matéria deveriam ter
enfrentado a questão explicitada no P-20: "O meio em que o
animal vive influirá na sua organização, usos e costumes?".
Cuvier, por sua vez, aceitou a teoria de Bonnet e rejeitou
as idéias evolucionistas propostas por Lamarck e adaptadas por
Saint-Hilaire. Com base em suas pesquisas sobre fósseis de
animais extintos, Cuvier argumentou que a estrutura anatômica,
que caracteriza os animais de cada um de seus quatro grupos
principais, sempre existiu; que as espécies eram permanentes e
imutáveis, e as mudanças sofridas por elas através do tempo se
devem às catástrofes naturais (P-29). Estas reconfiguram o quadro
animal no passado, resultando no desaparecimento de algumas
espécies e no surgimento de outras.5
O P-30 levanta a pergunta "Como se poderão explicar as
grandes lacunas que hoje existem entre ordens, e até entre classes
de animaes?". Propõe-se que, em resposta, foram discutidos dois

5
Décadas mais tarde, Charles Darwin (1809-1882) apresentou em seu livro
Origin of species (1859) sua Teoria da Seleção Natural. Darwin refutou a noção
da imutabilidade das espécies como defendida por Cuvier e reafirmou a posição
menos estática de Lamarck e Saint-Hilaire.

145
pontos de vista, representados pelas idéias de Cuvier e de Lamarck.
Para Cuvier, eram as catástrofes a causa da extinção de grandes
grupos de animais no passado, resultando nas referidas "lacunas"
no quadro histórico da Terra. Para Lamarck, todos os animais na
escala animal existiram no passado e as "lacunas" no quadro
histórico são devidas à falta de evidência – ou seja, os restos
animais ainda não descobertos – da existência desses animais.
Presupõe-se que, das duas teorias, a de Cuvier predominou nas
discussões em sala de aula.
Ao final, qual foi a posição do Professor Maia sobre a
escala animal? Nos Quadros synopticos, Maia questionou a lógica
da existência do conceito no seguinte trecho: "Cumpro todavia
advertir que hoje não se admitte escala animal como Linnêo a
entendia, pois se de hum lado alguns grupos de animaes são ligados
huns aos outros como anneis de huma mesma cadêa, de outro esta
cadêa ve-se interrompida, isto he, algumas vezes entre dois animaes
que mais se assemelhão entre si, encontrão-se differenças notaveis, ou
intervallos mui grandes, que não são nem serão nunca preenchidos.
Reconhecida esta discontinuidade a serie continua entre os animaes
desapparece; e pelo que nestes ultimos annos o chefe dos Naturalistas
Francezes Isidore Geoffroy substituio a classificação unilinearia pela
classificação por series parallelas composta cada huma de termos, cuja
analogia reciproca seja facil demonstrar por factos; idêas estas que
achando-se ainda em começo, longe estão de serem geralmente
admittidas" (Maia, 1858, p. xii). Fica claro que a discussão em
sala de aula deveria ter examinado o velho e o novo conceito de
escala animal, mas a preferência de Maia parece voltada ao
segundo.

Plano Anatômico Universal

A existência de uma escala animal depende do


pressuposto de que há na Natureza um plano anatômico universal
que as espécies tentam lograr no decorrer de seu desenvolvimento.

146
Para os antigos, a forma culminante é aquela assumida pelo
homem; é o Homem que demonstra o plano estrutural ideal que
os seres orgânicos possuem em graus diferentes. A idéia do
homem sendo um "microcosmo" do Universo, como referenciado
no P-22, foi primeiramente desenvolvida pelos filósofos da
antiguidade, e depois retomada pela Naturalphilosophie alemão na
segunda metade do século XVIII. Na França, essa noção
influenciou naturalistas importantes como Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire, que no primeiro tomo do seu Philosophie
anatomique (1818) energicamente defendeu a tese de que existe
um plano anatômico universal para os animais.
Cuvier, por sua vez, negou a posição de Saint-Hilaire de
que há um plano anatômico padrão, referindo-se ao seu sistema de
classificação animal e à evidência que o sustentou. Apontou tanto
para as semelhanças das espécies dentro de cada um dos quatro
grupos principais quanto para as diferenças entre as espécies de um
grupo e as dos outros grupos. Concluiu que, embora talvez
houvesse um plano estrutural que tipificasse cada grupo principal,
os fatos desmentiam a existência de um plano padrão para os
quatro grupos em sua totalidade. Para ele, qualquer tentativa de
vincular estruturalmente as espécies dos grupos e impor um padrão
anatômico sobre elas é meramente um ato da imaginação.
Vários naturalistas discordaram do raciocínio de Cuvier.
Além de Saint-Hilaire, que alegou que os planos estruturais dos
quatro grupos seguem um plano anatômico universal, Henri Marie
Ducrotay de Blainville (1777-1850), contemporâneo de Cuvier e
grande naturalista e historiador de Ciências, defendeu, em 1822, a
tese de que existe um vínculo entre as espécies dos quatro
embranchements de Cuvier. Aderindo à noção de uma escala
animal, organizou as vinte e seis classes de animais dos quatro
grupos Cuverianos em ordem descendente, desde mamíferos até
dendrolithares – a classe animal mais elementar e o ponto de
ligação com as plantas (Blainville, 1822). Henri Milne-Edwards
(1800-1885), outro ilustre naturalista e colega de Cuvier no
Muséum d’Histoire Naturelle, também discordou da posição de
147
Cuvier de que as espécies eram fixas e não podiam ser comparadas
entre si. Ao contrário, em sua Introduction à la zoologie générale
(1851) argüiu que é possível empiricamente confirmar que
algumas espécies são mais complexas que outras, e, assim, mais
perfeitas que outras – definindo "perfeição" como sendo o nível
mais alto de complexidade anatômica e fisiológica. Segundo
Milne-Edwards, o nível mais alto de complexidade e o plano ideal
da Natureza são representados pelo Homem.
A indagação de P-18, "Quantos serão os tipos da
organização animal?", demonstra que o conceito de um plano
anatômico universal foi explorado na Zoologia Filosófica. Visto
que o sistema de classificação animal de Cuvier predominou nas
aulas de Zoologia no Colégio, amplo espaço foi dado à sua
posição, conforme ilustrado nos P-10, P-19 e P-26. Ao lado
disso, conforme o P-27, foi discutida a doutrina da existência de
um único tipo de organização, com ênfase particular na posição de
Geoffroy Saint-Hilaire (P-34). A possibilidade de terem sido
estudadas as idéias de outros naturalistas sobre a organização
animal, como as de Blainville e de Milne-Edwards, é sugerida no
P-33, que pergunta: "Na opinião dos que admittem mais de hum
typo, quais os caracteres de cada um delles?"

Transmutação do organismo

O segundo e mais enfatizado tema abordado na Zoologia


Filosófica refere-se ao desenvolvimento embrionário do
organismo, ou seja, Epigênese. O P-12 leva-nos a propor que, da
mesma maneira que as leis que governam a transmutação das
espécies foram delineadas, as leis que governam o desenvolvimento
do embrião, e, especificamente, seus órgãos, foram discutidas.
Esse conjunto de leis morfológicas constituíam, na época, a

148
chamada "Philosophie Transcendental", ou "Philosophie
Anatomique".6
Nas primeiras décadas do século XIX, duas idéias
contrárias – uma antiga e outra moderna – explicavam o
desenvolvimento embrionário dos animais. A Teoria de
Preformação ditou que o corpo do organismo já é completamente
desenvolvido na condição de ovo. O corpo embrionário, pré-
formado, assim cresce, até assumir as dimensões normais do
organismo. A Teoria de Epigênese, ao contrário, afirma que o ovo
consiste de material homogêneo e amorfo que, durante seu
crescimento como embrião, se diferencia em diversas estruturas
anatômicas.
Alguns proponentes da Epigênese argüiram que o
desenvolvimento embrionário do organismo estava sujeito às
influências do ambiente. Saint-Hilaire, conforme explicado
anteriormente, propôs a idéia de que variações nas condições
físicas e químicas do ambiente podem afetar o desenvolvimento do
embrião e, assim, alterar sua anatomia. Em um trabalho publicado
em 1825, Saint-Hilaire até citou a teoria de Lamarck em apoio à
sua explicação do efeito direito do ambiente sobre o corpo
embrionário (Appel, 1987, p.132). Cuvier, em contrapartida,
defendeu a idéia da preformação. Embora pouco motivado pela
lógica do preformismo, que era questionável, ele defendeu a teoria
porque considerou as doutrinas de Epigênese sem fundamentação
e demasiado especulativas.
Nas décadas que precederam a reforma curricular de
1841 do Colégio de Pedro II, Cuvier, Saint-Hilaire e outros
cientistas debateram as duas teorias, com a Epigênese, ganhando
em credibilidade devido ao acúmulo de dados em seu apoio. O fato
de o professor Maia ter enfrentado uma discussão da Teoria de
Epigênese no programa da Zoologia Filosófica, dando bastante

6
O termo "philosophie transcendental" foi introduzido por Étienne Serres, e na
época foi um sinônimo do termo "philosophie anatomique", popularizado por
Étienne Geoffroy Saint-Hiliare. Ver Appel, 1987, p. 122.

149
espaço às idéias sobre o desenvolvimento embrionário do
organismo, leva-nos a concluir que favoreceu essa teoria e,
particularmente, os princípios fundamentais dela derivados, que
constituíram os campos de investigação da Embriogenia e da
Organogenia.

Embriogenia

Um dos assuntos mais estudados na Zoologia Filosófica


foi a formação do embrião, cujo estudo foi conhecido no tempo de
Maia como Embriogênese ou Embriogenia, (P-5). Essa ciência foi
iniciada na Alemanha, e introduzida e desenvolvida na França nas
décadas de 1830 e 1840 por Étienne Reynaud Augustin Serres
(1786-1868) e, em menor grau, por Étienne Geoffroy Saint
Hilaire. Contemporâneo de Cuvier e discípulo e colaborador de
Saint-Hilaire, Serres foi eleito à seção de Anatomia e Zoologia da
Académie des Sciences em 1828, e nomeado professor de
Anatomia Humana no Muséum d’Histoire Naturelle em 1839.
As investigações de Serres e Saint-Hilaire sobre a
composição e o desenvolvimento do embrião da galinha refutaram
a Teoria de Preformação, como defendido por Cuvier, e fixaram
definitivamente a idéia de que todos os animais originaram-se de
um ovo, o qual passa por fases distintas em seu desenvolvimento.
O P-38 do Exame demonstra que os alunos do Colégio deveriam
ter discutido a proposição de Maia: "Em nossos dias milhares de
factos colhidos no estudo da embriogenia das ultimas classes animaes,
tambem deixão fóra de toda a duvida, não só que he de maior exatidão
a clássica expressão do grande Harvey – todo o ser orgânico provem
d’hum ovo…" (Maia, 1858, p. xi). Referindo-se aos detalhes do
desenvolvimento do ovo fertilizado, o P-23 cita a formação do
pequeno disco prolífero na gema, do qual eventualmente se
formaria o embrião. Outros pontos aludem à composição do saco
germinador (P-8) e à descoberta do alemão Christian Heinrich
Pander (1794-1865), em 1817, segundo a qual aparecem no saco

150
germinador três folhas de tecidos, dos quais se desenvolveram os
órgãos específicos do embrião (P-14, P-15 e P-25).
O P-12, ao levantar a questão sobre as "leis que se
observão no desenvolvimento de todos os animaes", também deve
referir-se às leis morfológicas que governavam o desenvolvimento
embrionário dos animais. As obras que possivelmente
fundamentaram essa discussão são Recherches d'anatomie
transcendante et pathologique (1832) e Des lois de l'embryogénie
(1839), de autoria de Serres. Nos textos, Serres escreve que o
desenvolvimento do embrião segue leis fixas, uma das quais era a
Lei do Desenvolvimento Excêntrico, referenciada no P-11.
Conforme essa lei, todos os órgãos do embrião primitivo
desenvolvem-se da circunferência para o centro (o "centrípeto"), e
não do centro para a circunferência (o "centrífugo"), idéia até
então comumente aceita (Serres, 1839, p. 292-293). Por
exemplo, os nervos não provêm da corda espinal, mas, ao
contrário, durante seu desenvolvimento se inseriram no eixo
cerebrospinal. Outro importante princípio discutido é indicado no
P-16. Este cita a Lei da Simetria, na qual se estipula que certos
órgãos do embrião são constituídos de duas metades de tecido
embrionário que, no processo de desenvolvimento, avançam uma
para a outra até se unir para formar um órgão completo. Como
declarou Serres, "La dualité est le principe des sciences
embryogéniques" (Serres, 1839, p. 244).
Uma das contribuições mais importantes de Serres foi o
desenvolvimento da Teoria de Recapitulação, primeiramente
formulada pelo alemão Johann Meckel em 1811. Serres afirmou
que suas investigações comprovam que a embriogênese do homem
reproduz em forma transitória e numa maneira de curta duração a
organização fixa e permanente dos seres que ocupam os vários
graus da escala animal (Serres, 1832, p. 9). Isto quer dizer que no
desenvolvimento dos órgãos do homem no útero são
representadas, temporariamente, todas as formas anatômicas dos
animais inferiores. Maia reconheceu as contribuições de Serres,
Saint-Hillaire e outros com respeito a esse conceito ao declarar
151
que eles "chegarão mesmo a affirmar que nas diversas phases da
embriogenia humana observa-se todas as principaes formas da longa
serie dos animaes existentes, isto he, que o homem antes de mostrar-
se vertebrado, era annelado, mollusco e mesmo radiado" (Maia, 1858,
p. xi). Numerosos pontos do exame (P-13, P-39 e P-40),
examinaram essa proposição, com as investigações sobre o
desenvolvimento embrionário dos animais e do homem sugerindo
um vínculo entre eles (P-31).

Organogenia

Junto com a Embriogenia, foi discutida, na Zoologia


Filosófica, a Organogenia, ou seja, o campo de estudo que focaliza
o desenvolvimento dos órgãos animais, a começar do embrião (P-
4). Antes de 1850, vários trabalhos foram publicados sobre essa
ciência. Entre eles, constam os Principes d’anatomie organogénique
(1842), de Étienne Serres, e l’Organogénie (1844), de Jacques
Olivier de Mersseman (1805-1853). Mas foram as investigações
de Saint-Hilaire que tipificaram esse empreendimento,
especialmente suas idéias sobre os órgãos homólogos.
Saint-Hilaire promulgou a idéia de que existe "Unidade
na organização animal", ou seja, todos os animais têm os mesmos
órgãos (P-32). Como evidência, Saint-Hilaire apontou os
vertebrados, cuja organização corporal ele tomou como padrão na
Natureza. Ao explicar as diferenças dos órgãos dos animais, Saint-
Hiliare propôs que existem órgãos homólogos em animais
diferentes, ou seja, órgãos que têm a mesma origem e, portanto, a
mesma estrutura básica, mas que não necessariamente exercem a
mesma função. Esse fenômeno, por exemplo, é evidenciado na
mão do homem e na pata dianteira de um quadrúpede. Saint-
Hilaire inicialmente buscou os órgãos homólogos dos vertebrados
que, uma vez identificados, revelariam um plano estrutural único
para os animais de todos os grupos.

152
A tese central de Saint-Hilaire foi o Princípio de
Conexões, ou, conforme apresentado no P-21, a "lei de conjunção
ou união dos órgãos". Esse princípio diz que existe uma conexão
fixa entre determinados grupos de órgãos no animal; e, uma vez
que se confirma a relação entre os órgãos, é possível estabelecer a
identidade de um órgão desconhecido por se referir àqueles
conhecidos. Como utilizado por Saint-Hiliare e Cuvier, tal
princípio foi particularmente útil na reconstrução da anatomia de
animais extintos com base numa análise dos restos parciais deles
(Mason, 1962, p. 376-377). Aliado a isso, segundo Saint-Hilaire,
é tendência das partes do órgão manter um estado de equilíbrio
dinâmico, de tal forma que, se uma parte do órgão se desenvolve,
outras partes correspondentes ficam subdesenvolvidas, garantindo,
dessa forma, a estabilidade e o equilíbrio do órgão (Mason, 1962,
p. 378). O P-17 do exame refere-se a esse conceito.

Monstruosidades

As "Leis da Anatomia Transcendental" foram


enunciadas por Serres e logo promovidas por Geoffroy Saint-
Hilaire. Um das áreas de investigação que particularmente
fascinaram Saint-Hilaire foi a formação embrionária de
"monstros", ou seja, animais que demonstram grandes anomalias
em sua anatomia. Para Serres e Saint-Hilaire, um monstro é
formado no útero quando o processo de desenvolvimento de um
órgão de um animal superior é, de repente, parado, resultando na
fixação permanente da forma transitória do órgão característico de
um animal inferior. Um monstro também pode originar-se
quando as duas metades de um órgão, em seu desenvolvimento
embrionário, desistem em seu avanço de uma para a outra,
deixando, assim, um espaço através do qual surge outro órgão.
Durante sua exploração dos animais malformados,
Saint-Hilaire publicou o segundo volume do Philosphie anatomique
(1822), no qual contribuiu com muitas informações e reflexões

153
sobre a origem embrionária dos monstros unitários ou simples,
como os ciclopes, e dos monstros duplos ou compostos, como
gêmeos simples e siameses. Esse campo de estudo logo teve um
grande impulso com a publicação subseqüente de Isidore Saint-
Hilaire (1850-1861), filho de Geoffroy, o Traité de tératologie
(1832-1836). Foi Isidore quem deu à ciência o nome de
"Teratologia" quando publicou sua obra de três volumes. Visto que
Maia repetidamente cita o nome de Isidore Geoffroy Saint-Hilaire
nos Quadros synopticos, conclui-se que ele tinha amplo
conhecimento das idéias de Saint-Hilaire sobre a formação de
monstros. No exame, o P-35 indica que foram abordadas na
Zoologia Filosófica as anomalias anatômicas e sua relação com as
monstruosidades, e o P-37 indica que foram discutidos os
monstros simples e os compostos.
Também, conforme o P-36, foi discutida a questão "O
conhecimento das monstruosidades servirá para a questão dos
typos animaes?". A resposta, que é negativa, é baseada nos estudos
do alemão Ernst Von Baer (1792-1876), professor de Fisiologia
na Universidade em Konigsberg. Von Baer propôs que o
desenvolvimento embrionário dos animais começa com ovos
fertilizados, todos os quais são iguais em sua composição
primitiva. Mas, com tempo, os ovos transformam-se em quatro
tipos de embriões, os quais correspondem aos quatro tipos de
estruturas anatômicas identificadas por Cuvier em seu sistema
taxonômico (Mason, 1962, p. 371-372). As idéias de Baer, agora
desacreditadas, foram aceitas por Cuvier e por ele citadas para
rechaçar a explicação do aparecimento dos quatro grupos como
resultado dos processos que criam monstros.

Comentário Final

A Zoologia Filosófica era uma disciplina que examinava


as idéias novas sobre a transmutação dos animais, tanto dentro
quanto fora do útero. Programada como um estudo complementar

154
à Zoologia Descritiva, a matéria explorou as doutrinas de
Epigênese, Embriogenia e Organogenia, tópicos estes que não
apareceram no programa tradicional da matéria Zoologia. A
disciplina destacou-se por tratar das modernas correntes do
pensamento científico na primeira metade do século XIX.
A extensão e a diversidade dos tópicos discutidos na
Zoologia Filosófica descartam a possibilidade de que uma única
obra foi adotada em sala de aula. Provavelmente, Maia transmitiu
os conceitos das lições oralmente, com ou sem o auxílio de uma
apostila. Partindo-se da suposição de que obras francesas
fundamentaram o estudo da Zoologia Filosófica, como
fundamentaram as outras disciplinas científicas no Colégio de
Pedro II durante todo o século XIX, presume-se que o professor
Maia consultou, ou no mínimo conhecia, a Philosophie zoologique
(1809) de Lamarck e Le régne animal (1817) de Cuvier; as
Recherches d'anatomie transcendante et pathologique (1832), os
Principes d’anatomie organogénique (1842) e Des lois de
l'embryogénie (1839) de Serres; a Philosphie anatomique (1822) e
os Principes de philosophie zoologique (1830) de Étienne Geoffroy
Saint-Hilaire, e o Traité de tératologie (1832-1836) de Isidore
Geoffroy Saint-Hilaire. Presume-se, também, que consultou os
trabalhos de Milne-Edwards e Blainville, e, direta ou
indiretamente, por meio dos trabalhos franceses, teve acesso às
idéias de Mersseman, Meckel e Von Baer. Conclui-se, entretanto,
que os livros que mais serviram aos objetivos da Zoologia
Filosófica saíram das mãos de Cuvier, Saint-Hilaire e Serres,
devido à sua posição central nos debates franceses sobre as
doutrinas e metodologias da Zoologia na primeira metade do
século XIX.

Referências

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decades before Darwin. New York: Oxford University Press, 1987.

155
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humaines, ouvrage contenant une classification des monstres; la
description et la comparaison des principaux genres.... Paris:
Baillière, 1822.
____________. Principes de philosophie zoologique, discutés em
mars 1830, au sein de l’Académie Royale des Sciences. Paris:
Ballière, 1830.
GEOFFROY SAINT-HILAIRE, Isidore. Histoire générale et
particulière des anomalies de l'organisation chez l'homme et les
animaux, ou, Traité de tératologie ouvrage comprenant des recherches
sur les caractères, la classification, l'influence physiologique et
pathologique, les rapports généraux, les lois et les causes des
monstruosités, des variétés et vices de conformation. 3 vols. Paris:
Ballière, 1832-1836.
LAMARCK, Jean. Philosophie zoologique, ou, Exposition des
considérations relative à l'histoire naturelle des animaux. Paris:
Autor, 1809.

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MAIA, Emilio J. S. Quadros synopticos do reino animal, onde se
adopta o methodo natural de Cuvier com as precisas modificações
conforme o estado atual da sciencia, organizados para facilitar o
estudo da zoologia no internato e externato do Collegio de Pedro II.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1858.
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MASON, Stephen. History of the Sciences. New York: Collier,
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VECHIA, Ariclê. & LORENZ, Karl. Programa de ensino da
escola secundária brasileira 1850-1951. Curitiba: Autores, 1998.

157
Karl M. Lorenz, Ed.D. Programa de Pos-Graduação em
Educação, Department of Education, Sacred Heart University,
5151 Park Avenue, Fairfield, CT 06825, U.S.A. E-mail:
lorenzk@sacredheart.edu

Recebido em: 20/10/2006


Aceito em: 15/03/2007

158
A LIVRARIA GARNIER E A HISTÓRIA DOS
LIVROS INFANTIS NO BRASIL – GÊNESE E
FORMAÇÃO DE UM CAMPO LITERÁRIO (1858 –
1920)
Andréa Borges Leão

Resumo
O artigo analisa as coleções para crianças e jovens apresentadas nos
catálogos de venda da livraria carioca de Baptiste-Louis Garnier para
o ano de 1858, e de seus sucessores, para 1920. Como modelo da
política de exportação da indústria editorial francesa e, com isso, de
formação do patrimônio de obras necessário ao desenvolvimento de
nosso comércio livreiro e autonomia literária, os Garnier apostaram
na longevidade do gênero "clássicos infantis", reeditando-os e
adaptando-os, o que demonstra uma intrincada rede de relações entre
sua filial latino-americana e a matriz francesa, bem como os efeitos
de um trabalho de formação do gosto literário das crianças e jovens
brasileiros.
Palavras-Chave: História editorial; literatura infantil; coleções
infantis e juvenis; comércio livreiro

GARNIER BOOKSHOP AND THE HISTORY OF THE


BOOKS FOR CHILDREN IN BRAZIL – GENESIS AND
DEVELOPMENT OF A LITERARY FIELD
Abstract
This paper analysis the collections of books for children and youths
found in the catalogues of Baptiste-Louis Garnier bookshop in the
year of 1858, and further collections, with new editors, until the year
of 1920. Being a model of the French polices for the editorial
market, and in an attempt of developing the Brazilian literary
market, the Garnier bookshop invested in the classic books for
children, re-editing and adapting them. Such behavior shows an
intricate relationship between the Latin-American branch and its
French main office as well as the way their polices influenced the
literary taste of children and youths in Brazil.
Keywords: editorial history; children literature; children and youths
collections; bookshops

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 159-183, jan/abr 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
LA LIBRERÍA GARNIER Y LA HISTORIA DE LOS
LIBROS PARA NIÑOS EN BRASIL – GÉNESIS Y
FORMACIÓN DE UN CAMPO LITERARIO (1858 – 1920)
Resumen
El texto analiza las colecciones para niños y jóvenes presentadas en
los catálogos de venta de la librería carioca de Baptiste-Louis Garnier
para el año de 1858, y de sus sucesores, para 1920. Como modelo de
la política de exportación de la industria editorial francesa y, con eso,
de formación del patrimonio de obras necesario al desarrollo de
nuestro comercio librero y autonomía literaria, los Garnier apostaron
en la longevidad del género “clásicos infantiles”, reeditándolos y
adaptándolos, lo que demuestra una intrincada red de relaciones entre
su filial latino-americana y la matriz francesa, bien como los efectos
de un trabajo de formación del gusto literario de los niños y jóvenes
brasileños.
Palabras-clave: Historia editorial; literatura infantil; colecciones
infantiles y juveniles; comercio librero.

160
Primeiras robinsonadas

A história cultural dos livros infantis descreve


movimentos de continuidade e ruptura entre matrizes classificadas
ora como populares, ora como eruditas, pedagógicas e literárias.
Nas suas origens, muitos dos textos literários hoje clássicos
podiam ser endereçados tanto às crianças como aos adultos,
ficando a diferença marcada pelas práticas culturais, os modos de
representação e apropriação, que, por sua vez, causam efeitos de
longa duração. Há obras que permanecem no tempo, tonam-se por
longos anos grandes sucessos de livraria, adquirindo novos sentidos
na passagem de um público a outro. Nesse processo, as
intervenções editoriais ousam ir muito longe. Fica a cargo delas o
estabelecimento de códigos de recepção dos textos, porque são as
edições que organizam as obras em classes de gêneros e temas,
recomendando leituras para cada idade. A questão dos critérios de
adaptação ao público infantil, o teor de moralidade e
aborrecimento das narrativas, suas razões pedagógicas e tudo o
mais que vem acompanhando a história da produção literária
infantil ganha consistência maior quando se consideram as
configurações culturais nas quais se produzem os textos. A partir
daí, outras funções são atribuídas ao editor: o controle das
publicações a fim de guiar os leitores nas maneiras de ler; a
construção de uma ordem dos textos reunindo-os em coleções e
bibliotecas; a organização de um patrimônio de obras que permita
a invenção da história do gênero.
Sendo assim, o projeto da livraria francesa para a
formação dos jovens leitores brasileiros, a partir de meados do
século XIX, exprime a vocação exportadora do mercado do livro
francês como um todo e, em conseqüência, o intenso movimento
das trocas culturais iniciado pela circulação internacional dos
textos. As operações de exportação do livro, aliadas a uma política
de distribuição baseada na disseminação de pontos de venda pela

161
América Latina, ensejaram a transferência de capital literário para
os países de produção ainda incipiente. No caso específico do
Brasil, o que poderia ser um projeto de colonização cultural, de
pura e simples imposição de bens de consumo, permitiu o acúmulo
de capital simbólico necessário à autonomização da literatura
nacional, já em vias de constituição.
Na produção cultural infantil, o francês Baptiste-Louis
Garnier, que migrara para a Corte do Rio de Janeiro, em 1844,
foi personagem decisivo. Esse comerciante de origem normanda
investiu no trabalho de difusão de obras clássicas européias, já de
largo sucesso comercial em seus países de origem, apostando na
durabilidade de diversos gêneros, vendendo, editando e reeditando
por longos anos contos de fadas, literatura de viagens, fábulas,
biografias de vidas exemplares, tratados de educação e coleções de
obras cristãs. E não apenas para o leitor juvenil. Figueiredo
Pimentel, Olavo Bilac, Coelho Neto e Júlia Lopes de Almeida,
pioneiros na escrita, tradução e adaptação de textos de ficção para
crianças, certamente demandavam em seus trabalhos o acesso às
histórias do patrimônio literário universal constituído nos séculos
precedentes, como os famosos contos de Perrault, as Aventuras de
Robinson Crusoé, de Daniel De Foe, o célebre Télémaque, de
Fénelon, ou romances fontes tal Paulo e Virgínia, de Bernardin
de Saint-Pierre, todas obras importadas e vendidas pelos livreiros
franceses radicados no Rio de Janeiro. A crônica da história
intelectual brasileira não se cansa de lembrar que a livraria Garnier
foi palco de animadas reuniões e encontros literários e todos para
lá acorriam em busca de novidades.
A instalação da livraria francesa no Brasil trouxe ainda a
ampliação da oferta das obras e coleções dos grandes nomes da
literatura adulta universal, como, por exemplo, a popularização de
autores do romantismo francês, que de outro modo não seriam, ou
seriam menos facilmente, conhecidos. A literatura mais admirada
do mundo era produzida em Paris. A venda de livros importados
também possibilitou, para a livraria Garnier, a acumulação

162
primitiva do capital econômico para a impressão da literatura
nacional.
Somente no final do século XIX é que são feitas as
traduções para o português dos títulos mais importantes, a
exemplo das edições populares da obra de Júlio Verne,
testemunhas do bom negócio que o Garnier do Brasil fazia com a
casa Hetzel, de Paris. Posteriormente, essas obras são adaptadas
ao gosto dos jovens leitores brasileiros e passam a ser produzidas
no Brasil e circular em várias edições até os anos de 1930. Ao
mesmo tempo em que contratavam o trabalho de autores-
tradutores, os próprios livreiros se lançavam na tarefa de adaptação
dos textos, intervindo nas narrativas, alterando passagens, enfim,
tomando precauções contra o que entendiam ser "o
envelhecimento do estilo" de autores já caídos, nas portas do novo
século XX, em domínio público. Essa foi a função desempenhada
pelos Garnier, de Paris. Nas obras traduzidas pelo selo, destaca-se
a coleção do Cônego Schmid, um autor alemão muito lido e
publicado nas bibliotecas de formação moral e cristã das mais
famosas casas editoras da província. O primeiro tradutor do
Cônego no Brasil foi Nuno Álvares.
A justa compreensão da formação da literatura infantil
brasileira, com os jogos textuais de instrução e diversão, ilusão e
aconselhamento moral, deste modo, deve partir da historicidade
das práticas comerciais e dos processos a partir dos quais esses
textos ganham publicidade. As relações de interdependência entre
os produtores - autores, livreiros-editores, críticos literários e
leitores – ainda que tensas, estão na base do processo de
construção dos significados e valores dados às obras, em cada
conjuntura específica. Isto torna-se ainda mais interessante
quando envolve as trocas internacionais. Inicio, então, pela
trajetória comercial dos irmãos Garnier, de sua política para o
livro infantil no Brasil e da publicação das Bibliotecas da
Juventude nos catálogos de vendas de 1857-58 e 1920 da Livraria
de Baptiste-Louis Garnier da Rua do Ouvidor. Chamo essas
iniciativas de "primeiras robinsonadas", visto que todo colono
163
empreendedor no domínio cultural tem um pouco do personagem
Robinson Crusoé. Todo país estrangeiro é uma ilha deserta. O
romance fonte de De Foe, uma narrativa de louvor ao mérito, ao
trabalho e à astúcia individual face às dificuldades da natureza,
traz as marcas de um estilo de vida e bem ilustra os lances dos
heróis livreiros nos primeiros tempos da edição no Brasil. Não por
acaso esses estrangeiros devotavam tanto gosto pelas histórias de
viagens e vidas de viajantes. Resta uma questão sem resposta: quais
as razões íntimas de uma partida? Mas, nem todas as viagens são
feitas de naufrágios e a livraria francesa logrou fincar raízes no
Brasil.
Em seguida, observo o sistema de organização e
classificação interna dos catálogos, as relações das obras entre si e
os esforços de sistematização dos textos em diversos gêneros
editoriais. Estabeleço comentários sobre o regime da produção
editorial tanto para o público francês quanto brasileiro, incluindo
a análise da produção de textos de narrativas morais que elegem o
Brasil como tema. Em um autêntico processo de troca cultural,
enquanto a livraria francesa se instalava no Brasil, o Brasil era
feito objeto da produção literária na França. As diferenças que
suscitam esses país tropical, com seu labirinto de florestas, índios
antropófagos e escravos negros, conquistam lugar privilegiado em
novas operações escriturárias.

O bom negócio dos Garnier Fréres: exportação de


livros eróticos e religiosos

De início, afasto a hipótese que encerra a história da


livraria francesa no Brasil como mera ação colonialista. Não foi
uma pura concessão ao consumo de produtos importados, marca
do gosto de um público burguês sedento por novidades européias,
que orientou a partida do irmão mais novo, Baptiste-Louis, para
difundir o livro francês na América Latina. Para que esse
normando viesse a se tornar, no Brasil, o "inventor da literatura

164
nacional" (Mollier, 1999), o primeiro a remunerar os escritores1 e,
com isso, ilustrasse a dinâmica difusora de modelos da edição
francesa no séc. XIX, os outros irmãos Garnier necessitaram
trilhar os primeiros passos de um longo e acidentado percurso
comercial em Paris. O primeiro da família a chegar à capital foi
Auguste-Désiré, em 18242, vindo de Lingreville, uma pequena
cidade da Baixa Normandia. Com pouco tempo, seguem-no os
outros três irmãos, François Hippolyte, Pierre-Auguste e
Baptiste-Louis. Hippolyte, Auguste e Pierre conseguem a
autorização, para cada um, do exercício da profissão de livreiro.
Baptiste-Louis parte para o Rio de janeiro, em 1844, abrindo sua
loja na Rua do Ouvidor.
Até a compra do prédio para a livraria parisiense no
endereço mais chic da capital - as galerias do Palais-Royal -, em
1837, os três enfrentam muitas dificuldades. O acervo da casa,
uma sociedade entre Auguste e Hippolyte, foi sendo formado
pouco a pouco e com muito senso de oportunidade. Os dois
irmãos adquirem os direitos de venda de outras casas editoras, bem
como os fundos comerciais dos que abriam falência e liquidavam
todo o estoque. Esses fundos compreendem o mobiliário, os livros
e todas as propriedades literárias3, que são os direitos sobre obras,

1
Mesmo que através da compra definitiva da propriedade da obra de um escritor.
Sobre o teor dos contratos literários da casa carioca, ver: Lajolo, Marisa e
Zilberman, Regina. O preço da leitura. Leis e números por detrás das letras. São
Paulo, Ática, 2001.
2
De acordo com o documento: Portraits de Libraires – la famille des Garnier.
Extrait du Bulletin de L’Association. Assinado por H.C, libraire-expert au
Tribunal de la Seine. Paris, impr. A. Fleury, 1913.
3
Compreendemos muito bem o que significa, no meado do século XIX, a
compra dos fundos comerciais de uma livraria em falência quando examinamos
os respectivos contratos. Exemplo de uma grande disputa entre livreiros em torno
da propriedade da obra do Conde de Ségur, um escritor católico do século XIX,
encontramos nos documentos de compra dos fundos comerciais de M. Cartot e
M. Eymery, que decretam falência em 1830, pelos livreiros-impressores MM
Fruger et Brunet, em 1831.

165
às vezes, de grandes autores. Em 1841, os Garnier adquirem os
fundos do editor Delloy, e em 1849, os de Salvat. Com esse,
abrem a livraria espanhola Garnier Hermanos. Em seguida, vão
enriquecendo seus catálogos com a edição literária própria, de
manuais escolares e dicionários. Nesse período, mudam-se para a
Rua de Saints-Péres, endereço conhecido dos leitores brasileiros,
porque constava na folha de rosto dos livros vendidos na filial
carioca. Essas estratégias se acompanhavam da busca de outras
fontes de acumulação de capital, como o investimento em ações da
bolsa de valores e a compra de imóveis situados nos mais
valorizados boulevards.
Comprar ações da "caminho de ferro" possibilitava
dinheiro vivo nas mãos, mas o melhor negócio dos Garnier foi a
venda e exportação de livros e estampas pornográficas. O bom
negócio do livro obsceno resultou tão importante e lucrativo
quanto o acúmulo de capital social de relações representado pela
freqüência dos escritores românticos em animadas reuniões na
livraria do Palais-Royal. Mesmo que as estampas fossem impressas
nas tipografias da periferia e vendidas nos esconderijos da loja, foi
preciso enfrentar a vigilância policial, censura, multas e ameaças
de prisão, em especial Pierre-Auguste, que acabou se
especializando no ramo. Segundo Jean-Yves Mollier, dos três
irmãos, Baptiste-Louis foi o escolhido para difundir o comércio
ilícito na América Latina. A difusão internacional desses livros
acompanhava-se dos melhores romances de Alexandre Dumas,
Victor Hugo, George Sande, Balzac, assim como essa literatura
de última novidade acompanhava-se dos livros de artes militares,
religião, filosofia, direito, política, entre outros gêneros e outras
línguas, como alemão, italiano, inglês, espanhol, grego e latim.
Outra grande aquisição dos irmãos Garnier foi a editora
do abade Migne, famosa pela produção de livros de grande
erudição em história e teologia. Isto porque para construir seu
império mercantil e a rede de difusão internacional, os livreiros
parisienses necessitaram, sobretudo, da exportação de livros
religiosos, que formavam as coleções de leituras espirituais e se
166
compunham de catecismos, manuais de práticas piedosas, Bíblias e
livros de primeira comunhão, endereçadas ao consumo popular,
mas também de uma literatura de alto nível, edificante e moral,
com exercícios de estilo, destinada a um público mais cultivado e
que sabia escrever. Havia uma atenção especial em oferecer livros
piedosos às crianças e jovens francesas e brasileiras. As bibliotecas
de livros infantis traziam leituras destinadas à interiorização de
regras religiosas, à formação da alma e à educação para a devoção.
Na França, a Igreja Católica reinava sobre a formação moral e
espiritual da juventude. Havia autores que eram exclusivos das
editoras católicas4, exemplo das coleções de Alfred Mame, de
Tours, Ardant, de Limoges e Mégard, de Rouen. Assumindo o
função de entreposto comercial dessas casas, Baptiste-Louis
revelava autores e livros ainda inéditos para o público brasileiro,
mesmo sendo nomes consagrados na Europa. Ao lado das
narrativas de viagem, de Gulliver e de todas as variações das
Aventuras de Robson Crusoé, bem como das obras contando as
maravilhas inventadas pela indústria moderna, a pedagogia da
edição católica infantil apontava principalmente para a
preocupação em oferecer às crianças brasileiras uma literatura já
celebrada e consagrada entre as crianças da Europa. Obras de
autores clássicos da literatura infantil e juvenil, na maioria
reedições das fórmulas literárias de sucesso no século XVIII, como
Berquin, Bernardin de Saint-Pierre, as Mme de Genlis, Le Prince
de Beaumont, Guizot e Delafaye-Bréhier, até Cervantes, passaram
a ser vendidas na livraria de Baptiste-Louis Garnier.
Os textos de práticas devotas encontram todo o sentido
nos interiores europeizados das famílias burguesas e com algum
verniz aristocrático. Os livreiros parisienses sabiam que os novos

4
Sobre a edição católica na França e o monopólio da província nesse setor da
produção no século XIX, consultar: Glénisson, Jean. Le livre pour la jeunesse.
In: Histoire de L’édition Française – les temps des éditeurs, du romantisme à la
Belle Époque. Sous la direction de Roger Chartier et Henri-Jean Martin. Fayard,
/ Cercle de la Librairie, 1990.

167
leitores americanos portavam em si a herança da tradição ibérica e
que de há muito eram familiarizados com as obras cristãs, mesmo
que, adultos, lessem e admirassem as cenas das brochuras eróticas
e baratas. Só assim estaria resguardado o objetivo maior da casa
parisiense - "tocar a alma latina", que, para o bem de nossa
história, significou efetivamente a criação das condições
monetárias para a publicação de escritores como José de Alencar e
Machado de Assis, Gonçalves Dias e Olavo Bilac. Só assim estaria
igualmente resguardado o retorno à moralidade pública, que tanto
convinha à casa matriz. Como diz Jean-Yves Mollier (Mollier,
1988), não são nada nobres as origens da acumulação primitiva do
capital, ainda que se tratando do comércio de livros.

Da França para o Brasil: a loja do Rio de Janeiro e a


administração de Paris

Em 24 de junho de 1844, Baptiste-Louis chegava no


Rio de Janeiro, a bordo da galera Stanislas. De há muito o Brasil
ocupava a imaginação dos franceses. Entre eles, havia grande
disposição para aprender com as viagens e não menos para se
entreter com a leitura de suas narrativas. Desde a crônica Jean de
Lery5, passando pelos missionários jesuítas e pelos artistas,
chegando aos contemporâneos Ferdinand Denis e Auguste de
Saint-Hilaire e às mulheres de letras, como Julie Delafaye Bréhier,
Victorine Monniot e Amélie Schoppe6, responsáveis pela entrada

5
O protestante francês Jean de Léry (1534-1613) empreendeu uma viagem ao
Brasil em meados do séc. XVI, no projeto de implantar uma France Antartique.
Essa experiência que lhe valeu a escrita de uma primeira narrativa de viagem
sobre o Brasil, L’Histoire d’une Voyage faict en la terre du Brésil.
6
Das mulheres de letras que escreveram sobre o Brasil para leitores crianças e
jovens, na França do século XIX, cito, respectivamente, as obras: Portugais
D’Amerique. Souvenirs Historiques de la guerre du Brésil en 1635, de 1847; Le
Journal de Marguerite – Souvenirs d’enfance à l’île Bourbon (la Réunion 1835-

168
da colonização americana como tema do livro juvenil,
descrevendo-o ou simplesmente supondo-o, os franceses iam
escrevendo o Brasil. Naturalizando-o pelo discurso da ciência ou
representando-o na ficção romântica, os intelectuais europeus
produziam textos, punham um país no processo de produção de
imagens, imprimindo-as e publicando-as. Em suas narrativas,
crença e desejo, medo e curiosidade revestiam as figuras dos
selvagens habitantes dos trópicos, praticantes da antropofagia (o
horripilante canibalismo, que tanto ocupava o medo infantil),
objetos da ciência natural, outrora alvos da catequese religiosa e,
agora, dos dispositivos morais da nova pedagogia. A compreensão
dos costumes americanos como fato moral ocupava o centro dos
debates científicos. Toda a força desse debate é demonstrada no
sistema de divisão e classificação do mundo em reinos - animal,
vegetal e mineral - operado por esse discurso e representado na
escolha das obras para a composição das coleções para a juventude.
Do lado da religião, não importava tanto a observação da prática
litúrgica e sacramental, mas a difusão de uma cristianização da
civilidade7. Ademais, a França revolucionária horrorizava-se ante a
escravidão negra. Os irmãos Garnier deviam ter um conhecimento
prévio desse país, antes de fazer a escolha e correr todos os riscos
do negócio do livro na capital do vasto Império do Brasil, quase
todo de analfabetos.
Baptiste-Louis abriu sua loja no número 69 da Rua do
Ouvidor, onde permaneceu até 1878. Trabalhando intensamente,
buscou a autonomia relativa dos irmãos em 1857, passando a

1845), de 1862; Les Émigrants au Brésil, de 1847. Essa última autora foi uma
alemã traduzida e imitada na França.
7
O termo "cristianização da civilidade", aqui, é utilizado no sentido da entrada
das noções religiosas no ensino e aprendizado das regras de conduta moral. Mas
ele também pode significar a rejeição da civilidade como polidez mundana em
troca às homenagens rendidas a Deus. A esse respeito, consultar: Rouen, le livre
et l’enfant, 1700-1900, la production rouennaise de manuels et de livres pour
l’enfance et la jeunesse. Musée National de L’Éducation, 1993.

169
assinar as publicações com as indicações de B. L. Garnier.
Embora nos catálogos de venda para esse mesmo ano e para o
precedente, ainda inteiramente em francês, note-se a dependência
em relação à casa matriz quando lemos o seguinte aviso ao leitor:
"(...) fazemos notar que nossas colagens, sendo confeccionadas em
Paris pelos mais hábeis artesãos, e sob os olhos e a vigilância de
nossos irmãos, oferecemos as melhores garantias pela solidez,
como pela elegância e o bom gosto"8.
O livreiro fazia questão de assinalar que sua loja era a
mesma de Paris. Para os brasileiros fascinados pela França, essa
tomada de posição era mais que conveniente à legitimidade de que
se necessitava revestir os produtos da casa. As técnicas de colagem
do papel (reliure) não apenas definiam a qualidade da impressão,
mas principalmente influenciavam a escolha do leitor e o gosto
pela obra. Se Baptiste-Louis conquistou uma autonomia relativa
em relação a seus irmãos, a recíproca foi verdadeira. Em 1878, os
Garnier de Paris adquiriram os fundos comerciais da livraria
portuguesa e espanhola Hamonière oferecendo aos franceses um
sortimento de dicionários bilíngües, gramáticas e manuais de
conversação, além de romances, livros escolares e literários para
crianças, todos em português. Dentre essas obras à disposição na
livraria de Paris, situada na agora denominada "Rua dos Santos
Padres", destaca-se uma assaz interessante Coleção aos Pedaços
que, juntando Berquin com João de Barros, Fénelon com Freire
de Andrada, ilustra bem a vocação internacional de Hippolyte
Garnier. Essas obras do fundo Hamonière podiam ser enviadas da
França para o Brasil já devidamente traduzidas para o português.
Note-se que, na folha de rosto desses livros, fora suprimido o
endereço brasileiro, constando apenas Livraria de Garnier Irmãos9.

8
Tradução própria. Catalogue de la Librairie de B. L. Garnier, Rio de Janeiro,
1858.
9
Catálogo de venda com notícias de livros infantis anexas ao livro Paulo e
Virgínia, de Bernardim de Saint-Pierre. Paris, Livraria de Garnier Irmãos,
1878.

170
Ademais, o Rio de Janeiro era a sede de uma corte que
sempre mantivera relações culturais bastante próximas com a
França. Atestam-no os livreiros Aillaud e Guillard, que, em 1866,
assinavam seus catálogos de livros portugueses vendidos em Paris
como "livreiros de suas majestades o Imperador do Brasil e El Rei
de Portugal"10.
No Rio de Janeiro, Baptiste-Louis foi durante muito
tempo alvo de intrigas veiculadas nos jornais por imprimir suas
publicações nas tipografias utilizadas por seus irmãos, onde
mantinha revisores para as provas em português (Hallewell, 1985).
Essa escolha teve motivação comercial. Com uma indústria gráfica
incipiente, no Brasil, os livros tinham que ser impressos nas
tipografias dos jornais. Apenas em 1873, Baptiste-Louis mandou
vir da Europa material de composição e máquinas mais
aperfeiçoadas. Contando com o trabalho de Charles Berry, pôde
ter sua própria tipografia, a Typografia Franco-Americana.
Segundo Hallewel, a livraria Garnier do Rio de Janeiro possuía um
corpo de revisores técnicos altamente qualificado. Resta saber se os
irmãos franceses, já tendo, a essa altura, acumulado uma grande
fortuna imobiliária, enviavam alguma soma em dinheiro para
auxiliar as atividades do mais moço, no Rio de Janeiro.
Até chegar ao livro brasileiro e conectar-se, de fato, à
lógica comercial e industrial que regia o negócio de seus irmãos em
Paris, foi necessário a Baptiste-Louis muito trabalho de tradução e
adaptação, destacando-se o estabelecimento de relações com os
intelectuais portugueses, como Manuel Pinheiro Chagas, Ramalho
Ortigão e Teófilo Braga, formando vínculos entre o Brasil, a
França e Portugal. No Rio, destacavam-se como tradutores,
literatos e jornalistas importantes como Salvador de Mendonça,
Fernando Reis, Jacinto Cardoso e Ramiz Galvão. Cada edição
tinha um preço fixo, o Garnier não admitia abatimentos, o que

10
Catálogo de venda dos livros portugueses, latinos, franceses, da Casa da V. J.
P. Aillaud, Guillard e Cia. 1866.

171
talvez explique a compra de todos os direitos de publicação dos
manuscritos dos escritores com os quais firmava contrato.
A saúde de Baptiste-Louis não sobreviveu à passagem do
século. O Garnier falece no dia primeiro de outubro de 1893. Sua
livraria tinha o mesmo funcionamento das academias literárias -
palco de sociabilidade com poderes de reconhecimento, celebração
e consagração de todo escritor aspirante à glória. A partir de
1900, passa a ser local para as reuniões dos mais festejados
homens de letras, que na nova loja, cultuam a exibição como valor
agregado à sensibilidade e ao gênio. Tudo agora marcado pelas
cores e alegrias bellepoqueanas, fundando uma sociabilidade tão
mais livre quanto superficial, longe do ranço aristocrático
característico aos tempos do velho Baptiste-Louis. Hippolyte
substitui o irmão mais novo no comando dos negócios, voltando a
casa a ser filial da Garnier Fréres, de Paris. Hippolyte, que jamais
veio ao Brasil, decide enviar um gerente francês para a
administração da loja, prática seguida por seu sucessor e sobrinho
Auguste-Pierre. Julian Lausac, o gerente, cujo trabalho com livros
era devido a Jacinto Silva, falava mal o português, mas foi
responsável pela inauguração do novo prédio da livraria, em 1900.
Hippolyte falece em 1911 aos 85 anos de idade e Lansac se
demora apenas dois anos no Brasil. Auguste-Pierre, o sucessor da
matriz francesa, destaca-se por fundar importantes revistas
literárias e por publicar numerosos poemas de inspiração católica.
Ao Rio de Janeiro, envia Emile Izard.
Como momentos marcantes da política editorial de
Hippolyte destacam-se o sucesso e tradução de Canaã, romance de
Graça Aranha, em 1902, com sucessivas edições, a tradução para
o francês e o espanhol das obras de Machado de Assis, do famoso
livro Porque Eu Me Ufano de Meu País, do Conde de Afonso
Celso. Hippolyte Garnier foi grande difusor da literatura hispano-
americana por todo o mundo. Em 1900, a livraria espanhola
Garnier Hermanos em Paris era considerada a melhor em obras
nessa língua.

172
A última fase da livraria Garnier no Brasil, que vai dos
anos de 1920 até 1934, assinala a prática da reedição de clássicos
da literatura, nacional e estrangeira, em coleções de um mesmo
autor, estratégia para a ampliação das vendas face à perda de
prestígio da cultura francesa. Essa decisão pode igualmente
demonstrar as dificuldades financeiras da matriz, uma vez que
tendo caído em domínio público não se necessita mais pagar os
direitos de um autor. A livraria Garnier do Rio de Janeiro fecha
suas portas em 1934, não resistindo à chegada do jovem livreiro
José Olympio, vindo de São Paulo e que também se lança no
negócio da importação e tradução de livros. Os fundos da casa
francesa no Rio de Janeiro são vendidos a Ferdinand Briquiet.

Ordenar e classificar: as Bibliotecas Juvenis no


catálogo de vendas da Livraria Garnier

A ordem interna a um catálogo de venda de livros deve


ser interpretada não apenas como o resultado das decisões e
escolhas do que vale a pena ser comercializado. Definir e organizar
coleções é, antes de tudo, uma operação difusora e transmissora de
sistemas de representação, classificação e divisão do mundo que
visam a interferir diretamente nas disposições do público leitor11.
Organizar livros em coleções é um modo de estabelecer
hierarquias, aproximações e diferenças. Por isso, as estratégias dos
livreiros não podem prescindir das expectativas, reais ou supostas,
de seus leitores. As coleções supõem modos de apropriação que,
por sua vez, são relativos às comunidades de interpretação. Essas
comunidades distinguem-se, entre outras propriedades, por certas
categorias de percepção do mundo social. Trata-se do
estabelecimento de uma relação negociada entre o profissional do

11
A categoria "sistema de representação do mundo social" é de autoria do
sociólogo Pierre Bourdieu. Dele, consultar: La distanction. Critique sociale du
jugement. Les Éditions de Minuit, 1979.

173
livro e o leitor, adulto e criança, que firma um pacto de
credibilidade e confiança mútua intermediado pela compra e
leitura do livro. Os irmãos Garnier sabiam o que oferecer ao seu
público. Para as crianças e jovens brasileiros, apostaram na
longevidade dos clássicos da literatura francesa e européia, grande
parte reedições de obras do século XVIII e da primeira metade do
século XIX, que compravam das mais prestigiadas casas do ramo,
como a de Eugene Ardant, de Limoge e a de Alfred Mame, de
Tours. Assim como dos parisienses Lehuby e Didier. Como esses
editores não possuíam pontos de venda na América Latina,
certamente faziam bom negócio com os irmãos Garnier. Afinal, as
representações européias que distinguiam os povos americanos do
sul não estavam reduzidas ao temor à prática do canibalismo,
principalmente em um país como o Brasil, que enchia os olhos dos
franceses com imagens de ouro, prata e diamantes.
Ordenar e classificar estão na base da formação das
Bibliotecas infantis e juvenis. Principalmente devido à sua função
maior de agir nas disposições, na formação do habitus, oferecendo
a toda a família modelos de escrita, princípios para a educação
doméstica e para a observação da piedade religiosa. Sendo assim,
no catálogo de venda da livraria de Baptiste-Louis Garnier de n.
14, denominado "Livre Classique, D’instruction Publique,
D’éducation et Livres Ilustrés Pour La Jeunesse12- En Français,
Allemand, Anglais, Espagnol, Grec, Italien Et Latin"13, e anunciado
para o ano de 1858, estavam representadas as principais correntes
e doutrinas do pensamento francês do século XIX – a moral em
ação, a ciência natural e a piedade religiosa. Inteiramente em
francês, as obras foram organizadas pela ordem alfabética dos
nomes de seus autores. Logo ao primeiro contato, fica claro um

12
É interessante notar que a indicação Pour la Jeunesse pode contemplar obras
destinadas tanto às crianças quanto aos jovens, que são os adolescentes.
13
Tomamos para análise somente a lista de livros da tradição literária francesa e
que partiram para o Brasil, visto que os livros nos outros idiomas eram
basicamente escolares, manuais, dicionários, gramáticas, etc.

174
sistema de representação construído em torno da legitimidade das
obras, que, acima de tudo, ilustra lutas de classificação na escolha
dos livreiros responsáveis. Na ordem desse catálogo havia duas
grandes séries de representações. A primeira, formada por textos
que professavam, ainda que literariamente, instruções morais, ou a
interiorização das regras de um catolicismo que se pretendia
racional; uma outra, de textos que divulgavam os prodígios e
descobertas da ciência natural, e que partiam de autores e
narrativas que professavam o cristianismo reformado. Na primeira
série, podemos incluir a Revue Catholique de La Jeunesse, um
compêndio sobre religião, educação, instrução e recreação. Essas
obras católicas tinham o distintivo de serem aprovadas pelos
comitês eclesiásticos de leitura, verdadeiros tribunais de censura e,
por conseguinte, de controle da leitura, aos quais os editores
precisavam submeter-se. Na segunda, pode-se incluir tanto o
clássico de Mme. Guizot, Lettres de famille sur l’education, um
romance epistolar de inspiração rousseauniana e que versa sobre as
virtudes naturais da educação infantil, quanto o curioso título La
Nature et ses Productions, ou Entretiens sur L’ histoire Naturelle,
que igualmente mostra todas as influências do "homem natural".
Ambos os modelos realçam as preocupações adultas em colocar a
"moral em ação", na leitura das crianças e jovens. Essa estratégia
de agrupamento de livros ilustra uma lógica de produção textual,
mas também o modo como as idéias européias eram apropriadas
no Brasil de meados do século XIX.
Malgrado todo a empresa classificatória dos Garnier,
uma obra como o romance histórico Les Portugais d’Amérique -
Souvenirs historique de la guerre du Brésil en 1635, em que a
autora, Julie Delafaye-Bréhier, aproveitando-se da narrativa da
ocupação holandesa em Olinda, tece uma trama sobre as relações
coloniais brasileiras, pondo em linguagem sistemas de referências
próprios aos personagens colonos portugueses, índios americanos e
escravos negros, pode não encontrar lugar determinado nesse
sistema de representação posto em jogo no catálogo. Sua

175
complexidade deve-se à propagação para a juventude de princípios
cristãos, tanto católicos como reformados.
Quando abrimos os catálogos de venda e passamos ao
exame mais detalhado de seu corpus, logo percebemos alguns
critérios que definem sua organização. O primeiro é repetir certas
obras em outras coleções, talvez sinalizando prudência comercial -
quais as garantias de que as crianças brasileiras iriam aderir, de
pronto, aos livros franceses da Rua do Ouvidor? Acima de tudo,
elas precisavam ser provindas de famílias de elite e saber ler ou
entender a audição no idioma de Berquin. Como lembra Jean
Hébrard (2005), a transformação dos clássicos de uma "literatura
semi-educativa" em literatura infantil só foi possível pelo recurso
de sua cobertura em belas capas ilustradas, tornando-os bastante
caro e, assim, destinando-os ao consumo dos filhos das famílias
burguesas. Os Garnier deviam se perguntar: qual é o lugar exato
para as Aventuras de Robson Crusoé, o clássico de Daniel De Foe,
para os contos católicos de Schmid (o cônego), para os contos de
Perrault ou o romance de Swift, as famosas Viagens de Gulliver?
Esses livros junto aos nomes de seus autores também figuravam
no catálogo de n. 11 - "Romans Illustrés". Um outro critério
traduz-se no esforço dos responsáveis em propor uma divisão
temática para a apresentação dos títulos. Mesmo que essa divisão
não venha assinalada, nota-se a iniciativa em categorizar gêneros
textuais, já tentando separar o que é considerado didático do que é
literário, e, assim, esses livreiros franceses dão inicio ao longo
processo de acumulação do patrimônio necessário à formação de
um campo literário produtor destinado ao público infantil e
juvenil. Afinal, seria preciso inventar uma tradição. Ainda do
ponto de vista de sua organização interna, o documento mostra
todo o sortimento de que dispunham os Garnier em seus fundos
comerciais e as inúmeras possibilidades de negócios com outras
casas editoras especializadas em bibliotecas infantis.
Constando de aproximadamente duzentos títulos, entre
livros instrutivos e recreativos, álbuns ilustrados para as crianças,
as obras que compõem o catálogo de vendas de n. 14 destacam-se,
176
sobretudo, pelo ecletismo e variedade. Essa última característica
certamente revela toda o cuidado que os Garnier sabiam precisar
manter em relação às práticas de consumo do novo público
brasileiro, talvez pouco habituado à leitura.
Os livros dessa coleção podem ser divididos no seguinte
agrupamento temático, com destaque para as obras mais
representativas14:
1. Episódios históricos – Beautés de l’histoire de France,
de Blanchard;
2. Clássicos da literatura, incluindo romances, contos,
poesias e aventuras – Don Quixotte de la Manche, de
Cervantes, L’ami des enfants et des adolescents, de
Berquin, Aventures de Robinson Crusoé, de Foe,
Contes de Fées, de Perrault;
3. Tratados literários de educação – Lettres des famille
sur l’éducation, de Mme Guizot;
4. Narrativas de viagem, com enredos descritivos ou
ficcionais – Voyages de Gulliver, de Swift, Voyages
en Zigzag,de Topffer, Voyage illustré dans les cinq
parties du monde, de Adolphe Joanne;
5. Literatura edificante, onde as lições de moral
ganham o colorido da ficção – Paul et Virginie, de
Bernardin de Saint Pierre;
6. Biblioteca de contos cristãos, mas que não se
compõe de manuais de prática religiosa, catecismos,
missais, livros de primeira comunhão – Bibliothèque
de la jeunesse chétienne;

14
Esse agrupamento já vem suposto no próprio título do catálogo de n. 14. Vale
notar que mesmo com uma referência à instrução pública, na coleção não
encontramos manuais didáticos.

177
7. Imitação dos clássicos, releituras e versões adaptados
– Le Robinson Suisse, de Wyss, e Le Robinson des
sables du désert, de Mirval;
8. Narrativas exemplares, biografias de personagens
célebres ou anônimos – Enfances Célèbres, de Mme
Louise Colet;
9. Fábulas – Fables, de La Fontaine;
10. Álbuns ilustrados ou livros para criancinhas – Livres
des petits enfants.
Não havia uma preocupação em definir a infância e a
juventude em classes de idades. Esses livros tanto eram destinados
às crianças e jovens franceses quanto aos brasileiros, em uma clara
estratégia de estabelecer entre essas duas comunidades um
universo cultural comum. O objetivo revelado da oferta de livros
franceses para jovens brasileiros poderia ser, além da já comentada
intenção de "tocar a alma latina", a imposição de modelos de
leitura que poderiam produzir muitos outros efeitos, como o
enriquecimento da vida intelectual dos novos leitores, a formação
de um gosto e de uma prática da escrita. Nas advertências e
notícias bibliográficas assinaladas nesse catálogo sobressai a
demanda dos livreiros à participação dos adultos intermediários, a
exemplo do que ocorre com os títulos que versam sobre educação,
muitas vezes dirigidos prioritariamente aos pais.

O catálogo de 1920: aposta na longevidade dos


clássicos da literatura infantil e juvenil

A organização do catálogo para o ano de 1920 insiste na


durabilidade da coleção de livros da tradição literária européia, o
que demonstra que a empresa dos irmãos Garnier para o novo
público brasileiro portava um projeto intelectual que, certamente,

178
deu sua contribuição para a formação de uma cultura para a
infância e a juventude.
Uma vez tendo conquistado a legitimidade para os
clássicos que importavam e vendiam desde meados do século XIX
até bem entrado o século XX e, em conseqüência, preservado um
capital literário, os Garnier do Brasil passam a investir no trabalho
de tradução. Não sabemos ao certo quando publicaram as
primeiras versões para o português de tão charmoso repertório de
livros. Mas, uma questão de ordem estilística se impõe à família:
como enfrentar o "envelhecimento do estilo" de obras com um
século ou mais de existência? De que modo perpetuar o gosto do
leitor, tornando esses títulos perenes e, portanto, sempre atuais?
De Paris, os Garnier respondem: intervindo no texto, adaptando-o
ao gosto do momento, reescrevendo-o, se necessário. Quer dizer,
quando os livreiros passam a reeditar o livro juvenil aproveitam
para se iniciar em um trabalho de adaptação dos textos. Na nota
de advertência ao livro de Mme de Genlis, Le Veillées du Chateau,
de 1880, os Garnier franceses declaram terem feito desaparecer os
"detalhes inúteis", as imperfeições do que entendem ser um
"labirinto de conversação", recursos típicos de uma literatura de
feição romântica. Suprimir, corrigir, adicionar passagens aos
textos que recebem, são as novas funções dos irmãos livreiros-
editores. Dizem ainda terem feito as mudanças com reserva, sem
tocar na estrutura da obra.
Talvez essa tenha sido a mesma orientação seguida pelos
gerentes responsáveis pela livraria-editora do Rio de Janeiro. No
Catálogo Geral da Livraria Garnier para o ano de 1920, há cinco
coleções literárias: 1. Álbuns Infantis com gravuras coloridas; 2.
Álbuns e livros para prêmios; 3. Biblioteca Infantil; 4. Contos de
Schmid; e, 5. Biblioteca da Juventude. São compostas
basicamente dos mesmos títulos que já figuravam no acervo da
casa do século precedente. As notícias que acompanhavam as
obras continuavam trazendo indicações para uma aplicação moral
das narrativas pontuadas pelas condutas exemplares de seus
personagens. Inteiramente em português, neste catálogo,
179
destacam-se algumas traduções dos clássicos franceses feitas por
Pinheiro Chagas, Teófilo Braga e Ramiz Galvão. Os dois
primeiros traduziram as Fábulas de La Fontaine, cabendo ao
terceiro a tradução da Novena da Candelária, de autoria de
Charles Nodier. Encontra-se, todavia, traduções levadas a cabo
por autores franceses, como os Contos de Fadas, de Perrault e
Mme D´Aulnoy, por um certo J. J. A. Burgain, revelando ainda
as relações com a casa Matriz.
Dentre os autores publicados pela Garnier, o mais
traduzido no Brasil foi o alemão Christophe Schmid. Nos anais de
nossa literatura infantil, esse autor mereceu toda uma coleção de
livros com seu nome. Desde o século XIX, tornara-se famoso e
popular com suas pequenas histórias exemplares. Schmid foi
padre-professor, eclesiástico e fundador de uma república católica e
internacional das letrinhas. Seus personagens eram crianças
virtuosas, em boa parte órfãs e filhas devotas que viviam aventuras
inspiradas em passagens da Bíblia. Mas o Cônego Schmid, como
ficou conhecido, foi, antes de tudo, homem de responsabilidades
políticas. Nascido na Baviera alemã, em 15 de agosto de 1768,
antes da revolução francesa, fora autêntico representante dos
valores morais do antigo regime. Em 1801, inicia sua carreira
literária, escrevendo aos jovens. Na França, suas obras passam a
circular a partir de 1820, logrando lugar de honra na duração da
produção editorial. São incluídas nas coleções de formação moral
e nas bibliotecas cristãs por todo o século XIX.
Como professor de teologia, desde cedo, Christophe
Schmid combateu a favor do catolicismo, fazendo face às idéias do
cristianismo reformado. Talvez por esse motivo tenha
permanecido nos catálogos da família Garnier do Brasil. Sua
coleção mantinha estreito relacionamento com o repertório de
títulos religiosos. De tão populares e aceitos, os Contos do Cônego
se pretendiam substitutos realistas dos Contos de Charles Perrault,
tidos, pelos defensores de um catolicismo racional, como
demasiado fantasiosos.

180
Como narrador, Schmid assumia a voz de um pai de
família. Suas coleções destinavam-se às bibliotecas domésticas,
suportes da educação de formação religiosa, e eram indicados para
a leitura tanto dos adultos como das crianças.
Em 1865, Baptiste-Louis Garnier oferece uma segunda
edição brasileira da tradução dos Contos do Cônego, em um livro
síntese com suas melhores histórias morais, conselhos e lições
destinados às futuras gerações. Em 1920, encontramos no
catálogo Garnier não mais um livro-compilação, sim toda uma
coleção dos principais contos: Ovos de Páscoa; Henrique
D´Eichenfels; Rosa de Tannenburgo; Capella da Floresta; O
Cestinho de Flores; A Cruz de madeira; O Carneirinho; A Rola;
Genoveva de Brabant. Por trás da aparente dispersão dos títulos
há princípios bem definidos, que visam a unificar a coleção: o
tamanho e formato dos volumes, bem como a moralidade cristão
das histórias.
Assim como na história literária francesa, a critica
textual brasileira continua insistindo no caráter disciplinar dessas
obras que compõem a primeira fase da produção destinada às
crianças e jovens. Restam, porém, algumas questões: por que esses
livros foram, por longos anos, tão reeditados? Por que foram
importados, traduzidos e adaptados? Enfim, quais as razões de seu
reiterado sucesso?
Talvez a resposta possa ser encontrada, como sugere
Françoise Huguet (1997), na história cultural da infância e da
literatura. Daí, a importância de se ir além da crítica textual e
partir do estudo das configurações culturais nas quais se produzem
e transmitem os livros, sobretudo para compreender a lógica das
importações e traduções. Essa lógica expressa na organização
interna das Bibliotecas - coleções de livros - dos primeiros
catálogos de venda da livraria Garnier foi decisiva para a formação
e autonomia da literatura infantil e juvenil brasileira. Nosso
nacionalismo literário não esteve alheio ao movimento das trocas
culturais, como a circulação internacional, as importações,
traduções e adaptações de textos clássicos.
181
Referências

BOURDIEU, Pierre. La distanction. Critique sociale du jugement.


Les Éditions de Minuit, 1979.
Catalogues de la Librairie de B. L. Garnier, Rio de Janeiro, 1857,
1858, 1920. Bibliothèque Nacionale de France.
Catalogue. Rouen, livre et l’enfant, 1700-1900, la production
rouennaise de manuels et de livres pour l’enfance et la jeunesse.
Musée National de L’Éducation, 1993.
Catálogo de vendas da livraria de Garnier Irmãos, 1878.
Bibliothèque Nacionale de France.
Catálogo de vendas dos livros portugueses, latinos e franceses da
Casa de V. J. P. Aillaud, Guillard e Cia, 1866. Bibliothèque
Nacionale de France.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil; sua história. São
Paulo, T. A Queiroz, 1985
HÉBRARD, Jean. Como a biblioteca chegou à escola: evolução das
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HUGUET, Françoise. Les livres pour l’ enfance et la jeunesse de
Gutemberg à Guizot – les collections de la Bibliothèque de L’institut
National de Recherche Pédagogique. Avec la participation d’Isabelle
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LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. O preço da leitura.
Leis e números por detrás das letras. São Paulo, Ática, 2001.
MOLLIER, Jean-Yves. La construction du système éditorial
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2000. Sous la direction de Jacques Michon et Jean-Yves Mollier.

182
MOLLIER, Jean-Yves. Les mutations de l’espace éditorial français
du XVIIIe au XIXe siècle. In: Éditions, Éditeur (1). Actes de la
recherche en Sciences Sociales – 126 – 127 – mars, 1999.
MOLLIER, Jean-Yves. L’argent et les lettres – histoire du
capitalisme d’édition (1880-1920). Fayar, 1998.
PAINET, Elisabeth. Une histoire de l’édition à l’époque
contemporaine. XIXe – XXe siècle. Paris, Éditions du Seuil, 2004
Portraits de Libraires – La famille des Garnier. Extrait du Bulletin de
L’Association. H. C. Libraire-expert du Tribunal de la Seine. Paris,
impr. A. Fleury, 1913.

Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia, professora do


Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Ceará. Este artigo resulta
da pesquisa de seu estágio pós-doutoral em História Cultural na
École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris. E-mail:
dealeao@secrel.com.br

Recebido em: 20/11/2006


Aceito em: 15/03/2007

183
.
HISTÓRIA E ROMANCE: A IDÉIA DE HISTÓRIA
EM AS AVENTURAS DE TELÊMACO E AS
RELAÇÕES ENTRE O TEXTO HISTÓRICO E A
PROSA FICCIONAL NA PASSAGEM DOS
SÉCULOS XVII-XVIII
João Paulo Martins

Resumo
O romance moderno emerge na passagem do século XVII para o
XVIII, tornando-se nesse último um gênero literário que cai no gosto
dos leitores. Esse texto pretende analisar as relações entre a prosa
ficcional, o romance e seu aspecto realista, e a narrativa histórica
feitas nesse período; bem como a manifestação dessas relações no
romance pedagógico As Aventuras de Telêmaco de Fénelon, um dos
romances mais lidos durante todo o século XVIII. Pretende-se
também analisar a idéia de história presente neste romance e o seu
diálogo com as concepções de história no Antigo Regime.
Palavras-chave: Romance; Escrita histórica; Idéia de história.

HISTORY AND ROMANCE: THE CONCEPT OF


“HISTORY” IN “AS AVENTURAS DE TELÊMACO” AND
THYE RELATIONSHIPS BETWEEN THE HISTORICAL
TEXT AND THE FICTIONAL PROSE BETWEEN THE
XVII AND THE XVIII CENTURIES
Abstract
The novel rises in the passage of 17th to 18th century, becoming a
literary genre that captivates readers from 18th century on. This
article intends to analyse the relationships beteween fictional prose,
novel and its realistic side, and historic narrative written at that time.
It is as well intended to analyse the manifestation of these
relationships in the pedagogical novel As Aventuras de Telêmaco by
Fénelon, which is one of the novels most read throughout the 18th
century. At last, the following paper plans to enquiry the idea of
history existing in this novel and its dialogue with the conceptions of
history at the Ancien Régime.
Keywords: Novel; Historical writing; Idea of history

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 185-211, jan/abr 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
HISTORIA Y NOVELA: LA IDEA DE HISTORIA EN LAS
AVENTURAS DE TELÉMACO Y LAS RELACIONES
ENTRE EL TEXTO HISTÓRICO Y LA PROSA DE
FICCIÓN EN EL PASAJE DE LOS SIGLOS XVII-XVIII
Resumen
La novela moderna emerge en el pasaje del siglo XVII para el XVIII,
tornándose en ese último un género literario que cae en el gusto de
los lectores. Ese texto pretende analizar las relaciones entre la prosa
de ficción, la novela y su aspecto realista, y la narrativa histórica
hechas en ese período; bien como la manifestación de esas relaciones
en la novela pedagógica Las Aventuras de Telémaco de Fénelon, una
de las novelas más leídas durante todo el siglo XVIII. Se pretende
también analizar la idea de historia presente en esta novela y su
diálogo con las concepciones de historia en el Antiguo Régimen.
Palabras-clave: Novela; Escritura histórica; Idea de historia.

186
Dos romances mais lidos durante todo o século XVIII,
está, sem dúvida, As Aventuras de Telêmaco, de Fénelon. Este
romance francês alcançou em seu país de origem, pelo resto da
Europa e mesmo na América, grandes números de edições e
traduções. O fenômeno editorial das Aventuras de Telêmaco
iniciou-se em 1699 quando saiu do prelo o Suite du quatrième livre
de l'Odyssée d'Homère ou les Aventures de Télémaque (Continuação
do quarto livro da Odisséia de Homero ou as Aventuras de
Telêmaco). Essa primeira impressão, ainda incompleta, veio
anônima ao lume, entretanto, rapidamente reconheceu-se ser
Fénelon o seu autor. Devido às críticas implícitas ao governo de
Luís XIV que podiam ser vistas na obra, foi revogado o seu
privilégio editorial e tentou-se retirar de venda os volumes
restantes. Contudo, algumas semanas mais tarde, já com o texto
completo, o Telêmaco passou a ser impresso clandestinamente na
França e em alguns impressores estrangeiros. Em 1717, quando
Fénelon já estava morto, seu sobrinho, o marquês de Fénelon,
organizou a obra em 24 livros, a mesma quantidade da Ilíada e da
Odisséia e foi esta organização que atravessou mais de cem anos
de um enorme sucesso.
No mundo luso-brasileiro, a presença do romance de
Fénelon foi marcante. A primeira tradução para a língua
portuguesa é de 1765 feita pelo bacharel José Manuel Ribeiro
Pereira, a seguir vieram outras traduções1. Em 1770 saiu a
tradução do capitão Manuel de Sousa, suprindo o esgotamento da
edição anterior e defendendo que realizara uma versão mais fiel ao
texto original, pois o anterior havia feito "mais uma nova
composição do que uma versão fiel"2. A polêmica dos tradutores
continuou e, além de reedições das versões anteriores, o Telêmaco

1
CRISTOVÃO, Fernando Alves. Presença de Fénelon no Espaço Literário
Luso-Brasileiro: subsídios para um estudo. Paris: Fondation Calouste
Bulbenkian, 1983.
2
"Prólogo do tradutor" apud. Ibidem, p. p.137.

187
conheceu em 1785 uma edição anônima, da Tipografia
Rolandiana, em que o editor defende que o texto do capitão
Manuel de Sousa, pretendendo ser fiel, acaba por utilizar-se
demasiadamente de termos antiquados e a deixar-se "arrastar por
uma louca vaidade e capricho de ostentar muito boa lição
portuguesa". Essa nova edição aproveita-se do texto anterior,
entretanto, utiliza-se de novos caracteres tipográficos e faz
emendas no texto de maneira a torná-lo mais acessível ao leitor3.
Finalizando a enorme importância e influência do
romance de Fénelon, vale ressaltar o surgimento de vários outros
romances diretamente influenciados pelo Telêmaco, textos que
imitavam o modelo ficcional de Fénelon, mantendo algumas de
suas máximas, mas criando novas soluções, dependendo de seus
objetivos e do seu ambiente de concepção. Exemplo desses
"romances de imitação" é Il Platone in Italia, de Vicente Cuoco,
que teve por objetivo dar a conhecer a filosofia pitagórica e a Itália.
O principal representante, no universo luso-brasileiro, são as
Aventuras de Diófanes, da escritora luso-brasileira Teresa
Margarida da Silva Horta; seu texto foi inicialmente chamado
Máximas de Virtude e Formosura, mas a narrativa teve seu título
definitivo como Aventuras de Diófanes, Imitando o Sapientíssimo
Fénelon na sua Viagem de Telémaco4, em que não deixa dúvidas
acerca de sua matriz literária. Teresa Margarida segue o modelo
francês em vários aspectos, como a dinâmica dos personagens e a
ambientação espaço-temporal da narrativa, entretanto propõe
reflexões originais, mais diretamente ligadas ao contexto
português, e uma inovadora visão acerca dos direitos e papéis da
mulher dentro da sociedade.

3
CRISTOVÃO, Fernando Alves, op. cit., p.136-139.
4
Aventuras de Diófanes, Imitando o Sapientíssimo Fénelon na sua Viagem de
Telêmaco, por Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, Lisboa, Régia Oficina
Tipográfica, 1777.

188
A presença das Aventuras de Telêmaco na América
portuguesa também foi impressionante. Fénelon conseguiu ser o
autor de Belas Letras mais lido, ou pelos menos cujo livro fora
mais requisitado, durante várias décadas no Brasil colonial.
Analisando as obras de Belas Letras que tinham por destino o Rio
de Janeiro, mediante os pedidos dos cariocas à Real Mesa
Censória, Márcia Abreu encontrou, entre 1769 e 1807, 38
pedidos para o romance francês entre versões originais, traduções e
adaptações; já no período de 1808 a 1826, o Telêmaco recebeu 65
solicitações. Em ambos os períodos, foi disparadamente a obra
mais solicitada. Vale lembrar que esses pedidos com destino ao Rio
de Janeiro foram, em vários casos, realizados por livreiros que, em
apenas uma solicitação, faziam remeter para o Brasil vários
exemplares da obra e, por vezes, a comerciavam com outros pontos
do país5. Les Aventures de Télémaque foi o romance de maior
presença na circulação legal de livros entre, de um lado, Portugal
e, de outro, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, entre 1769 e
1800, e Brasil, entre 1769 e 1821. Les Aventures de Telemaque,
ainda, em versões em francês, português e espanhol, achava-se em
ao menos 10 das 53 remessas de livros, realizadas por livreiros e
donos de bibliotecas, sob o crivo da censura, saindo de vários
portos do Brasil para Portugal, entre 1769 e 18216.
As Aventuras de Telêmaco foi a obra pela qual Fénelon
ficou particularmente conhecido. A narrativa se passa contando os
caminhos e descaminhos percorridos por Telêmaco em busca de
seu pai, Ulisses, que, mesmo após a vitória dos gregos contra
Tróia, não retorna à Ítaca, cidade grega da qual é o rei. Estando

5
ABREU, Márcia Os Caminhos dos Livros. Campinas: Mercado de Letras; São
Paulo: Fapesp, 2003.
6
VILLALTA, Luiz Carlos. Os Romances e os Livros de Belas Letras na
Circulação livreira entre Portugal e as Capitanias Setentrionais da América
Portuguesa (1769-1821): alguns aspectos quantitativos. I Colóquio
Internacional de História do Livro e da Leitura do Ceará [Comunicação],
realizado de 29 a 30 de maio de 2004, p. 15.

189
Penélope, mulher de Ulisses, pressionada constantemente por
vários outros nobres de Ítaca a receber um novo esposo, para dar
assim um novo rei à cidade, seu filho parte em busca do pai pelos
mares gregos como forma de garantir a honra da rainha e
restabelecer a ordem e o bom governo na cidade. Telêmaco segue,
então, juntamente com o seu tutor, Mentor (na verdade a deusa
Minerva travestida em um velho), na busca de seu pai. Após passar
Pilos, onde se encontrou com Nestor, e pela Lacedemônia, onde
fora recebido por Menelau, dois reis que juntamente com Ulisses
haviam lutado no cerco de Tróia e dos quais não obteve nenhuma
informação concreta sobre o paradeiro de seu pai, Telêmaco decide
partir para a Sicília, para onde havia suspeitas de que seu pai
tivesse sido enviado pelos ventos. A partir de então, Telêmaco
passa por várias regiões e situações por vezes hostis e, em outros
momentos, favoráveis à sua presença.
O enredo do romance é estruturado de maneira a
aproveitar-se das viagens de Telêmaco para se ensinarem noções de
geografia das localidades pelas quais se passava, sobre os recursos
naturais existentes e a forma pela qual eram utilizados (ou de
melhor se fazer uso deles); traz também uma descrição de
costumes diferentes, das formas de governo e das práticas
religiosas de cada lugar pelo qual se passava ou do qual se falava
em algum diálogo. Dessa forma, Fénelon aproveitava-se da
narrativa para dar a seu pupilo noções da cultura clássica,
geografia, história e, principalmente, oferecer ao futuro soberano
de França uma formação moral e política de acordo com os
princípios nos quais acreditava o arcebispo de Cambrai. A negação
de praticamente todos esses princípios constituía-se pelo governo
praticado por Luís XIV.
A estruturação do romance na forma de uma narrativa
de viagens coincide com um tipo de literatura que se tornou muito
popular e lida na Europa na segunda metade do século XVII, a
literatura de viagens.

190
Gênero literário de fronteiras indecisas, cômodo porque
nele tudo se podia versar; dissertações eruditas, catálogos
de museus ou histórias de amor, a Viagem triunfava.
Podia ser uma relação pesadona, toda repleta de ciência;
ou um estudo psicológico; um romance puro; ou então
tudo ao mesmo tempo. Uns criticavam-na, outros
elogiavam-na; mas elogios e críticas, tudo mostrava o
lugar importante que tinha alcançado e como já se não
podia dispensar7.

Dessa forma, utilizando-se do formato de literatura de


viagens, produziram-se várias obras que pretendiam narrar uma
viagem real a lugares exóticos para o padrão da Europa Ocidental
no momento, como o norte europeu, os reinos orientais ou as
comunidades indígenas nas Américas. Tais livros se tornaram
obras que supriam a necessidade de informação demandada pelo
público europeu acerca dos diferentes costumes, religiões, modelos
políticos e sobre a geografia e natureza do local descrito.
Entretanto, mesmo nestes textos supostamente "reais" ou que pelo
menos assim se apresentavam, percebe-se que o artifício muitas
vezes utilizado era o de promover analogias entre as localidades
descritas e o panorama europeu contemporâneo e se exercer dessa
forma uma crítica às ortodoxias políticas e religiosas que
pretendiam ser únicas na Europa:

É perfeitamente exacto afirmar que todas as idéias vitais,


a de liberdade, a de justiça, foram repostas em discussão
pelo exemplo do longínquo. Primeiro, porque em vez de
reduzir facilmente as diferenças a um arquétipo universal,
se verificou a existência do particular, do irredutível, do
individual. Depois, porque às opiniões aceites se podiam
opor os fatos da experiência, postos sem custo ao alcance
dos pensadores. Às provas de que se tinha necessidade
quando se queria contradizer tal ou tal dogma, tal ou tal
crença cristã, e que era preciso procurar incomodamente

7
HAZARD, Paul. Crise da Consciência Européia. Trad. Óscar de Freitas
Lopes. Lisboa: Edições Cosmos, 1971,p.18.

191
nas reservas da antiguidade, vieram juntar-se provas
novas, frescas e brilhantes: ei-las trazidas pelos viajantes,
ao alcance da mão.8

Assim, dentro de uma obra desse tipo nunca se poderia


pretender que a descrição feita pelo autor fosse ingênua. Os
exemplos políticos dos lugares longínquos visavam
deliberadamente realizar uma crítica principalmente às
monarquias européias, em especial à sua vertente absolutista; da
mesma forma, os costumes religiosos de orientais ou outros povos
eram confrontados com o dogmatismo católico, mostrando-se ser
uma religião mais pura, sem ritualismo e, principalmente, sem
padres ou representantes que pudessem ser perniciosos à mais pura
piedade9.
O gênero popularizou-se de tal forma que abundaram
obras que afirmavam ser, por exemplo, fruto de um diário de
viagens de algum navegante a qualquer lugar imaginário. Assim, a
ficção procurava manter um laço com a realidade, dando ao leitor
ao menos a dúvida se os excêntricos costumes eram reais ou não.
Observa-se, portanto, uma quase indiferenciação entre as
narrativas oriundas de viagens reais e aquelas totalmente
imaginárias quanto à situação de, aos olhos dos leitores, estarem
narrando fatos e costumes reais ou não. As primeiras recebiam da
mão de seu autor um toque ficcional, seja para realizar a crítica
que dissemos, seja para provocar um maior interesse no leitor ao
relatar anedotas da terra distante que, às vezes, eram claramente
irreais.
A literatura de viagens constituiu-se, então, num gênero
vago, oscilando entre a pura ficção e aqueles que pretendiam fazer
um fiel relato de diferentes culturas que habitam o planeta. O que
é inegável foi a disseminação, através desses livros, de princípios
como a relativização dos conceitos europeus. Sendo reais ou não,

8
Ibidem, p. 20.
9
Ibidem, loc. cit.

192
os reis longínquos demonstravam ter uma sabedoria muito maior
que os europeus, os diferentes conhecimentos em várias áreas
mostravam-se ser mais eficientes, ou seja, os dogmas, em todas as
suas formas, enfraqueciam-se e a estática consciência européia
recebera um choque por meio do confronto com diferentes
culturas.
No romance que é nosso objeto nesse estudo não existe,
claro, essa pretensão de que a história narrada seja verídica, sua
prosa é ambientada no mundo grego da Antiguidade, e com as
referências mitológicas comuns à literatura antiga. Entretanto, a
crítica que empreende aos costumes, à política e à religião é da
mesma espécie que o modelo das literaturas de viagens
proporcionavam, bem como a modernidade de suas idéias é
também consoante com muitas daquelas professadas pela
"intelectualidade" do período. Como se verá mais à frente, Fénelon
faz uso da ficção não só para instruir o seu pupilo, mas também
para, nessa instrução, realizar de uma forma alegórica, uma crítica
daqueles costumes que considerava perniciosos e apresentar as suas
soluções. Essa é uma das características que permite classificar As
Aventuras de Telêmaco no número daquelas obras que inauguram o
romance moderno, a saber, uma linguagem referencial ligando as
idéias professadas e a realidade vivida. Ao contrário da prosa
ficcional anterior ao romance moderno (novel), identificada como
romanesco, em que os elementos mágicos ou imaginários seguiam
um esquema já estabelecido e tinham por objetivo principal o
entretenimento do leitor, não se fazendo necessária a menor
ligação entre lugares, situações, acontecimentos ou idéias e o
contexto histórico, o romance moderno, em casos como o de As
Aventuras de Telêmaco, faz uso desses artifícios imaginários ou
fantásticos, incorporando-os numa literatura que carrega idéias
modernas dialogando com o contexto histórico e, ao mesmo
tempo, afeitas ao gosto dos leitores que apreciavam tais elementos

193
na literatura10. Não se pode esquecer também das escolhas feitas
pelo autor, pois Fénelon, como é sabido, foi um grande
conhecedor e apreciador da Antigüidade, não sendo casual a sua
escolha por essa época na ambientação de sua obra.
A moral constantemente explicitada no texto pelas falas
dos personagens ou mesmo colocada em ação pelo enredo da
narrativa era um dos aspectos que Fénelon pretendia que fossem
apreendidos da leitura de sua obra. As idéias veiculadas no
romance tinham implicações políticas e religiosas também.
Fénelon acreditava na pedagogia como meio de formar novos
cidadãos e novos governantes, promovendo assim uma reforma
total da sociedade em que vivia; e, especificando seus métodos, a
literatura seria um excelente instrumento pedagógico. Na verdade,
a preocupação com a educação no período não era específica de
Fénelon. A crise provocada nas mentes européias devido ao
conflito que se acentuava entre diferentes concepções, tradicionais
e modernas, como o choque das posturas religiosa e laica, a
tentativa dos monarcas de reafirmarem os deveres dos súditos
enquanto estes reivindicavam novos direitos, os valores do
sobrenatural a fincar o pé contra o avanço daqueles do quotidiano,
do homem mundano por excelência11. Dentro dessas tendências
opostas, existiam, é claro, meandros em que os homens podiam se
posicionar, e a educação tornava-se prioridade no objetivo de
manter os valores e quadros tradicionais ou tentar substituí-los.
Pretende-se, então, mediante a análise das idéias
contidas em As Aventuras de Telêmaco12 verificar o diálogo de

10
VASCONCELOS, Sandra G. T. A formação do romance inglês: ensaios
teóricos, Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2000, p.80.
11
HAZARD, Paul, op. cit.
12
Usei para este estudo a tradução portuguesa de 1785. Todas as citações serão
referentes a essa edição: Aventuras de Telêmaco, Filho de Ulisses, por Francisco
de Salignac da Motha Fénelon, Arcebispo, e Duque de Cambraia, &c.
Traduzidas do Francez em Portuguez com hum discurso sobre a Poesia Épica, e

194
Fénelon com essas conflituosas idéias que vicejavam no período,
particularmente suas idéias sobre a história.
A classificação bibliográfica entre finais do século XVII
e XVIII dividia as obras em cinco categorias maiores: teologia e
religião, direito e jurisprudência, história, ciências e artes, e belas-
letras13. Dentro dessa classificação, ideal como todas, havia aquelas
obras que oscilavam entre uma categoria e outra. A literatura de
viagens se situaria na categoria maior "história", entretanto os
romances caberiam às "belas-letras". As Aventuras de Telêmaco se
situa, nesse esquema, no âmbito das belas-letras, mas a colocação
das "viagens" no campo da história merece um comentário. A
história reunia tudo aquilo que se relacionava com o saber nas
sociedades humanas em que "reina sobre o conjunto, com a sua
divisão canônica, história sagrada-história profana, a
preponderância cultural da Antiguidade, o modelo de narrativa
moral à Tito Lívio"14, e possuía como subgêneros a cronologia, a
diplomática e "o inventário do espaço – aquilo que não é ainda a
geografia, mas as ‘viagens’"15. Assim, as "viagens" serviam como
fonte de informação daquele espaço que não era europeu,
freqüentemente identificado como "selvagem" e que servia como
uma comprovação contemporânea da "infância do homem". Essas
idéias se desenvolveram melhor no século XVIII, existindo uma
corrente de pensamento que, explicando a história dos homens
(europeus) de um ponto de vista evolucionista, relegaria estes
"selvagens" não-europeus a um estatuto inferior; por não terem
evoluído, principalmente a sua razão, não teriam uma história,
permaneciam no patamar primeiro do estágio humano.

Excellencia do Poema de Telêmaco, e Notas Geograficas, e Mythologicas para


intelligencia do mesmo Poema. Lisboa, NA TYPOGRAFIA ROLLANDIANA.
1785. Com licença da Real Meza Censoria.
13
FURET, François. A "Livraria"do Reino de França no século XVIII. In: A
Oficina da História. Lisboa: Gradiva, 1986, p.137-173
14
FURET, François. O nascimento da história. In: op. cit. p.115.
15
Ibidem, p.115.

195
A literatura que se pode chamar propriamente de história
dita passava então por um momento de extrema desconfiança
quanto ao conhecimento por ela produzido. Os escritores de obras
de história, desde finais do século XVII, eram constantemente
identificados como bajuladores e mentirosos, pois seus livros
visavam antes de tudo a agradar ao soberano para o qual
trabalhavam, enaltecendo os feitos do monarca, principalmente os
feitos guerreiros e, no mais, não passariam de crônicas relatando
algumas anedotas da corte16. A crítica textual, o método de análise
de fontes ou a erudição que traria à história um estatuto melhor
no campo do conhecimento já se desenvolvia desde meados do
século XVII, entretanto os seus avanços e descobertas não foram
nesse momento incorporados pelos historiógrafos, que estavam
muito mais preocupados com o aspecto textual de suas obras que
com uma "certeza" ou comprovação empírica daquele
conhecimento que produziam. Essas novidades advindas das
técnicas da erudição, com efeito, estavam, sobretudo em contradição
com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não
passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo de
Tito Lívio ou de Tácito17. O texto histórico era encarado e
concebido, então, sobretudo como uma obra de arte: mais vale
empregar o tempo na composição e arranjo dos factos da história que
procurá-los; mais vale também pensar na beleza, na força, na nitidez e
na brevidade do estilo, do que parecer infalível em tudo o que se
escreve18.
Assim, a matéria da história constituía-se
principalmente de narrativas de guerras e exaltação de discursos

16
FURET, François, op. cit., p.109-135; GUSDORF, Georges. La
Connaisssance Historique. In: L’avènement des sciences humaines au siècle des
lumières. Paris: Payot, 1973, p.371-428; e HAZARD, Paul. op. cit, p.33-49.
17
FURET, François, op. cit., p.115.
18
VARILLAS. Histoire de François I, 1684, apud HAZARD, Paul. op. cit,
p.35.

196
proferidos por aqueles grandes homens que se queriam agradar
com o texto. A narrativa histórica constituía-se de um drama,
uma encenação em que desfilavam heróis, vilões, conjurações etc.
Desta forma, percebe-se quão tênue era, na época, a linha que
dividiria o texto histórico de uma literatura beletrística.
Encontrar-se-á novamente essa aproximação se
pensarmos em quais seriam os objetivos desses textos quanto aos
seus leitores, quanto à formação que se esperava conseguir
mediante a sua leitura. Os historiógrafos tinham clara percepção a
esse respeito, pois entendiam que "a história é uma escola de moral,
um tribunal soberano, um teatro para os bons príncipes, um cadafalso
para os maus. Ensina a conhecer os caracteres, porque é ‘uma
anatomia das acções humanas’"19.
Como já víamos dizendo, o método pedagógico da obra
de Fénelon valia-se também do uso de exemplos e situações vividos
pelos personagens de seu romance, uma forma de se colocar em
ação a moral ou os preceitos que pretendia que fossem
apreendidos. Para esse objetivo, o romance parecia, na opinião de
vários autores, mais efetivo que a história, pois permitiria que
fossem abordadas várias situações da vida do personagem, tanto as
virtuosas como as viciosas, enquanto a história narraria apenas os
fatos maiores e gerais ou seria freqüentemente o louvor de um
herói (rei). Por esta maneira escolhida para se desenvolver a
educação do leitor, pode-se começar a definir uma concepção de
história subjacente ao romance do arcebispo de Cambrai. O tutor
de Telêmaco, Mentor (que na verdade era a deusa da sabedoria,
Minerva, protetora da cidade de Ítaca e do sábio Ulisses) se
aproveita dos vários exemplos de vidas individuais e dos governos
de cada uma das cidades pelas quais os dois passam à procura de
Ulisses ou mesmo por alguma fatalidade, para deles tirar
ensinamentos úteis à formação do jovem como um futuro
governante ou mesmo para a sua vida como homem. Assim, a

19
HAZARD, Paul. op. cit., p. 35. (Itálico meu).

197
experiência humana é posteriormente sintetizada em palavras
servindo como preceitos úteis à vida. Essa forma de se utilizar a
experiência humana no tempo, a história, não difere da fórmula
tradicional à época: da história mestra da vida, como foi descrito
anteriormente. Existe também uma outra forma, no romance, de
se unir conhecimento e a experiência humana. Desde o início de
suas aventuras Telêmaco já tem conhecimento de vários preceitos
defendidos por Mentor para se realizar um bom governo e que
esses seriam regras que deveria seguir quando subisse ao trono de
Ítaca. Dentre estes, de um lado, o combate ao fausto, ao luxo, à
ociosidade e, de outro, a valorização da vida rural e da agricultura,
o estabelecimento de relações pacíficas com os Estados vizinhos e,
ainda, outros, que serão melhor analisados à frente. Tais preceitos
são testados durante toda a narrativa em que invariavelmente se
prova o sucesso dos governos quando eram seguidos, e o fracasso
dos soberanos e de seus Estados, quando eram contrariados. O
sábio Mentor reformou a cidade de Salento orientando o seu rei
Idomeneo, que a vinha governando de maneira inadequada. Nessa
reforma, utilizou-se daquelas normas que defendia e obteve grande
sucesso; ao final, Mentor declarou que o bem que realizara tinha
sido menos pelo sentimento a Idomeneo e à sua cidade que para
mostrar a Telêmaco que o governo por ele idealizado sempre
alcançaria sucesso.
Com o intuito de pulverizar com a idéia de otimismo
defendida por alguns pensadores em sua época, Voltaire utiliza um
artifício semelhante em seu romance Cândido. Nessa narrativa,
Cândido aprendera, com seu amigo e filósofo Panglos, o
pensamento otimista que defendia que este era o melhor dos
mundos possíveis. Cândido confiou plenamente nessa doutrina
enquanto viveu no castelo da Vestfália e, a partir do momento que
foi expulso dessa morada, seus infortúnios com o mundo e com os
homens concorreram para provar-lhe, por meio de sua experiência
própria, que tal doutrina era falha. Nesta obra, então, Voltaire vê
a experiência humana como o meio de se comprovar ou não uma
idéia previamente aceite ou concebida, ou seja, a afirmação de uma
198
verdade não pode subsistir apenas no plano ideal. Ela deve ser
"testada" para ter sua comprovação ou não. No caso das idéias
políticas ou filosóficas, o laboratório de testes é a história. Em
Cândido, a colocação da filosofia otimista sob comprovação teve
uma resposta negativa. Percebe-se, então, que, nesse sentido, a
construção de um conhecimento acerca da vida e dos homens em
Telêmaco obedece ao mesmo esquema que seria seguido depois por
Voltaire, entretanto, a colocação das idéias de Mentor sob o crivo
histórico obteve uma resposta positiva tanto nos governos já
constituídos (passado), como na reforma de Salento,
contemporânea à narrativa (presente).
Porém, a capacidade de ação do homem na história
possui o seu contraponto, ou o seu limite. O arcebispo de Cambrai
não possuía uma perspectiva laicizada da história, com o homem
totalmente responsável pelo curso da vida, apesar da liberdade de
ação a ele conferida, como se pôde perceber. Fénelon era amigo de
um dos principais pensadores franceses do Antigo Regime, Jacques
Bossuet, fora inclusive seu protegido até a querela teológica em
que os dois se envolveram em 1697. Além de importante obra
política, Bossuet escreveu também, no campo da história, o
Discurso sobre a História Universal (1681), no qual exibe o seu
pensamento sobre a história. Nesta obra, a história "universal"
resume-se ao Mediterrâneo, pois é aí que se passa a trajetória
judeu-cristã. Para ele, a trajetória humana não passa da realização
das profecias bíblicas, os homens não se explicam por si só, porém
se tornam compreensíveis em função da predestinação divina, tudo
concorre de forma que a profecia judeu-cristã se realize20.
A posição de Fénelon é menos dogmática, porém, não
exclui a ação divina na história. Em As Aventuras de Telêmaco,
Deus apareceria, no início criando e iluminando a todos os
homens com a razão, como se pode ver a seguir:

20
LOPES, Marcos A. Voltaire Historiador: uma introdução ao pensamento
histórico na época do iluminismo. Campinas: Papirus, 2001; e GUSDORF,
Georges. op. cit.

199
Conversou depois disso com Mentor a cerca da Primeira
Potencia, que creou o Ceo, e a terra; daquella luz infinita
que se communica a todos sem dividir-se; daquella
verdade soberana, e universal, que illustra a todos os
espíritos, qual Sol que allumia a todos os corpos. (...)
verdadeiramente homens só saõ sobre a terra aquelles que
consultaõ, que amaõ, e que seguem esta eterna razão.21

Deus aparece, então, como uma Primeira Potência


criadora que, além da vida, deu aos homens a luz da razão para
que estes possam sempre agir com correção. É importante
ressaltar-se que o principal valor defendido na obra é a sabedoria,
vista mesmo pela deusa Minerva que orienta o protagonista na
trama, e a relação estabelecida é que sabedoria corresponde ao uso
da razão, e este seria o caminho ideal para todo homem.
Entretanto, esse não é o caminho seguido por todos, pois sempre
existiria aquele

(...) que nunca vio esta luz pura, he cégo, como os cégos
de nascimento, passa a vida em profundas trevas (...).
Assim saõ aquelles homens, a que arrastra o deleite dos
sentidos, e encantos da fantasia (...).22

Assim, percebe-se que há uma autonomia humana na


escolha entre a prática do bem ou do mal, e não uma pré-
determinação. Essa autonomia deve ser aceita mesmo como
condição pedagógica, de acordo com o proposto pelo romance, pois
não haveria sentido em se pretender ensinar ou reformar os
costumes humanos caso se acreditasse que a conduta positiva ou
negativa estivesse já divinamente escolhida para cada um. O
seguimento da reta conduta pelo homem faz com que ele seja livre

21
Aventuras de Telêmaco, p.108.
22
Ibidem, p.108.

200
em qualquer situação, o homem verdadeiramente livre, he aquelle, que
desabafado de sustos, e desejos, só se sujeita aos Deuses, e à razão23.
O homem teria a vida boa e livre então mediante as suas
escolhas e condutas e, assim agindo corretamente, teria os "deuses"
a seu favor. A garantia de sucesso dos homens que agem com
acerto é dada por Deus. Da mesma forma, aquele que tem uma
conduta viciosa, almejando os prazeres sensuais, o deleite e
incorrendo em crimes, terá suas punições ainda em vida. O Deus
onipresente faria com que tais criminosos se cruzassem utilizando-
se deles próprios para castigá-los e fazer justiça. Nesse sentido,
apesar daquela primeira liberdade humana de ação, a determinação
última da ordem e dos destinos humanos permanece ligada a
Deus. Essa idéia transparece no romance, mediante aqueles
personagens bons, "favorecidos dos céus", aos quais os deuses não
permitem que sejam acometidos por desgraças. O principal, claro,
é Telêmaco, diretamente guardado por Minerva. Os mesmos maus
reis, enquanto subsistem, só são admitidos pelos deuses pelo
castigo que estes pretendem dar aos homens.
A tendência do pensamento acerca do curso dos homens
e dos desígnios que estes teriam em suas vidas, desde fins do século
XVII e durante o século XVIII, foi de cada vez mais afastar da
história as determinações metafísicas. A história se anuncia e se
realiza nos confrontos e relações humanos24. Entretanto, esse
processo não se deu como em uma linha contínua de
esclarecimento. Fénelon está imerso nesse processo que só pode
ser compreendido analisando-se as discussões provocadas por tal
tema, os avanços e recuos, as várias perspectivas que foram
abordadas no tempo na tentativa de se entender a posição e a
relação do homem no mundo e com o metafísico.
Fénelon não aceitou a posição de Malebranche que
tentara unir o pensamento cristão ao cartesiano. A solução

23
Ibidem, p.123.
24
GUSDORF, Georges. op. cit; e CASSIRER, Ernst.. op. cit.

201
encontrada por Malebranche foi de identificar a ação de Deus no
mundo apenas por medidas gerais, racionais, naturais e eternas.
Dessa forma, Deus teria feito a sua grande obra no momento da
Criação e dando à natureza uma dinâmica racional de ação. Deus
não seria a Suprema Sabedoria se interviesse em sua obra, cuja
perfeição é a ordem, em todo o momento; seria sábio, então, deixar
a natureza agir conforme a ordem divinamente estabelecida, e
permitir que os homens tomassem consciência da verdade e do
pecado sem a Sua interferência. A única causa ocasional
estabelecida por Deus foi Jesus Cristo. Percebe-se, aqui, o esforço
de Malebranche em se entender o curso dos homens de uma forma
mais natural e racional, sem, no entanto, excluir Deus25.
Entretanto, para Fénelon, essa solução não dá a Deus toda a
dimensão de sua importância na história. Para o nosso autor,
Malebranche teria submetido a fé à filosofia, pois, segundo esta
doutrina, por amor à sua Sabedoria, Deus deixaria ocorrer a livre
condenação de todos os homens, já que não agiria
"ocasionalmente" ou "particularmente"26.
Essa posição de Fénelon pode ser comprovada em seu
romance. Para garantir uma justa ordem entre os homens na
terra, para não permitir que os bons tenham um destino infeliz
por obra dos maus, Deus – ou no caso os deuses, devido à
ambientação mitológica dada à narrativa –, agem diretamente na
realidade material. O episódio da vitória de Telêmaco contra o
ímpio rei Adrasto mostra bem isso, pois as artimanhas traiçoeiras
deste derrotariam o filho de Ulisses caso Júpiter não agisse em seu
favor. Entretanto, Fénelon não faz disso uma banalidade, como se
os deuses corriqueiramente agissem na realidade humana segundo
seus caprichos, tais ocasiões aparecem como situações especiais;
num plano geral, os homens são livres e responsáveis por seus
atos, e os episódios narrados são bastante naturais. A ação divina

25
HAZARD, Paul. op. cit. p.109-115.
26
Ibidem, loc. cit.

202
na realidade material aparece mais como uma forma de
demonstrar a potência de Deus; o "maravilhoso" existente na obra
mostra a ação divina realizando grandes acontecimentos.
Pretende-se, assim, unir o verossímil ao maravilhoso e, com isso,
ensinar que mesmo os homens mais valentes de nada valem sem os
Deuses. O homem não pode nada sem a sabedoria divina.
A relação, portanto, entre Deus e a história humana
aparece como um plano divino pelo melhor, de forma que a
liberdade humana, concedida por Deus, permite os vícios dos
homens e suas ações ímpias e injustas. A ordem justa é, no
entanto, salvaguardada por Deus. Fénelon quer dar, então, a Deus
um papel na história maior que o pretendido por Malebranche,
sem chegar no total pré-estabelecimento de Bossuet. Deus é, em
Fénelon, mais que a Primeira Potência, ou Primeira Sabedoria,
que depois de sua grande obra afasta-se totalmente da história: Ele
é onipresente e pode agir entre os homens, mas o destino destes,
individual e coletivamente, depende de si próprios, ou seja, os
caminhos e sucessos de cada um e da humanidade não estão
predeterminados, como em Bossuet, pela Revelação bíblica.
O homem é responsável por seu sucesso presente e pela
construção de uma sociedade melhor no futuro. Com efeito, no
romance há uma visão negativa da sociedade e de seu momento
histórico: Estamos por tal modo estragados, que mal podemos crer
que simplicidade taõ natural possa ser verdadeira27. É claro que esta,
assim como outras afirmações de repugnância aos costumes
contemporâneos, feita na ficção, refere-se ao tempo reconstituído
pela narrativa. Entretanto, acredito que se pode fazer uma
correlação dos tempos entre a sociedade ficcional narrada e aquela
em que Fénelon produziu sua obra. Como foi dito anteriormente,
o artifício alegórico no romance permite que se use uma situação
ficcional, mesmo "maravilhosa" ou "fantástica", para se fazer
referências e críticas ao seu tempo. É importante que fique

27
Aventuras de Telêmaco, p.181.

203
definida esta idéia para que possamos desenvolver um próximo
aspecto acerca da idéia de história em As Aventuras de Telêmaco, a
saber: o curso do tempo histórico.
A começar pelo tempo presente, viu-se que a perspectiva
é de uma corrupção ou "estrago" dos costumes. Se o momento
atual está "estragado", a idéia subjacente é que houve um
momento, no passado, em que os costumes eram sadios. Vendo
essa situação pelos olhos da mitologia greco-romana, a ficção de
Fénelon localiza tal passado na Idade de Ouro. Na mitologia, a
Idade de Ouro remete a um passado em que reinava Saturno. Este
fora um tempo de paz e felicidade completas, havia justiça e todos
os homens viviam em comum, em perfeita harmonia, e a terra,
mesmo sem ser amanhada produzia todo o necessário para os
homens. No romance, há a descrição da cidade da Bética, a mais
harmoniosa, e com a sociedade mais virtuosa existente:

quando começámos a commerciar com estes Póvos (os


béticos), vimos que faziaõ do ouro, e prata o mesmo uso,
que do ferro, por exemplo, para as relhas dos arados;
porque como naõ mercadejavaõ com Naçaõ alguma, era-
lhes escusado ter moeda. Quasi todos saõ lavradores, ou
Pastores, e há poucos Artífices, pois só querem aquellas
Artes, que servem para as verdadeiras precisões;e até a
maior parte dos homens neste Paiz, posto que dados a
Agricultura, ou guarda de rebanhos, não deixaõ de
praticar as Artes, de que necessita o seu gênero de vida
28
simples e frugal .

A Bética foi uma província romana situada na


Andaluzia; dentre outras coisas, sua localização permitiu "com que
neste Paiz se tem conservado todas as delicias da idade de ouro"29.
O passado mítico e idealizado dos antigos é retomado no
romance, colocando-se, porém, nessa época de ouro, aqueles

28
Ibidem, p.174-5.
29
Ibidem, p.174. (Itálico meu)

204
atributos que para Fénelon seriam constitutivos de um passado
melhor, mas que fora perdido. O principal fato que faz com que
todos os costumes da Bética tivessem conservado a sua pureza do
passado e não fossem estragados no curso da história foi o seu
desapego às artes supérfluas, cultivando apenas as úteis à produção
dos bens necessários à vida:

Os homens, além da agricultura das terras, e guarda dos


rebanhos, não se daõ a outro officio mais que o de
Carpinteiro, e Ferreiro, e até pouco uso fazem do ferro,
senaõ he para os instrumentos da lavoura. Saõ-lhe inúteis
todas as Artes, que dizem respeito à Arquitectura, pois
nunca edificam casas, e dizem que he desmesurado apego
à terra fazer nella morada, que dure muito mais que nós,
e que sóbra abrigar-se cada qual nas inclemencias do ar.
Abominaõ todas as Artes taõ prezadas dos Gregos, e
Egypcios, e mais Nações policiadas, como invenções da
vaidade, e affeminaçaõ30.

As artes de "gregos e egípcios", soberbos edifícios, móveis


de ouro, e prata, (...) sedas bordadas, jóias, aromas exquisitos,
guizados delicados, e instrumentos, cuja harmonia encanta31, são
cultivadas por povos que perderam a harmonia com a natureza,
efeminaram-se e já não podem conviver solidariamente uns com os
outros.

Esses Póvos saõ bem desgraçados, por ter empregado


tanta fadiga, e industria em damnar-se a si proprios. Esse
superfluo enerva, desacorda, e atormenta aos mesmos,
que o desfructaõ. Serve de accender, naquelles que o naõ
tem, desejos de adquirllo com injustiça, e violencia.
Merece por ventura o nome de bem, o superfluo, que só
serve de estragar os homens? Por ventura os homens
desses paízes saõ mais sadios, e robustos que nós (os
béticos), mais unidos entre si? Passaõ a vida com mais

30
Ibidem, p.175.
31
Ibidem, p.175.

205
liberdade, socego, e alegria? Naõ, antes pelo contrario,
haõ de ser ciosos huns dos outros, e huma vil, e negra
inveja lhes há de consumir as entranhas: a ambiçaõ, e o
temor, e a avareza sempre os inquieta, e saõ incapazes dos
prazeres puros, e simples, como escravos que saõ de
tantas precisões fantásticas, de que põem em dependência
a sua dita, e ventura32.

A Bética aparece, no romance, como um "país" que


conservara as características do passado, evitando aquilo que
provocara a corrupção dos costumes em outras partes. Assim, a
referência à Bética torna-se uma menção a um passado bastante
longínquo, e a idealização desse passado responde às demandas do
presente de Fénelon. Se podemos ler os bons governos descritos
no romance como um contraponto aos defeitos dos governos de
sua época, especialmente o governo francês, a Bética é o
contraponto, remetendo a um espaço-tempo no qual se verificava
que os costumes nem sempre foram como se apresentavam à época
de Fénelon. A leitura feita desse passado é especificamente datada,
a questão que se quer levantar com esse repúdio às artes, roupas de
sedas bordadas, arquitetura suntuosa e móveis de ouro é cara ao
Antigo Regime, à distinção entre o ser e o parecer. Para Fénelon,
as artes são a causa de tal distinção. O desenvolvimento delas fez
com que os homens se preocupassem em ter e exibir roupas,
guisados e outros supérfluos que constituiriam o parecer. Esta
aparência, como se viu, é extremamente negativa, pois torna os
homens invejosos, temerosos e ciosos uns dos outros. É
importante perceber que a leitura feita do passado responde a uma
questão contemporânea a Fénelon e que o uso desse passado serve
para mostrar uma época melhor em que os costumes "atuais" ainda
não existiam.
As causas que fizeram com que a Bética "parasse no
tempo" são de duas ordens. A primeira é geográfica, sua posição
tornava difícil que os outros povos (corrompidos) chegassem a este

32
Ibidem, p.175-6.

206
país e que os seus homens constantemente saíssem para conhecer
estas gentes. Apesar desse intercâmbio não ser freqüente, os
béticos sabiam como se portavam os outros povos, assim, a
principal razão para que conservassem tão saudáveis costumes era
a sua sabedoria. Esta sociedade constituía-se de homens em que
não se via outra distinçaõ, mais do que aquela, que nasce da
experiencia dos Anciãos sisudos, ou da extraordinaria sisudeza de
alguns mancebos, que hombreaõ com os velhos consummados na
virtude33. Os seus costumes e governo seriam bons porque seguiam
a sabedoria, mas não eram sábios pela graça divina, e sim pelo
empenho e estudo próprios: "desta maneira, he que se explicaõ estes
homens sábios, que aprendêraõ a sello, estudando".34
Ora, apesar de constituírem uma sociedade que pertencia
ao passado da humanidade, os béticos não eram assim porque
seriam rústicos ou porque não conheciam os "avanços" das
civilidades de outras praças. Pelo contrário, eles os conheciam e os
utilizavam quando úteis e não para se produzir luxos
desnecessários. Isso fez com que conservem no presente as
benesses passadas e tenham uma comunidade sã, ou seja, a boa
vida, o bom governo e os bons costumes são frutos de deliberações
humanas. Voltando à discussão feita acima, Fénelon faz questão
de ressaltar a grandeza divina e o poder que conserva sobre Sua
obra, mas a responsabilidade pela construção da história é
fundamentalmente humana. É por isso que os béticos têm, no
tempo presente, o que havia de bom no passado; foram os homens
que não permitiram que se corrompesse; da mesma forma foram
os homens que, nas outras localidades, não souberam usar a sua
sabedoria e se "estragaram".
A Bética é contemporânea à narrativa, sendo também a
imagem de um passado idealizado; e esse passado torna-se utopia
quando colocado na perspectiva dos homens fora desse espaço. O

33
Ibidem, p.177.
34
Ibidem, p.176.

207
horizonte utópico conforma-se, pois, se aqueles homens, por ação
e responsabilidade suas, mantiveram aquela harmonia perfeita, é
possível construí-la também fora daí, sendo esta obra também de
responsabilidade daqueles mesmos homens que se corromperam.
Há ainda, no romance, como Fénelon imagina a sociedade e a
política recuperadas, o que não significa uma proposta de volta ou
de reconstrução do passado, mas assenta-se numa confiança na
capacidade humana de aprendizado de construção de sua história,
mas este é assunto para um próximo trabalho.

Referências

Fonte
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Salignac da Motha Fénelon, Arcebispo, e Duque de Cambraia,
&c. Traduzidas do Francez em Portuguez com hum discurso sobre
a Poesia Épica, e Excellencia do Poema de Telêmaco, e Notas
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João Paulo Martins - Mestrando em História e Culturas Políticas no


Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de
Minas Gerais.

Recebido em: 10/12/2006


Aceito em: 15/03/2007

211
.
RESENHA
.
PENSADORES SOCIAIS E HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO
Hercules P. Santos

Resenha de:
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (org) Pensadores sociais e
História da Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

"Os clássicos mudam muito de opinião para agradar os


que os interpretam".
Millôr Fernandes

Investigações históricas a respeito da educação no Brasil


são conhecidas desde a segunda metade do século XIX,
empreendidas por profissionais diversos: educadores e
historiadores, mas também clérigos, engenheiros, médicos e
advogados. Os primeiros programas de pós-graduação em educação
no Brasil aparecem no final de década de 196011. Nos anos 80
são constituídos, o Grupo de Trabalho História da Educação,
ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, a ANPED; o Grupo de Estudos e Pesquisas História,
Sociedade e Educação no Brasil, o HISTEDBR. A instituição
desses grupos ajudou no crescimento da produção de pesquisas no
campo da História da Educação brasileira. Uma produção que faz
interlocução com diversas áreas acadêmicas como a sociologia,
política, antropologia, lingüística, literatura, geografia e
arquivística; historiograficamente, a maior influência vem da nova
história cultural francesa. Isso me dá indícios para pensar que, a
obra aqui a ser analisada surgiu da necessidade apontada em texto
escrito por Luciano Mendes e Diana Gonçalves Vidal: "... urge
realizarem-se pesquisas que enfoquem, especificamente, as formas
como os pesquisadores têm dialogado com as várias recentes

1
PUC do Rio de Janeiro em 1965 e PUC de São Paulo, em 1969.
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 215-221, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
perspectivas historiográficas, tais como a marxista, a história cultural,
a história das mentalidades e a foucaultiana"2.
Pensadores Sociais e História da Educação, livro
organizado por Luciano Mendes de Faria Filho3, é uma obra de
indiscutível contribuição para a pesquisa em história da educação.
A maneira pela qual, historiadores da educação brasileira têm se
apropriado de alguns dos pensadores mais consagrados pelas
ciências humanas, é o norte da elaboração dessa obra. O foco de
discussão dos colaboradores (as) – pesquisadores (as) de várias
universidades brasileiras – nos 15 artigos que compõem este livro,
firma-se nas abordagens teórico-metodológicas. Acreditando não
haver uma renovação dos autores de referência, devido à
freqüência com que tais pensadores freqüentam as bibliografias dos
trabalhos realizados no campo da educação, nas últimas décadas,
Luciano Mendes afirma que novas maneiras de utilização destes
clássicos vêm surgindo: "... assim como têm sido feitas novas
perguntas, a velhos objetos, antigos autores / interlocutores têm sido
lidos de forma a ajudarem a entender a educação e, desse modo, a
constituição da própria sociedade brasileira". (Faria Filho, 2005:7)
A renovação dessas apropriações só pode contribuir
positivamente para enriquecer os procedimentos teórico-
metodológicos, ampliar a escala de fontes para a pesquisa e
proporcionar uma maior diversidade de objetos a serem
questionados. Segundo o organizador, esses procedimentos
acabam gerando novas dimensões para a pesquisa.
Para a construção dessa obra, foram delimitados critérios
simples. Baseado em seus conhecimentos a respeito do trabalho
desenvolvido pelos pesquisadores selecionados, Luciano Mendes

2
VIDAL, Diana G; FARIA FILHO, Luciano M. As Lentes da História:
estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas: Autores
Assossiados, 2005.
3
Doutor em educação pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Coordenador do Programa
de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG.

216
solicitou a eles que escrevessem um texto sobre as contribuições de
um pensador, ou em suas próprias palavras "o seu clássico", em
relação à pesquisa em história da educação. Segundo Faria Filho,
o convite foi dirigido, pois ele tinha uma idéia prévia de qual autor
seria mais indicado para falar sobre um determinado clássico. Um
outro critério utilizado foi o de incluir nessa obra apenas textos
sobre autores já falecidos: Karl Marx, Freud, Émile Durkheim,
Gramsci, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin, Vygotsky, Norbert
Elias, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Hannah
Arendt, Florestan Fernandes, Edward P. Thompson, Michel de
Certeau e Foucault. Por motivos não explicitados, ficaram de fora
três pensadores que haviam sido cotados para compor a obra, são
eles Max Weber, Philippe Arié e Pierre Bourdieu. Um pequeno
detalhe que me chamou a atenção, é que a única mulher presente
nesse elenco de pensadores sociais, não está presente na capa da
obra.
Escolhi dentre os 15 artigos, quatro para falar um pouco
dos objetivos que seus autores pretendem contemplar: Marx,
Freud, E. P. Thompson e Sérgio Buarque de Holanda.
Há décadas se discute sobre a relação entre marxismo e
educação. Elomar Tambara, pesquisador da Faculdade de
Educação da UFPel (Pelotas, RS), fala das contribuições de Karl
Marx para a pesquisa em educação no século XXI. Para ele, os
conceitos marxianos são inesgotáveis, no sentido de
proporcionarem novas categorias de análise para as ciências
sociais. Grande parte dos modelos teórico-sociais, surgidos após
Marx, se apóia de alguma maneira em seus métodos, princípios e
categorias, mesmo que objetivando revê-los, superálos ou
questioná-los, na tentativa de oferecerem novos modelos
explicativos.
Apesar da constatação de que no final do século XX, há
uma queda sensível no emprego dos referenciais teórico-
metodológicos vinculados ao pensamento marxiano, não seria o
caso de se dizer que alguns grupos ainda não defendam a utilização
das contribuições de Karl Marx para uma investigação de
217
qualidade dentro do campo. Tambara observa que em muitos
congressos, encontros, seminários e até em periódicos; está
ocorrendo certa marginalização de trabalhos apoiados nas idéias
marxistas. Em contrapartida, há também o surgimento do
paradigma marxiano em diversos outros ambientes de pesquisa.
Em seu trabalho, Tambara apresenta algumas contribuições
teóricometodológicas capazes de dar aporte a muitas pesquisas em
História da Educação.
Demonstrando a alteridade de contribuições que esses
pensadores podem imprimir à pesquisa em educação, Maria
Madalena Silva de Assunção, doutora em educação (professora do
UNI-BH e da UNINCOR), fala das possíveis aproximações de
Freud e a História da Educação. Ela afirma haver, nas últimas
três décadas, mudanças metodológicas na pesquisa histórico-
educativa, um abandono da "história da pedagogia" e o surgimento
da "história da educação". Um rompimento com o "modelo unitário
e continuísta de antes", aparecendo em seu lugar, um modelo de
pesquisa mais problematizador, com novas maneiras de observar a
história dos eventos pedagógico-educativos, a educação como um
conjunto de práticas sociais. Uma revolução historiográfica capaz
de proporcionar uma maneira mais flexível de se pensar o
complexo processo educativo.
O alcance dessa revolução, proporcionando novas idéias,
devido ao flerte com novas áreas do conhecimento, nesse caso a
teoria psicanalítica, leva Freud a contribuir para a educação e suas
práticas educativas: "Houve [...] uma busca na obra de Freud sobre a
educação, ou a busca de uma ‘metodologia freudiana’ sobre a
educação". (Assunção, 2005:29)
O objeto de Sigmund Freud nunca foi a educação,
propriamente dita, a autora pontua que a teoria freudiana deve ser
observada a partir de outra perspectiva, mais ampla, a das relações
entre o indivíduo e o que Freud chamava de "civilização".
Luciano Mendes de Faria Filho em seu artigo, fala de
suas apropriações a respeito de Edward Palmer Thompson.
Segundo ele, Thompson é um autor que freqüenta as bibliografias
218
dos historiadores da educação brasileira de maneira ainda muito
modesta. Segundo Faria Filho, mesmo no decorrer da década de
1980, época em que Thompson detinha grande prestígio junto aos
historiadores no Brasil, José Willington Germano4, um dos
poucos autores a discutir as idéias de Thompson, defendia a não
utilidade de se trabalhar a obra do historiador inglês
historiograficamente, pois "... não fazia sentido recorrer a um
marxista tão heterodoxo para aprender como fazer história. Para isso,
bastava ler, e ler corretamente, o próprio Marx". (Faria Filho,
2005:239-40)
Na década de 90, em detrimento da "engajada e criativa
História Social Inglesa", houve grande aproximação entre a
pesquisa em História da Educação brasileira e a historiografia
francesa, o que de certa maneira, foi proporcionado pelo
crescimento da pesquisa em História da Educação, a organização
de grupos de pesquisa, criação de instituições científicas e de meios
de divulgação do campo; além da conseqüente profissionalização
dos pesquisadores. O interesse pela obra de Thompson, no campo
da pesquisa em educação, é recente. Podemos salientar os
trabalhos de Maria Célia Marcondes Moraes (UFSC), Marcus
Aurélio Taborda (UFPR), além dos próprios trabalhos de Luciano
Mendes de Faria Filho. Contribuições que chamam para a
importância de Thompson dentro do atual debate historiográfico
na produção histórica educacional brasileira. A proposta do texto
de Luciano Mendes centra-se em apresentar suas leituras da obra
do referido clássico, chamando atenção para as dimensões de suas
próprias pesquisas, enriquecidas pelas idéias desse pensador.
Pensadores sociais brasileiros também fazem parte deste
seleto elenco, como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e
Sérgio Buarque de Holanda. A respeito desse último, quem
escreve é Thais Nivia de Lima e Fonseca, Doutora em História e

4
Para maiores informações a respeito da crítica de Germano a respeito de
Thompson, consultar: GERMANO, José Willington. Thompson e o método em
Marx. Educação & Sociedade, 32, p. 7-22, abr. 1989

219
professora da Faculdade de Educação da UFMG. Nas últimas
décadas, Sérgio Buarque vem sendo analisado dentro da
historiografia nacional, por historiadores brasileiros e também
estrangeiros. Alguns o consideram precursor de uma abordagem
historiográfica apoiada na Escola dos Annales e na História
Cultural, um historiador das mentalidades, tratando de forma
inovadora suas fontes de pesquisa, dando atenção diferenciada aos
sujeitos "anônimos" da história, evidenciando as relações destas
fontes com o recorte espacial e a sua cultura. Apesar do respeito
conquistado por este autor, Holanda ficou muito tempo esquecido
das bibliografias nas pesquisas históricas no Brasil. Foi
redescoberto no final da década de 70, período em que houve uma
incorporação da então chamada "história das mentalidades" pela
historiografia brasileira. A obra de Sérgio Buarque de Holanda,
inspirou muitos dos historiadores que resolveram se aventurar
pelos estudos culturais, pelos temas cotidianos, e a dar voz aos
sujeitos "comuns" da história. Raízes do Brasil, Visão do Paraíso e
Caminhos e Fronteiras são obras que serviram de base para o
entendimento de muitas comunidades no território da América
portuguesa, pano de fundo no entendimento desses grupos e suas
relações com as condições naturais diversas encontradas pelos
mesmos.
Thais Nivia reflete sobre os motivos que levam a uma
ausência desse pensador em campos da investigação histórica nos
quais ele poderia estar presente, além de discutir as possibilidades
de suas idéias apoiarem a pesquisa em História da Educação.
Concluindo, trata-se de uma obra que aponta para uma
profusão de novas abordagens e interpretações, demonstrando a
densidade, existente hoje, na reflexão historiográfica brasileira.
Um convite para que o leitor releia o seu clássico através de novas
perspectivas.

220
Referências

ASSUNÇÃO, Maria Madalena Silva de. Freud e a História da


Educação. in FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (org)
Pensadores sociais e História da Educação. 1 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. pp. 27-46.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Fazer História da Educação
com E. P. Thompson. in FARIA FILHO, Luciano Mendes de.
(org) Pensadores sociais e História da Educação. 1 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005. pp 239-256.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. (org) Pensadores sociais e
História da Educação. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
VIDAL, Diana G; FARIA FILHO, Luciano M. As Lentes da
História: estudos de história e historiografia da educação no
Brasil. Campinas: Autores Associados, 2005.

Hercules P. Santos - Bacharel em História. Integrante do


GEPHE – FAE/UFMG

Recebido em: 11/02/2007


Aceito em: 15/03/2007

221
.
DOCUMENTO
.
APRESENTAÇÃO: A LIGA DO ENSINO NO
BRASIL E A REVISTA LIGA DO ENSINO (1883-
1884)1
Maria Helena Camara Bastos

Essa iniciativa liderada por Rui Barbosa é exemplar para


analisar a historicidade dos discursos e ações sobre escola laica e
liberdade do ensino no Brasil. A intenção não é realizar uma
análise da produção pedagógica-educacional de Rui, visto que
vários pesquisadores já o fizeram, mas de situar alguns eventos que
marcaram sua atuação em promover a causa da instrução pública e
de procurar implementar alguns itens do projeto. Miguel Reale
(1984, p.13), assinala que o seu pensamento "congregava teorias
diversas, unidas, no entanto, pela aceitação comum de algumas idéias
básicas"; exemplificando, quanto a pedagogia, destaca "o
predomínio da escola leiga e um aprendizado inspirado pelos valores
das ciências empíricas".
É de conhecimento a posição de Rui Barbosa quanto à
questão religiosa, na introdução da tradução que faz de O Papa e o
Concílio, de Janus e no Discurso da Maçonaria (1876), centrados
numa acerbada crítica ao papado e à infalibilidade pontifícia,
defendendo a separação entre Igreja e o Estado. Essa postura será
gradativamente modificada. Em 1903, o discurso Oração aos
Moços - " marca um momento significativo na sua evolução religiosa".
Para Rui, o Estado deve ser leigo, para não ser intolerante, e deve
garantir as condições à liberdade de crença sem advogar ou

1
Este estudo integra o projeto de pesquisa "Educação Brasileira e Cultura
Escolar: análise de discursos e práticas educativas (séculos XIX e XX)", e,
especialmente, a pesquisa "Ensino laico e liberdade do ensino no Brasil: discursos
e ações (1854-1889)" (CNPq/PUCRS). O artigo é uma versão ampliada do
capítulo intitulado "Menezes Vieira e Rui Barbosa: parceiros no projeto de
modernização da Educação Brasileira" (1999). Colaboração da bolsista de
Iniciação científica Tatiane de Freitas Ermel (PIBIC- CNPq/PUCRS)
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 225-246, jan/abr 2007
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
privilegiar nenhuma delas: "o Estado é apenas a organização legal
das garantias de paz comum e o mútuo respeito entre as várias
crenças, convicções e tendências que disputam, pela propaganda
persuasiva, o domínio do mundo. A verdade científica, a verdade
moral, a verdade religiosa estão fora de sua competência. É na
região superior do espírito, é na esfera livre das consciências que
elas se debatem, caem ou triunfam...".
No Parecer de Reforma do Ensino Primário, Rui
Barbosa defende o ponto-de-vista de que uma das condições para o
desenvolvimento do sistema educacional seria a secularização do
ensino, dedicando, especialmente, o capítulo V, à explanação de
suas idéias sobre Escola Leiga: "proteger uma igreja à custa de
contribuintes que a repelem, é um atentado à propriedade; fundar
incapacidades políticas sobre distinções de fé religiosa, é a
imposição de um estigma à probidade das almas sinceras e a
decretação de honras públicas a uma hipocrisia convencional;
obrigar à escola, e fazer a suprema violência contra a humanidade
e o direito; é suprimir a família, substituindo a autoridade do pai
pela supremacia do padre, e asfixiar à nascença a liberdade moral,
abolindo a individualidade e a consciência, feridas de morte, na
criança, pela compreensão uniforme de um símbolo religioso
entronizado na escola. Logo, se fizerdes obrigatória a instrução
elementar, não podeis, sem a mais abominável tirania,
compreender na parte obrigatória do seu programa a lição de
dogma". Nesta perspectiva, a escola comum não imporá dogmas,
religiosos ou irreligiosos, materialistas ou espiritualistas, deistas ou
ateus, racionalistas ou confessionais - "em vez da moral da
cartilha, portanto, a moral ativa e intuitiva". Quanto aos
professores, Rui defende que "secularizando o programa
obrigatório da escola, porque não havíamos de secularizar a cadeira
do mestre?,(...) a nomeação de indivíduos votados à propaganda
ou ao serviço de um culto especial privaria sensivelmente a escola
desse caráter de neutralidade entre todas as opiniões religiosas, que
convém criar, e preservar cuidadosamente" (1947, p. 269 a 349).

226
A Reforma de Leôncio de Carvalho, no artigo 4°,
estabelece: "os alunos acatólicos não são obrigados a freqüentar a
aula de instrução religiosa, que por isso deverá efetuar-se em dias
determinados da semana e sempre antes ou depois das horas
destinadas ao ensino de outras disciplinas". Rui Barbosa discorda
desta tentativa de conciliar aspectos antagônicos, pois o Decreto
propõe a coexistência de vários credos e encarrega o professor
primário de ministrar as aulas de religião católica.
A idéia de fundação de uma sociedade para a defesa do
ensino leigo pode ter decorrido da leitura que Rui Barbosa fez da
obra de Jean Moussac - La Ligue de l’enseignement. Histoire,
doctrines, oeuvres, résultat et projets, que compunha sua biblioteca,
na qual fez inúmeras observações nas margens.
A Liga tem sua origem na Bélgica (1854), tendo
vínculos estreitos com as associações maçônicas, pela defesa da
descristianização da escola pela crescente influência Jesuítica.
Assim, os objetivos da liga são contrários as leis existentes, que
dão à instrução religiosa o primeiro lugar na escola. Em 1866,
Jean Macé funda a Ligue d’enseignement, na França, com objetivo
de ensino exclusivamente laico na escolas públicas e ensino
primário gratuito e obrigatório. Estas sociedades fundam escolas-
modelos, bibliotecas populares, círculos operários, realizam
conferências e cursos gratuitos, organizam em cada vila ou
comuna um grupo similar de organização e objetivos, mas de ação
independente. Moussac (1880, p.132) afirma que "a liga não se
ocupará nem de política, nem de religião, o objetivo da educação é
fazer os homens, e não máquinas de ler, escrever e contar; é
formar a alma humana inteira: inteligência e vontade. Dois
princípios inflexíveis e imutáveis: a verdade para dirigir o espírito e
lhe dar a regra de julgar e o senso de apreciação; o bem para
governar a consciência e imprimir uma direção de direito e de
certeza. - La Ligue veut chasser Dieu de l’école, a fin de le chasser
de l’humanité - estas palavras resumem o projeto da Liga".
Rui Barbosa, inconformado com o flagrante enterro da
sua Reforma, continuou a promover a causa da instrução pública e
227
de procurar a implementação de alguns itens do projeto. Para
Viana (1977, p.118), "por este tempo, talvez para compensar a
saída de Rodolfo Dantas do ministério, e que tivera como
consequência não poderem efetuar a adoção daquelas idéias novas
avançadas, em matéria de instrução, os dois amigos se associaram
a outros devotos da educação, e fundaram a Liga do Ensino. E, a
fim de divulgarem métodos pedagógicos modernos, que
ambicionavam ver disseminados no país, logo publicaram a Revista
da Liga do Ensino".
A fundação da Liga do Ensino no Brasil ocorreu em 22
de outubro de 1883, na primeira reunião realizada nas
dependências do Liceu de Artes e Ofícios, onde, como presidente,
Rui Barbosa expõe as razões que levaram esta iniciativa: "é notória
a desorientação dos espíritos entre nós nos assuntos que tocam aos
problemas do ensino, e de que dependem os mais vitais interesses
do país. Quer nas tentativas do Estado, acanhadíssimas até hoje,
quer em geral, salvo honrosas exceções nas da iniciativa particular,
uma falta lamentável de direção científica tem tolhido o nosso
desenvolvimento. Pareceu, pois, de urgente necessidade instituir
um centro, modesto, mas essencialmente ativo, de movimento e
de força, contra os preconceitos da rotina e a inveteração dos
abusos que nos obstruem o caminho. Tal é o fim da Liga do
Ensino no Brasil, cujo o tipo é o de associações de nome
semelhante, que florescem na Bélgica e nas outras nações mais
adiantadas da Europa" (GAZETA DE NOTÍCIAS. Liga do
Ensino. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1883).
O objetivo da associação era "o estudo dos diversos
ramos do ensino público, para promover a adoção dos métodos
científicos e o melhoramento das condições do professorado". Isso
se daria através de "discussões das questões que se relacionam com
o desenvolvimento da instrução, em sessões ordinárias e pela
imprensa; de conferências, para as quais serão convidados os
professores primários públicos e particulares, sobre os
melhoramentos da escola elementar e os pontos mais interessantes
da moderna pedagogia; de estudos das condições e necessidades
228
dos estabelecimentos de ensino, públicos e particulares; da
fundação de uma escola modelo, onde a instrução seja praticada
com todos os aperfeiçoamentos, e onde se possam apreciar as
vantagens do ensino leigo" (O BRAZIL. Liga do Ensino no
Brazil. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883).
A escola modelo deveria ser absolutamente leiga,
embasada em idéias científicas da pedagogia contemporânea,
"estabelecimento cujo caráter de escrupulosa neutralidade entre as
crenças religiosas, seja ao mesmo tempo uma homenagem aos
direitos da consciência de todos e uma definição viva do papel da
escola, que não se confunde nem com o da família, nem com o da
Igreja" (GAZETA DE NOTÍCIAS. A Liga do Ensino no Brazil.
Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1883).
O Editorial da Gazeta da Tarde, sobre a Liga do Ensino,
assim refere-se a questão do ensino leigo: "como a questão do
ensino se acha intimamente ligada com a questão religiosa, e,
como para nós o primeiro passo consiste em separá-las, dando ao
ensino leigo nas escolas e o religioso no templo, S. Ex. (Rui
Barbosa) tem para nós, mais o merecimento de se ter sempre
mostrado convicto desta verdade" (GAZETA DA TARDE.
Editorial. Uma Escola Leiga. Rio de Janeiro, 13 de outubro de
1883)
A Diretoria da Liga do Ensino era composta: presidente -
Rui Barbosa, vice-presidente - Hilário Gouveia, primeiro
secretário - Balduíno Coelho, segundo secretário - J.P. da Silva
Maia, tesoureiro - Joaquim A. Fernandes Pinheiro; e com 50
sócios fundadores - "homens de boa vontade, pacíficos
revolucionários, que tomam aos ombros os encargos que os governos
reputam pesados demais, serão provavelmente a fonte de grandes bens
para o país" (GAZETA DE NOTÍCIAS. Cousas Políticas. Rio de
Janeiro, 23 de outubro de 1883). Os sócios-fundadores foram:
Rodolfo Dantas, Menezes Vieira2, Dr. Souza Bandeira F., Dr.

2
Sobre Menezes Vieira, ver BASTOS (2002).

229
Sancho de Barros Pimentel, Dr. Ferreira de Araújo, Ferreira
Jacobina, Capistrano de Abreu, Dr. Silva Araújo, Dr. Moncorvo,
Dr. Franklin Távora, Faro, Dr. Carlos de Carvalho, Borges
Carneiro, Dr. Silvio Romero, Alberto Brandão, Lameira de
Andrade, Dr. Aquino, Louis Couty, Comendador Ramalho
Ortigão, Zeferino Candido, Dr. Ubaldino do Amaral, Fausto
Barreto, Silva Maia, Amaro Cavalcanti, Dr. Coelho Rodrigues,
Teophilo Leão, Dr. A. Spinola, Dr. Tobias Leite, Joaquim
Teixeira de Macedo, Dr. Lima e Castro, A. Pereira leitão, Dr.
Aarão Reis, Comendador Fernandes Pinheiro, Machado de Assis,
Dr. João Paulo de Carvalho, Bittencourt da Silva, Carlos Jansen,
Dr. Americo Barbosa, Dr. Jacy Monteiro, Ullysses Cabral, Dr.
Ennes de Souza, Dr. Lyra da Silva, Dr. Theodoreto Souto,
Alambary Luz, Dr. Antioco Faure e B. Caldeira (GAZETA DE
NOTÍCIAS. A Liga do Ensino no Brazil. Rio de Janeiro, 13 de
outubro de 1883).
O jornal Diário do Brasil, de 1 de novembro de 1883,
publica uma interessante matéria sobre a Liga do Ensino,
recomendando a vigilância nas casas de educação particular " na
propagação de doutrinas religiosas, que mais tarde podem causar a
ruína do Estado. Um padre apostata, de novo recebido ao seio
católico, dirige acintosamente, na rua do Lavradio, um albergue
postuloso que deve ser vigiado". É relatado que o Colégio Pequeno
Seminário, em terras da Mitra de Rio Comprido, abriu as portas
ao público, "abaixando as pensões, desde que soube da oposição
que sofria publicamente. O cônego que os dirige em Niterói,
aconselha que um padre deve disfarçar, para honra e vida da Igreja,
desde as vestes até o modo de usar as barbas". O artigo conclui
dizendo que "o Dr. Rui Barbosa é conhecedor de todas essas
manhas. Deve combatê-las, com cautela, pois eles são perigosos e
sabem lutar" (DIÁRIO DO BRASIL. Comunicado. Casas de
Educação. Instrução Primária. Rio de Janeiro, 1º de novembro de
1883)
Antonio Herculano de Souza Bandeira F°, no relatório
ao Ministro Antunes Maciel, assim se refere à iniciativa de Rui
230
Barbosa: "iniciou-se, durante o ano passado, uma associação com
caráter científico que pretende estudar os problemas pedagógicos,
os meios de melhorar os métodos de ensino, em seus diversos
graus e, especialmente, quanto ao ensino primário, criar uma
escola modelo para servir de norma aos professores que quiserem
visitá-la e demonstrar as vantagens da escola leiga. Refiro-me à
Liga do Ensino do Brasil. Possa essa associação realizar os
intuitos de seu programa, e serão assinalados os seus serviços"
(apud HAIDAR, 1972. p. 196-97).
Os estatutos da Liga do Ensino (artigo 5º)
determinavam estender suas ações às províncias, para dar
"informações sobre as coisas da instrução e dilegenciarem nas
localidades respectivas os mesmos cometimentos a que nos
abalançamos". Com esse intuito, foram nomeados delegados
provinciais no Ceará, Dr. Joaquim Catunda; em Pernambuco, Dr.
José Hygino Duarte; na Bahia, Antonio Pacífico Pereira; em
Minas Gerais, Henrique Gorceux; em São Paulo, Rangel
Pestana; no Rio Grande do Sul, Apolinário Porto Alegre3. Esse
delegados, considerados "homens de notáveis talentos", teriam a
tarefa de preparar relatórios sobre o estágio da educação em suas
respectivas províncias e fornecer à Liga o máximo possível de
dados estatísticos, de vez que o Governo praticamente não
dispunha de fontes e as poucas existentes não eram dignas de
confiança – "Não é lícito duvidar de que a resolução a que
aludimos seja fecunda em preciosas contribuições e interessantes
resultados para os nossos fins. Os que entre nós se votam ao
estudo das condições da pública Instrução e das questões que se
lhe prendem lutam com invencíveis dificuldades para conhecer o
estado das coisas nas diferentes províncias. Neste particular manda
a justiça que reconheçamos que só possuímos o que se encontra

3
Sobre Apolinário Porto Alegre, ver MOREIRA (1989). Não localizamos
nenhuma referência sobre sua participação como correspondente na Sociedade
Liga do Ensino. No entanto, comungava dos ideais de liberdade; de plena
autonomia de conceitos, de crenças e de ideais; de independência religiosa.

231
nas publicações oficiais, embora lacunosas e destituídas de
continuidade, além de outras imperfeições provenientes da
incompetência daqueles a quem de ordinário cabe a execução de
tais trabalhos. Mas é quase certo que quase tudo nos falta: as
estatísticas de ensino raro figuram nos documentos oficiais; as que
existem incompletas e deficientes, não infundindo confiança; o
próprio conhecimento das instituições é difícil; e quanto aos
programas e aos métodos é absoluta a ausência de dados e
informações. Se, graças aos trabalhos de nossos colaboradores nas
províncias, alcançarmos, de par com a satisfação dos nossos
intentos gerais, olviar a todos esses inconvenientes, nós daremos
pressa a divulgar tão proveitosos subsídios e teremos assim
cumprido um dos nossos mais veementes anhelos, o de substituir a
incerteza e ao indefinido, de que se resentem os negócios relativos
à Instrução em todo o Império, o conhecimento assim das
necessidades, como dos progressos que se verificarem mediante
exame circunspecto e competente" (Chronica. Revista Liga do
Ensino, n.3, mar.1884, p.80 e 81).
A Liga do Ensino organizou um encontro, em abril de
1884, de dois dias, no Rio de Janeiro, no qual compareceram
quase duas centenas de professores de escolas primárias e
secundárias. Sobre este evento, Lourenço Filho afirma que "o
movimento de idéias pela melhoria técnica do ensino havia crescido
desde os últimos anos e, para isso, decisivamente haviam concorrido
os cursos de conferências pedagógicas promovidas pela Liga do
Ensino" (1950, p.XXVII). Os debates centralizaram-se nas
vantagens da técnica de ensino direto pestalozziano e na
importância de fundarem-se mais escolas vocacionais.
Um dos objetivos da Liga do Ensino foi, desde a sua
criação, a publicação de uma Revista, consagrada exclusivamente à
discussão das questões de ensino, em seus vários ramos e ordens
(GAZETA DE NOTÍCIAS. Liga do Ensino. Rio de Janeiro, 23
de outubro de 1883). O primeiro número da Revista Liga do
Ensino é de 31 de janeiro de 1884. Na folha de rosto consta que é
uma publicação mensal, cujo redator principal é Rui Barbosa,

232
presidente da Liga do Ensino no Brasil. Editada pela Livraria
Contemporânea de Faro e Lino, tem sistema de assinatura, com
custo de 5$000 por ano para a Corte e de 6$000 para as
Províncias. O ciclo de vida da revista foi efêmero, somente quatro
números: o número 2 apareceu em 29 de fevereiro; o de número
3, em 31 de março e o último, de número quatro, a 30 de abril de
1884, mas distribuído em junho/julho de 1884. O número de
páginas situa-se em torno de 30 páginas por número, numeradas
sequencialmente, perfazendo um total de 120 páginas.
Quanto a periodicidade é difícil afirmar que a mesma
assim ocorreu. Analisando a correspondência de Rodolfo de Sousa
Dantas com Rui BarBosa, é possível constatar que desde o final de
janeiro o primeiro número encontrava-se pronto com os artigos
remetidos impressos, a espera da introdução de Rui Barbosa –
"Poderá, porém, sair nos primeiros dias de fevereiro, se mandares
sem demora o teu artigo, feito o que regularizar-se-á depois a
publicação" (DANTAS, 1973, p.104). No entanto, parece que
Rui não atendeu ao pedido do amigo, pois em carta de 13 de
março de 1884, "renovo o pedido de mandares sem demora o
artigo para a Revista da Liga. Só estão à espera do resto do teu
trabalho, e enquanto não enviares tudo estará parado. E já
estamos em março! E o número a sair é o de fevereiro"
(DANTAS, 1973, p106). Nessa carta, Rodolfo comenta a
reunião realizada pela Sociedade em nove de março. Esses fatos
permitem aludir que os três números sairam juntos, o que explica
uma só capa, no exemplar examinado4.
O tamanho periódico é de 21cm (largura) por 27 cm
(comprimento), com os textos divididos em duas colunas. Na
contra-capa consta os "Fins da Liga do Ensino no Brasil":

4
Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro há o número 1(jan.1884) e o
número 3 (mar. 1884). As folhas ainda conservavam-se ligadas, o que evidencia a
não consulta ao mesmo, que passou a integrar o acervo recentemente (1-
464,01,02). Em 1998, somente foi localizado o número 1, na Fundação Casa
de Rui Barbosa. A Biblioteca Nacional não tinha nenhum exemplar do periódico.

233
A Liga do Ensino propõe-se a estudar os diversos ramos
da instrução pública e promover a adaptação de idéias
scientíficas, no tocante à organização, aos programas e os
métodos de ensino. Serão instituídos desde logo:
1º Conferências públicas sobre pontos mais inrteressantes
da moderna pedagogia para as quais se convidarão
especialmente os professores públicos e particulares;
2º Uma revista consagrada exclusivamente à discussão
das questões de instrução pública.
Comissões de estudo acerca do sistema dos
estabelecimentos de instrução e suas necessidades.
Quando os recursos da sociedade o permitirem, crear-se-á
uma escola modelo, onde a Instrução Primária seja
praticada com todos os aperfeiçoamentos e se possam
pareciar as vantagens do ensino leigo.

O número 1 apresenta uma Introdução de Rui Barbosa


(anexo) e os artigos "As leis do ensino", pelo Dr. Souza Bandeira
Filho (p.6-19); "Ensino de moral e de religião, pelo Conselheiro
Rodolpho Epiphanio de Souza Dantas (p.19-30). O número 2
(fevereiro de 1884, p.31 a p.56), conforme noticiado, teve artigo
de Balduíno Coelho sobre a "Conferências pedagógicas de 1883";
"Jardins de Infância nos Estados Unidos", de Menezes Vieira (p.
48); Chronica e o "Necrológico do segundo secretário da Liga do
Ensino - José Pedro da Silva Maia" (p. 56). O número 3 (março
de 1884, p.57-84), apresenta os artigos "O Ensino Secundário do
sexo feminino", pelo Conselheiro Rodolpho de Souza Dantas
(p.57 a p. 71); "O Ensino Superior no Brasil", do Dr. Luiz Couty
(p.71 a p. 79); Chronica (p.79 a p. 84). Em seu artigo, Couty
defende que "a missão da Liga do Ensino é de propaganda e quase
de fiscalização. Pela nossa parte, no desempenho do modesto papel
que nos cabe no seio desta associação, procurando dizer o que se
nos afigura ser a verdade" (1884, p.79).
A Introdução, que abre o primeiro número da Revista
Liga do Ensino, não está assinada, mas há indícios de que a
mesma foi escrita por Rui Barbosa, especialmente nas cartas de
Rodolfo Dantas que insiste para que envie o texto para publicação.

234
Em carta de janeiro de 1884, Rodolfo Dantas escreve a Rui,
dizendo que "o artigo inaugural não deve ser senão teu, trazendo o
cunho de teu espírito e de teu pensamento. (...) Uno-me, pois, ao
Bandeira e ao Balduíno para pedir-te que mandes sem demora a
introdução ou o artigo de apresentação da Revista, e conto que não
faltarás. Se me permites, convém que traces nas linhas que
escreveres com a clareza e a moderação de que sabes usar, os fins e
os intuitos da Liga do Ensino, que muita gente ainda não
compreendeu e ignora. (...) expliques o que quer a Liga, entre
cujos fins figura, sem ser o único aliás, a fundação de uma Escola-
modelo, a qual mostrarás que se destinará à demonstração e
realização dos melhores métodos de ensino, pelo que sim não pode
deixar de ser leiga, etc." (DANTAS, 1973, p. 105). A dúvida
reside no fato de um telegrama enviado em 28 de janeiro de 1884,
por Balduíno Coelho para Rui Barbosa em que diz: "Se até
amanhã não puder mandar introdução revista diga se feito o
trabalho por Bandeira poderemos publicar sem assinatura. Previno
capa consta V. como redator principal" (DANTAS, 1973,
p.105). Parece que Rui não atendeu nenhum dos pedidos, pois
cartas de fevereiro e de março de 1884 ainda fazem menção ao
solicitado.
Na Introdução é realizado um extenso balanço da
situação da educação no Brasil, para apresentar os propósitos da
Liga do Ensino:

Não é por calculado pessimismo que escrevermos estas


linhas desagradáveis para o nosso amor próprio. Elas não
representam uma confissão de desalento, mas um grito de
rebate. Podemos trabalhar com proveito e encaminhar os
nossos esforços para melhores resultados. Antes de tudo,
urge convencermo-nos de que a questão do ensino tem
um lado científico, e que é este o que de preferência
merece a atenção dos Homens de boa vontade.
Estudamo-lo, portanto, no intuito de aperfeiçoar as
nossas escolas e salvá-las dos estragos do empirismo.
Tais são os intuitos da Liga do Ensino no Brasil. Esta
associação, composta de pessoas que se interessam pela

235
prosperidade da Instrução, e que com ela se ocupam em
diversas especialidades, propõe-se auxiliar e promover o
progresso pedagógico, perscrutando as nossas
necessidades e procurando indicar os meios de satisfazê-
las. Ela não pretende difundir escolas, porém aperfeiçoar
os métodos; mostrar os abusos e pugnar pela extinção
deles; propagar os princípios científicos em matéria de
ensino e debelar as influências deletérias, que contribuem
para desnaturá-lo ou corrompê-lo. Em quase todas as
nações existem sociedades idênticas; em algumas
funcionam com o mesmo nome, e iniciaram seus
trabalhos na obscuridade para combaterem com mais
segurança inimigos poderosos. Pareceu aos fundadores da
Liga do Ensino no Brasil que, em nossa pátria, aquela
empresa devia vir à luz da publicidade e que a sociedade
devia viver às claras. (n. 1, jan. 1884, p.4)

Além de apresentar a sociedade, há uma veemente defesa


da secularização da escola:

Sendo um dos principais intuitos da Liga do Ensino no


Brasil criar uma "escola modelo", a fim de proporcionar à
visita dos mestres uma instituição onde se pratique o
ensino primário com todos os melhoramentos, corria-lhe
desde logo o dever de inserir em sua constituição o
princípio de que tal escola seria inteiramente leiga. Este
pensamento, que tem sido errônea e malevolamente
interpretado como se fora um sistema de reação contra
toda idéia religiosa, ou uma profissão de fé ateísta, não
podia aliás deixar de ser princípio cardeal para uma
associação, que pretende apoiar-se exclusivamente na
ciência a fim de organizar um plano regular de Instrução
Primária. A declaração ostensiva dessa idéia figurou na
constituição da Liga do Ensino como uma necessidade,
desde que os preconceitos teológicos são uma das causas
porque a educação científica tem sido em toda parte
prejudicada. Para que a Liga do ensino pudesse conseguir
seus fins, cumpria que entre seus membros o "ensino
leigo" fosse proclamado essencial à seriedade dos estudos.
A escola imune de toda influência de seita é condição de
normalidade do ensino em geral, um corolário do seu
caráter científico; mas não lhe basta aquele qualificativo

236
para que o ensino seja completo. A secundarização da
escola mão é mais do que uma das aplicações do
programa da nascente associação, muito mais extenso e
compreensivo, de pugnar por um plano científico que
abranja a organização do ensino em diversos graus.
Possam estas palavras acentuar, no ânimo de todos, qual
o objetivo da Liga do Ensino e destruir prevenções e
erros, que, se por um lado são promovidos por um partido
constituído para perverter o espírito das novas gerações,
educando-as no ódio ao progresso científico, e ao espírito
secular. Por outro lado, indicam que o estado mental do
nosso país precisa de fortes abalos para libertar-se do
influxo de elementos desorganizadores, como o fanatismo
e a meia ciência. (n. 1, jan. 1884, p.6)

A partir do segundo número da revista está presente a


seção Crônica, que noticia as atividades e resoluções adotadas nas
reuniões da sociedade. O revista de número três (março de 1884),
por exemplo, noticia as decisões tomadas na reunião realizada em
9 de março de 1884, a primeira do ano, sob a presidência de Rui
Barbosa. Foi informado a substituição do segundo secretário da
Liga do Ensino pelo professor de Pedagogia da Escola Normal da
Côrte, Dr. Joaquim Pelino da Costa Guedes; a vaga de segundo
secretário foi preenchida pelo Sr. Joaquim Borges Carneiro.
Entre as atividades da Liga, figurava o estudo dos meios
para melhorar as condições de ensino. Para tal, foram nomeadas
comissões integradas pelos sócios e formulados os quesitos
considerados os mais urgentes e necessários à avaliação:

1. Quais as condições presentes nas escolas primárias do


Município da Côrte, em relação à higiene escolar: Dr.
Hilário Gouvea, Jão Paulo, Luis Couty, Moncorvo de
Figueiredo, Silva Araújo;
2. Quais os processos pedagógicos da escola primária do
Município da Côrte, circunstâncias e causas do domínio
da rotina na escola elementar. Que aplicações e
desenvolvimentos têm tido entre nós os métodos
modernos de cultura na escola. Cuidados acerca do uso

237
do método intuitivo e das lições de coisas: Sr. Souza
Bandeira Filho, Dr. Menezes Vieira, Silveira Caldeira;
3. Estado e vícios atuais do ensino de leitura nas escolas
primárias do Município da Côrte: Dr. Zefferino Candido,
Dr. Ferreira Jacobino, Hilário Ribeiro;
4. Condição atual do ensino de Desenho na escola
primária. Em que proporção se distribui. Inconvenientes
de sua falata na educação comum, verificada pelo exame
das circunstâncias entre nós. Será o chamado desenho
que entre nós se ensina em alguma escola aquele que as
idéias do nosso tempo assinam uma importâsncia
fundamental na escola elementar?: Comendador
Bettancourt da Silva, Ferreira Jacobina, Rui Barbosa;
5. Ensino do catecismo nas escolas primárias do
Município da Côrte; descrições deles; livros por onde se
faz, suas relações e resultados para com a formação do
caráter, a primeira orientação da inteligência e a
psicologia do cérebro na idade decisiva do seu
desenvolvimento: Dr. Ferreira de Araújo, Luiz Couty,
Rui Barbosa;
6. Estado do Ensino Normal no Município da Côrte:
características e causas de sua imprestabilidade: Dr.
Sancho Pimentel, Souza Bandeira Filho, Pelino
Guedes;
7. Do Ensino secundário feminino do Município da
Côrte. Status quo. Desiderata. Apropriação das idéias
contemporâneas de nossa sociedade: Rodolfo Dantas,
Fausto barreto, Carlos Jansen (n.3, mar.1884, p.79).

As questões levantadas pela Sociedade Liga do Ensino


estão afinadas com as teses que orientaram o Congresso de
Instrução Pública, convocado para ser realizado no Rio de Janeiro,
em 18835. Para a sociedade, "reconhecidos os males que
desnaturam e atrofiam a Instrução, poder-se-á por uma
propaganda sincera e esclarecida, fundada na verdade, conseguir
que se conserve o que efetivamente há de recomendável em nossas
instituições; que se lhes supram as lacunas e se lhes extirpem os

5
Sobre, ver Bastos (2005)

238
vícios; finalmente que sejam dotadas com os melhoramentos que
as tornem profícuas" (n.3, mar.1884, p.80).
O artigo "As leis do ensino", escrito pelo Dr. Souza
Bandeira Filho (n.1, jan. 1884, p.6-19), realiza uma resenha do
livro do Dr. F. A. Berra, "Apuentes para un curso de
Pedagogia"(1883), que apresenta elementos para a constituição
científica da pedagogia e demosntra que lhe cabe lugar
incontestável na classificação das ciências. O livro divide-se em
duas partes: Teoria do ensino – instrução e educação; Prática do
ensino – leis pedagógicas do ensino educativo, leuis pedagógicas do
ensino instrutivo, governo escolar. No número de março de 1884,
é dada notícia da carta enviada pelo Dr. Berra saudando a Liga do
Ensino no Brasil, comparando-a com a "Sociedade dos Amigos da
Educação Popular", do Ururguai, criada por Varela e da qual é o
atual presidente. Envia suas obras e incentiva o intercâmbio com
sociedades congêneres do uruguai, Argentina e Chile.
A Sociedade Liga do Ensino busca também apoiar e
participar dos eventos ligados à instrução pública do Município da
Côrte. Assim, por exemplo, participa da elaboração do
Regulamento de 28 de fevereiro de 1884 do Inspetor Geral para
os exercícios práticos de Pedagogia da escola Normal. Também
noticia os serviços prestados para a reforma do regulamento das
Conferências Pedagógicas dos Professores Primário, cujas novas
instruções são aprovadas em 11 de março de 1884. Sobre os
novos regulamentos, o periódico comenta "a providência da
publicação, portanto, produzirá a vantagem de aconselhar o
silêncio aos chamados professores que não podem arrostar a
crítica, e assim se evitará que o magistério, onde sem dúvida se
encontram cidadãos inteligentes, continue a desmoralizar-se com
as revelações de um atraso vergonhoso e de um raquitismo
incurável, como as que se presenciaram na ocasião do aludido e
constam daquele impresso (Conferência Pedagógica de 1883). Em
relação a tais "professores" nada valem as conferências, as quais,
no justíssimo conceito de Siciliani, longe de formarem professores
não fazem mais do que promover nos que são dignos desse nome a
239
atividade prática e teórica, e incutir-lhes na consciência a
dignidades, a alteza e o valor do mestre na sociedade civil; em uma
palavra, avivam o pensamento, despertam a mente, acendem e
excitam o entendimento, mas, não suprem e menos o criam" (n.3,
mar.1884, p.80).
É interessante assinalar os eventos que decorreram o
pronunciamento da sociedade. Em 18, 19 e 20 de dezembro de
1883, realizou-se a sétima conferência para os professores
primários e, depois das novas instruções, repetiram-se nos dias 21,
22 e 23 de abril de 1884 (oitava conferência), sendo então
ministro o Conselheiro Francisco Antunes Maciel6. As sessões
tiveram lugar no período da noite, em um dos salões do Externato
Imperial Colégio de Pedro II, nas quais compareceram Sua
Majestade o Imperador, o Visconde de Bom Retiro, o Ministro do
Império, além de membros do Conselho Diretor.
Segundo Souza Bandeira Filho (1884, p.28), a
freqüência de professores foi limitada, estando presentes 31 no dia
de maior presença. Justifica que os professores "parecem não ter
compreendido ainda com clareza o caráter e o fim das
conferências. Nas anteriores abriu-se larga discussão sobre todos
os assuntos referentes ao ensino, deixando-se de parte as teses
propostas. Uma das sessões chegou mesmo a ser suspensa por
tumultuosa. Os atos das autoridades eram sujeitos à crítica e a
julgamento, como se tratasse de um tribunal encarregado de tomar
contas à administração. Por outro lado, havia queixas de que não
se tinha ligado aos trabalhos das anteriores conferências o valor
que eles mereciam; nem eram publicados, nem se tomavam
providências no sentido indicado pelos professores". Quando ao
exposto, concorda que "a primeira queixa é justa, e para satisfazê-
la trato de reunir e classificar os discursos e observações da última
conferência, a fim de serem publicados7. A segunda não tem

6
Sobre, ver: BASTOS (2005)
7
Conferências Pedagógicas dos Professores Primários. Rio de Janeiro, 1884.
Trabalhos da oitava conferência pedagógicas dos professores primários do

240
fundamento; não é próprio das conferências pedagógicas de
professores tomar decisões obrigatórias para a autoridade superior.
Elas constituem um exercício destinado a aumentar as idéias e
estabelecer a animação e a vida do professorado"8.
A fraca freqüência dos professores nessa conferência
deve-se a um boicote que os professores primários fizeram, como
forma de repúdio às declarações do Sr. Balduíno Coelho na
conferência anterior (dezembro de 1883), relativas ao fato de a
classe do magistério ter abandonado o majestoso projeto de
instrução popular. Rui Barbosa, no editorial da revista Liga do
Ensino (n.4, 30 de abril de 1884), critica veementemente o
boicote: "A Liga do Ensino não tem e nem pretende, competência
nenhuma, para intervir nas relações disciplinares entre o
magistério elementar e os seus chefes legais, não conhece
pessoalmente os mestres, não lhes sabe os antecedentes, não lhes
compulsa a fé de ofício, nem os autos do processo, não ouve a
acusação nem a defesa, não tem meios pois de qualificar inocência
ou culpabilidade do acusado, sua conformidade ou rebeldia às leis
do respeito ao que o Magistério escolar, como sacerdócio, mais do
que outra qualquer classe está rigorosamente obrigado para com
seus legítimos superiores. (...) Ficou caracterizado por nós com
desassombrada energia de idoneidade profissional que, neste país, e
designadamente no Município Neutro assinala os mestres,
esterilizando a escola (...) procurou-se provar que o Magistério

Município da Corte. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884. 84 p.;


Conferências Pedagógicas dos professores Primários. Rio de Janeiro, 1886.
Trabalhos da nona conferência pedagógica dos professores primários do
Município da Corte e parecer emitido acerca pelo delegado J.G. d’Alambary Luz.
Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1886. 217 p.
8
Souza Bandeira, no parecer à 20ª questão do Congresso de Instrução
(1883/84) – Escolas normais: sua organização, plano de estudos, métodos e
programas -, alerta para o fato de que as conferências pedagógicas deveriam servir
para auxiliar o diretor com as suas luzes, mas nunca poderá suscitar um
embaraço à sua administração. Se assim não se fizer, haverá constantes motivos
para luta.

241
Primário contentara-se em mandar um professor hastear um
pendão de conciliação; mas que no ânimo de alguns dignos
professores que se haviam preparado para a conferência, ao receio
de incorrerem nas iras dos desgostosos, sobrelevaram as altas
inspirações do dever e da dignidade, frustrando-se a traça da
abstinência".
O professor Augusto Candido Xavier Cony, na
apreciação dos trabalhos da oitava conferência pedagógica (abril de
1884), faz referência ao fato dos professores estarem ressentidos
pelo que havia sido publicado na revista Liga do Ensino. Considera
que as palavras do professor Manoel José Pereira Frazão, na
sétima conferência9 - quando critica o modo como vinham se
realizando as conferências pedagógicas e conclama a necessidade
de organizar um plano de conferências, pois o modo como elas têm
se efetuado entre nós a nenhum resultado conduz -, serviram de arma
perigosa para com elas ferir o magistério primário. Opondo-se as
palavras de Frazão e de Rui Barbosa, Cony destaca que "desde que
nos compenetramos de que em nossas escolas se ensina a
"ignorância orgânica" é por isso que empreendemos a regeneração
do ensino, cumpre empregar todos os meios que nos aproximam
do nosso escopo, acelerando a transição que os fatos impuseram".
Afirma que as conferências foram um dos dispositivos adotados
para acelerar essa transição. Não considera as conferências como
espaço para a ostentação de conhecimentos de homens eruditos, mas
destinadas aos homens práticos do ensino, para dizerem em
linguagem singela e despida de atavios de eloqüência, o que fazem e o
que pensam sobre as diversas questões sujeitas à sua apreciação".

9
Frazão apontou a necessidade "de um programa minucioso quando os atuais
professores não tem sido preparados para tal ensino (lições de coisas), não
podendo em geral suprir essa falta, pois rigorosamente falando nem professores
são, porque não têm escolas". Suas palavras foram apoiadas pelos professores
Luiz dos Reis e Adelina Lopes Vieira. A revista Ensino Primário, publicação
mensal consagrada aos interesses do ensino e redigida por professores primários
do Rio de Janeiro, também publica noticia sobre esse evento.

242
Essa fala remete às críticas dirigidas às conferências - serem muito
teóricas, terem um caráter de cerimônia e solenidade, quando
deveriam ser conversas amigáveis e profícuas. O professor Gustavo
José Alberto denuncia a não concessão aos professores de uma
hora semanal para freqüentarem o Museu Escolar Nacional e sua
biblioteca10, que para ele seria muito mais útil e instrutivo.
As razões para o fim da Liga do Ensino e para a
paralisação da publicação da Revista da Liga do Ensino não são
claras. Uma carta de Rodolfo Dantas, de 26 de abril de 1884, traz
indícios de problemas: "quanto ao que me dizes de te exonerares da
presidência da Liga do Ensino, uma só coisa pondero - é que nem
só não concordo, como terminantemente exijo não consintas que
pensem em fazer-me teu sucessor naquele cargo(...). Pelo
contrário, se saíres, deves afiançar que continuarás como eu a
auxiliar a sociedade, mas sem que nenhum de nós caiba a
responsabilidade da direção, senão da colaboração que porventura
o tempo nos permita prestar ao orgão da sociedade. (...) A
propósito da Liga, e isto para nós dois unicamente, enquanto teu
nome está como responsável principal e ostensivo da Revista,
convém que lances a vista sobre tudo quanto se publicar, para
evitar a continuação das pendências desagradáveis como a que
agora vejo suscitada a propósito da suspensão de um tolheirão de
um professor. Para nós dois sós, suponho que o melhor é não se
falar mais, ou na crônica ou onde for, em conferências
pedagógicas e na suspensão do tal professor, etc. Vê isto com tato
para obviar qualquer aparência de participação tua ou nossa nesse
incidente" (DANTAS, 1973, p. 107-108).
Questões como essa, parecem ter colaborado para que a
Liga do Ensino deixasse de funcionar como organização antes da

10
Os Estatutos da Associação Mantenedora do Museu Escolar, de 5 de outubro
de 1883, destaca entre suas funções a organização de exposições permanentes, a
manutenção de uma biblioteca e a realização de conferências públicas destinadas
aos professores e demais interessados. Sobre o Museu Escolar Nacional, ver
BASTOS, 2002.

243
primavera de 1884. Outro motivo parece ter sido o fato de Rui
não ter se reelegido para a Câmara dos Deputados, em dezembro
de 1884, o que o levou a decidir interromper, bruscamente, a
maior parte de suas atividades não diretamente relacionadas com a
prática da advocacia.
A questão do ensino leigo cruza com a da liberdade de
ensino, ponto nevrálgico para vários integrantes desse grupo, que
defendiam a exclusividade da iniciativa privada, sem fiscalização do
Estado.

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Maria Helena Camara Bastos - Doutora em Educação -


História e Filosofia da Educação; Professora no Programa de
Pós-Graduação em Educação/ PUCRS. Pesquisadora do CNPq.

Recebido em: 10/10/2006


Aceito em: 15/03/2007

246
REVISTA DA LIGA DO ENSINO
(n.1, janeiro de 1884, p.1-30)

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 21, p. 247-273, jan/abr 2007


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
Fins da Liga do Ensino no Brasil:
A Liga do Ensino propõe-se a estudar os diversos ramos
da instrução pública e promover a adaptação de idéias scientíficas,
no tocante à organização, aos programas e os métodos de ensino.
Serão instituídos desde logo:
1º Conferências públicas sobre pontos mais
inrteressantes da moderna pedagogia para as quais se convidarão
especialmente os professores públicos e particulares;
2º Uma revista consagrada exclusivamente à discussão
das questões de instrução pública.
3º Comissões de estudo acerca do sistema dos
estabelecimentos de instrução e suas necessidades.
4º Quando os recursos da sociedade o permitirem, criar-
se-á uma escola modelo, onde a Instrução Primária seja praticada
com todos os aperfeiçoamentos e se possam pareciar as vantagens
do ensino leigo".

INTRODUÇÃO

Dos problemas que agitam as sociedades modernas


nenhum é mais importante e ao mesmo tempo mais difícil do que
a instrução. Podiam as sociedades antigas basear-se em outros
princípios, e com eles conseguir pleno desenvolvimento nos
tempos que correm, porém, a única força capaz de engrandecer um
povo é a ciência. Sob o ponto de vista moral ou material, político
ou social, é sempre ao país cuja massa da população dispõe de
maior soma de conhecimento que cabe a primazia no progresso
econômico, a influência decisiva no terreno das idéias. As
estatísticas o provam de modo incontrastável, e nenhuma das
nações cultas se tem poupado a sacrifícios, quando se der impulso
ao ensino.
Esta verdade, dominante em toda parte, não podia deixar
cedo ou tarde de atrair o cuidado dos poderes públicos no Brasil, e,
por menos que se haja feito, não é lícito escurecer que já se vai

248
compreendendo o valor daquela mesma questão. Quando outras
razões de ordem superior não estiverem reclamando a organização
e o levantamento dos estudos, uma que é poderosíssima se
imporia: - a vergonha do estigma, a que já temos feito jus, de um
povo de analfabetos. A atenção está despertada, não há negar. O
governo geral tem animado o aumento das escolas e a
desenvolvimento da Instrução em todos os graus; os poderes
provinciais empregam esforços para colocar a escola ao alcance de
todas as classes; a iniciativa popular manifesta-se cheia de
entusiasmo. Todos os dias, fala-se da escola como de uma
impreterível; o homem ignaro orgulha-se de dar ao filho a
educação que não recebeu. A questão já passou da teoria à prática.
Ninguém se satisfaz com teses gerais, o grande empenho é a
abertura de novas escolas, a freqüência de maior número de
alunos.
A propaganda é ativa; mas a sua direção terá sido a mais
conveniente? Os fatos encarregam-se de provar o contrário. Os
autores da propaganda não calculam sempre os esforços; nem
todos obedecem a uma tendência refletida; em suma, a grande
maioria não tem orientação cientifica. Encarado friamente no
Brasil o movimento em favor da Instrução Pública, nota-se que as
idéias se contradizem e os fatos prejudicam os interesses pelos
quais se propugna. As regras pedagógicas de aplicação mais
rigorosa são constantemente sacrificadas às aparências ou às
especulações, com detrimento das verdadeiras necessidades do
ensino. Multiplicam-se as escolas, mas não se verifica seriamente
se os mestres são capazes de desempenhar a sua função, e o meu
mestre é a ruína de uma geração inteira. Não se inquire as
doutrinas ensinadas correspondem à instrução de que carecem os
alunos. Não se trata de educar as aptidões humanas de modo
congruente. Quase sempre as resultados tornam-se negativos; a
escola muitas vezes é um foco de perdição. Com suas condições
anti-higiênicas, provoca ou desenvolve moléstias, que danificam os
órgãos do corpo; com suas aberrações e extravagâncias
metodológicas, perverte as faculdades da mente, ou inocula idéias
249
perigosas, as quais, recebidas na infância, nunca mais deixarão de
perturbar a marcha regular dos conhecimentos do individuo.
O problema do ensino precisa entrar em fase científica.
Passou o tempo das declamações ruidosas sobre a cultura
intelectual; e, em uma idade analítica como a nossa, é
simplesmente absurdo erguer instituições literárias em desacordo
com seus fins. Já não é cedo para encarar o ensino com gravidade
que exige o progresso científico, e estudá-lo com os processos
rigorosos da crítica ilustrada. Tem-se estragado muita energia e
perdido muito tempo com a má direção de tão generoso
movimento. Não basta alguma boa vontade e limitados
conhecimentos para se poder tratar de um assunto sociológico de
tão alta monta, questão de vida ou de morte para as sociedades
modernas. É forçoso confessar que no Brasil, arredadas as
exceções e alheias, a propaganda não tem passado da
superficialidade; diariamente somos surpreendidos com os mais
absurdos conceitos.
O resultado dessa anomalia é uma atualidade de que não
nos orgulha de povo civilizado. O balanço do ensino no Brasil
apresenta enorme déficit. Uma vista geral basta para indicar o que
possuímos, sem nos podermos chamar de vencedores de tudo como
os soldados de Alexandre, com eles podemos repetir: omnis inopes
sumus.
O ensino primário está entregue ao empirismo. As
poucas escolas normais existentes no país são combinações
monstruosas de erros pedagógicos; limitam-se a liceus
desorganizados. Os professores fazem-se por si próprios, sem
escola, e vão desempenhar a sua tarefa sem inspeção, nem auxílio.
Os métodos de ensino são os mesmos de há um século, ensina-se a
leitura pelo obsoleto processo alfabético, e quando a criança chega
a entender as palavras, não se cuida de desvendar-lhe o sentido das
frases. Ensina-se a gramática, condenando a inteligência em
proveito da memória, sem que a criança se interesse pelo emprego
da língua que fala. As poucas disciplinas que constituem o
programa de Instrução Primária, além daquelas, o cálculo e a
250
geografia perdem nas mãos dos preceptores os seus naturais
atrativos. As lições de coisas são desconhecidas na maior parte das
escolas, e os interessantes processos e aparelhos do método
intuitivo são menosprezados. A educação física é de todo
descurada; nem ao menos se praticam os rudimentais exercícios
calistênicos. A música e o desenho estão excluídos. A lei do ensino
integral é cotidianamente escarnecido como invenção teórica, por
uns empíricos ignorantes. Temos, é certo, muitas escolas, porém o
ensino é todo irregular; sacrificou-se a qualidade à quantidade.
São raríssimas as exceções e mesmo estas não passam de tímidas
tentativas devidas à iniciativa particular.
O ensino secundário é o mais triste documento do nosso
atraso intelectual. Favorece-se o capricho ambicioso dos pais, que
sonham para os filhos não o saber organizado, mas um ridículo
diploma de doutor. O ensino está deturpado pela especulação
vergonhosa dos empreiteiros de exames; os educadores
conscienciosos desanimam no meio do geral mercantilismo,
porque os discípulos os abandonam, trocando por fútil preparo o
estudo fecundo, mas laborioso. O Imperial Colégio de Pedro II
muda de organização como as romanas da decadência mudavam de
maridos, e cada reforma vem confirmar a incompetência de seus
autores. Apesar disso, o programa compreensivo daquele
estabelecimento é motivo para que a sua freqüência diminua todos
os anos. Os exames gerais preparatórios, limitados a poucas
disciplinas escolhidas sem propriedade, não constituem um
sistema de educação; falta-lhes harmonia e unidade. Os
adolescentes entram para os cursos superiores sem idéia da ciência
e de seus processos; os ridículos conhecimentos literários que
adquirem sem ordem nem seriação, mais concorrem para torná-los
superficiais e pedantes do que para iniciá-los em estudos mais
complicados. Pode-se dizer que em tal matéria havemos sem cessar
retrogradado.
O ensino superior tem sido ultimamente objeto de
intermináveis discussões e de avultadíssimas despesas. Entretanto
sacrificou-se tudo ao acidente e às exterioridades. A pretexto da
251
liberdade de ensino, matou-se o estímulo para os estudos sérios, e
inutilizaram-se os estudos práticos nas escolas experimentais; deu-
se ao estudante o direito de abreviar o seu curso por meio de
exames sem intervalo razoável. O exame é hoje a preocupação
única, em qualquer de nossas faculdades. Os professores são
nomeados mediante concurso sem gravidade; faltam-nos as
capacidades profissionais: elas fogem do ensino como lugar
malsinado. As faculdades vivem isoladas, desanimadas, sujeitas aos
caprichos de interpretações imprudentes e contraditórias. Os
métodos de ensino deixam enormemente que desejar. No
julgamento das habilitações dos alunos ocorrem singularidades
notáveis.
O ensino profissional está todo por organizar. O pouco
que existe no país para as classes inferiores é devido a esforços
particulares. Nem sequer os trabalhos manuais são adotados nas
escolas públicas primárias, para benefício dos alunos que as
freqüentam, julga-se ter feito tudo admitindo os trabalhos de
agulha para o sexo feminino.
Não é por calculado pessimismo que escrevermos estas
linhas desagradáveis para o nosso amor próprio. Elas não
representam uma confissão de desalento, mas um grito de rebate.
Podemos trabalhar com proveito e encaminhar os nossos esforços
para melhores resultados. Antes de tudo, urge convencermo-nos de
que a questão do ensino tem um lado científico, e que é este o que
de preferência merece a atenção dos Homens de boa vontade.
Estudamo-lo, portanto, no intuito de aperfeiçoar as nossas escolas
e salvá-las dos estragos do empirismo.
Tais são os intuitos da Liga do Ensino no Brasil. Esta
associação, composta de pessoas que se interessam pela
prosperidade da Instrução, e que com ela se ocupam em diversas
especialidades, propõe-se auxiliar e promover o progresso
pedagógico, perscrutando as nossas necessidades e procurando
indicar os meios de satisfazê-las. Ela não pretende difundir
escolas, porém aperfeiçoar os métodos; mostrar os abusos e pugnar
pela extinção deles; propagar os princípios científicos em matéria
252
de ensino e debelar as influências deletérias, que contribuem para
desnaturá-lo ou corrompê-lo. Em quase todas as nações existem
sociedades idênticas; em algumas funcionam com o mesmo nome,
e iniciaram seus trabalhos na obscuridade para combaterem com
mais segurança inimigos poderosos. Pareceu aos fundadores da
Liga do Ensino no Brasil que, em nossa pátria, aquela empresa
devia vir à luz da publicidade e que a sociedade devia viver às
claras.
Uma circunstância deplorável impõe-se à meditação dos
que estudam desapaixonadamente a Educação Brasileira. Por um
lado, a tendência dos nossos patrícios para entregar a educação dos
seus filhos ao elemento clerical, que abusa da instrução religiosa,
convertendo-a em arma de fanatismo; por outro lado, a educação
frívola subministrada por uns voltarianos sem preparo científico,
que fazem guerra a todo ideário religioso, incutindo no espírito das
crianças noções inexatas sobre os deveres morais. De ambas as
partes uma concepção falsa de religião. Aqueles que querem que o
ensino seja dominado por uma crença religiosa; estes pretendem
que o ensino seja dado no intuito de opugnar toda crença religiosa.
A pedagogia científica repele ambos os conceitos. Subsiste a
Religião como uma necessidade individual, necessidade que se
sente, mas não se impõe, que varia conforme a idade, e sofre a
influência do adiantamento da cultura. A tendência religiosa
requer educação compatível com as aptidões que excita. Na
primeira idade é inconcebível que o indivíduo compreenda os
profundos mistérios da religião. A educação consentânea a essa
idade exclui toda idéia de ensino dogmático, ao passo que exige a
prática constante dos deveres morais, a fim de levantar o espírito e
acostumá-lo a reconhecer uma lei para os atos humanos. Quando
o indivíduo chega a sentir a necessidade de ser instruído sobre
aqueles mistérios, é no lar doméstico que a família cumpre iniciar
o ensino dogmático, o qual só os ministros das religiões positivas
podem depois desenvolver adequadamente.
A escola é um lugar neutro, onde as crianças de todas as
condições se encontram sem nenhuma distinção para receberem o
253
ensino elementar. Toda separação de classes entre elas,
proveniente de motivos estranhos à escola seria condenável. Uma
religião positiva não se impõe às crianças; estas a recebem dos pais
e a conservam até que, na idade da razão, possam sobre ela
meditar. O ensino religioso na escola, e sobretudo na escola
popular, tem o triste resultado de excluir alunos, ou de fazer
seleção entre eles, obrigando-os a reparar em tal seleção sem
poderem apreender a razão dela. Por outro lado impor o ensino
religioso ao professorado equivale a interdizer o magistério
primário aos que não adotam a religião do Estado ou a autorizar a
deturpação do ensino, na hipótese de ser a escola dirigida por
indivíduo que se ache naquele caso. Finalmente, devendo a
Instrução Primária ser dada de modo intuitivo e concreto, não há
lugar na escola para um assunto todo abstrato, sobrenatural,
inacessível à capacidade infantil. De sorte que o ensino dogmático
religioso, excluído dos primeiros programas por um motivo
pedagógico, também não pode entrar em programas ulteriores pela
necessidade de afastar as causas de indevida exclusão ou separação
entre os alunos, e de não privar de um direito natural o cidadão,
ou impor-lhe uma degradação moral, viciando o ensino que se
quer dar e oferecendo aos alunos um exemplo de improbidade.
Sendo um dos principais intuitos da Liga do Ensino no
Brasil criar uma "escola modelo", a fim de proporcionar à visita
dos mestres uma instituição onde se pratique o ensino primário
com todos os melhoramentos, corria-lhe desde logo o dever de
inserir em sua constituição o princípio de que tal escola seria
inteiramente leiga. Este pensamento, que tem sido errônea e
malevolamente interpretado como se fora um sistema de reação
contra toda idéia religiosa, ou uma profissão de fé ateísta, não
podia aliás deixar de ser princípio cardeal para uma associação, que
pretende apoiar-se exclusivamente na ciência a fim de organizar
um plano regular de Instrução Primária. A declaração ostensiva
dessa idéia figurou na constituição da Liga do Ensino como uma
necessidade, desde que os preconceitos teológicos são uma das
causas porque a educação científica tem sido em toda parte
254
prejudicada. Para que a Liga do ensino pudesse conseguir seus
fins, cumpria que entre seus membros o "ensino leigo" fosse
proclamado essencial à seriedade dos estudos.
A escola imune de toda influência de seita é condição de
normalidade do ensino em geral, um corolário do seu caráter
científico; mas não lhe basta aquele qualificativo para que o ensino
seja completo. A secundarização da escola mão é mais do que uma
das aplicações do programa da nascente associação, muito mais
extenso e compreensivo, de pugnar por um plano científico que
abranja a organização do ensino em diversos graus. Possam estas
palavras acentuar, no ânimo de todos, qual o objetivo da Liga do
Ensino e destruir prevenções e erros, que, se por um lado são
promovidos por um partido constituído para perverter o espírito
das novas gerações, educando-as no ódio ao progresso científico, e
ao espírito secular. Por outro lado, indicam que o estado mental
do nosso país precisa de fortes abalos para libertar-se do influxo de
elementos desorganizadores, como o fanatismo e a meia ciência.

AS LEIS DO ENSINO
Apuntes para un curso de pedagogia

por el Dr. F. A. Berra.


(Montevidéo, 1883)

O nome do Dr. F. A. Berra era pouco conhecido entre


nós, mesmo no circulo dos que se entregavam a estudos especiais
de instrução pública. A recente exposição pedagógica pô-lo em
relevo, e de modo tão honroso que não é licito a quem se ocupa de
pedagogia, por ofício ou inclinação, desconhecer as idéias do
ilustre médico, que, dedicando o seu saber a serviço da causa do
ensino, elevou o novel da ciência e indicou-lhe uma orientação
precisa.
A falta de solidariedade política e literária entre os povos
da América latina tem trazido o deplorável resultado de

255
estragarem-se as forças pelo isolamento, limitando-se a âmbitos
muito estreitos as glórias de seus escritores notáveis. sem sair do
assunto que nos ocupa, diremos com segurança que muitos
brasileiros, interessados nos problemas pedagógicos, ignoram que
desde alguns anos estas matérias têm sido aprofundadas com
vantagem por escritores uruguaios e argentinos. Entretanto,
pondo de parte o Dr. Berra, cujas idéias examinaremos neste
artigo, são livros populares nos estados platinos: La educacion del
pueblo (Montevidéo, 1874), do Sr. José Pedro Varela, onde se
advogam com calor e erudição os melhores métodos de ensino e os
mais aperfeiçoados sistemas de organização escolar; o Manual del
preceptor argentino (Buenos-Ayres, 1875), do Sr. Vicente Aguilera
Garcia; os Informes sobre la educacion en los Estados Unidos, do
Dr. Manoel R. Garcia; La Madre y la escuela (Montevidéo, 1880),
do Sr. Jayme Roldos y Pons; as Lecciones de pedagogia (Buenos-
Ayres, 1878), obras diversas vezes reimpressa, do Sr. Van
Gelderen. Cumpre ainda lembrar os nomes dos Srs. Carlos Pena,
Jacob Varela, Nicanor Larrain, Raoul Legout, J. M. Torres, P.
Groussac, E. de Santa Olalla, Carlos Ramirez, Onésimo
Leguizamón, que tão notáveis trabalhos apresentaram no
congresso pedagógico de Buenos-Ayres.
Que movimento produzido por semelhantes
trabalhadores tem sido de favorável efeito, provam-no as vitórias
alcançadas no ensino primário e os recursos de que se há lançado
mão para ilustrar os preceptores. Só em Montevidéo, foram
publicadas traduções espanholas dos seguintes livros: Manual de
lecciones sobre objectos, de N. A. Calkins (1878); Manual de
metodos para uso de los maestros, de Kiddle, Harrison e Calkins
(1880); La ciencia de la educacion intelectual, moral y fisica, de
Herbert Spencer. Os dois últimos volumes pertencem à
interessante coleção intitulada La enciclopedia de educacion,
instituida pelo Sr. José P. Varela, e dirigida depois do seu
falecimento pelo Sr. Emilio Romero.
O Dr. Berra tem diversas obras revelado aproveitados
estudos políticos e médicos, geográficos e históricos. A pedagogia
256
foi o último assunto a que se dedicou com afinco; e nela criou um
nome que se imporá aos futuros investigadores. O projeto de
organização dos estudos secundários do Atheneu do Uruguai, o
projeto de regulamento geral para as escolas da mesma república, e
os seus livros: Como se deve instruir; Doctrina de los métodos,
considerados en sus aplicaciones generales; Informe acerca del
congresso pedagogico internacional de Buenos-Ayres, 1882 e diversas
outras monografias são trabalhos de merecimento. Sobre-sai,
como obra de real valor científico, a que tem o titulo transcrito no
começo deste artigo. Mereceu o primeiro grande prêmio (medalha
de ouro) na exposição internacional de Santiago; igual distinção
na exposição continental de Buenos Aires; o diploma de 1ª classe
na exposição pedagógica do Rio de Janeiro. A respeito dela
Bernard Perez manifestou o mais lisonjeiro juízo na Revue
Philosophique de novembro de 1883.
Neste livro verdadeiramente sugestivo o Dr. Berra
procurou reunir os elementos para a constituição científica da
pedagogia, e demonstrar que lhe cabe lugar incontestável na
classificação das ciências. Parece simples o intuito, sobretudo hoje
que ouvimos constantemente falar em pedagogia como ciência
completa e de soluções definitivas. Tal facilidade aliás tem
concorrido para desacreditá-la, a ponto de ser exato a respeito de
toda parte o que da Itália dizia Pietro Siciliani – que a palavra
pedagogia ali soa como si fora pedantismo. Basta refletir nas
tendências dos pedagogistas dos países onde mais florescente é o
assunto para reconhecer a inconsistência das tentativas. A
pedagogia alemã tem-se conservado num terreno nebuloso e
estéril, eriçado de teorias psicológicas contraditórias. O criticismo
científico ainda não destruiu a influência da psicologia de
Pestalozzi, superficial e defeituosa, eivada de acentuado caráter
religioso e ascético, que lhe prejudica o valor científico. A
pedagogia inglesa e a americana pecam pelo excesso contrário;
reduzem-se a processos empíricos, uns magníficos, inaceitáveis
outros, todos porém marcados com o mesmo cunho de
relatividade. Os livros ingleses são ricos de expedientes ou
257
observações isoladas; é notável a ausência de uma teoria
pedagógica. A tal defeito não escaparam Bain e Spencer. Na
França, na Suíça e na Bélgica, os escritores seguem duas torrentes
de opiniões; uns filiam-se à propaganda católica ou protestante,
outros propendem para um naturalismo por vezes exagerado. Em
qualquer das escolas a serenidade dos princípios científicos é
perturbada pelo espírito exclusivista do sectário. Os pedagogistas
italianos também não fundaram a ciência; nos livros de muitos
deles porém e sobretudo nos de Siciliani e De Dominicis vai se
notando salutar tendência para a introdução das leis de ensino.
As observações que acabamos de aduzir denunciam um
fato comum aos escritores de pedagogia. O ensino tem sido
tratado de um lado por indivíduos que passaram a vida a ensinar
disciplinas particulares ou por educadores que chegaram com o
tempo a reunir certa experiência muito respeitável; de outro por
filósofos que aplicam às questões do ensino, das quais
acidentalmente se ocupam, teorias formuladas de golpe, e que
saem perfeitas de seus gabinetes de trabalho à semelhança de
Minerva surgindo do cérebro de Júpiter. Uns e outros sentem-se
embaraçados para imprimir orientação científica aos estudos
pedagógicos. Aos primeiros falta o preparo filosófico indispensável
para alcançarem a intuição verdadeira, da teoria, da lei, do ideal;
os segundos sacrificam a prática, que lhes é desconhecida, e não
levam em conta os obstáculos que as circunstâncias individuais dos
educandos oferecem aos esforços do educador. Daí as soluções
parciais. Onde dominam os filósofos, como na Alemanha, a
pedagogia é uma ciência pretensiosa; onde dominam os práticos,
como na Inglaterra, a pedagogia é uma arte empírica.
Ninguém melhor do que o Dr. Berra podia abalançar-se
a tamanha empresa. Seus conhecimentos enciclopédicos, seu
sólido preparo filosófico, seu critério de publicista, suas
observações medicas, e finalmente seu gosto pelas cousas escolares,
tudo converge nele para formar o tipo de pedagogista. Senhor dos
fatos, sabe agrupá-los e generalizá-los, induzir as leis do ensino e
demonstrar-lhes a legitimidade pelo exame da respectiva aplicação
258
a cada ramo especial. A forma da exposição é inteiramente nova.
Em vez de seguir o método sintético, comum aos livros da
pedagogia, cujos autores começam por axiomas e teoremas, aos
quais subordinam, como deduções, tudo o que se segue, o Sr.
Berra preferiu o método analítico. O livro divide-se em duas
partes, formando um compacto volume. Na primeira parte,
intitulada Teoria do Ensino, chega, por meio do estudo do
organismo, a determinar as necessidades humanas, e, pelo
conhecimento destas, as condições pessoais indispensáveis para
satisfazê-las. Não é outro o fim do ensino, objeto da pedagogia.
Da comparação das aptidões do sujeito com o fim do estudo
originam-se os princípios fundamentais do ensino, o qual para o
Dr. Berra se divide em duas partes, a instrução e a educação, esta
tendo por objeto o governo das aptidões pessoais, e aquela
subministrando os conhecimentos. Na segunda parte do livro,
intitulada Prática do Ensino, desce-se gradualmente dos princípios
até as leis aplicação, pela consideração especificada de cada estado
pessoa e de cada matéria de estudo. Divide-se em três livros, dois
consagrados à demonstração das leis pedagógicas no que concerne
ao ensino educativo e ao instrutivo, e o terceiro que trata do
governo escolar.
Eis o arcabouço do livro. Um exame mais
circunstanciado habilitará o leitor a melhor apreciá-lo.
A teoria do ensino não é senão a reunião das leis que o
regem. Estas baseam-se nas necessidades humanas, e em natureza
dos objetos a que se dirigem à educação e à instrução. Para chegar
a determiná-las o Dr. Berra principia estudando o conceito do ser
humano. É um largo bosquejo de antropologia, onde o autor com
segura erudição passa em revista as aptidões humanas. Em
primeiro lugar vem o estudo anatômico das partes do corpo e a
indicação das condições normais para o seu desenvolvimento. A
preferência dada ao estudo somatológico justifica-se pela
necessidade de começar por aquilo que o homem chama antes de
tudo a atenção, o homem exterior. Em seguida, passa-se ao estudo
do homem interior, e a análise psicológica é a primeira. É um dos
259
primores do livro esse capítulo, ao qual o Dr. Berra se refere, com
grande felicidade de expressão, chamando-o fenomenografia da
mente. A imprestável teoria das faculdades da alma é substituída
por uma análise conscienciosa dos fenômenos mentais sob ponto
de vista subjetivo ou da introspecção. Banidos os erros
sistemáticos, o autor coloca-se no verdadeiro terreno científico,
chegando a distinguir sob ponto de vista pedagógico cinco aptidões
psíquicas, cujas leis cumpre apreciar: a perceptividade, a
sensitividade, a memória, a vontade e a fantasia. Cada uma dessas
aptidões é objeto de reflexivo estudo, e afinal vem o exame
psicofísico das condições cerebrais indispensáveis ao
desenvolvimento mental. Segue-se o estudo fisiológico, que se
inicia pela consideração minuciosa dos orgãos dos sentidos, e
termina por um capitulo notável a respeito do fenômeno da vida.
Do mesmo modo que o autor não se deixou, na análise psíquica,
seduzir pelas ilusões da escola espiritualista, ainda aqui é agradável
ver o psicólogo afastar as pretensões exageradas do materialismo,
tornando salientes as enormes lacunas que a ciência não pôde
ainda preencher. Quem chega a esta parte do livro não pode deixar
de convencer-se da sinceridade com que o Dr. Berra escreveu (p.
6I6) a seguinte declaração: "Exponho a ciência do modo porque a
concebo, sem preocupar-me com o que os outros pensam, e
sobretudo sem ocorrer-me jamais a idéia de misturar minhas
convicções com as dos outros, pois isto não se harmoniza com a
minha consciência".
Terminados estes estudos, completa o autor a análise do
conceito do ser humano pela apreciação das relações recíprocas
entre o físico e o moral. São dignos de menção os capítulos que
tratam dos temperamentos, da tendência imitativa, do habito, das
condições de alimentação, dos exercícios corpóreos; entre todos,
porém, sobre-sai pela originalidade dos juízos e dos fatos o
interessante estudo de psicologia infantil, intitulado
desenvolvimento físico e mental. O autor aí descreve o resultado de
suas observações a respeito das primeiras manifestações da
atividade mental de sua filha Aura, corrigindo e completando as
260
conhecidas comunicações de Darwin e de Taine. É uma
contribuição preciosa para a ciência psicológica.
Conhecidas as aptidões humanas, consiste o trabalho do
pedagogo em dirigi-las convenientemente, de modo que por meio
delas o homem possa atingir o pleno desenvolvimento da vida. O
fim do ensino, pois, é proporcionar às pessoas as condições
necessárias para o cumprimento do dever, quer este se refira à
individualidade, quer aos outros membros da espécie humana, quer
ao resto do natureza. É aqui que o Dr. Berra insiste na
necessidade de distinguir como idéias capitais a instrução e a
educação, ou para empregar na sua linguagem, o ensino instrutivo
e o educativo. Ele destrói com vantagem o erro de Th. Braun que
confunde os dois conceitos, deixando-se levar por uma
interpretação etimológica do verbo educare, e em larga dissertação
aponta os inconvenientes resultantes de semelhante confusão. A
opinião do Dr. Berra tende a ser a da maioria dos pedagogistas,
com quanto Bain e Spencer, em seus livros que se intitulam
tratados de educação, se ocupem de preferência com a parte
instrutiva. Já anteriormente o Sr. Ch. Robin, sob ponto de vista
da filosofia positiva, fizera igual reparo à obra de Spencer1. Para o
Dr. Berra a distinção é a que acima foi indicada. "Como só se
pode conhecer por meio das aptidões perceptivas, a instrução
apenas se refere aos sentidos, à consciência e à inteligência; porém
a educação se relaciona com todas as aptidões do corpo e da
mente, porque todas são suscetíveis de conservação,
desenvolvimento e hábito". Poder-se-ia dizer com acerto, para
ilustrar a idéia, que a instrução é o capital com que se aperfeiçoa e
se fortifica o trabalho da educação.
Entremos na parte mais atraente do livro: a indicação
das leis, que decorrem da comparação do fim do ensino com as
necessidades humanas e correspondentes aptidões. O autor, com
todo o fundamento, chama leis as condições a que o ensino se deve
1
Ch. Robin, L’instruction et l’education; artigos publicados na Revue de
philosophie positive (1876)

261
subordinar para que obtenha o seu principal intuito. Ora, essas
condições são determinadas por duas relações: Iª relação de
conformidade ou de conveniência do ensino com o fim moral dos
indivíduos; 2ª relação do ensino com a natureza do aluno. Daí
dois princípios cardeais em pedagogia, a correlação do ensino com
o seu fim ou principio de correlação final, e a correlação entre o
ensino e o sujeito que aprende ou principio de correlação subjetiva.
O Dr. Berra chama-os leis fundamentais; leis, porque as indicadas
relações são necessárias, inelutáveis, constantes, universais;
fundamentais, porque não derivam de outras, e pelo contrário,
delas dependem todas as condições de eficácia.
Vejamos agora as conseqüências teóricas que surgem
desses princípios, e primeiramente da correlação final, servindo-
nos o mais possível das próprias expressões do Dr. Berra. Se o
ensino consiste em educar e instruir, o primeiro problema que
assalta o espírito é o saber o em que se há de educar ou instruir,
isto é, qual a extensão do ensino. Resolvido este, cumpre averiguar
quanto se há de educar ou instruir para que o ensino seja
completo, isto é, qual a sua compreensão. A terceira questão pode
ser assim formulada: a extensão e a compreensão do ensino devem
ser as mesmas para todos os indivíduos da humanidade?
Finalmente é indispensável determinar em que relação devem estar
as matérias do ensino entre si e as pessoas que tem de aprender. O
Dr. Berra entra em largo comentário sobre cada uma dessas
questões, considerando-as sempre sob os pontos de vista da
educação e da instrução; para facilitar, porém, o trabalho do leitor,
indicaremos desde logo os resultados que ele chegou. São quatro
leis, que correspondem a outras tantas necessidades ou condições
do ensino. A lei da integridade resolve o primeiro problema; a da
suficiência, o segundo; o da universalidade, o terceiro; e a unidade,
o quarto.
Exige a lei da integridade que a educação se estenda a
todos os direitos e deveres do homem nos três estados em que ele
se pode achar, o de individualidade, o de cooperação livre, o de
cooperação social; e que a instrução abranja todos os
262
conhecimentos indispensáveis para o homem satisfazer suas
necessidades individuais e sociais e evitar o perigo da ignorância.
O Dr. Berra procede ao exame das matérias que devem formar um
programa integral. Na impossibilidade de reproduzir suas
observações, limitar-nos-emos a apontar os seis grupos em que as
classificou: 1º conhecimentos relativos à pessoa: anatomia,
fisiologia, psicologia e lógica; 2º conhecimentos de caráter ético:
moral e direito; 3º conhecimentos concernentes à conservação e
desenvolvimento da pessoa: higiene, medicina, ginástica e canto;
4º conhecimento das diversas formas do trabalho industrial; 5º
conhecimentos indispensáveis para que o trabalho satisfaça o seu
objeto: química, física, história natural, cosmografia, geografia,
história, geometria, desenho, aritmética, álgebra, e economia; 6º
conhecimentos que servem para a comunicação entre as pessoas,
isto é, linguagem, escrita e leitura.
A lei da suficiência exige que a educação não fique aquém
dos limites determinados pela moral e que a instrução não
contenha coisa que seja inútil à generalidade das pessoas, ainda
que excepcionalmente se possa reputar necessária a algumas, isto
é, nada mais, nada menos do que o indispensável para atender aos
fins do ensino primário.
A lei da unidade refere-se à verdade das doutrinas e à
conveniência das práticas. O ensino deve ser harmônico; as suas
partes não devem contradizer-se, nem destruir se mutuamente.
A lei da universalidade requer que o ensino favoreça em
todas as classes de pessoas, sem distinção de sexo, condição ou
país, as aptidões que podem exercer em virtude de sua natureza, e
que devem ter em razão dos deveres universais a que estão
submetidas. Na demonstração desta lei o Dr. Berra emite algumas
proposições que aparecem de exagerado alcance. Ele quer que o
ensino seja o mesmo para o homem e para a mulher, o branco e o
negro, o bárbaro e o civilizado, o homem do campo e da cidade.
Quanto à educação e instrução idênticas para o homem e a
mulher, é uma questão aberta. O Dr. Berra não admite nenhuma
diferença específica entre os dois sexos, e combate com todas as
263
forças a opinião contrária; entretanto ela tem respeitáveis
defensores entre os filósofos e psicologistas que pretendem
acompanhar o espírito moderno. No que respeita às outras classes
indicadas, certas proposições absolutas obscurecem o pensamento
do autor. Felizmente à página 488 dos Apuentes, tratando de
matéria diferente, consagra ele a seguinte restrição, que melhor dá
a entender o conceito da lei: "a universalidade significa que o
ensino a de aplicar-se a todos os indivíduos, porém não há de
aplicar-se a todos na mesma quantidade e nas mesmas condições".
Do principio de correlação subjetiva o Dr. Berra deriva
treze leis, que, com as quatro acima mencionadas, formam as
dezessete leis do ensino. Por amor da brevidade, apresentaremos as
leis juntamente com as explicações, seguindo a ordem dos
Apuentes de página 266 a 326, e a respectiva nomenclatura.
Como no caso procedente, o Dr. Berra divide em duas partes o
exame de cada lei, mostrando a sua aplicação ao ensino instrutivo
e ao educativo. Feita esta reflexão preliminar, podemos dispensar a
dupla demonstração, sendo o principal interesse do leitor
apreender a idéia capital.
A lei da exercitação das aptidões próprias exige que o
aluno se interesse pelo ensino, que procure, com o uso assíduo de
suas faculdades, não só aumentar-lhes o poder, como ir adiante do
preceptor, descobrindo por si, por seu esforço, novos
conhecimentos e aptidões. Acresce que, sem o exercício constante,
sucede com as aptidões o que se dá com qualquer orgão paralisado;
o tempo o estraga e consome.
A lei da conformidade requer que, para a obtenção de
conhecimentos e nas práticas educativas, se empregue ou se
exercite sempre, em relação a cada objeto, a aptidão individual que
rigorosamente corresponde ao mesmo objeto, e não outra.
A lei da adaptação. Não basta que se aplique a cada
objeto do ensino a aptidão individual correspondente; é ainda
mister que, em cada aplicação, se adotem os processos mais
acomodados à natureza do objeto e da aptidão. A propósito desta
lei o Dr. Berra examina cuidadosamente todos os métodos de que
264
se pode usar para obter conhecimentos e os enumera pelo seguinte
modo, indicando sempre as classes de noções a que se aplicam:
intuitivo, comparativo, abstrativo, de generalização, analítico,
sintético, analítico-sintético, e dedutivo-indutivo. Esta subdivisão
parece excessiva, e poder-se-ia sem inconveniente suprimir alguns
dos membros.
A lei da repetição do exercício. Não basta adquirir idéias, é
mister conservá-las, e a repetição do exercício é o meio seguro de
avivá-las. Por outro lado nem sempre se pode obter o
conhecimento claro e perfeito, com um primeiro exercício; muitas
vezes só depois de sucessivos esforços sobre o mesmo objeto é que
se consegue esclarecê-lo e determiná-lo.
A lei da continuidade dos exercícios com repouso corrige o
abuso que se poderia fazer da anterior. Os exercícios devem ser
contínuos para que as aptidões não se inutilizem, e perca-se a
vantagem alcançada; mas por outro lado o uso imoderado do corpo
ou da mente esgota a respectiva energia. É preciso dar tempo ao
organismo para se retemperar depois do exercício prolongado.
A lei da ordenação lógica, que não é mais do que uma lei
da mente, exige que, na educação ou na aquisição de
conhecimentos, se observe rigorosamente a ordem lógica, sem
saltos nem transtornos, quer se proceda do todo para as partes, ou
vice-versa, quer se induzam leis dos fatos particulares ou se
deduzam regras práticas das leis gerais.
A lei da coordenação. Um exame atento das conexões
existentes entre as matérias do ensino e suas relações com as
aptidões individuais correspondentes mostra que o estudo se torna
muito mais fácil, sempre que se congregam aquelas matérias que,
por apresentarem relações de dependência, determinam influências
recíprocas, mútuas facilidades, ao tempo do estudo. A constância
deste fenômeno constitui uma lei.
A lei da progressão exige que o ensino acompanhe
paralelamente o desenvolvimento natural das aptidões perceptivas e
das forças físicas, de modo que, em cada idade do indivíduo, não se
adiante a sua capacidade de receber conhecimentos, nem se
265
exagere o exercício compatível com seus orgãos. Na demonstração
dessa lei quanto ao ensino instrutivo, expos o Dr. Berra idéias
muito sensatas e aproveitáveis, chegando a generalizações e
respeito da idade, as quais, apesar de não se lhes poder atribuir o
valor definitivo que o autor parece querer dar lhes, todavia
merecem ser divulgadas. Entende ele que até os 8 ou 9 anos o
indivíduo não é verdadeiramente apto senão para adquirir noções
intuitivas, perceber as relações imediatas dessas idéias e analisar os
objetos a que correspondem; dos 9 até os 10 ou 11, aquelas
aptidões se fortalecem, a elas se agregam a de perceber as relações
gerais, a de reunir em série vários juízos, a de sistematizar, a de
empregar alternativamente a análise e a síntese no conhecimento
dos objetos que requerem tal alternação, e a de fazer simples
deduções; dos 10 ou 11 até os 13 ou 14 aumenta a energia das
preditas faculdades e a inteligência adianta seus raciocínios até as
noções abstratas e gerais; depois dos 13 ou 14 as aptidões
continuam a adquirir maior vigor, a pessoa conhece as reações
mais remotas das idéias e é capaz das mais complicadas induções.
A lei da atenção refere-se à concentração mental durante
os exercícios, condição indispensável para qualquer progresso do
ensino.
A lei dos motivos consagra a necessidade de recorrer a
forças reguladoras e impulsivas para moderar ou avivar a atividade.
O motivo é elemento necessário do labor humano, e por
conseguinte dos exercícios em que consistem a educação e a
instrução; o que importa dizer que não se poderá ensinar si não se
exercitarem e dirigirem as aptidões, promovendo motivos
apropriados.
A lei dos objetos impõe aos mestres a obrigação de
apresentar ao aluno os próprios objetos que hão de ser matéria das
lições, ou a sua representação.
A lei das formas regula o procedimento que deve observar
o mestre quando educa, indicando-lhe a forma mais conveniente
para que os seus esforços sejam coroados de feliz êxito, e o modo

266
por que deve variá-la de acordo com a natureza do objeto ou a
índole dos alunos.
Não seria completa a nossa exposição si não puséssemos
em relevo as repetidas referências feitas pelo Dr. Berra ao livro do
Sr. José Varela, La educacion del pueblo, de que já tivemos ocasião
de falar. É uma homenagem póstuma prestada pelo autor ao
ilustre cidadão que primeiro se ocupou seriamente em sua pátria
das questões escolares. O Dr. Berra chama-o o Horacio Mann
uruguaio, e em nota à pagina 220 dos Apuentes compara a sua
obra com aquela, procurando filiar as próprias idéias a um
movimento iniciado pelo Sr. Varela. É fácil perceber que nesta
afirmação a modéstia exagerou o preito de homenagem. O livro do
Sr. Varela é uma exposição brilhante e apaixonada dos progressos
da instrução nos povos cultos da Europa e da América do Norte;
falta-lhe, porém, certo cunho científico, que constitui aliás o
mérito da obra que examinamos. O Sr. Varela foi o iniciador da
Sociedad de amigos de la Educacion popular de Montevidéo, hoje
presidida pelo Sr. Berra.
A segunda parte dos Apuentes, tão extensa como a
primeira, trata da prática de ensino. Aí o autor reproduz sob outra
forma a doutrina já conhecida. Examinando sucessivamente cada
grupo do programa, esforça-se por mostrar como devem ser
observadas as leis do ensino, e este longo arrazoado é repetido em
dois capítulos, um destinado especialmente à instrução e outro à
educação. Tão laborioso, mas fecundo comentário tem por alvo
provar a necessidade de distinguir o trabalho instrutivo e o
educativo do mestre. O último capítulo, intitulado governo
escolar, forma uma síntese do conteúdo da obra. O autor resume
o seu sistema fazendo a resenha das leis do ensino, sob o ponto de
vista das obrigações do aluno, das funções do mestre, e finalmente
de outras providências que podem e devem ser tomadas para a boa
direção da escola.
Não é nossa intenção criticar o livro do Dr. Berra; foi
nosso exclusivo propósito tornar conhecidas do público brasileiro
as idéias do ilustre escritor, e chamar para elas a atenção das
267
pessoas que se ocupam de pedagogia. Seja-nos contudo permitido,
não obstante o pleno acordo em que nos achamos quanto ao
exame dos fatos e às observações, manifestar algumas restrições.
Nossas dúvidas versam sobre o valor das leis derivadas do princípio
de correlação subjetiva. Parece-nos que neste ponto o Dr. Berra
não foi tão feliz como na parte concernente ao princípio de
correlação final. Aqui as suas generalizações são rigorosas e exatas;
ali o trabalho de generalização é incompleto. O autor ficou por
vezes a meio caminho, e elevou à altura de leis fatos particulares
redutíveis a princípios de ordem superior; outras vezes a
generalização foi mais rápida do que o permitiam os processos
lógicos.
Uma lei geral domina o ensino em todas as suas
manifestações, sob ponto de vista da correlação subjetiva; é o que
se poderia chamar a lei do esforço individual. Se o aluno não está
disposto a auxiliar o trabalho do mestre, se não começa por prestar
atenção aos seus preceitos, se não procura ir adiante dele
apreendendo pelas explicações dadas o que deve seguir-se, se não
exercita os orgãos de modo a fortalecê-los, se não repete consigo os
exercícios já feitos para melhor conservar os conhecimentos
adquiridos, todo o ensino é inútil. Sem o trabalho do aluno, o
melhor mestre perde o seu tempo. Esta lei escapou à fina
observação do Dr. Berra, que a dividiu em três, sob os títulos de lei
da exercitação das aptidões próprias, lei da repetição do exercício, lei
da atenção. Não há aí três leis diferentes; são aplicações, várias é
verdade, mas em todo caso aplicações de uma só e mesma lei: a do
esforço individual do aluno. Desde que se trata de um trabalho de
generalização era a esta lei, e não aquelas três aplicações, que
cumpria atender. Depois ficaria livre ao autor entrar no exame
circunstanciado da lei geral, e dela deduzir os corolários.
Incorrem em igual censura as leis denominadas de
ordenação lógica, de coordenação, de progressão. Todas são
dominadas por um princípio superior, a lei da evolução. Com
efeito, qual a função daquelas leis? A primeira manda observar a
ordem lógica na obtenção dos conhecimentos e na educação das
268
aptidões, isto é, respeitar as ligações naturais, seguir do simples
para o composto, do incomplexo para o complexo, do fácil para o
difícil, do conhecido para o desconhecido, emfim do homogêneo
para o heterogêneo, como diria Spencer. Não é outro o processo
evolutivo. A segunda não faz mais do que recomendar os mesmos
preceitos, quanto ao estudo simultâneo de diversas disciplinas. O
que a primeira exige na passagem de uns a outros conhecimentos,
exige-o a segunda na passagem de umas a outras disciplinas. A
terceira nada traz ainda de novo. A evolução é considerada no
próprio sujeito em favor de quem são estabelecidas das duas leis
anteriores; o Dr. Berra o confessa, denominando-as leis da mente.
Todas as aptidões humanas estão subordinadas àquela lei fatal, e
por isso é indispensável, na aquisição de conhecimentos ou na
educação, acompanhar o desenvolvimento da idade, porque o
tempo é o fator principal da evolução. Não se trata pois de três leis
distintas, senão de aplicações separadas de uma só e mesma lei.
Ainda desta vez deu-se aos corolários categoria que lhes não cabe.
Submetidas a idêntico processo de generalização,
verifica-se que as leis da conformidade e da adaptação não são
irredutíveis. A lei do esforço individual rege os deveres do aluno, a
lei da evolução prescreve a marcha racional do ensino; uma terceira,
que chamamos da congruência ou da proporção, fixa a função do
mestre, exigindo que, na prática do ensino, se aproveitem do
melhor modo as aptidões dos alunos, e isto se obtem não somente
exercitando as aptidões individuais adequadas ao objeto do ensino,
mas ainda empregando os processos acomodados à natureza do
objeto e à índole do aluno. Senão se observam estas condições, o
ensino é incongruente, não mantém a devida proporção entre o
sujeito e o objeto. É portanto evidente que os princípios invocados
pelo Dr. Berra, sob os títulos de conformidade e adaptação
referem-se em substância à mesma idéia. Esta por conseguinte é a
lei.
Um quarto princípio parece-nos deduzir-se do de
correlação subjetiva e abranger duas leis denominadas pelo Dr.
Berra de continuidade dos exercícios e de alteração dos exercícios
269
com o repouso. É tão íntima a conexão entre estas idéias, que o
autor não pode deixar de ponderar que a segunda lei corrigiria o
abuso possível da primeira. Com efeito, ambas prescrevem as
condições em que os exercícios devem ser executados para não
fatigar os orgãos, conservando-os aliás em movimento constante
até que o objeto do ensino seja bem elucidado. Se os exercícios de
certa natureza são interrompidos durante longo intervalo, a
aptidão correspondente não se ativa, e quando volta o exercício,
quase que se tem de fazer trabalho novo. O contrário sucede se os
exercícios são tão repetidos que não se deixa tempo para o repouso;
os orgãos fatigam se, e não são capazes dos resultados que, em
condições normais, é lícito deles esperar. Esta lei que assim regula
a sucessão dos exercícios, a fim de atender ao aproveitamento das
aptidões, pode ser denominada lei do equilíbrio dos exercícios.
Prescreve que eles variem tão freqüentemente quanto seja
necessário para que produzam o efeito educativo ou instrutivo,
sem prejuízo para o orgão individual, proveniente de uma
contensão demasiada.
A lei das formas contempla na mesma categoria das
demais, não oferece a generalidade que se lhe atribuiu. Está
subordinada a outra lei que o Dr. Berra chamou da adaptação. Se
esta impõe ao preceptor a obrigação de empregar no ensino os
processos mais adequados à natureza do objeto e da aptidão, é
claro que a forma do ensino deve ser por ela prescrita. O problema
da forma é, pois, questão secundaria, que se reduz à lei da
adaptação, a qual por sua vez refere-se a outra lei superior.
Da mesma crítica é suscetível a lei dos objetos. Esta
requer um método particular para determinada ordem dos
assuntos. Ora, se há uma lei geral, que domina todos os métodos e
lhes fornece preceitos particulares (a lei da adaptação, conforma o
Dr. Berra, ou da congruência, conforme as nossas idéias) para que
erigir em lei fundamental o princípio que regula um método
particular? Ela é sem dúvida a aplicação muito legítima de outra
lei; por isso mesmo, porém, cumpre dar-lhe o verdadeiro lugar. O
equívoco do Dr. Berra foi tanto mais prejudicial, quanto o induziu
270
à conclusões dissonantes de suas idéias tão lúcidas a respeito do
conceito lógico da lei. Na página 318 dos Apuntes, falando sobre a
obrigação dos mestres de apresentar sempre ao aluno o próprio
objeto que serve de assunto à lição, acrescenta: "Como isto nem
sempre é possível, já por ser demasiadamente volumosos o objeto,
por ser caro ou perigoso, já por não existir no país ou no lugar
onde está a escola, então a necessidade obriga a infringir a lei,
porém o dever prescreve infringi-las o menos possível, e suprir o
objeto que falta por outro que se assemelhe, isto é, por imitações
corpóreas cuidadosamente feitas". Parece-nos que esta linguagem
não caracteriza bem uma lei natural, e pode concorrer para dar ao
preceptor idéia falsa. Ter-se-ia tudo evitado si, em vez de assinar-
lhe papel tão proeminente, o Dr. Berra fizesse descer a dita lei à
categoria das aplicações. A lei dos objetos, seja dito de passagem, é
tanto mais secundária quanto é muito contestável se os seus
efeitos se estendem ao ensino instrutivo e ao educativo, ou
somente ao primeiro. As repetidas demonstrações do autor quanto
à aplicação de tal lei ao ensino educativo não passaram de
reproduções de que ficara assentado para o outro ensino.
Resta-nos tratar das leis dos motivos, à qual contestamos
o mesmo que as anteriores. A exposição do Dr. Berra presta-se
neste ponto a duas críticas. Em primeiro lugar, a lei dos motivos e
inconciliável com as idéias exibidas à pagina 83 dos Apuntes. Aí o
Dr. Berra revelou se partidário do livre arbítrio, e tentou refutar a
argumentação determinista. Em nota acrescentou que não se
ocupava com o argumento deduzido da presciência de Deus por
estimá-lo o mais fraco. Está fora do nosso plano invadir os
domínios da metafísica; limitar-nos-emos a acentuar a contradição
das idéias. O Dr. Berra nega a influência decisiva dos motivos em
nossas determinações; satisfaz-se com a ilusão da consciência, e
afirma, referindo-se ao homem: "Porque é livre, prefere entre os
motivos; e não preferiria, se fosse a fatalidade a sua forma" (p. 84).
Quem professa tais idéias, não tem o direito de elevar depois os
motivos à categoria de lei. Ou os motivos formam lei, que a
vontade se subordina, e então o livre arbítrio é uma fantasia; ou a
271
vontade é que dá preferência aos motivos, e então estes perdem
todo o caráter obrigatório ou coercitivo, não podem constituir
uma lei. Não há meio termo. Spencer manifesta o mesmo juízo:
"As mudanças psíquicas estão sujeitas a uma lei ou não estão. Se
não se conformam com uma lei, o meu livro, como todos os que
tratam do mesmo assumto, são meros contrasensos. No caso
oposto, não existe o livre arbítrio2".
É palpável a contradição. Admitido, porém, que o Dr.
Berra corrigiu o seu primeiro juízo, e adotou o determinismo
científico para explicar os atos humanos, subsiste outra objeção.
Não é lícito considerar lei geral do ensino um princípio moral,
que, tendo incontestável influência no ensino educativo, nenhuma
aplicação constante encontra na instrução. O próprio Dr. Berra
achou-se embaraçado; mas nas suas minuciosas demonstrações das
leis do ensino por meio da aplicação aos diversos ramos da
educação e da instrução, excluiu sistematicamente a lei dos
motivos, de sorte que devemos contentar-nos com os poucos
esclarecimentos da XII divisão do 6º capitulo da primeira parte
dos Apuntes. Estas mesmas são insuficientes. Definem-se os
motivos, estabelecem-se as suas diversas espécies, e afinal em
pouco mais de uma página mostra-se a influência deles na
instrução, alegando-se que há indivíduos que estudam por prazer,
outros que sentem aversão ao estudo, e, entre os extremos,
numerosos termos médios. Cumpre ao mestre fortificar os motivos
que encaminham para a instrução, sobretudo os intelectuais-
naturais por serem mais moralizadores. Os próprios termos dessa
explicação excluem a legitimidade da lei. O ensino instrutivo
subministra conhecimentos, diz o Dr. Berra; mas a lei dos
motivos não faz senão auxiliar a educação das faculdades,
preparando e provocando o trabalho. E’ incontestável a influência
da educação no ensino instrutivo, e daí o fato de manifestarem
neste os seus efeitos as leis peculiares daquela; mas para chegar a

2
H. Spencer. Principles of psichology

272
tal resultado não há necessidade de fazer generalizações
exageradas. Se os motivos racionais são indispensáveis para
alimentar o trabalho do aluno, a lei do esforço individual exige a
educação deles; se, sem o auxílio dos motivos, o mestre não pode
contar com o resultado do seu esforço, a lei da congruência o
obriga a fortificá-los. O que não se pode pretender é confundir a
educação com a instrução, depois de haver estabelecido entre elas
distinção radical.
Em suma, sem contestar a veracidade e justeza das
observações do Dr. Berra a respeito das leis do ensino, por ele
derivadas do principio de correlação subjetiva, parece-nos que elas
não têm todas igual valor. Separadas as três últimas, que se
referem às anteriores, ou se aplicam exclusivamente a um dos
ramos do ensino, as outras dez podem-se reduzir, salvas as
denominações que nada tem de definitivo, a quatro leis: a do
esforço individual, a da evolução, a da congrüência e a do equilíbrio
dos exercícios. Se são as únicas, não podemos afirmá-lo; o nosso
pensamento não foi fixar as leis do ensino, mas simplesmente
manifestar nossa consideração por um ensaio de generalização,
que nos afigura o sistema mais adequado para organizar a ciência
pedagógica.
Dr. Souza Bandeira Filho

273
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