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Seu Antônio
Seu Antônio
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admiração de parte a parte. Havia, sim. Acho que existe ainda, talvez,
porque tenho certeza de que vou continuar a enxergar o Seu Antônio
sentado atrás daquela mesinha, girando a cadeira, me cumprimentando
alegremente e, muito tímido, às vezes me puxando para confidenciar
“a última” da galeria. Pena que não poderei apresentar o Seu Antônio a
quem mais vier aqui no prédio. Pena.
Não fui vê-lo no hospital enquanto morria. Sei que ele não ia
querer ser visto por mim no estado em que o câncer o deixou. Dias
atrás, cheguei a ligar para o número que ele fazia questão de deixar
ligado e atender pessoalmente, mas notei que, ao conversar comigo,
mostrou-se grato, formalmente, mas fez questão de demonstrar que
não queria muita conversa. Dispensava piedade. Era bem dele.
Respeitei, embora sempre procurasse saber notícias. Soube que pôs a
correr algumas funcionárias do prédio que resolveram visitá-lo no
hospital, dizendo a elas que fossem embora dali e o deixassem morrer
em paz. Não quis que o vissem sofrer. Recusou-se orgulhosamente a
ostentar sua dor.
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sempre por volta das vinte horas, apresentado com muita maestria pelo
radialista Éldio Macedo. Impressionavam-me as lutas realizadas
sempre entre personagens caracterizados. Havia o Fantomas, o Tigre
Paraguaio, o Ted Boy Marino, o Escaramouche e o Homem Branco
que, bem mais tarde, vim a saber que era o Seu Antônio aqui da
Galeria. Meu olhar de criança via nos lutadores verdadeiros heróis
comparáveis àqueles que viviam no imaginário das histórias infantis,
com a diferença de que os que apareciam na tela da TV preto e branco
lá de casa eram todos reais, existiam de verdade. E, tal e qual os
personagens dos desenhos animados, eles caiam e, milagrosamente,
não se machucavam! Recusava-me a crer que era tudo ensaiado, como
asseverava meu pai. No fundo, sabia que os lutadores do Ring 12
Liquigás eram todos mágicos, encantados. Pelo menos, eu queria que
fosse assim, na minha obstinada ilusão que era preciso manter.
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dentadas enquanto caminhava pela Galeria. Sempre sabia os dias de
feijoada e de mocotó dos arredores, fazendo questão de anunciar onde
e de que jeito eram servidos, assim como os melhores preços. Nunca
se importou com a doença. Dessa forma, com o tempo, passou a
desaparecer da Galeria por dias e dias, cada vez mais seguidamente.
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Eu não vou ao enterro do Seu Antônio. Não quero ver seu
corpo nem me despedir dele. Vou conservá-lo no meu coração, e vou
procurar vê-lo todos os dias em que passar pelo saguão, a cada
chegada e a cada partida.
Agora não está. Fará falta o Seu Antônio, mas vou mantê-lo
vivo na minha imaginação também, assim como na memória, falando
dele aos novos e mantendo sua lembrança junto aos velhos
funcionários e condôminos daqui. Afinal, Seu Antônio faz parte da
história deste prédio e vai habitá-lo no imaginário da Galeria,
assombrando escadas e corredores, quem sabe. Não quero que ele seja
esquecido, por isso faço o que posso, neste meu testemunho triste de
saudade, insistindo em continuar a dar Chau! Seu Antônio. Até
amanhã!