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SE UANTÔ NI O

Maristela Bleggi Tomasini

Li o aviso impresso logo que cheguei ao saguão. Seu


Antônio faleceu hoje. O enterro vai ser amanhã, em Canoas. A Galeria
Rosário não será mais a mesma, porque aquela figura ímpar, que
chefiava a segurança do prédio, nunca mais vai estar ali. Sentado por
trás da mesinha que ficava ainda menor diante do corpanzil daquele
ex-lutador que durante tantos anos, sempre com cara de brabo, encarou
qualquer um que lhe parecesse estranho ou suspeito.

Muito grande e forte, Seu Antônio fazia questão de passar


por mal-encarado e mesmo afetar uma certa truculência. Com mais de
um metro e noventa e muitas dezenas de quilos extraordinários, o rosto
gordo assentado sobre um pescoço hercúleo, ele se movia com
surpreendente agilidade, considerado o respeitável volume do ventre
distendido. Olhava de frente para qualquer um, sem piscar os olhos
muito azuis, de um tom que me lembrava exatamente aquele das
hortênsias do jardim de minha avó. Com sua voz rouca e até bem
colocada, ia logo perguntando aos que lhe pareciam indecisos o que
estavam querendo na galeria. Ao longo do tempo, colecionou histórias
interessantes, ao menos o bastante para se fazer respeitar pelos
malandros e vagabundos do centro que se entregam à rotina de aplicar
golpes e de furtar bolsas e carteiras. Corria a lenda de que Seu Antônio
costumava levá-los para uma espécie de passeio de elevador. Só os
dois. Iam até o vigésimo segundo andar e depois voltavam. Uma linda
vista para o Guaíba. Depois disso, o malandro ficava muito tempo,
mas muito tempo mesmo, sem dar as caras pelos corredores da
Galeria. Nunca vi nada disso. Sei, todavia, que ele gostava de
alimentar todos os mitos, boatos, ditos e lendas que faziam dele um
homem terrível, sem esquecer-se de detalhar algumas técnicas de
segurança, comentando depois que eram coisas dos tempos idos que
não voltam mais.

Seu Antônio era, na verdade, uma doçura de pessoa.


Verdadeiramente capaz de extrema delicadeza, sem qualquer afetação.
E como me queria bem! Recíproco o carinho. Sempre fiz questão de
cumprimentá-lo, parando para conversar, ouvindo as novidades do
prédio. Falava bem de mim, o Seu Antônio, para quem eu era a
Doutora. Alegre, cordial, bem humorado, corava sempre que eu dizia
que ele estava muito fofo, tocando seu ombro com o carinho que
sempre fiz questão de devotar-lhe.

Célia, a síndica do prédio, ligou há pouco para dar


pessoalmente a notícia, porque ela sabia que havia uma grande

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admiração de parte a parte. Havia, sim. Acho que existe ainda, talvez,
porque tenho certeza de que vou continuar a enxergar o Seu Antônio
sentado atrás daquela mesinha, girando a cadeira, me cumprimentando
alegremente e, muito tímido, às vezes me puxando para confidenciar
“a última” da galeria. Pena que não poderei apresentar o Seu Antônio a
quem mais vier aqui no prédio. Pena.

Não fui vê-lo no hospital enquanto morria. Sei que ele não ia
querer ser visto por mim no estado em que o câncer o deixou. Dias
atrás, cheguei a ligar para o número que ele fazia questão de deixar
ligado e atender pessoalmente, mas notei que, ao conversar comigo,
mostrou-se grato, formalmente, mas fez questão de demonstrar que
não queria muita conversa. Dispensava piedade. Era bem dele.
Respeitei, embora sempre procurasse saber notícias. Soube que pôs a
correr algumas funcionárias do prédio que resolveram visitá-lo no
hospital, dizendo a elas que fossem embora dali e o deixassem morrer
em paz. Não quis que o vissem sofrer. Recusou-se orgulhosamente a
ostentar sua dor.

Seu Antônio chegou a ser uma figura conhecida em Porto


Alegre, quando, nas décadas de sessenta, acho que mesmo ainda em
setenta, praticava luta livre num programa com bastante destaque, com
transmissão ao vivo pela TV local, todos os domingos à noite. Nos
meus tempos de criança, eu assistia infalivelmente ao programa,

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sempre por volta das vinte horas, apresentado com muita maestria pelo
radialista Éldio Macedo. Impressionavam-me as lutas realizadas
sempre entre personagens caracterizados. Havia o Fantomas, o Tigre
Paraguaio, o Ted Boy Marino, o Escaramouche e o Homem Branco
que, bem mais tarde, vim a saber que era o Seu Antônio aqui da
Galeria. Meu olhar de criança via nos lutadores verdadeiros heróis
comparáveis àqueles que viviam no imaginário das histórias infantis,
com a diferença de que os que apareciam na tela da TV preto e branco
lá de casa eram todos reais, existiam de verdade. E, tal e qual os
personagens dos desenhos animados, eles caiam e, milagrosamente,
não se machucavam! Recusava-me a crer que era tudo ensaiado, como
asseverava meu pai. No fundo, sabia que os lutadores do Ring 12
Liquigás eram todos mágicos, encantados. Pelo menos, eu queria que
fosse assim, na minha obstinada ilusão que era preciso manter.

Não é difícil constatar que Seu Antônio permaneceu, para


mim, como digno depositário dessa crença infantil. Afinal, era o
Homem Branco, agora disfarçado de chefe da segurança da minha
Galeria Rosário.

Seu Antônio foi-se aos poucos, embora jamais me tenha


parecido fraco. Primeiro comentou da diabete que o estava
importunando. Mesmo assim, insistia em comer como Pantagruel,
devorando, só no lanche, de três a quatro lingüiças fritas que comia às

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dentadas enquanto caminhava pela Galeria. Sempre sabia os dias de
feijoada e de mocotó dos arredores, fazendo questão de anunciar onde
e de que jeito eram servidos, assim como os melhores preços. Nunca
se importou com a doença. Dessa forma, com o tempo, passou a
desaparecer da Galeria por dias e dias, cada vez mais seguidamente.

Eu sabia que eram internações hospitalares. Mal se


recuperava, voltava à vidinha de sempre, sem fazer nenhum
comentário sobre doença ou saúde. Ultimamente, porém, eram mais
idas do que vindas. Voltava cada vez mais inchado e cada vez por
menos tempo. Afastava-se aos poucos. Da última vez, saiu do hospital
e foi para casa. De lá, novamente para o hospital de onde só saiu hoje.
Morto.

Nos últimos dias a doença se agravara intensamente. Parada


renal, tumor no fígado, retenção de líquidos no organismo. Para ele,
uma tortura, que deve ter lhe afetado o próprio sentimento de
dignidade. Esperava pela morte. Sabia de seu estado. As notícias
corriam pelos corredores e todos nós, gente da galeria, comentávamos
que estava por “se decidir”, faltando pouco para o fim, que poderia ser
a qualquer momento. Foi hoje. Amanhã, será a despedida formal que já
está marcada.

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Eu não vou ao enterro do Seu Antônio. Não quero ver seu
corpo nem me despedir dele. Vou conservá-lo no meu coração, e vou
procurar vê-lo todos os dias em que passar pelo saguão, a cada
chegada e a cada partida.

Pelo menos algumas vezes ele me deu o prazer de sua visita.


Veio até a 407 e tomou café comigo. Ficava pouco tempo. Coisa dele,
eu acho. Parecia temer atrapalhar o meu trabalho. Sempre tinha
extremo cuidado em reparar o quarto andar, cuidando qualquer sinal da
entrada de estranhos que porventura circulassem com jeito de quem
não sabe para onde vai. Impunha respeito com seu tamanho. Gostava
disso. Quando passava pelo corredor, estando a porta entreaberta,
cumprimentava, perguntado se estava tudo certo.

Agora não está. Fará falta o Seu Antônio, mas vou mantê-lo
vivo na minha imaginação também, assim como na memória, falando
dele aos novos e mantendo sua lembrança junto aos velhos
funcionários e condôminos daqui. Afinal, Seu Antônio faz parte da
história deste prédio e vai habitá-lo no imaginário da Galeria,
assombrando escadas e corredores, quem sabe. Não quero que ele seja
esquecido, por isso faço o que posso, neste meu testemunho triste de
saudade, insistindo em continuar a dar Chau! Seu Antônio. Até
amanhã!

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