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XXIV Simpósio Nacional de História

ENTRE ELITES E INSTITUIÇÕES:

a favor de uma revisão conceitual e

empírica da dinâmica política do Estado Novo

Adriano Nervo Codato

Universidade Federal do Paraná

adriano@ufpr.br

UNISINOS

São Leopoldo (RS)

Julho de 2007
Entre elites e instituições:
a favor de uma revisão conceitual e empírica da dinâmica política do Estado Novo
Adriano Codato1
Resumo: O historiador Boris Fausto, em seus Pequenos ensaios da história da República
(1889-1945), publicados em 1972, notou que nas visões difundidas sobre o Estado Novo “A
afirmação de que entre os dois pólos (Estado/Sociedade) o primeiro se tornou dominante é
lugar comum. O que importa saber – e para isso nos faltam estudos – é como se efetivou
concretamente esta dominância, precisando-se o grau de autonomia do Estado diante das
diferentes pressões articuladas pela sociedade”. Sem abandonar completamente, mas
também sem enfrentar diretamente essa agenda de pesquisa, a historiografia sobre o
período 1937-1945 voltou-se desde então muito mais para temas da História Cultural e da
História Social (ou mesmo da História Econômica) do que para os problemas tradicionais da
História Política. O objetivo deste ensaio é analisar a relação entre as elites políticas
regionais e as instituições nacionais a fim de compreender e explicar as formas concretas de
representação de interesses políticos durante o Estado Novo e, por essa via, (re)discutir dois
tipos de problemas: um de tipo conceitual, ligado à questão da “autonomia do Estado” e à
noção de “Estado de compromisso”; outro de tipo empírico, ligado à questão do federalismo
e da centralização.
Palavras-chave: elites políticas – autonomia do Estado – Estado Novo.
Between Elites and Institutions: For a Conceptual and Empirical Revision of the
Political Dynamics of the Estado Novo.
Abstract: The historian Boris Fausto, in his Pequenos ensaios da história da República
(1889-1945) (Short essays on the History of the Republic- 1889-1945) published in 1972,
noted that in disseminated views of the historical period of the Brazilian Estado Novo, “The
assertion that of the two poles, State and Society, the first enjoyed dominance, has become
commonplace. What we need to discover – and for this purpose, more studies are needed –
is how this dominance came to be, in concrete terms. The existing degree of State autonomy
in the face of the different types of pressures that were articulated within society must be
made clear.” Without completely abandoning this research agenda, yet without fully assuming
it, the historiography of the 1937-1945 period then turned more to themes from Cultural
History and Social History (and even Economic History) than to the traditional problems of
Political History. The goal of the present paper is to analyze the relationship between regional
political elites and national institutions, in the interests of understanding and explaining the
concrete forms that representation of political interests took during the Estado Novo, and
thus, (re) discussing two types of problems: one that is conceptual in nature, linked to the
question of “State autonomy” and the notion of the “Estado de compromisso”; another which
is empirical, linked to the question of federalism and centralization.
Keywords: political elites – State autonomy – Estado Novo.

1
Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor de Ciência Política
na Universidade Federal do Paraná (UFPR), editor da Revista de Sociologia e Política e coordenador do Núcleo
de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR.

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O Manifesto que o Partido Democrático fez publicar, em 17 de janeiro de 1932,
terminava com uma exortação comovente, definitiva e profética: “Entregue-se aos estados o
governo dos estados; venha a Constituinte; e estaremos salvos” (Cf. Nogueira Filho, 1965:
408-415. Apud Silva, 1972: 394).

Era uma rima, mas não era uma solução. Àquela altura, a questão que opunha o PD
ao Governo Provisório derivava de uma falta fundamental. Como resumiu o documento que
rompeu com o Sr. Getúlio Vargas, “um dos maiores erros da Revolução [foi] não ter
entregado o governo do estado ao Partido Democrático” (id., ibid.: 391). Assinado: Francisco
Morato, Cardoso de Melo, Marrey Júnior, Sampaio Vidal, Vicente Rao, Francisco Mesquita,
Aureliano Leite e outros próceres.

Depois que a nomeação do coronel João Alberto para a Interventoria Federal de São
Paulo, em novembro de 1930, frustrou a promessa de indicar um paulista e civil, os políticos
que apoiaram o programa da Aliança Liberal passaram a reclamar que “a terra de
Piratininga” assistia, surpresa e afrontada, ao fato de que todos os postos administrativos
haviam sido afastados dos seus “filhos”. Pior de tudo, São Paulo não possuía “sequer uma
voz ou representante no conclave da Ditadura [sic] e, além disso,” via “o seu governo
entregue aos caprichos de forasteiros”. Essa situação calamitosa só mudou quando, em 25
de julho de 1931, Laudo Ferreira de Camargo, um “notável magistrado” na opinião da elite,

3
civil e paulista enfim, assumiu o governo do estado de São Paulo. Mas já em novembro ele
renunciaria (ou melhor, seria deposto por um golpe, segundo a Liga de Defesa Paulista),
depois de vários desentendimentos com o próprio João Alberto e com o general Miguel
Costa, chefe da Legião Revolucionária, em torno do caso que opôs Numa de Oliveira, seu
secretário da Fazenda, aos interesses da “lavoura”. O governo federal indicou então outro
Interventor, o general Manuel Rabelo, que na verdade, segundo a convicção dos
democráticos, “não passa[va] de uma sombra do capitão João Alberto”. No fim das contas, a
elite continuava destituída do poder e o “tenente” continuava a fazer de São Paulo “um feudo,
e ele próprio o feliz donatário de tão soberba capitania”2.

O PRP por sua vez, cujo diário, o Correio Paulistano, se referia à Revolução de 1930
dramaticamente como a “calamidade outubrista”, reaparecia na cena política depois de um
longo silêncio e, talvez encorajado pelo rival, menos de uma semana depois do protesto por
escrito do PD manifestava, em 19 de janeiro de 1932, em termos mais neutros, mas em todo
caso, naquela conjuntura, bem diretos, sua profunda irritação com os “tenentes”: “O Partido
Republicano Paulista [...] é pelo regime constitucional. É pelo regime republicano. É pelo
regime federativo” (Cf. Nogueira Filho, 1965: 416-419. Apud Silva, 1972: 246). Assinado:
Altino Arantes, Ataliba Leonel, Arthur Whitaker, Cerqueira Cesar, Almeida Prado Júnior e
demais chefes perrepistas.

Ainda que preferissem se imaginar “batalhando com denodo pela democracia e pela
República, sem prejuízo da união, da concórdia e da paz entre todos os brasileiros”, isto é,
“dentro da ordem” (Apud Carone, 1978: 196 e 197), o que o PRP punha em xeque era, na
verdade, não o controle do poder governamental, mas a forma assumida pelo regime político,
um “sistema ditatorial”, de acordo com eles, e o risco que esse sistema representava para as
bases federativas da organização nacional, o que equivalia dizer: para a independência
política e econômica das oligarquias regionais. Os democráticos, por sua vez, chiavam
porque os “tenentes”, com os quais tiveram de dividir o poder, impediram que, uma vez
depostos os “carcomidos”, reinassem como a única classe dirigente do estado.

2
Todas as passagens entre aspas são do Manifesto do PD. Apud Silva, 1972: 385, 391 e 391, respectivamente.
Anote-se, contudo, que se o Governo Provisório evitou entregar São Paulo aos democráticos, “foi bastante
benevolente no aproveitamento de alguns de seus próceres na alta administração federal”. Paulo Prado tornou-
se presidente do Conselho Nacional do Café, Vicente de Almeida Prado dirigiu o Banco do Brasil e Paulo
Nogueira Filho foi diretor da Comissão Nacional de Compras. Ver Ramos, 1980: 143.

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Estão resumidas assim as principais pendências em jogo na disputa entre São Paulo e
a União ao longo do comprido intervalo que vai de outubro de 1930 a outubro de 1945: de
um lado, o formato das novas instituições, cuja luta pela “Constituição” codifica e exprime; de
outro, as características das novas direções, cujo empenho por fazer valer o direito de
“autogoverno” resume e revela. O texto do documento de formação da Frente Única Paulista
(FUP) não poderia ser mais explícito a esse respeito: o Partido Democrático e o Partido
Republicano anunciaram em fevereiro de 1932 que cediam, “contentes e resolutos”, “à força
irresistível da opinião pública” (sic) e celebravam “a união sagrada dos paulistas em torno de
dois problemas que envolvem todas as nossas esperanças e destinos: a pronta
reconstitucionalização do País e a restituição a São Paulo da autonomia que há dezesseis
meses se acha esbulhado” (Apud Carone, 1978: 45-46).

Esses problemas poderiam ser formulados, em termos mais simples, a partir de duas
perguntas: depois da Revolução, quem deveria governar o estado?, isto é, que grupo, uma
vez deposta a “oligarquia tradicional”, assumiria as funções de comando político em São
Paulo? E como ele seria governado?, isto é, que novo arranjo político e institucional
sucederia a “República oligárquica” e a política dos governadores?

O objetivo deste ensaio é avançar algumas respostas a essas questões tomando


como exemplo o caso das “oligarquias paulistas” sob o Estado Novo. O conflito entre o poder
central e o poder regional, ora aberto como em 1932 (que acabou numa guerra), ora velado
como em 1937 (que se limitou a um discurso3), e a solução política que se deu a ele, permite
que, ao invés de simplesmente nomear, a cada conjuntura, as correntes pró-governo ou
antigoverno, se compreenda como enfim Vargas decidiu que os paulistas deveriam, na
fórmula empregada por Love, governarem a si próprios (Love, 1982: 225).

Minha hipótese é que não se julga adequadamente esse período da história política
nacional se não se repensa quais são os meios e os modos de acesso ao “microcosmo
político”, ele próprio em plena transformação.

3
Refiro-me ao célebre (e inócuo) manifesto de Armando de Sales Oliveira, “Aos chefes militares do Brasil”, de 8
de novembro de 1937. Ele assegurava que, nas mãos das forças armadas, não se abateria “a flâmula gloriosa
do Brasil cristão, do Brasil democrático, do Brasil livre”, desde que Exército e Marinha apoiassem as eleições
presidenciais programadas para 1938 e garantissem a “autoridade” (e a posse, eu acrescentaria) do governo
eleito. Apud Bonavides & Amaral (orgs.), 2002, vol. V: 250.

5
Os meios envolvem, resumidamente, as pré-condições sociais (os “atributos”) que um
grupo de elite tem de exibir para ter acesso à arena política e os modos abrangem as
instituições que servem de caminho (as “avenidas”) para que esses profissionais da política
se constituam enquanto tais (V. Keller, 1963; e Giddens, 1974). Como o sistema político, em
especial durante o Estado Novo, era muito fechado, é impossível se referir ao processo de
recrutamento das elites políticas sem pensar nas instituições estatais que o tornaram
possível. A vantagem aqui ao levantar esse problema é que se pode indicar tanto a função
política quanto o significado social desses aparelhos que dão acesso privilegiado ao universo
político. Por outro lado, quando se identifica os locais de entrada no jogo político se pode
isolar, para fins de análise, o grupo de elite eleito e apontar, o mais fielmente possível, as
qualidades que o tornaram apto para o exercício do poder.

Nesse sentido, o estudo do caso de São Paulo durante os oito anos da ditadura de
Vargas é ilustrativo em mais de um aspecto quando se trata de compreender a relação
concreta entre elites políticas e instituições políticas de um modo geral. Como os vários
grupos da “oligarquia paulista” estavam em briga constante, seja para manter suas fontes de
poder e autonomia diante da nova clique que passou a controlar o Estado nacional (“os
gaúchos”), seja para vencer a disputa pela hegemonia política no estado depois da
Revolução de 1930, eles se viram em pelo menos quatro situações muito distintas desde o
fim da República Velha. Num primeiro momento, o conflito principal entre o Partido
Republicano e o Partido Democrático – uma antiga disputa que vinha desde a década de
vinte cujo ponto alto foi a formação da Aliança Liberal contra a candidatura de Julio Prestes –
acabou por perder força diante da oposição crescente do PD aos “tenentes”; essa aversão
levou à constituição da Frente Única Paulista (em fevereiro de 1932) em defesa da “ordem
constitucional” e da “imprescindível autonomia” do estado4, e a uma insurreição armada
contra a União. Uma vez derrotada a “guerra civil paulista”, a Chapa Única por São Paulo
Unido manteve até 1933 a aliança entre os partidos oligárquicos, mas já em 1934 o PRP
voltava a abrir campanha contra o “outubrismo”, criticando abertamente os “peceístas” (os
herdeiros dos democráticos) na disputa pelas cadeiras à Assembléia Constituinte estadual 5.

4
Trechos do documento de formação da FUP. Apud Carone, 1978: 46.
5
Veja-se, por exemplo, as críticas aos adversários “democráticos” reunidos no Partido Constitucionalista (PC)
no Correio Paulistano de 4 out. 1934. Uma vez fracassada a tentativa de criar “clubes” políticos e “legiões”

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Quando vem o golpe do Estado Novo (em novembro de 1937), a influência das principais
correntes políticas do estado fica reduzida a quase nada e a Ação Integralista Brasileira
(AIB), de Plínio Salgado, imagina poder ocupar tanto o espaço nacional quanto, através dele,
liderar o jogo político regional. O fim dos partidos (em dezembro de 1937) e o banimento da
AIB (em maio de 1938) põem certos problemas cruciais para o novo regime: como organizar
a representação política regional, de maneira a permitir a expressão, ainda que de forma
controlada, das várias correntes políticas oligárquicas, sem contudo aumentar o grau de
conflito no interior do sistema, mas sem também restituir completamente suas importâncias
respectivas? Como remontar uma estrutura de poder impedindo, ao mesmo tempo, que o
Interventor (indicado pelo Presidente) forme sua própria clientela (junto aos prefeitos, por
exemplo) e constitua o “seu partido” estadual em oposição aberta ou velada ao Presidente?
E, por fim, como garantir, para o chefe político nacional, o poder arbitral e inconteste entre
essas duas forças – os interventores federais e as elites estaduais?

Meu argumento fundamental é que, no jogo complexo que se estabelece entre essas
três forças (Presidente, Interventor e Oligarcas), uma parte pequena, mas representativa da
“elite tradicional” é restituída ao poder justamente para garantir o novo papel de cada uma
delas no novo jogo político.

Ao Presidente incumbe reconciliar seu governo com as elites regionais tendo como
horizonte, porém, o reforço do poder central, a obsessão da época. Daí que o aliciamento
esteja a serviço da centralização. Aos Interventores nos estados compete conectar um pólo a
outro em nome de dois proveitos: fazer chegar as ordens do governo federal numa das
pontas do sistema político e fazer o caminho inverso, representando junto ao governo as
demandas da oligarquia. Procurador das duas partes, sua ação será tanto mais eficaz quanto
maior for sua capacidade para favorecer “os reclamos” das elites regionais e, ao mesmo
tempo, justificar o domínio da clique varguista. Aos oligarcas cabe um papel coadjuvante:
adaptar-se aos novos princípios políticos contentando-se com a manutenção – no mundo
rural – das mesmas regras que regeram a dominação de classe desde sempre (coronelismo,
mandonismo, clientelismo). No mundo urbano, todavia, não há, como se poderia acreditar

revolucionárias para substituir os velhos partidos oligárquicos, decidiu-se por formar em cada estado da
federação uma nova agremiação partidária aliada aos “objetivos revolucionários”. Em São Paulo surgiu o PC de
Armando de Salles Oliveira, que sucedeu o PD. Ver Ramos, 1980: 147, nota.

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depois do fim dos partidos e do fechamento das casas legislativas, uma exclusão completa
nem dos políticos tradicionais nem da política tradicional. Só que ela se faz, agora, fora do
sistema de partidos e o grupo dos primeiros se vê, por isso, consideravelmente reduzido. Daí
que a aproximação estudada e, posteriormente, a identificação da elite dirigente paulista com
o Estado Novo seja mais rápida e efetiva à medida que o regime garanta não tanto sua força
social ou seu poder político, mas sua representação.

Entretanto, isso exigiria um redimensionamento do universo das elites estaduais; o


que por sua vez demandava a criação de “filtros” institucionais para assegurar que a nova
elite, recrutada de acordo com as novas regras, participasse do sistema político sem interferir
no sistema decisório.

Quem compõe essa “nova elite”? Para esclarecer esse ponto deve-se apresentar e
discutir os atributos políticos e sociais mais importantes dos grupos dirigentes em São Paulo
na década de 1940. Como se governa o estado? Para responder a essa pergunta é preciso
indicar, a meu ver, os mecanismos institucionais recém-criados ou em uso para justamente
reconduzir “a oligarquia” às posições de mando sem, no entanto, devolver completamente
sua soberania – política e econômica – sobre o estado. Essa tarefa, delicada e complexa,
exigirá por parte do governo central invenção e empenho. Empenho para concretizar o que o
discurso redigido por Francisco Campos e lido por Getulio Vargas em 10 de novembro de
1937 chamara, eufemisticamente, de “reforma política”: uma ditadura inclusive sobre os
antigos “chefes de governos locais”, transformados pelo discurso oficial em “caudilhos
regionais”. E invenção para costurar novas lealdades, atrelando os antigos “quadros
políticos” ao Presidente e instaurando de uma vez por todas a “autoridade nacional” (Vargas,
1938: 21, 20, 23 e 22, respectivamente).

  

Todas as contas feitas, pode-se dizer que São Paulo sob o Estado Novo é um caso
paradigmático da atuação de dois traços característicos do sistema político nacional: a
capacidade de conciliação intra-elites, graças ao seu transformismo ideológico, e a
habilidade dos grupos dirigentes para mudar de posição política sem, contudo, alterar a
ordem estabelecida ou pôr em risco a estrutura básica de dominação. Em termos muito

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gerais, trata-se de mais uma evidência que confirma o processo de “modernização
conservadora” à brasileira ou o caminho político de uma revolução regressiva.

Todavia, o caso em questão permite ir além dessa constatação, seja para indicar a
função política das instituições políticas do regime ditatorial, seja para destacar o mecanismo
de restituição do poder da oligarquia, mesmo à custa da inacreditável restrição do número de
participantes no jogo político e de seu confinamento em uma instituição “carimbadora” como
o Conselho Administrativo do estado.

Depois do 9 de Julho seria difícil imaginar que alguns poucos anos mais tarde
democratas, peceístas, perrepistas (ou mesmo integralistas) seriam aliados incondicionais do
“caudilho”. Inimigos íntimos, justamente porque foi em São Paulo que o “getulismo”
encontrou afinal maior resistência política e ideológica (basta lembrar as dificuldades para o
fortalecimento dos partidos “populistas” e das idéias “trabalhistas”), a análise do processo de
costura das novas lealdades regionais no pós-1930 presta-se para enfatizar duas
conclusões, uma sob a perspectiva histórica, outra sob a perspectiva sociológica que, juntas,
concorrem para redefinir, a partir de 1937, a configuração política da sociedade brasileira.

Quando o Estado Novo, no ato da sua fundação, condenou o liberalismo político e


suas instituições como obsoletas surgiu o problema: que fazer dos representantes políticos a
fim de garantir a governabilidade do regime junto às elites? Novamente: quando o Estado
Novo condenou o liberalismo e suas instituições como antiquadas surgiu um outro problema:
que fazer da representação a fim de afiançar a legitimidade do regime junto às elites?

O primeiro achado deste ensaio, ligado ao problema do destino das elites políticas
estaduais, evidenciou que quem governa São Paulo (ninguém menos que os mesmos
políticos profissionais, descendentes autênticos dos mesmos partidos oligárquicos) deriva
exatamente das condições privilegiadas em função das quais a “classe política” paulista
aceitou um regime de exclusão da maior parte dos integrantes dos seus grupos dirigentes. O
segundo achado, vinculado à questão do desenho das instituições políticas, permitiu
identificar as formas de recrutamento da elite política (a cooptação através da escolha
pessoal pelo Chefe) e o locus institucional onde se dá e de onde se dirige esse processo de
aliciamento, catequização e conversão aos (novos) valores políticos do (novo) regime
político. No fim das contas, penso que se deva redimensionar a estrutura de poder do Estado

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Novo a partir de um mecanismo pouco valorizado de legitimação do poder central junto às
elites estaduais: os Conselhos Administrativos. E isso não apenas do ponto de vista formal
(“jurídico-político”), mas do ponto de vista substantivo.

Em resumo: existe uma novidade aqui que permite ver onde e como se reproduz o
sistema de dominação e quem se encarrega, justamente, dessa reprodução. Insisto sobre
esse ponto mesmo correndo o risco de me repetir: é preciso levar em conta as instituições
políticas do Estado Novo mesmo sabendo da importância do “personalismo” autoritário e do
seu papel no regime. E isso por três razões, no mínimo.

Retomando o programa de pesquisa sugerido por Boris Fausto, pode-se verificar, com
base no raciocínio e nas informações expostas acima, que são as instituições as
responsáveis para realizar, na prática, a supremacia do “Estado” sobre a “sociedade”,
conforme sua formulação. Para compreender isso é suficiente lembrar que o ingresso da elite
no aparelho do Estado aumenta, paradoxalmente, a autonomia relativa desse último, já que
os políticos têm pouco controle sobre o processo decisório e baixa influência sobre o
processo político como um todo. A liberdade de ação da Presidência da República é, entre
todos os indicadores desse período, o melhor índice para estimar o grau dessa autonomia.
Por isso, a função das instituições autoritárias e, em especial, a função do Conselho
Administrativo foi, nesse contexto, evidente: à medida que ele ampara e abriga as demandas
por participação na vida política, ele também serve de endereço para hospedar, tutelar e dar
um formato mais moderno (“burocrático”) à política oligárquica e ao espírito conservador da
elite. Com uma diferença: agora não seria mais necessário nem útil esconder-se por trás do
discurso liberal ou defender, retoricamente, a Constituição de 1934. O conservantismo
regional havia encontrado uma maneira de conviver com o autoritarismo, disfarçando seu
elitismo hereditário com base na prestação de serviços públicos ao Estado (Novo) e em troca
de todas as vantagens (materiais e simbólicas) advindas daí. Vejamos cada um dos pontos
separadamente.

Em primeiro lugar, a submissão da sociedade ao Estado. Como o mecanismo de


admissão da elite política ao sistema político durante “a ditadura de Vargas” foi a cooptação,
o Conselho Administrativo tornou-se o endereço disponível mais eficiente do sistema
institucional dos aparelhos do Estado para alojar – e, mais importante, enquadrar –

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perrepistas, democráticos, peceístas e integralistas que haviam ficado de fora dos arranjos
para compor o executivo estadual quando da nomeação de Adhemar de Barros para a
Interventoria, em abril de 1938. Pagava-se, em troca dessa gentileza, com o apoio irrestrito
ao regime ditatorial e com uma união inédita em torno do “Chefe” nacional, tão odiado na
véspera. O caso da demissão de Adhemar em 1941 e da indicação de Fernando Costa para
substituí-lo (paulista legítimo, civil e além de tudo ministro da Agricultura de Vargas) é, de
resto, emblemático do processo de reacomodação dos próceres do PRP ao regime
“varguista”.

Em segundo lugar, a autonomia da Presidência. Essa prática (a cooptação) permitia


que o Presidente Vargas dirigisse, ele próprio, todo o processo de recomposição das suas
bases de apoio nos estados, abaladas pelos sucessivos expurgos desde o dia seguinte da
sua posse, em outubro de 1930. Distribuindo novos amigos e antigos inimigos ora na
Interventoria, ora no Conselho Administrativo, o “ditador”, para relembrar a implicância dos
paulistas, garantia seu papel arbitral ao mesmo tempo em que fazia entrar, para o círculo das
classes dirigentes, indivíduos de procedência bastante heterogênea: representantes mais
moços das novas e velhas oligarquias, das oligarquias ascendentes e decadentes, das
forças vitoriosas e forças derrotadas em 1930, indivíduos muito, pouco ou nada conhecidos
etc. O que aparece aqui como falta de critério para as nomeações é justamente “o” critério da
escolha dos membros do CAESP: mantidos alguns pré-requisitos que asseguram a
homogeneidade social e profissional do grupo, quanto mais flexível esse sistema de escolha
e mais incongruente do ponto de vista político os escolhidos, melhor. Ele poderia recolher
conselheiros alinhados entre si e independentes do Interventor; ou vice-versa. A
conseqüência prática disso era a conservação do prestígio político de alguns próceres e a
promoção da carreira de políticos ou mais novos ou mais distantes das direções dos partidos
tradicionais. A sobrevivência de certo “pluralismo” político no universo das elites
transformava-se, assim, em mais uma manifestação do poder e da força de Vargas do que
da capacidade de rearticulação e pressão da oligarquia.

Por último, o tradicionalismo conservador da elite paulista. Circunscritos a um lugar no


sistema estatal onde podiam continuar a “fazer política” (ora com, ora contra o interventor
federal), os representantes estaduais aceitavam explicitamente, ao integrar o Conselho
Administrativo, os valores ideológicos e as regras estritas do regime estadonovista. O que

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significava também concordar não apenas com seus propósitos mais evidentes
(centralização do poder na Presidência, liquidação do federalismo e das autonomias
estaduais, intervencionismo econômico), ou com seus métodos “ditatoriais” (do culto
personalista ao chefe de Estado até a erradicação de partidos, clubes e associações de
classe), mas com os princípios de escolha de quem e de quantos, afinal, governariam o
estado. Isso implicava também, ou por isso mesmo, em aprovar, sem contestação, o
resultado dessa eleição peculiar dos “eleitos” – não por eles próprios, mas pelo Presidente
da República. Espalhada habilmente entre a Interventoria Federal e o Conselho
Administrativo, a elite paulista deveria então conformar-se com o fim da federação
oligárquica e com a permuta do liberalismo de fachada da I República pelo autoritarismo
suave (para eles) da III República. O reacionarismo da classe dirigente via-se não só
abrigado, mas sistematizado e amplificado por meio das instituições do Estado. A eficiência
reconhecida por todos na nova forma de administrar interesses e negócios (“técnica”,
“racional”, “impessoal” etc.), junto com o fim dos trambolhos que agora representavam
partidos, eleições e parlamentos, convertera-se na ideologia oficial da oligarquia, que por sua
vez era sustentada politicamente pelo pequeno grupo de representantes da elite do poder.

Essa “elite da elite” que resultou da readmissão de figuras maiores e menores do PD e


do PRP aos círculos do governo, via-se então restituída ao poder, mas ser deixar de estar
submetida ao mais poderoso de todos. O 10 de novembro não seria mais, a partir daí, um
incômodo tão grande e o tirano até que tinha, no fim de tudo, uma face apreciável.

Referências bibliográficas

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12
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