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Os Tupinamba: Realidade e Ficgéo nos Relatos Quinhentistas * Ulrich Fleischmann, Matthias Rohrig Assungao, RESUMO A relevancia do papel desempenhado pelos Tupinambé, tanto na conquista, como na colonizacdo da costa brasileira, colocow-os como personagens centrais de uma série de relatos de viagens. Os historiadores e antropélogos que, posteriormente, langaram-se @ andlise deseas fontes, apresentam interpretacoes distinias com relacéo a vérios aspectos einoldgicos. Um deles & 0 do canibalismo. Sem intengdes de questionar seu teor de veracidade ou fieedo, os autores deste ar- igo buscam, nos relatos quinhentistas de Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry ¢ Gabriel Soares de Sousa, wna releitura do significado que o tema canibalismo assume, frente ds condi¢ées que determinaram a génese dessas obras. Zinka Ziebell-Wendt ABSTRACT The Tupinamba: Truth and Sixteenth- Century Accounts The significant role of the Tupinambd Indians in the conquest and colonization of the Brazilian coast placed them as central characters in the early travel literature. In analyzing these sources, historians and ‘anthropologivis have presented different in- terpretations with respect to several ethno- logical aspects. One of these is canniba- lism. Though not questioning specifically the veracious or fictional content of this li- terature, this article seeks to re-evaluate the significance of cannibalism in the 16th century accounts of Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry an Gabriel Soares de Sousa, considering the conditions which generated these works. Os Tupinambé, um subgrupo dos povos Tupi, pertencente & extensa familia lingiifstica dos Tupi-Guarani, tiveram um papel relevante tanto na conquista ¢ colonizagao da costa brasileira, como mais tarde na historiogra- fia ¢ etnografia européias. Os Tupinambé tiveram essa importancia apesar de, ou talvez exatamente devido ao fato de haverem desaparecido jé em fins Publicado originalmente em: WALDMANN, Peter & ELWERT, Georg (org.)- Ethnizitat im Wandel. Saarbrucken, Fort Launderdale, Breitenbach Editora, 1989. My Professores do Instituto Latinoamericano da Universidade Livre de Berlim. Paulo v10n°21 AT 45 set. Wifev.91 do século XVI das regides originalmente por eles habitadas, ou seja a costa dos atuais estados da Bahia, do Rio de Janeiro ¢ Sao Paulo 1. Neste breve contato com europeus, os Tupinambé e sua cultura foram um dos temas centrais de uma série de relatos. De importancia fundamental Para a etnografia sdo quatro relatos dos quais se trataré a seguir: Wahrhafting Historie und beschreybung eyner Landschaft der Wil- den/Nacketen/Grimmigen Menschenfresser Leuthen in der Newenwelt America gelegen do mercenério alem&o Hans Staden, publicado do ano de 1557; Les singularitéz de la France Antarctique (1558) do monge fran- ciscano André Thevet, Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil apenas Publicado em 1586, de autoria do pastor calvinista Jean de Léry e Tratado descritivo do Brasil 2, redigido um ano mais tarde por Gabricl Soares de ‘Sousa, um dos cronistas portugueses mais importantes do século XVI. Simultaneamente inicia-se na Europa a assimilago "filoséfica” desses telatos: em 1580 Montaigne publica seu ensaio Sur les cannibales, um dos exemplos mais conhecidos de “relativismo cultural". Neste ensaio compara os canibais americanos que, como "bons selvagens”, viveram segundo as leis da natureza, com os europeus (principalmente espanhdis), os quais acusa de causarem atrocidades em nome da civilizagao. Montaigne explicita JA nas suas frases iniciais que recebera a motivagdo para escrever esse en- saio de um francés que vivera entre os Tupinambé (1953: 117). Ao lado dos Caribe — dos quais poucos se sabia — os Tupinamba haviam se tornado as testemunhas principais do canibalismo dos "selvagens” americanos, Os rela- tos, relativamente detalhados sobre a cultura dos Tupinamba no século XVI, levaram a etografia do nosso século a ocupar-se cxtensivamente com a problematica, A primeira avaliagao do material etnoldgico desses relatos foi reali- zada por Alfred Métraux, que tentou reconstruir a “cultura material dos Tupi-Guaranis" (1928). Basei nesse trabalho nao s6 em fontes quinhen- tistas € seiscentistas, mas utiliza pesquisas etnoldgicas modernas sobre os Guarani. Um dos méritos de Métraux consistiu assim ter salientado a uni- dade da cultura Tupi-Guarani. Em um segundo trabalho de 1928 trata da "Religiao dos Tupinamba". O que nos interessa particularmente é 0 fato de 1 Parte dos Tupinambé fugira dos portugueses em diego ao norte do Brasil, ao atual estado do Maranthio, Lé reaparecerdo em varios relatos seiscentistas (entre outros Abbéville, Evreux). 2 (O manuscrito original nfo tem titulo, Foi publicado por primeira vez.no século XIX. 126 Métraux reproduzir de maneira acritica a parte dos relatos que se refere ao canibalismo, mesmo nos scus detalhes mais problemiticos 3, ‘J4 os historiadores, de Varnhagen (1854-57) a Rodrigues (1979), esta- vam interessados na classificagdo hist6rica dos cronistas, na determinacao da autoria dos relatos, na data¢o exata e na comprovacgio dos acontecimentos relatados. Nao se preocupavam porém em submeter 0 material etnografico & uma avaliagio critica. Essa avaliac4o do material hist6rico & feita pelo sociélogo Florestan Fernandes de forma mais detalhada e sistemdtica (1949 e 1952) 4. Fernandes dedica ainda um estudo a parte ao problema da “consisténcia" do conterido das fontes (1975). Conclui porém que "(...) pode-se afirmar serem satisfatérias e cientificamente aproveitdveis quase todas as afirmagdes € descrig6es feitas pelos cronistas", que "poucos so os casos em que as fon- tes se contradizem ou se negam" e que enfim os relatos “ilustram descrigdes com casos reais observados diretamente” (1975: 264-265). Deste ponto especifico pretendemos partir em nossa investigagao. Nao seria exatamente esse grau de consisténcia da documentago, a concordan- cia excepcional que os distintos relatos apresentam, principalmente em rela- ilo A temética do canibalismo, que deveria gerar suspeitas? O antropélogo norte-americano Walter Arens (1979) demonstrou numa obra recente que ddvidas so posstveis ¢ legitimas. Nessa obra, que causou grande impacto, ‘Arens procura provar que todos os relatos a respeito de canibalismo entre povos "primitivos" baseiam-se em “ouvir dizer", refletindo portanto mal-en- tendidos, enganos conscientes ¢ certas predisposigéies ideolégicas dos euro- peus. Por mais convincente porém que se apresente a estrutura geral de suas considerag6es, Arens n&o consegue refutar os testemunhos de canibalismo. A problematica torna-se evidente no tratamento que Arens dé ao relato de Hans Staden, alids o tinico texto que examina sobre os Tupinambé. Esse re- lato é de extrema importncia para Arens, pois Staden afirma ter vivido 3 4 auséncia de um questionamento no uso de fontes do século XVI toma-se nitida em seu artigo a respeito dos Tupinambé no Handbook of Soush-American Indians (1948, III: 95-134). A descrigio detalhada dos Tupinambé ¢ feita de maneira angloga a de outros povos existentes. Métraux foi responsével também pela generalizagto do conceito Tupinambé para designar todos os grupos Tupi do litoral. O conceit Tupinambé sera aplicado neste estado, somente no sentido restrito usado pelas fontes ¢ também pela emnologia atual. A respeito de uma critica as obras de Métraux do ponto de vista lingiistico, cf. Frederico G. Edelweiss (1969); para uma avalingio goral da obra de Métraux, of. Castro (1986: 83-85). Femandes observe acertadamente que uma critica das fontes seria tarefa dos historiadores (97S: 208-209). 127

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