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Filosofia grega e democracia' FRANCIS WOLFF Diz-se com freqiiéncia que, entre outros méritos, Atenas classica teve o de inventar a filosofia e a democracia. O que é verdade, desde que acrescentemos: néo ao mesmo tempo, nem sob a mesma relac4o. N&o ao mesmo tempo: se considerarmos apenas as datas, pode-se dizer que sdo as reformas de Clistenes, no inicio do século V, que assinam 0 atestado de nascimento da democracia ateniense, e que o desmoronamento do império, ao final deste mesmo século, marca o fim da sua idade de ouro. Quanto 4 filosofia ateniense, sua idade de ouro come¢a com a morte de Sécrates, em 399, que marca o fim da idade de ouro da democracia. Isto, certamente, nao significa que apés 0 ano de 404 nao tenha havido mais democracia em Atenas: bem ou mal ela se mantém até a conquista de Alexandre; mas durante 0 século IV ela nao teve nem o mesmo radicalismo, nem a mesma fé em seu regime. Tampouco significa que antes de Platdo e da abertura das miultiplas escolas “‘socraticas"’ em Atenas, nao tenha havido filosofia na Grécia. Na Grécia, isto é, nas longinquas colénias, mas nao em Atenas. E, exceto Sécrates que por ela morreu, nado houve antes de Platao nenhum filésofo ateniense — os poucos que tentaram importar sua especulagao para a Atenas democratica foram acolhidos com desconfianca e despa- chados como estrépito.” (1) Esse texto é uma versio profundamente remanejada da aula inaugural do Departamento de Filosofia da USP, por ocasido da abertura do ano letivo de 1982. (2) E 0 caso de Anaxagoras, cujo processo por impiedade abre a série dos processos antiintelectuais. Mas o desnivel entre filosofia e democracia nao é apenas tem- poral: é como se houvesse, fundamentalmente, desde o inicio, um imenso mal-entendido. Inteiramente voltada para a politica, onde se vale dos velhos principios dessa moral pragmatica — a dos sete sabios, por exemplo — a democracia do século V despreza as vas pesquisas sobre a ‘‘Physis’’ ou sobre 0 ‘‘Ser”, Estes, por sua vez, nao deixam por menos: nenhum dos pré-socraticos se preocupa com politica.* Inver- samente, quando o declinio da democracia de Atenas contempla o apogeu de sua filosofia, nao vé nenhum democrata entre os grandes filésofos classicos. Platao nao tem palavras suficientemente duras para desqualificar a ditadura da multidao. Aristételes é, seguramente, muito mais indulgente com as instituigdes democraticas;* mas desde que, passando do fato ao direito, examina o Estado, nao como é mas como deveria ser, sua “Reptiblica”’ nao é em nada mais democratica do que a de Plato. Quanto aos raros filésofos anteriores cujos principios poderiam ser considerados como democrticos, como no caso de Epi- curo, adesconfianca da politica faz com que dela afastem a filosofia. A cidade classica nao tinha ipso facto engendrado a filosofia politica, mas a morte dessa condenou a outra. Em outros termos: conhecemos bem a democracia, sua histéria, suas instituigdes e mesmo sua “‘ideologia espontanea’’.° Por outro lado, temos quantidade de textos importantes de filosofia politica da Atenas classica, mas nao de “‘filosofia da democracia”. Isto nao quer dizer que a filosofia ndo nasceu deste desenvolvimento imenso da discussio pi- (3) Seria talvez preciso excetuar esse falso pré-socratico, que é Demécrito: muitas dentre suas considerages ético-politicas mostram-no defensor da lei e da concérdia, Mas sera possivel, no atual estado de nossa informagao, considerar seus Ppreceitos moralistas como um pensamento politico? (4) O texto “mais democrata” de Aristételes parece-nos encontrar-se in Pol. TIT, 1281a 40, 1282a 41. (5) A julgar pelos principios igualitarios da vida no Jardim e pelo papel da nogao de “isonomia” na Fisica. (N6s tentamos a aproximagao em nossa Logique de L'Elément, Paris, 1981, p. 239.) Pode-se, por outro lado, encontrar tragos de uma defesa da vida democratica e das decisdes da assembléia livres da influéncia dos oradores, na Retérica de Epicuro, de acordo com a de Filodemo (frag. 53 Us, = 19, 4 Arr.). (6) Ter-se-4 uma idéia desta pelos raros textos do século V que apresentam uma defesa da democracia com alguma elaboragéo, por exemplo, em Herédoto (III, 80) a argumentago de Otanés, a propésito do famoso debate sobre as formas de governo; em Tucidides, os discursos de Péricles (II, 37-41) ou de Atenagoras (VI, 38-9); ou em Euripides, algumas declaragdes do Teseu das Suplicantes. Ter-se-4 idéia da (ou das) “ideologias dominantes diante da democracia em K. J. Dover, Greek popular morality in the time of Plato and Aristote, Oxford, p. 288 es. 8 blica, desta liberacao da palavra politica que a democracia permitiu. Certamente, a filosofia foi filha da democracia, mas foi, pelo menos, uma crianca tardia e rebelde. Nascida do Logos e da democracia, a filosofia grega teve, sem divida, um destino edipiano. Este fato, esque- cido com notavel freqiiéncia pelas pesquisas “humanistas”,’ que ti- nham boas razées para deixd-lo 4 sombra, é por si sé problematico. Ele, sem divida, pesou sobre a histéria do pensamento politico e da filosofia. Mas tao logo o enunciamos, somos tentados a passar 4 quest&o de direito: por que este divércio inicial? Mas, acima de tudo, em que condig6es hist6ricas, politicas, mas também filoséficas tornou-se impos- sivel a emergéncia de uma filosofia ““democratica” da democracia? As observagSes que se seguem, sem querer responder a essa questo, pretendem contribuir para colocar o problema. Mas sera necessArio, talvez, fazer antes uma restrig&o: 0 caso do sofista Protagoras nao deve ser excluido de nossa regra? Na verdade, ele dificilmente seria uma excecao: nem filésofo no sentido pleno do termo, pois que era um ‘‘mestre assalariado’’, mem ateniense, j4 que era professor itinerante, ainda que tenha sido um dos principais conse- lheiros de Péricles.* Em todo caso, e em que pese 0 fato de nao ter sido © filésofo da democracia (sera que isso era possivel?), temos boas razoes para crer que ele foi um de seus mais eminentes pensadores, 0 que, de resto, nado melhora muito nossa situagao. Com efeito, sabemos pouco acerca da doutrina do sofista de Abdera e quase nada de seu pensamento politico, tal como podia exprimir-se em sua Republica.” (7) © “a filosofia sempre chega muito tarde” de Hegel (Préface, Principes de la Philosophie du Droit) nao deve ser posto na conta de sua clarividéncia do pensamento grego? Mas quem tomaria Hegel por um “‘historiador humanista""? (8) Sobre as relagdes de ambos, cf. H. Diels—W. Kranz, Fragmente der Vorsokra- tiker (a seguir D-K) A 10, B 9. Sabe-se que Péricles confiou a Protagoras 0 cuidado de preparar a legislagao da nova colénia pan-helénica de Turium (D-K 80 A 1, 50). Sobre essa quest&o, ver I. Lana, Protagora, Torino, 1950, p. 32-63. Por outro lado, A. Bayonas (“‘L’art politique d’aprés Protagoras” in Revue Philosophique de la France et de l'Etran- ger, 1967, tomo CLVII, p. 43-58) pds em evidéncia muitos tragos comuns entre os pensamentos politicos de ambos (cf. n. 13, p. 44; n. 7, p. 47; n. 4, p. 49; 1. 2, p. SO). (9) Peri Politeias (D-K 80 A1, 55). Ficamos reduzidos ao testemunho de Platéo no Protdgoras (especificamente 318e-328d) e no Theeteto (especificamente a ''grande apo- logia”’ de 166a-168c). A precisio e a coeréncia desses testemunhos (contra A. Levi, Storia della Sofistica, Napoli, 1966, p. 131; S. Moser e G. Kustas, “‘A comment of the relativism of the Protagoras”, Phoenix, 1966, p. 111-115) assim como 0 que nés sabemos por outras vias acerca da personalidade do sofista de Abdera interditam, em todo caso, de recusar- Ihe todo pensamento politico (como o faz, isoladamente, A. Capizzi, Protagora, le Testimonianze ei Frammenti, Firenze, 1955, p. 247-261). Sabe-se até que uma parte da 9 Para além de todos estes obstaculos, correremos aqui 0 risco de propor algumas hipéteses sobre o que podia ser, ou antes, sobre o que poderia ter sido uma filosofia democratica. N&o ‘‘a’’ filosofia de um homem em particular (sua doutrina), nem a “‘filosofia” de um povo ou de uma forma de governo em geral (sua ideologia). Entre estes dois limites, um dos quais continua desconhecido de nés e outro sem elabora¢do conceitual, procuramos uma terceira via: fazer como se esta doutrina tivesse existido (fosse de Protagoras ou de quem quer que seja), portanto, como se ela tivesse sido possivel, uma filosofia que nao fosse apenas a justificagao de instituigdes politicas, muito menos seu reflexo refletido, mas 0 pensamento critico da pratica da democracia, no interior da conceitualidade elaborada pelo pensamento politico classico, Uma filosofia que esposaria seus contornos singulares, refle- tiria suas dificuldades e assumiria suas contradigdes. Mas como fazer, se esta conceitualidade foi talvez justamente elaborada, gracas a, mas sobretudo contra a democracia? Propomos, ainda que sem prejuizo de sempre voltar as instituigdes e as praticas efetivas da democracia, fundarmo-nos a contrério sobre os textos de filosofia politica de Plato e sobre aqueles de Aristételes, em que ele se faz 0 idedlogo de uma cidade ideal: utilizando-os como negativos, no sentido fotografico do termo; utilizando, em compensagao, positivamente as andlises aristo- télicas do funcionamento da democracia e os poucos elementos dispo- niveis do pensamento de Protagoras. I. Oespago do politico Partamos, por exemplo, de um texto, justamente de Plato, e do Protdgoras. Protagoras acaba de se apresentar como sofista (= ‘‘mes- tre”) e de anunciar sua especialidade, a ‘politica’ (318a-319a). Sécra- tes, que entao fala em nome da “opiniaio comum” em uma cidade democratica,! faz-lhe, em resumo, a seguinte objecAo: pretender ensi- nar esta virtude parece contrArio aos‘principios do regime; com efeito, quando os atenienses se retinem na assembléia para deliberar, de duas uma: ou a matéria em discussao é técnica — considera-se entdo que se Repiiblica de Platao passava na antiguidade por ter sido emprestada de Protégoras (D-K 80 BS). (10) Enaoem nome de suas préprias conviegdes (?) ou das de Platao. A estrutura, © poderiamos dizer 0 jogo dialético, da controvérsia no inicio desse didlogo, é muito bem salientada por L, Bodin, Lire le Protagoras, Paris, 1975, p. 11-12. 10

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