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beef wa a Lsctuer coo 1 > av Sy Yo a Jeanne Marie Gagnebin Sete Aulas sobre Linguagem, Memoria e Historia IMAGO. UL. INFANCIA E PENSAMENTO A Rafiaela e Cristina, com quem aprendi muito sobre infincia © mais ainda sobre pensamento. Ha pouco menos de um ano, a Folha de S. Paulo publicava no suple~ ‘mento de domingo “Mais!” uma série de artigos sobre a idéia da infancia ‘sua atual crise, no limiar do século XX1. Sem querer entrar no mérito dos varios artigos, na maioria de orientagao psicanallitica, podemios tes- saltar que o simples questionamento da nogao de infincia j € salutar em si, pois nos lembra, nas pegadas do histeriador francés Philippe Ariés, ‘que essa nogao de uma idade profundamente diferente —e a ser respei- tada nas suas diferengas — da idade e da vida adultas, que essa idéia € relativamente nova, Sua emergéncia é geralmente localizada no século XVIII, com 0 triunfo do individualismo burgués no Ocidente e de seus ideais de felicidade e emancipa¢ao. Marco privilegiado dessa — nossa — concepgo moderna de infinncia seria 0 livro de Jean-Jacques Rous- seau de 1762, 0 Emilio, que transforma a pritica pedagogica de uma boa parte da elite esclarecida. Voltaremos a el. ‘Se a nogao de infincia nao é, portanto, nenhuma categoria dita natu- ral, mas 6, sim, profundamente historica, cabe porém ressaltar que entre pensamento filosofico e infancia as ligagdes sdo estreitas € tio antigas ‘como a propria filosofia, 0 que ndo invalida ahistoricidade nem danoga0 de infancia, nem dessa estranha disciplina que ninguém consegue definir direito, a filosofia. Ligagdes privilegiadas, nao s6 porque as criangas colocam a seus pais encabulados as grandes quest0es filosoficas sobre sentido da vida, sobre a morte ou os limites do universo, ou porque, num certo sentido, os fildsofos seriam, no fundo, grandes criangas, que brin~ cam de maneira séria e esquisita com palavras dificeis, em vez de se Jo SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E 1S preocupar com os negécios realmente importantes da vida adulta; mas também e antes de tudo porque reflexio filoséfics e reflexao pedagosi rnascem juntas, porque éem redorda questao da paidéia que se consttuio primeiro “sistema” que se autodenomina de “filos6fico”, o pensamento de Platao, A problematica da paidéia justa— da formagiio justa, poderia- mos, pelo menos transitoriamente, traduzir — se cotoca, como 0 subli- nha 0 fildsofo contemporaneo Jean-Frangois Lyotard, porque Elle a pour présupposé que lesprit des hommes ne leur est pas dome comme il faut. et dott cre r-formé Le monsire des philosophes c'est Fenfance. C'est aussi leur complice Lenfance leur dit que I esprit nest pas donné. Mais qu'il et possible tem por pressuposto que o espirite dos homens néo thes ¢ dado de ma- ncira completa e deve ser reformad. O monstto dos fildsofos € a intin- cia. Ela também & sua etimplice. A crianga hes diz que o espirito nao & (um} dado, Mas que ele é (um) possivel.! [Nao vou fazer aqui uma historia do conceito de formagao; no tenho competéneia para isso. Gostaria simplesmente de apresentar a vocés alguns momentos dessa relacdo entre a infancia e o pensamento, pensa- mento filos6fico, sem duivida, portanto um tipo especifico de pensa- ‘mento, sim, mas, ao mesmo tempo, um pensamento que aspira a uma certa universalidade (na aceitagdo kantiana que distingue a filosofia da escola, académica, de especialistas, da filosofia no seu sentido mais amplo, que trata de questdes comuns a todos os homens). Podemos, desde o inicio, apontar para duas grandes linhas que vio guiar minha exposigdo. A primeira, que nasce com Platio, atravessa a pedagogia crista com Santo Agostinho, por exemplo, e chega até nés através do racionalismo cartesiano, nos diz que a infancia é um mal necessério, uma condigio préxima do estado animalesco e primitivo; que, como as criangas sdo seres privados de razdo, elas devem sercorrigi- das nas suas tendéncias selvagens, irefletidas, egoistas, que ameagam a construgdo consensual da cidade humana gragas & edificagio racional, 0 que pressupde o sacrificio das paixdes imediatas e destrutivas. Freud ea TT ord Le pamodene xi tens Patis Gall, 1986 9.186 INFANCIA E PENSAMENTO : 169 necessidade da repressdo para chegar 4 sublimacao criadora de valores cculturais ja esto em germe nessa pedagogia de origem platonica, A segunda linha, é importante ressalté-lo, também nasce em Platdo, atravessa 0 renascimento com Montaigne e chega a nossas escolas ditas alternativas através do romantismo de Rousseau. Ela nos assegura que nao serve de nada querer encher as eriangas de ensinamentos, de regras, verdadeira educagdo consiste muito ‘mais num preparo adequado de suas almas para que nelas, por impulso proprio e natural, possa crescer e se desenvolver a inteligéncia de cada ctianga, no respeito do ritmo e dos interesses préprios de cada erianga de normas, de contetidos, mas que particular. A primeira vista contraditorias, essas duas linhas podem conduzir, «em contextos diferentes, o discurso pedagégico de um mesmo pensador. Assim, Platao, que nos assegura nas Leis (808 d-e) que, como as ovelhas ndo podem ficar sem pastor, sendo se perdem, assim também e mais ainda nenhuma crianga pode ficar sem alguém que a vi todos os seus movimentos, pois a “crianga é, de todos os animais, o mais intrativel” (ho de pais panton therién esti dusmetacheivistotaton), na ‘medida em que seu pensamento, ao mesmo tempo cheio de potencialida- des e sem nenhuma orientagdo reta ainda, otorna “o mais ardiloso, o mais, hibil e o mais atrevido” de todos 0s bichos (epihoulon kai drinu Rai hybristotaton therién gignetai) ie e controle em Essa crianga, ameagadora na sua forga animal bruta, deve ser domes- ticada e amestrada segundo normas e regras educacionais fundadas na ‘ordem da razio (logos) e do bem tanto ético quanto politico, em vista da construgao da cidade justa. Empreendimento que Platio descreve deta- Ihadamente —e sem esconder suas numerosas dificuldades —em varios livros da Repiiblica. Mas é na mesma obra que encontramos, algumas Paginas depois da famosa, assim chamada “alegoria da caverna”, a afir- magiio enfética da capacidade de aprender humana, faculdade inata © universal em todos, mesmo que ndo sempre na mesma proporgio, facul- dade inata, universal, natural portanto, que permite a Platdo criticar a educaglo tradicional ateniense, baseada no aprendizado de conteiidos externos, oriundos da poesia homérica, e determinar a justa paidéia como um movimento interior & propria alma: 170: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA & HISTORIA A educapdo (paideiu) é, portanto, aarte que se propoe este lim, a conver= silo (periagoge) da alma, e que procura os meios mais faceis e maiscfica- 2s de oper-la ela ndo consisteem dara vista ao érgdo da alma, pois que este jé a possui; mas como ele esti mal disposto e no olha para onde deveria, 2 educagdo se esforga por leviclo& hoa dives” Educagao-repressio, ou educagao como um amoroso ajudar das faculdades naturais de cada crianga para que cresgam na boa dirego? Essa alternativa, apontada pelos escritos de Plato, nos remete, mais profundamente, ao estatuto paradoxal da infaincia e dos "infantes". isto &, desses seres humanos, sim, mas no entanto privados de fala, isto &, privados daquilo que, segundo toda tradigao metafisica ocidental, é 0 proprio do homem: a linguagem, portanto a razao, linguagem e raz3o {que permitem a institui¢do de uma ordem politica. Lembremos que Jogos significa, indistintamente, ambos os conceitos, que nio hii, por tanto, linguagem sem uma racionalidade nela inscrita, nem razio que hndo possa se dizer e se explicitar em palavras. Cabe também ressaltar aqui, jd que estamos nas etimologias, que a palavra “infancia” nao emete primeiro a uma certa idade, mas, sim, aquilo que caracteriza inicio da vida humana: a incapacidade, mais, a auséneia de fala (do verbo latim fari, falar, dizer e do seu participio presente, fans). A crian- 68, 0 in-fans & primeiro aquele que nao fala, portanto aquele animal monstruoso (como o dizia Lyotard), no sentido preciso de que nio tem nem rugido, nem canto, nem miar, nem latir, como os outros bichos, ‘mas que tampouco tem 0 meio de expresso proprio de sua espécie: & linguagem articulada. Qual a significagao dessa auséneia primordial? Até, digamos, Rousseau, essa auséncia foi interpretada como o signo nequivoco de nossa natureza corrupta, pois é nele, nesse nao-falar infantil obscuro que se escondem tanto nossa proximidade com o ani ‘mal, como nosso afastamento de sua simplicidade instintiva. Diferen- temente dos pequenos bichos que nunca aprenderdo a falar e a pensar, ‘08 pequenos homens desenvolvem essa faculdade e, portanto, a possi- bilidade da escolha do mal contra o bem. Se ndo s6 nascéssemos, mas também ficéssemos sem linguagem, seriamos bichos tal vez cruéis, mas sem a possibilidade de ser moralmente ruins, pois a propenso ao mal 2 Plato. Replica, S18 4. Trad). Guinsburg(Sdo Paul: Difusi Buropliado Livro, 1965) INFANCIA E PENSAMENTO. 171 86 pode ser atribuida a um ser dotado de inteligéncia, de razio e de lin- guagem, capaz de escolher conscientemente entre o bem e 0 mal ‘A infancia reiine assim, no pensamento de um Santo Agostinho, por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibilidade, simulta neamente infinita¢ latente, do homem para 0 mal, Ela € 0 testemunho vergonhoso do pecado que nos marca, ja a0 nascer, e contra 0 qual s6 podemos tentar lutar quando sairmos dela, quando pudermos entender 9s conselhos bondosos de nossos pais ¢ Ihes responder pelas nossas + palayras e nossas agbes. Longe de ser a idade da inocéncia, a infiineia & descrita por Santo Agostinho, em particular no Livro I das Conyissdes, como duplamente marcada pelo pecado: nao sé cada crianga, cada infans — palavra cuja etimologia é realgada por Agostinho em oposi- {$20 a0 puer: qui non farer, I, 8,13 — é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal ¢ libidinoso de seus pais, isto é, profundamente mar- cado pelo pecado original; mas também cada eriancinha manifesta desejos ¢ ddios, cuja intensidade desproporcional sera justamente cen- surada numa idade mais avangada e que s6 é tolerada nela, na crian nha sem fala nem razao. porque € faea, portanto e felizmente, impo- tente, Cito Agostinho, na época ainda nenhum santo, segundo suas pré- prias palavras: Em que podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente, cho- rando, 0s peitos de minha mae? Se agora suspirasse com a mesma avidez hilo pelos seios maternos, mas pelo alimento que € proprio da minha idade, seria escarnecido e justamente censurado (..) — Assim, a debilidade dos membros infantis 6 inocente, mas no a alma das criangas. Vie observei uma, cheia de inveja, que ainda nfo falavae jt ‘othava, pilida, de rosto colérico, para oirmaozinho de leite.” Podemos ri ou sorrir desses exemplos de Santo Agostinho. Deve- ‘mos observar que ambos tratam, em termos freudianos, da primeira 3 Quid ergo tune peccabam? An quia uberbis inkibiam plorans? Nam si mane facia, non Aude uberbus, sed sca congruent anni mes a inians.derideor atque rprenhen- far astisime(.)laimbecititas membroram infant nnocen es nom anim far ‘tum Vidi ego et experts um zelantem parva on oguebtr et nuchal shes aro aspect conlactanewn sam Santo Agim, Confisner, Lit |. $80 Paso: Edtora Abel, Coleedo Os Pensedorer, radon hgeramentemadiiada de! Ole VeireSanon.5.J.¢ A. Ambrosio de Pina, 8 172 SETH AULAS SOBRE LINGHAGEM, MEMORIA F HISTORIA manifestagao da libido, do desejo e da necessidade do leite materno, ‘mas nao para ressaltar sua importancia para o coitadinho e, por via de consegiigncia, para ressaltar a obrigagio de a mae responder a essa imposicdo, como Rousseau o interpretara e, depois dele, Freud e nds todos. Nao, pelo contrario, Agostinho vé nesse desejo, cuja violéncia ‘no pode ser temperada nem pela linguagem nem pela razio — pois 0 infans nao as entende —, a prova da violéncia de nossas paixdes e de nnossos desejos voluptuosos. sem freio. A crianga evidencia, portanto, nossa natureza pecadora, pois nela nao fala ainda nenhuma vor da razlo, cuja luz é 0 reflexo da luz divina em nds, mas, sim, s6 grita a forga da concupiscéncia Como mostra Elisabeth Badinter em cujasandlises me apoio aquit, mesmo com a passagem do pensamento filoséfico medieval, impre nado de teologia, para o pensamento da renascenga e do racionalismo, ‘que proclamam a independéncia da razlo em relagio is exigéncias da fé, ‘mesmo no racionalismo de um Descartes, por exemplo, a infincia conti- nua sendo um lugar de perdiga0 e de confusio. Se ela mio émais o terreno privilegiado do pecado, continua sendo o territério primordial e essen- cial do erro, do preconceito, da crenga cega, todos esses vicios do pensa- mento dos quais devemos nos libertar. Para o pai do racionalismo ‘modemo, énosso universal pertencer& infaincia,a essa idade sem razioe sem linguagem, que constitui nosso enraizamento tenaz e infeliz no rmarasmo da niio-razio. Ou ainda: se pudéssemos ter nascido ja adultos, isto €, jd em plena posse do uso de nossa razlo, entao a luta da razio con tra 0s vitios preconceitos que a ofuscam nao seria tio ardua, reta filoso- fia e felicidade humana cresceriam mais rapidamente ¢ com mais liber- dade. Cito a segunda parte do Discurso do Método, E assim ainda, pensei que, como todos nbs fomos criangas antes de ser- ‘mos homens, e como nos foi preciso por muito tempo sermos governa- dos por nossos apetites e nossos preceptores, que eram amide contr 0s outros, ¢ que, nem uns nem outros, nem sempre, alvez nos aconselhassem © melhor, € quase impossivel que nossos juizos sejam {io puros ou tao sélidos como seriam, se ivéssemos o uso inteito de 4 Elisabeth Lyotsed, Lamour en plas, hisowe de amour maternet (Pats: Flanmaron, 1980), p. 42-5. INFANCTA £ PENSAMENTO 173 nossa raza desde o nascimento ese nao tivéssemos sido guiados sendo por ela! A infancia se assemelha aqui, como o assinala em nota Gerard Lebrun, &tradigao histérica. Ambas ji existem antes de nos chegarmos & razio, nelas nascemos ¢ crescemos, anibas Sao, por assim dizer, um ial necessério, Necessario porque o ser humano nio é nenhum deus, mas € defeituoso, fraco, flo; precisa, portanto, do socorro dos outros para se _desenvolver, E3ses outros, pais ou professores presentes, mestres ou pen- sadores do passado, muitas vezes nos confundem em vez de nos esclare- cer; sio, simultaneamente, impreseindiveis e perigosos. Como Platio, Descartes reivindica, portanto, odireito de criticara tradigao e odircito a independéncia da razio, o que imptica uma reforma da educagao. Como Platdo ainda, Descartes s6 quer salvar da infiincia o que a educagao tra- dicional gerelmente nao percebe: a saber, 0 brotar de uma raza balbu- ciante que, muitas vezes, € sufocado pelo actimlo de informagdes escu- ras e paradoxais. J4 que existe esse periodo infeliz da infancia, devemos ‘nos apressar em nos livrar dele da melhor manera: isto €, eriando as con- igdes propicias ao crescimento rapido da luz natural da alma, do nous platdnico, da razdo cartesiana, para enfim nos tornarmos adultos; isto é, ‘como o dira Kant, sem medo de usarmos nosso entendimento, sem medo de sermos independentes e autdnomos, sem medo de sairmos da mino- ridade Esses belos motivos, caros ao iluminismo, celebram juntos a idade dda razio —a idade adulta —e a emancipagao éticae politica, em oposi- (40 a idade da des-razo —a “in-fancia” — e sujeigo aos mandamen- tosde outrem. A infincia tem, nesta tradigdo de pensamento, um estatuto paradoxal: territério perigoso das paixdes, do pecado e do erro, zona escura sem os caminhos que tragam as palavras e que ilumina arazio, ela é no entanto, na nossa miséria humana, o inico solo. disposigao de onde 5 René Descartes, Discurso do Mito, Trad. Guinsbange Beno Prado Knior So Paulo Fd. Abril, Colegdo Os Pensadores, 1979.9. 38 "Ft ans encore e pens que, pour ce que ows avons tous et enfants avant que re hommes, et ql nous fll longtemps tre tuvemes par nce apptits et par nos pécepeurs, gu tient souvent conti es ns a Sues, equi niles ues autres, ne news consent per pas tujour le meilleur iNest presgue impossible que nos jgemens sien pari solides quis anraient es nous avons ew Faage enter denote ison ds Te pom de are naisance, et que nos seussions jamais ct conduits que par elle (Osseour de la methine, seconde partie, Oe ‘es phiosephigues Paris: Garter. 1963, ol 1, pp 580-81) 174: SETE AUILAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA possa brotar, naturalmente, essa mesma razio que Ihe faz falta. Despro- vida de logos — linguagem e razdio — a infineia o detém, porém, em poténcia. Cabe d educagio/formagao realizar essa potencialidade etrans- formar esses pequenos seres egoistas titinicos e choraminguentos em homens dotados de linguagem, isto é, capazes de pensar e agirraciona mente, de se tornar 0s cidadiaos responsaveis e independentes de uma res priblica. Podemos agora verificar que a relagao do pensamento, em particular do pensamento filos6fico, com a infancia, se constitui através de uma ‘mediagio conceitual cujos principais momentos sto uma certa concep- lo de natureza e uma certa concep¢ao de razdo. Confianga na pureza e no poder da raziio(rastro da inteligéncia divina em nossa alma) e descon: fianga em relagao & natureza humana, marcada pelo pecado ou pelo erro, esses dois fatores levam a uma representago paradoxal da infaincia como sendo, simultaneamente, 0 outro ameagador da razo, mas também 0 terreno exclusivo de sta eclosio. Ora, o corte introduzido por Rous seauem relagao a nossas representagdes de infaincia, portanto também de pedagogia, pode ser explicado por umia certa inverso dos dois momen- tos que assinalava: com Rousseau, comegamos a desconfiar da razio ea confiarilimitadamente na natureza. ‘Vejamos mais de perto, Devemos, de antemao, notar que a descon- fianga rousseauniana em relacao a razdo raciocinante e as palavras insi- diosas nao é tao nova como pode parecer & primeira vista. Jé na época de Platdo, contra o desenvolvimento répido e muito bem-sucedido da ret6- rica e da sofistica, eresce em Atenas uma grande desconfianga em rela- ‘oa esses profissionais da palavra que nfo usam a linguagem para dizer 8 verdade, mas, sim, para confundir, seduzir e enganar. Contra os belos antficios da retérica e da sofistica, Plato quer, justamente, salvar unt outro tipo de discurso -- 0 qual chama de filosofia —, 0 discurso da transparéncia ¢ da verdade. As relagdes entre sofistica ¢ filosofia sdo complexas, e nao vou me demorar nelas aqui. Sé queria assinalar que filosofia e sofistica nao sio tio facilmente distinguiveis como, varias vezes, a argumentagao platénica pretende. Se para Plato e para toda tra- digao filos6fica classica, a figura de Sécrates, por exemplo, éa figura do primeiro filésofo, pai fundador e martir 20 mesmo tempo, nfo ha, porém, diivida nenhuma que seus concidadios, que nao eram bobos, condena- ram Sécrates morte por se tratar de mais um desses profissionais da INFANCIA E PENSAMENTO. 175 palavra subversiva e habilidosa, de um sofista talvez mais refinado que ‘0s outros, Mas voltemos ao ideal platdnico de um discurso transparente e verdadeiro. Ele também orienta toda escrita de Rousseau, 56 que agora sua garantia maior nao provém da clareza da razio, mas sim da sinceri- dade — palavra-chave em Roussea —, do sentimento, Enquanto em Platdo ainda reina a exigéneia de uma palavra comum, racional, compar tilhada na amizade e na temperanga, uma palavra politica que obedece tanto as leis divinas como as leis humanas, em Rousseau a possibilidade dessa ordem ao mesmo tempo querida pelos deuses e edificada pelos homens, dessa ordem comum ao cosmos e a polis, se desfez. O abismo entre natureza ¢ cultura, physis e nomos, ji presente na discussio entre Platdo e a sofistica, parece, depois de varios séculos de cristianismo sobretudo, de absolutismo politico, intransponivel. A coeréneia de um discursonao asseguraa retidao das intengdes do seu autor. Platio ja sabia disso, mas propunha, para corrigir os efeitos de manipulagao de umacoe- réneia meramente formal, uma ordem mais elevada da rarao, fruto do convivio e da discussio amigaveis de duas almas que abdicam dos seus interesses particulares para chegar a um consenso racional. Em Rous- seau, & racionalidade formal, calculista e manipuladora nao se opée a explicitagao paciente de um logos mais elevado, mas, sim, a intensidade do sentimento que une cada um consigo mesmo, longe dos olhos dos ‘outros ¢ das convengdes impostas. Somente essa imediaticidade do sen- timento de si, essa busca de uma sinceridade radical do eu em relay ‘mesmo, garantea veracidade da linguagem. Nesse contexto, é caracteris- tico que as primeiras palavras nascam, segundo a eoriarousseauniana da origem das linguas, da efusio dos sentimentos individuais através do canto e nfo da discussdo dialética entre varios parceiros diferentes, Em oposigo4s palavras sedutoras, lisonjeiras, enganadoras ea uma razio calculist,ligada a uma ordem social injusta, Rousseau tentaedifi- car um discurso sincero ¢ um contrato social oriundo da vontade geral No nosso contexto, podemos ressaltar a valorizaglo rousseauniana ndo s6 da natureza — contra os artficios da cultura —, mas também da lin- Buagem sem palavras dos sentimentos contra as armadilhas da lingua- sem mais elaborada. Essa valorizagdo absoluta da natureza primeira e originria leva Rousseau a elaborar uma teoria da deformagao, do avita- ‘mento, da decadéncia através da histria e da cultura, em nitida oposigo ao otimismo ds filosofia da historia iluminista, baseado na certeza de um 176: SEE AUILAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTORIA progresso talvez lento, mas seguro. Em terms pedagogicas, os papéis se transformam radicalmente: em vez de corrigir a natureza infantil e de querer, o mais rapidamente possivel, a tomaradulta, o educador do Emi- {io deve, pelo contrério, escutar com atengo a voz da natureza na crian- 6a, ajudar seu desenvolvimento harmonioso segundo regras ditadas ndo pelas convengdes sociais, mas oriundas da maturagao natural das faleul- dades infantis. Cito Emile: Posons pour maxime incontestable que les premiers mouvements de la ‘nature sont toujours droits: iln'ya point de perversté originelle dans le coeur humain. Ine se trouve pas un seul vice dontonne puisse dire com ‘ment et par ois ily est evtré. La seule passion naturelle & Vhomme est Vamour de soi-méme ou Uamour-propre pris dans un sens étendu (..) Jusqu ice que le guide de l'amour-propre qui est laraison puisse naitre, iimporte done qu'un enfant ne fasse rien parce qu'il est vu ow entendy rien en un mot par rapport aux autres, mais seulement ce que la nature lui demande, et alors il ne fera rien que de bien ‘Tradugdo “caseira’ Aceitemos como maxima incontestivel que 0s primeiros movimentos da, natureza so sempre retos: ndo ha nenhuma perversidade originsria no coragio humano. Nao se encontra nele nenhum vicio do qual no se possa dizer como ¢ por que caminho penetrow ali. tinica paixao natural av homem é 0 amorde si mesmo ou amor-préprio, entendido no sentido amplo (..). Até que 0 guia do amor-proprio, que a razlo, possa nascer, ‘importa, portanto, que uma crianga nao faga nada porque ¢ vista ou vida, numa palavra, nada em relagdo ans outros, mas somente aquilo ue a natureza the pede © entao nao fara nada sendo 0 bem. ‘A “maxima incontestavel” da retiddo natural leva & defesa de uma educagdo que ndo sé protege as criangas, mas as defende contra a dureza ‘ea arbitrariedade da sociedade adulta. Uma primeira conseqiiéncia é a necessidade de isolar os pequenos, de manté-Ios afastados do mundo artificial da cultura, por exemplo numa bela propriedade de campo (no Emilio), num sitio, num jardim de infancia ou numa escola alternativa, para as criangas se desenvolverem natural e harmoniosamente, em cons- 6 Jean-Jacques Rousseau, Pile Pars: Fdition Pade, 1968), vol. 1V,p. 322, INPANCIA EPENSAMIEWTO. 197 tante proximidade com a natureza harmoniosa, Uma segunda conse agiléncia consiste em respeitar os ritmos naturais do crescimento, em par- ticular, em respeitar justamente na crianga sua auséneia de linguagem articulada, de ndo apressé-ls a aprender nem a andar, nem a falar, nem a escrever. O in-fans no & mais, pois, o rastro vergonhoso de nossa natu- reza corrupta € animal, mas sim, muito mais, 6 testemunho precioso de tuma linguagem dos sentimentos auténticos e verdadeiros, ainda nio cor- rompidos pela convivéncia mundana, Assim se elabora uma pedagogia do respeito a crianga, da celebragdo de sua naturalidade, de sua autentici- dade, de sua inocéncia em oposiga0 0 mundoadulto pervertido onde rei- ram as convengdes; isto 6, entre outras, uma linguagem retorica falsa © uma racionatidade artificial, separada dos sentimentos originatios. Si- multancamente se valoriza um espago pedagézico a parte — a escola € um tempo de formagao ditado pelos ritmos naturais do erescimento infantil, portanto bastante comprido, Essa pedagogia, da quel nao é pre~ ciso dizer o quanto nos impregna até hoje, acarreta uma infaincia prolon gada, uma adolescéncis cada vez mais estendila, pelo menos para aquue= Jas eriangas que tém direito 2 infancia e nao sto josadss o mais rapida- mente possivel no mercado de trabalho, Conhecemos a saciedade um dos seus maiores problemas: a saber, a insereao dessa eterna crianga Suposta- ‘mente boa e natural na dura realidade adulta, cheis de obrigagdes impos- tas. Dos softimentos de Fmilio crescido, apaixonado e infeliz até nossa relutancia em passar da infaincia feliz para a resignagao da vida adulta e do trabalho, 0 caminho € reto. Nao podemos deixar de observar aqui que a educagao ideal, tal qual Rousseau a imagina para Emilio, em particular esse respeito profundo pelos movimentos naturais do menino em oposigto & arbitrariedade de regras sociais convencionais, que essa educagao nao é amesmaque rece- berd Sofia, apesar de seu belo nome: para as meninas —e para as mulhe- res em geral — 0 olhar do outro, isto é, as convengées sociais e o desejo ‘masculino que Rousseau nao parece perceber aqui como sendo arbitra rios, 0 olhar do outro continua a ditar as regras de sua virtude. Essa contradigao apontada por virias pesquisadoras,” nos remete rndo s6 aos “preconceitos machistas” de Rousseau, mas também dificul- 7” Elisabeth De Fortenay, "Pour mile, Soph ou I inention dumenage”. Ems Temps Mode ress 3, mai de 1976, Badin, op. SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA F HISTORIA, dade de uma definigdo de natureza que ndo seja, predominantemente, a sm invertida ¢ idealizada de um estado sociocultural do qual softe- mos. Rousseau, alias, sabe dessa dificuldade, como suas observaydes metodologicas no inicio do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens o tessaltam. Em relagao a felicidade perdida da infan- cia, parece ser menos liicido. Trata-se, pois, de assegurar na infaneia 0 lugar privilegiado de uma felicidade e de uma proximidade da natureza que © adulto tein por missdo sagrads nao s6 reconhecer e defender, mas também reencontrar como fundamento intima de si mesmo, Em outras palavras, Jean-Jacques precisa da criangat feliz. inocente para poder acteditar ¢ nos fazer acreditar no seu esforgo de homem adulto, mas sin- cero, de autenticidade ede transparéncia. Ou ainda: inocéncia infantil ¢ a garantia da transparéncia interior, tal qual a reivindica a escrita adulta das Confissoes.* Essas observages querem simplesmente indicar por que somos, me parece, ainda hoje, to rousseauistas, mesmo sem ter lido nenhumta linha do Emilio. E que depois da infincia —territorio do pecado—, Rousseau inaugurou um motivo muito mais forte hoje: a infancia como paraiso, perdido mas préximo. Numa época de “desencantamento” (ntzaube- ‘rung der Welt de Max Weber) como a nossa, numa época que nao conse- gue mais erer nem na vida depois da morte, nem no progresso hist6rico, nem ra emancipagio da sociedade, esforgamo-nos para, pelo menos, acreditar ainda na possibilidade da felicidade individual, E nisso a cons- ‘trugdio de uma inféncia idealizada nos ajuda: fomos, sim, criangas felizes, ¢ inocentes, e nossos filhos s6 podem (e devem) ser, igualmente, belos, alegres, ingénuos e despreocupados. E mesmo que nossa vida adulta pro- fissional, social e sentimental seja decepcionantee frustrante, no minimo devemos ser pais amorosos, abnegados, companheiros, enfim, pais (sobretudo mies!) exemplares, como se, de repente, no reino encantado da inféincia e da filiago, pudéssemos nos livrar das mégoas e das insu ccigncias que carregamos na existéncia restante, Como diz Contardo Cal- ligaris no nimero do “Mais!” citado no inicio de minha exposigan elas (das criangas) esperamos que nos oferegam a imagem de uma ple- nitude e de uma felicidade que ndo é, e nunca foi, a nossa, mas gragas a A esse reapeta, ver belissimo lvra de Jean Strcbinski 4 Transparéncta eo OBsticulo (830 Paulo: Companhia das Letras 1998) INFANCIA E PENSAMENTO. 178 qual podemos amar # nés mesmos. Olhamos para clas coma para uma Foto de nossa infincia onde queremos parecer flizes. E para isso as pro= tegemos, cuidamos e satisfazemos, A crianga & 8 caricatura da felicidade impossivel: vestida de feliz isenta das fadigas do sexo e do trabalho, ideslmente despreocupada * Nao quero concluit com essa deniincia, talvez ela mesma bastante complacente, do nosso narcisismo em relagao a infincia, em relagio as criangas, em particular a nossos fihos, Gostaria, por fim, de apontar para algumas pistas que a reflexdo filoséfica contemporinea abre nese ‘campo de ressoniincias miituas entre intancia e pensamento. Penso espe- cificamente em textos de Walter Benjamim, de Jean-Frangois Lyotard e de Giorgio Agamben.” 0 belolivro de Walter Benjamin nao é, propria- mente, uma autobiogratia, Nao se trata, para Benjamin, de contar sua infincia ou de resguardar lembrangas felizes, Sobretudo nio se trata de idealizd-Ia, de deserever um paraiso perdido que o adulto possa ressusci- lar pela escrita, O que interessa a Benjamin é tentar elaborar uma certa experiéneia (Erfahrung) com a in-fancia." Essa experiéneia ¢ dupla: pri- meiro, ela remete sempre a reflexo do adulto que, a0 lembrat o passado, no 0 lembra tal como realmente foi, mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele. Essa reflexio sobre passado visto através do presente descobre na infincia perdida signos, sinais que opresente deve decitfrar, caminhos e sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder pois, justamente, ndo se realizaram, foram pi tas abandonadas, trilhas ndo percorridas. Nesse sentido, a lembranga da Infancia nao ¢ idealizacao, mas, sim, realizago do possivel esquecido ou fecaleado. A experiéncia da infincia é experiéncia daquilo que poderia ter sido diferente, isto €, releitura critica do presente da vida adulta. Ha uma segunda dimensio dessa experiéncia critica da infncia, Benjamin nio ressalta a ingenuidade ou a inocéneia infantis, mas, sim, inabitidade, a desorientagdo, a falta de desenvoltura das criangas em opo- 9 Suplemeno Mais! da Folha de S. Palo, 2807/1994 64 10 Walter Benjamin, "Berliner Kindhet um 190 em Gesanmmelte Schrier 1V-1 (Frankfurt am Main: Subrkamp. 1972), Trad. brasil em Obras Escothdas 1! (S30 Pao” Bras lense, 198713. LNotatd, Le postmodern expligué ous enfant, op. it Do mesmo ao, Yer cambeim Linfumavn, Pais Galles, 988). Creepin Agamiben, Enlace ot histoire (ars: Pay, 1988) 11 Vera “nod do proprio Benjamin pac ultima versio da “infiniaBerlinense”, no volume VIE das Gesammele Schrier 180. SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA & HISTORIA siglo a “seguranga” dos adultos. Mas essa incapacidade infantil pre- ciosa: no porque ela nos permite langar um olhar retrospective como- Vido ¢ cheio de benevoléncia sobre os coitadinhos que foros, ou que nos cercam hoje, Mas porque contém a experiéncia preciosa e essencial ao homem do seu desajustamento em relagdo ao mundo, da sua inseguranga primeira, enfim, da sua ndo-soberania, Essa fraqueza infantil também aponta para verdades que 0s adultos ndo querem mais ouvir: verdade politica da presenga constante dos pequenos e dos humilhados que a ccrianga percebe, simplesmente, porque ela mesma, sendo pequena, tem outro campo de percepeao; ela vé aquilo que o adulto nao vé mais, os pobres que moram nos pordes cujas janelas beiram a calgada, ou as figu- ras menores na base das estituas erigidas para os vencedores. A incapa dade infantil de entender direito certas palavras, ou de manusear direito certos objetos também recorda que, fundamentalmente, nem os objetos nem as palavras estdo ai somente a disposigio para nos obedecer, mas que nos escapam, nos auestionam, podem ser outra coisa que nossos ins- trumentos déceis.”” As imagens da inffincia evocadas por Benjamin tentam pensar aquilo que, profundamente, jaz neste prefixo in— da palavra in-fancia © que significa para o pensamento humano essa auséncia originaria e universal de linguagem, de palavras, de razao, esse antes do logos que nfo € nem siléncio inefavel, nem mutismo conseiente, mas desnuda- ‘mento e miséria no limiar da existéncia e da fala? Retomando esta ques- Go, Giorgio Agamben nos indica que essa experineia inefivel da in-fincia — inefével ndo porque seria um inicio paradisiaco além das palavras, mas porque a in-fincia esta aquém das palavras, ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem e, porém, condigo de possibilidade de sua eclosdo —, que essa experiéncia da infincia “exclui que a lingua- ‘gem possa se apresentar como totalidade e verdade”."° Nem dominio do pecado nem jardim do paraiso, a infancia habita muito mais, como seu limite interior e fundador, nossa linguagem e nossa razo humanas. Elaé © signo sempre presente de que a humanidade do homem no repousa somente sobre sua forga e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas to essencial, sobre suas faltas e suas fraquezas, sobre esse 12 A esse respeito, ver 1M. Gagnebin, Mitr e Narapo em Walter Benjamin (Sto Pau: Perspectiva, 1994) cap.1V. 13 Enfance er histoire op et 9 66 INFANCIA PENSAMENTO. 181 vazio que nossas palavras, tais como fios num motivo de renda, no deveriam encobrir, mas, sim, muito mais, acolher e bordar. E porque a in-fancia nao é a humanidade completa e acabada, ¢ porque a in-fancia é, como diz fortemente Lyotard, in-humana, que, talvez, ela nos indique 0 que ha de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, sua incom- pletude, isto é, também, a invengdo do possivel

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