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Michel Senellart AS ARTES DE GOVERNAR Traducdo de Paulo Neves editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, $92 Jardim Europa CEP 01455-000 So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda., (edigio brasileira), 2006 Les arts de gouwerner © Editions di Seu, Paris, 1995 ‘A OTOCGAIA DE QUAL QUER FOLHA DESTE LIVRO € ILEGAL, F CONFIGURA UMA APROPRIACAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMOSIAS DO AUTOR. Get owvrage, publié dans le cadre du programme de participation a la publication, bénéficie du soutien du Ministére francais des Affaires Etrangéres, de l'Ambassade de France au Brésil et de la Maison francaise de Rio de Janeiro. Este livro, publicado no ambito do programa de participagio & publica contou com 0 apoio do Ministério francés das Relagves Exteriores, da Embaixada da Franga no Brasil e da Maison frangaise do Rio de Jancico. Titulo originals Les arts de gouverner Capa, projeto grifico ¢ editoragio eletrGnica: Bracher & Malta Producio Grifica Revisio: Fabricio Corsaletti Marina Kater Ricardo Lisias 1" Edigdo - 2006 CIP - Brasil, Catalogagio-na-Fonte {Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Seollrt, Miche, 1983 sit [As ares de gorernar: do reine 0 coecio de govetne / Michel Sencar ado ‘Se Palo Neves — Sho Pao: Ed. 34, 2006 336 p. (Colegio TRANS) Isa 85-7326-346-X “Teadagio de: Les ars de gourerner 1. Filosofia, 1. Tilo, HL Sie emp. 140 INTRODUGAO Gulliver esta em Brobdingnag, o pais dos gigantes, onde seus companheiros de viagem 0 abandonaram apés uma violenta tempes- tade.! Fle logo se torna intimo do rei, homem justo, doce, tolerante, cujas virtudes, to pouco conformes a funcao real, Swift escusa pelo fato de que, vivendo inteiramente separado do resto do mundo, ele ignora os costumes das outras nagées. Espantado com tanta inocén- cia, Gulliver Ihe revela o poder terrivel da pélvora de canhao, propon- do ensinar a seus stiditos a maneira de construir os tubos de bronze ou de ferro que Ihe assegurariam uma dominagio absoluta em caso de sedigao. O rei, horrorizado com a descrigao de tais maquina, afasta essa idéia com repugnincia. Escriipulo bizarro, aos olhos de Gulliver, que somente a ignorancia explica, “esses povos no tendo ainda trans- formado a politica em arte (into a science), como 0 fizeram 0s euro- peus cujo espitito é mais susil” 2 Essa satira, escrita segundo as regras da narrativa utépica, nto se contenta em opor a virtude natural 4 corrupgao dos povos civiliza- dos, nem a harmonia de uma sociedade pacifica 4 violéncia dos Esta- dos europeus, palco de guerras permanentes. Nao é tanto a desordem das paixdes egoistas que ela condena, quanto uma técnica racional de exercicio do poder. A utopia swiftiana, diferentemente da de Thomas Morus, nao exorciza as ameagas de uma desrazao tiranica, mas, 20 contritio, as de uma razao que “transformou a politica em arte”. A arte de governar, e nao apenas os apetites desregeados dos principes, cis 0 que, para Swift, torna a politica nociva. * Viagens de Gulliver, part I 2 Ibid, cap. 7, pp. 240-3, Introducio n Em que consiste essa arte? Seguramente, ela nao se reduz a cién- cia da guerra. “Lembro-me de que, numa conversa que tive um dia com o rei, disse-Ihe casualmente que havia entre nés um grande niime- ro de volumes escritos sobre a arte de governar (the art of govern: ment), ¢ Sua Majestade, contra minha expectativa, emitiu uma opiniio muito desfavoravel sobre nosso espirito, acrescentando que despreza- va.e detestava todo mistério ¢ toda intriga nos procedimentos de um principe ou de um ministro de Estado.”> A arte de governar aparece, assim, ligada ao céleulo, A maquinagao, a praticas complicadas e ocul- tas: arcana imperii, mistérios ou segredos de Estado, para empregar 0 vocabulério do século XVIL. “Ble no podia compreender o que eu queria dizer por segredos de gabinete (secrets of State). Encerrava a cincia de governar (the knowledge of governing) dentro de limites muito estreitos, reduzindo-a ao senso comum, & razo, a dogura, 3 pronta decisio das questdes civise criminais ¢ a outras praticas seme- thantes ao alcance de todos, e que nao merecem ser mencionadas."4 Grandville, na edigo ilustrada das Viagens, desenhou um retrato de Maquiavel no meio desse texto. Com efeito, a arte de governar identificava-se naturalmente com 0 maquiavelismo estatal posto em pratica no século XVII sob o nome de raziio de Estado. Swift inscre- verse no grande movimento de rejeigio do absolutismo pelas Luzes, opondo a transparéncia dos mecanismos governamentais & opacida- de de um Estado retirado em sua transcendéncia. Mas sua critica co- loca em evidéncia um aspecto um tanto negligenciado do combate amtiabsolutista. Enquanto este & geralmente analisado pela histéria das {déias politicas em termos de fundamento e de direito — quais sio as condigdes de um poder legitimo face a0 arbitrério da dominagio? —, Swift toma como alvo as prOprias técnicas da acio politica. O que esta em causa ndo é tanto 0 governo como tipo de instituicao (a forma da soberania) mas 0 governo como modo de exercicio do poder sobera- no, Nio se trata portanto de substituir uma concepcio da soberania, baseada na forca e no diteito divino, por uma outra, de esséncia con- tratual, mas de contestar o pressuposto implicito de toda teoria da soberania: a idéia de que a condugao do Estado depende de uma arte especial. E.a separagao entre a esfera piblica e o mundo ordinatio dos 2 Ibid, pp. 243-4. * Ibid, p. 244. 2 As artes de governar assuntos humanos que Swift recusa, tornando a encerrar a atividade sgovernamental dentro dos limites do senso comum, de virtudes e de capacidades “ao aleance de todos”. Versio burguesa dessa posi todos podem governar. Versdo democratica, ao final do século, em sua formulacio mais radical: 0 governo ndo consiste em outra coisa se- no na participagio de todos na vida publica. Da critica liberal a0 pensamento republicano, certamente a saberania passou, progressiva- ‘mente, do rei a0 povo. Mas essa passagem foi acompanhada de um novo questionamento da arte do governo, a ponto de esta tiltima apa- recer como a antitese mesma da aco politica. Assim, a teotia do Es- tado 56 podia livrar-se do modelo absotutista se, além de subverter suas bases doutrinai sse também 0s métodos que ele forjou. “Todas as artes produziram suas maravilhas”, escrevia Saint-Just. “A arte de governar foi a tnica a produzir somente monstros.” Essa acusagao, no entanto, contém um paradoxo. Com efeito, a arte de governar no designa apenas os estratagemas de um poder sem escriipulos, que utiliza todos os recursos da forga. Ela é igualmente, até o século XVI, o conceito de uma pratica moral (e nao calculista ¢ a esstncia da realeza residindo, como se vera, em sua fungao diretiv Seria inexato, porém, apresentar 0 regimen como o simples exercicio do poder estabelecido, uma vez que, a0 contrério, € 0 regnum — no trfplice sentido de regime mondrquico, dignidade real e reino — que constitui a pratica do bom regimen, orientado para o bem comum, No século XIII ainda, o regnum decorre das exigéncias do regimen, e no © inverso.%° Em vez de absorver 0 governo na forma abstrata da s0- berania, ele o impede de estabelecer-se em seu conceito, colocando a finalidade como critério da fungio.>! ® ibid. p. 108, 2 Ct. infra, pare I, cap. 4, B. % De regimine principum, I 3, 4, f. 98. 0 regnum, como se vers, no tem ainda um sentido eritorallaramen- remarcado, © Com efeto, se nio se pode conceber regimen que nao tenda para 0 bem 5 de uma republica e seu go- verno (governo)” 36 Bodin, alguns anos mais tarde, retoma essa distingo: “ [uu] hi muita diferenga entre o Estado e 0 governo, que é uma regea de policia que permanece intocével. Pois o Estado pode ser uma monarquia, e no entanto sera go- vernado popularmente se o principe participa das catego- thid., , 1,6, £2446. 3 Sobre o sentido do conccito de stato em Maguiave, ef. infra, parte Il, capa. % Republica et Magistrati di Venezia (ctado por F. Chabod, Scrtt sul Ri nascimento, p. 644). 2 Reinar e governar rias sociais, magistraturas, oficios ¢ aluguéis comuns a to- dos, sem levar em conta a nobreza, nem as riquezas, nem a vireude” 3? © governo nio designa aqui, como em nossos dias, 0 drgio do executivo, mas uma certa maneira, para o poder soberano, de distr buir honrarias ¢ cargos em fungao de critérios estabelecidos pelo cos- ‘tume. O principe nio exerce sua soberania sobre uma multidao de individuos preocupados apenas com sew interesse, Ele comanda um corpo vivo que possui uma meméria, E é esse jogo entre a vontade soberana ¢ os costumes da nagao que define o conceito de governo. Virrias diferengas sobressaem em relacéo ao governo maquia- veliano: o governo se manifesta sob a forma da doacéo, nao da dis- suasio, da coergao ou da repressio (“Pode acontecer também que a ‘monarquia seja governada aristocraticamente quando 0 principe doa tirulos ¢ beneficios somente aos nobres, ou apenas aos mais virtuosos, ‘ou 20s mais ricos”)s¥¥ ele tem por objeto a atribuigio dos cargos e das dignidades, nfo a utilizagio das armas ou a gestio das riquezas; ins- creve-se numa tipologia constitucional (monarquica, aristocritica, popular) ¢ nfo tem a ver com um célculo de seguranga; enfim, é re- gulado pelo costume e nao varia portanto segundo a necessiti. Distinguindo-se assim do Estado, isto é, da forma da soberania, esse governo nao tem o carter de uma pritica especifica. Ele designa ‘menos a maneira como se exerce a soberania do que os costumes — “regra de policia® que permanece intocével” — aos quais ela deve se conformar: seu limite fatual, em suma, e nao sua forga atual. Bodin reconhece porém uma certa autonomia da pratica gover- namental em relagio & fungéo soberana, Com efeito, segundo a for- % La République, U2, p34 % Ibid. (rifo meu) » A palavra, no século XVI, em sew aso mais ee sma de governo de um Estado (Amyot: “Ha tés espécies de policias, isto ¢, de govern das idades” — monarquia, oligarquia, democraca) ou o conjum das eis que o regem, ora um deteminado costume ov maveta de vver. CLE. Hue ‘et, Dictionnaire de a lange franaise du XVI sce, Paris, Didier, 6, 1965, P. 61. Bodin toma emprestado oconevto Cl. de Seyssl, La Monarchie de France (1519};6€.N. Robinstin, “The History of the Word politens in Early- Modern Europe”, p. 52. A nogio de “governo” 3 Politizacdo do regimen, portanto, sobre o eixo de uma teleologia moral.32 Um fio continuo, com efeito, liga a conduta de si, a admi nistragio doméstica e a diregio do Estado. O principe governa seu reino da mesma maneira que seus préprios desejos, sua mulher, seus filhos, seus domésticos: trata-se, em cada nivel, de conduzir uma mul- tido para o fim virtuoso que Ihe corresponde. Simplesmente a difi- culdade aumenta com o mimero. O rei é aquele que, em sua ativida- de diretiva, tem que se haver nao s6 consigo mesmo e com sua fami- lia, mas com a maior multidao possivel.}} Por causa dessa relagao transitiva entre o governo de si, de sua casa e do reino, a aséo piib caé reduzida, na maioria das vezes, as regras éticas do comportamento privado. O reginten politico, todavia, nao se exerce sobre individuos 32 Esse fendmeno nao se verifica somente na tradigio teoldgico-flosdtica cident. Ele € observado igualmente no pensamento iskimico. O Regime do so- liério (Tadbir alsmutaicabbid) de ton Bajja (Avempace, séculos XI-XII) ofereee tum notivel exemplo. A obra comeca pelo exame da palavra tadbir, que significa conduta, dires20, manejo de um negScio, administracao, regime de um doente. Ibn Bajja a define como “a disposicio de diversas agSes tendo em vista um fim proposto”, sublinhando que, na maioria das vezes, emprepa-se esa palavra para definie um regime “em poténcia”. Assim, é preciso que a reflexdo intelectual se exerga sobre essas coisas em poténcia, pois a coordenagio ¢ sua fungao prépr Por outro lado, pode-se consider ais baixo € o de uma profissi0, o mais elevado, 0 da “casa” (economia) ¢ da cidade. Diz-se que Deus ‘rege 0 mundo apenas por analogia com a idéia geal ea mais clevada do regi- me. O vulgo empregs estas diversas significagées de mania equivoca, mas 0 f- \sofo vé nelas somente homénimos. A cidade perfeta seria consttuida pelo pe- ueno niimero dos que professam as doutrinas veridicase praticam as ages cor- reas, se eles chegassem a viver juntos. Enquanto a sociedade nio tiver adatado seus costumes, eles permanecermestranhos em sew meio de origem. O objetivo do livro é explicar 0 regime a ser seguido pelo solitrio para alcangar e conservar a perfeisio espiritual A in lugncia da palavea tadbir sobre o.so da palavea regimen ainda esti por ser estudada, a obra de Ibn Bajja ndo tendo sido conhecida dire- tamente pela escoléstica latina (ele foi resumido em hebraica apenas no sfculo XIV por Moisés de Narbona), mas por cages, empristimos e comentérios de ‘outros autores — em particular Ibn Rusd (AverrGis). Devo todas essas informa- Ges 3 generosa erudisdo de Dominique Urvoy. Sobre thn Bajja, cf. H. Corbin, Histoire de la philosophieislamique, pp. 317-25 (bela andlise do Regime do so- litério, pp. 321-5), 55 Cf. em Gil de Roma, op. cit IM, 1, 5,244, a defini do regrum como uma “confederagio de varias cidades”; ef igualmente Il, 1,1, f. 2381, a cam: ‘musitasregni como a forma mais elevada de comunidade politica A nogio de “governo” 3 do, pritica especifica do governo no interior do modelo juridico da soberania, mas recuo desta para uma concepgao patrimonial do po- der, baseada na guerra. b. Hoaaes E.com Hobbes que a evolugio conceitual iniciada no século XVI vai culminar numa articulagao clara entre poder soberano e governo. ‘Vé-se entdo delincar distintamente dois eixos de problematizacio: um, ascendente, da constituigao do soberano e outro, descendente, do exercicio do poder como office, duty ou business of the sovereign. Curiosamente, essa clarificasao conceitual é acompanhada em Hobbes de uma certa confusio de vocabulério, como se ele buscasse, sem conseguir inteiramente, escapar a antigas convengGes de lingua- gem. Em seu primeiro tratado politico, o De corpore politico," ele ainda utiliza a terminologia tradicional: “Tendo até o presente mostrado como 0 corpo po- tico se produz, e também como esse mesmo corpo pode ser destruido, falta-me dizer como ele pode ser preservado. Nao que eu tenha o propésito de tratar aqui em particular da arte de governar, mas apenas de propor alguns pontos gerais que essa bela arte deve utilizar e nos quais consiste o dever daquele ou daqueles que sao os soberanos”.45 A arte de governar diz respeito, nao & criago do Estado, que ‘obedece a uma dupla légica, passional — o medo da morte, que leva ‘0s homens a por fim, por um pacto, ao estado de natureza no qual reina a guerra de todos contra todos — e juridica — a transferéncia dos direitos de cada individuo contratante & pessoa do soberano —, mas a sua conservagio. Ela supde portanto a existéncia de um sobe- rano, isto é, de um monarea estabelecido na plenitude de seu direito. ‘© governo é assim claramente delimitado em relagio & instituigao do “Essa obra compreende o cinco sikimos capitlos da primeira parte eto 4 segunda parce dos Elements of Law que Hibbs seg em 1639-1640. 0 texto, dfundide em manuserito, 0} publicado sem o consetimento do autor em 1650. 45 De conpore politico, cap. 9, § 1, pp. 1623. ‘A nogdo de “gorerno” 35 poder. Enquanto, em Maquiavel, tomar 0 poder e conservé-lo requer ‘0s mesmos meios, de modo que seu exercicio na verdade correspon- dde a uma conquista permanente, em Hobbes, conservar o Estado (que nao se reduz mais a0 stato do principe, mas se identifica com 0 Com- ‘monwealth) faz parte dos deveres em relagio aos siditos que decor- rem do direito do soberano. Este monopoliza a forca e detém uma autoridade absoluta para permitir que os individuos que formam 0 corpo politico vivam em paz. Longe de o governo ser 0 conjunto dos tos pelos quais se reforca indefinidamente poder, ele implica que esse poder jf seja to elevado que nao se possa conceber um supe- rior. O poder maximo nao constitui o objetivo do governo, mas sua condigao.*¢ Quais so, enti, os fins da arte de governar? Hobbes os resu- ‘me pela maxima romana que ele cita a0 longo de toda a sua obra: Salus populi suprema lex, a salvacio do povo é a lei suprema, defi- rnindo essa salvagio nao apenas a preservacao de sua vida, mas, de maneira mais geral, seu proveito e seus interesses. Esse proveito, no plano temporal, consiste em quatro coisas: (1) a quantidade — é de- ver do soberano fazer multiplicar 0 povo estabelecendo boas normas nao tolerando “esses vergonhosos acasalamentos contrarios a0 cos- tume da natureza, [..] a comunhao das mulheres entre si”,47 a po- liandria etc. —, (2) as comodidades da vida (liberdade e prosperida- de), (3) a paz doméstica, (4) a defesa segura contra os inimigos exter- nos. Além de seu papel militar, vé-se que o governo esti essencialmente ligado a fungées de policia, no sentido de manutengao da ordem e de regulamentagiio dos costumes, mas sobretudo —e trata-se ai de uma dimensio nova da atividade do Estado, esbogada pelos primeiros te6- ricos mercantilistas!® — de economia piblica.% Fiquemos atentos as + Convém observa, no entamto, cirularidade da relagio entre soberania «governo: “Assim como ersas ages sto dever do soberano, elas existem para seu proveitoe seu intcrese. Pos afinalidade da arte ¢ o proveito,e quem governa em proveito des siditos governa em proveto do soberano” ibid. p. 163, gefo meu). ‘© coneeto de interes, ou provit, const o piv desse argument * Ibid., § 3,9. 164. “* CIP, Deyon, Le Mercantilisme; M. Senellart, Machiavélisme et raison a Baar, pp. 71s * Um exemplo da evolugio da palavra encomtra-se em L. Le Roy, Tra 36 Reinar e governar ‘ransformagées do vocabulério. Aparentemente, Hobbes permanece muito préximo de Bodin, que identificava 0 governo com uma regra de policia, Na realidade, essas palavras adquiriram, no século XVI, uma significagio totalmente diferente. A policia-costume ou forma de governo que modificava, segundo priticas hist6ricas, o poder sobera- no, tornou-se uma policia-regulamento ou ato de governo que mani- festa esse poder na transparéncia da lei. Essa policia deve certamente ser dissuasiva e repressiva, jé que tem por objeto garantir a paz. Mas cla nao se contenta em proibir: é preciso também que facilite, pela ‘manutengao dos caminhos, a circulagio das pessoas ¢ das mercado- rias, que controle o abastecimento, empregue todas as forcas dispo- niveis, restrinja as despesas supérfluas etc. ‘Momento decisivo na histéria da arte de governar: ao fazer do bem-estar, da existéncia trangiila e agradével a finalidade da vida iil, Hobbes —e com ele uma larga corrente de inspiragio utilitarista — deslocava a velha questo da ars regendi para um terreno em que ela seria suscetivel de receber uma solugio cientifica: a da economia como espaco regulado pela harmonia dos interesses particulares,s? quer funcionem livremente 3 maneira de uma “mio invisivel” (A. Smith), quer se ajustem por dispositivos legistativos (Helvétius). Mas isso sera a tarefa do século XVIII. Quanto a Hobbes, ele nio sai do quadro politico: é sempre em termos de soberania que analisa as pri ticas do governo. Com efeito, se este se exerce sobre miltiplos obje- tos — populagio, costumes, mercadorias, transporte, trabalho, ju: ‘sa, guerra — e portanto exige, em sua aplicagio concreta, compe- téncias especificas, sua arte, no plano dos prinefpios, resume-se em tuma formula simples: a obediéncia dos stiditos. A arte de governar est inteiramente na capacidade de fazer-se obedecer. Essa tese, cons- tantemente sublinhada por Hobbes, encontea uma ilustragio muito marcante no Leviatd (1651),°! quando ele afirma que a prosperidade duction d’Aristote Ml, 2, comentivi: “A palava policia (police, usada comu- ‘mente em francés para a taxagao dos viveres eo egulamento dos oicios por pat- te dos juires ou almotacs das cidades, decai, confundindo polcae economia pi- bea” (eiado por E. Huguet, o. city p. 62), 59 0 italiano G. Botero jf havia tragado 0 caminho nesse sentido, como smostreiem Machiavéliome et raison Eta cf. igualmente meu artigo *La raison Brat antimachiavélienne”, pp. 37-41. 51 Léviathan, cap. 30, p. 361. ‘A nogiio de “governo™ 37 de uma nagio nao depende da forma de seu governo (no sentido aqui de regime, politeia): “A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocratica ou democratica nao se deve ao sistema aris- tocrético ou democritico, mas a obediéncia e A concérdia dos stitos. E se o povo é florescente numa monarquia, nao é porque um ‘nico homem tem 0 direito de regé-lo, mas porque as pessoas Ihe obedecem. Dafa inutilidade das mudangas de constituig40” que equivalem a des- truir 0 Estado, a exemplo das filhas de Pélias que despedagaram seu pai, a conselho de Medéia, e fizeram-no ferver para devolver-Ihe a ju- ventude.* Ora, a prosperidade, condigio da vida confortavel, € 0 principal objetivo, juntamente com a seguranga, que a arte de gover- nar persegue. £ muito notavel que a redugio desta diltima a pura for- ‘ma de comando sirva, num mesmo gesto, para recusar a questio do melhor regime, central no pensamento politico clissico. Sao duas tra- digdes governamentais distintas, a da arte de bem governar ea da for- rma étima de governo, que vém fundir-se no conceito de uma sobe- rania que aspira, por sua investidura contratual, a uma obediéncia absoluta. Nos capitulos do De cive (1642) e do Leviatd dedicados aos de- veres do soberano, Hobbes nao utiliza mais a expressao arte de go- ‘vernar, embora retome a maxima Salus populi suprema lex.53 “Con- vvém distinguir”, ele escreve no De cive,* “entre 0 direito 0 exerct- cio da soberania”. E, explicando novamente que nao pretende entrar em detalhes (“nao & meu propésito descer as particularidades que se encontram nos governos de diversos principes, cujos direitos poderiam ser diferentes”), acrescenta: “Convém deixar isso aos politicos préti- cos que ensinam a condugao particular de cada espécie de repaiblica”. Frase instrutiva. Ela mostra, em primeiro lugar, que a redugao das, Ovidio, Metamorfoses, Il, 3-4. A comparagio er, parecesme, base tante correne.La Mothe Le Vayr, em sua Politique du prince, cap. 3,1X,p. 899, emprega-a no mesmo sentido antreformador. 5 Gf, Le Gitoyem, cap. 13, ¢ Léviathon, cap. 30. A salvagio, em 1642, é sempre definida, na perspectiva hedonista de Hobbes, como a conservagio de “uma vida tanto quanto possivel eiz® (Le Citoyen,cap. 13, § 4 p. 230). Mas ela abrange finalidades um pouco diferentes da lista inicial. Sobre 0s “quatro gne- ros de comodidades dos siditos” relacionados & vida presente (Seguranga exte- or, paz interior, enriqueciment,liberdade), ver 0 § 6, p. 231. Le Citoyen, cap. 13, § 1, pp. 228-9. 38 Reinar e governar ‘técnicas governamentais & simples vontade imperativa no procede, em Hobbes, da negacao de uma arte especifica de governar que tire suas regras da diversidade dos campos aos quais se aplica, mas se acha justificada pelo nivel no qual se mantém: o da teoria politica que for mula as leis gerais, eno o da politica pratica. Além disso, os preceitos do governo variam segundo os tipos de reptiblica: cada uma requer uma “condugio particular”. Idéia freqtientemente desenvolvida, no século XVI, por um certo niimero de te6ricos do Estado, de Clapmar a Chemnitz.** “A politica repousa sobre principios que si0 comuns a todos os Estados”, escreve por exemplo Amelot de la Houssaye, “e 1 razio de Estado sobre principios particulares, de modo que cada Estado tem sua razdo de Estado” 5 isto é, ele se conserva por meios, ordinarios ou excepcionais, apropriados a natureza de seu regime. A mudanga de vocabulério de Hobbes, que fora disso permanece muiro estével, em capitulos que apresentam uma grande simetria, parece-me pportanto sintomidtica: ela traduz.a passagem de uma problemitica tra- dicional da arte de governar, da qual poderiam se enunciar as mé- ximas comuns, a uma problemética nova da razdo de Estado — ex- press que Hobbes no entanto jamais emprega — determinada pela forma dos diferentes corpos politicos. Assim, é no plano da politica pratica que se juntam tecnologia e tipologia governamentais, fora do dominio cireunscrito, more geometrico, pela teoria da soberania. A fi- sica politica ainda é, para Hobbes, uma genealogia abstrata do direi- 10; ela nao desce, como o fara com Montesquieu, a anilise da mul- tiplicidade concreta das leis. Constata-se que se delineia, em Hobbes, uma dupla tendéncia: uma que consiste em rebaixar 0 governo em relagao a soberania atra- vvés do imperativo de obediéncia, a outra em separar rigorosamente seu nivel de funcionamento em termos de direito — poder de ditar a lei —e de exercicio — aplicagio a realidades particulares. A primeira corresponde a0 uso freqiiente, no final do século XVI € inicio do .XVILL, da nogao de governo como sindnimo de auroridade piblica. A segunda, ligada parcialmente ao discurso prudencial da razao de Es- 55 Ck. infra, parte I, cap. 2, B. Cf. igualmente meu artigo “¥ a-vil une théorieallemande de la raison d’Btat au XVIK sigele2”, pp. 275-93. 56 Commentare des dix premiers livres des Annales de Tacite, pret dicho. + A nogio de *gorerno” 39 tado, puxa a politica pratica para o lado da “economia”,57 no senti- do amplo de administracio das pessoas e dos bens, ¢ culmina na dis- tingdo, ainda pouco familiar a seus leitores, que Rousseau formulard: “Peco-vos distinguir claramente |...] a economia puiblica de que devo falar, ¢ que chamo govermo, da autoridade suprema que chamo sobe- rania; distingao que consiste em que uma tem o direito legislativo, ¢ ‘obriga em certos casos 0 corpo mesmo da nacio, enquanto a outra s6 tem poder executivo, e ndo pode obrigar sendo os particulares”.5# No inicio do século XVI, o governo se confundia com o Estado: stato € governo, em Maquiavel, so na maioria das vezes intercam- biaveis e designam o poder efetivo do principe. Reinar é governar, ¢ vice-versa. Na metade do século XVIT, as duas nogdes se separaram 57 ssa divisio & desctta por C. Schmitt, Der Léviathane in der Staatslehre des T. Hobbes (1938), como 0 ponto de equlibrio entre o momento pessoal da decisao soberana e o mecanicismo de uma concepsio do Estado como simples ‘miguina administrativa, Com 0 desenvolvimento da racionalizagio burocritica, a instincia deciséria desaparece em proveito de uma técnica impessoal de gover ‘no. O Leviat, prsioneiro do dispositive administrativo e impessoal que ele mes- mo engendrou, est, assim, condenado a morter. * Segundo M. Esmcin, op cit, pp. 22-3, fi cm conseqincia da termino- logia prépria a Rousseau, “correspondend a uma iéia sul e muito pouco exa- 1a", que 0s Franceses habitwaram-se “a ver no governo o poder executive ape- ras". Com elec, antes de Rousseau, explica R. Derathé, op. cit, p- 385, “0s irstaseescritores politicos nio estabelecem nenhurna difeenga entre o gover no € a soberania”, i que o poder executivo é uma parce desta do mesmo modo ‘que o pode: legslativo,o poder judiciério ou o dieito de fazer a guerra, © pot ‘que esses poderes, numa monargua, esto reunidos na pessoa do tei. Cl, Rowse seau, Lettres dertes de la montagne (1765), 1, in ures complites, ed. lade, tll, p. 176. Com hase na teora da vontade gral, somente 0 pode legslatvo, segundo Rousseau, confunde-se com o poder soberano.Eessencial, para 8 pro: Blematizagio moderna da art de governar, que distin real, eno mais ape- nas formal como em Hobbes, entre soberana egoverno eta ligada ao advexto da era democritca. Com efsto, a elativa autonomia da pritia governamental ‘em relagio ao poder soberano &conccbida, nfo sobre o fundo de obseutas esta tégias de gabinee (face ocslta do sol do Estado abscluro), mas na interior da te- Jaco complexa que a sociedade, por seus mecanismos de representacio cde ad- rministrag3o, mantém consigo mesma, Pacadaxo de um corpo que, agindo sobre simesmo, “jamais age imediatamente por si mesmo”. F esse jogo que inaugura a xa da Ofentchtet(publicidade) eencerta dfiiivamente, sem no entanto ei rina todos os seus residuos, 2 dos arcana ou mistéios do Estado (sobre essa ogo, of. fra, parte Il cap. 2}. 40 Reinar e governar uma da outra, inserindo-se num sistema de oposigdes bindrias: drei tofdeveres, teoria/pritica, constituigaio/conservagio etc. Chegou 0 mo- ‘mento em que se podera dizer, eventualmente, que o rei reina e nao governa. Situagio descrita por Hobbes: “Acontece com freqiiéncia que 6s reis [x] transferem a condugdo dos negécios a outros [w.-) porque julgam que estardo melhor em suas maos e que, contentando-se com a escolha de alguns ministros ¢ conselheiros fis, exercem através deles © poder soberano. E nessa conjuntura, na qual 0 direito ¢ 0 exercicio sio coisas separadas, 0 governo dos Estados muito se parece com 0 do mundo, em que Deus, primeito motor, geralmente deixa agit as causas segundas € ndo altera a ordem dos efeitos da natureza”.5? A autonomizagao da atividade governamental em relago & fungio so- berana poe em evidéncia, na cena politica, um novo personagem: 0 rinistro, encarregado de conduzir os negécios do Estado. Mas ela se inscreve igualmente no interior de uma cosmologia mecanicista, que representa um mundo sem finalidade e autogovernado pelo simples fancionamento de suas leis naturais C. AS TRES ETAPAS DA EVOLUCAO DO CONCEITO De uma maneira um tanto esquemética, pode-se distinguir trés ‘tapas na formagio do conceito de governo da dade Média ao sé- culo XVI. 1. Até 0 século XII, segundo a concepgio ministerial do poder secular —o rei, ministro da Igreja —, 0 regimen precede 0 regrum. Este € confiado ao rei por Deus, através de seus coadjutores imedia- tos, para que, coagindo os corpos, ele coloque sua forga a servico do governo das almas. A realeza, entio, é um oficio que decorre de um dever a cumprir, subordinado & perspectiva religiosa da salvagio. Do onto de vista da historia do Estado, constata-se, com razio, que 0 politico ¢ absorvido pelo espiritual. Na érica de uma historia do “go- verno”, é mais exato dizer que as finalidades governamentais, espiti- tual (salvacdo das almas) ¢ temporal (disciplina dos corpos), condi- cionam a ética do Estado. Em vez da negacao do politico, é a fina- lizagio da forga que constitui o cardter original desse perfodo. Num 9 Le Citoyen, cap. 13, § 1, p-229. A nogio de “governo” a certo sentido, o rei governa mais do que reina, jé que seu titulo de- pende da retido de seus atos.6? 2. A partir do século XII, sob a dupla pressao do desenvolvimen- to das grandes monarquias ¢ do movimento intelectual suscitado pela redescoberta de Aristoteles, 0 reginien se confunde com o regnum. Relativa autonomizagio do politico em relacio ao espiritual, se qui serem, Equilibrio precédrio, mais exatamente, no interior de um mun- do harmonioso e hierarquizado, entre a naturalidade do regntm ¢ a finalidade do regimen, Bastard que se rompa essa harmonia, na auro- ado Renascimento, para que o regimen, separado de uma ordem dos fins, se enrole de certo modo em toro do regnum, fazendo da forca, ‘entregue a si mesma, o prinefpio de um crescimento indefinido da for- ‘ga. Esse momento em que 0 regimen se liberta de todo horizonte te- leolégico e adota como fim, numa espécie de dobra circular sobre si, a condigio de seu exercicio — o poder —, marca a passagem da arte ‘medieval de governar 4 tecnologia moderna do governo, que O prin- cipe de Maquiavel ilustra com brilho. Mas nao devemos nos enganar aqui: se Maquiavel rejcita o finalismo do regimen cristo, ele conti- nua a conceber 0 governo como idéntico ao stato, Reinar, para ele ‘como para os escolsticos, é governar, com a tinica diferenga de que da eficécia substitui o da justiga. A ruptura maquiaveliana é certamente decisiva, mas ela se inscreve num periodo de transigio, aberto pelo naturalismo aristotélico, entre a antiga doutrina dos Pa- res, em que a fungdo governamental determinava os limites do po- der, € a teoria elaborada no século XVII, em que ela sera subordina- da A instituigo do poder soberano, 3. A terceira etapa corresponde a instrumentalizagao do gover- ‘no que descrevi em Hobbes, mas que constitui um fendmeno geral nas ‘grandes monarquias administrativas no século XVII. O governo no € mais a razao de ser do poder piblico nem a forma mesma de sua manifestagao. Ele se torna uma fungao deste, essencial, sem davida, mas distinta do aparelho solene da soberania. Diferentemente de M. Foucault,®! nao penso que a autonomizacao da arte governamental Segundo a formula de Isidoro de Sevilha, “rex a rete agendo” (ct. infra, pare I, cap. 1, A) © Ch. “La Gouvernementalité”, pp. 10-1, Foucault & verdade, explica que a nova arte de governar segundo a razio de Estado servis ao fortalecimento da a Reinar e governar no século XVII tenha-se feito em ruptura com a teoria juridica da so- berania. Foi antes no quadro estabelecido por esta que ela pdde sepa- rar-se 0 mesmo tempo dos fins éticos do regimen (a soberania defi indo um espago politico regido por relagées de comando e de obe- digncia em vista da manutencéo da ordem, necesséria a seguranga) e da pura dinamica da escalada das forcas liberada por Maquiavel. O ‘governo ndo é mais o vetor de um aperfeigoamento moral dos homens, nem a sede de uma luta permanente pela dominagio. A soberania nio se importa com os fins tiltimos, ¢ € cla, doravante, que se torna 0 ob- jeto de disputa das rivalidades de poder. Dai uma redefinigdo das fi- nalidades governamentais, ndo em funcdo do bem comum ou do in- teresse do principe, mas das necessidades do Estado, corpo vivo sub- metido & exigéncia, para sobreviver, de desenvolver a0 maximo seus recursos materiais e humanos Esse processo se traduz por um certo mimero de transformagoes: — O governo nio se exerce tanto sobre vontades, como 0 faz através da lei a autoridade soberana, quanto sobre quantidades:® populagio ativa ou inativa, riquezas, mercadorias, equipamentos ci- vis militares etc. E verdade que os homens, mesmo considerados sob seu aspecto de massa, ndo so uma matéria inerte. Sua sensibilidade instavel, mével, versétil obriga a multiplicar os signos ¢ os simulacros (“governar”, dizia Richelieu, “€ fazer acreditar”), de preferéncia 4 coergio. Mas seus humores entram doravante num calculo que os reduz, de certo modo, a puros fendmenos fisicas. Assim, Bacon, em seu Ensaio sobre os distirbios e as sedigées,°> recomendava aos “pas- tores do Estado” “conhecer bem os calendatios das tempestades do Estado, que sio em geral mais fortes quando as coisas esto em igual- dade, assim como as tempestades da natureza si0 mais fortes em tor- no do equindcio”. O antigo governo das almas e dos corpos é substi tuido, portanto, pelo governo das coisas.® A questo nao é mais a do soberania, esta constituindo, portanto,a seu ver, um quadro hist6rico a0 mesmo tempo que um obstdculo teérico, Ch, o texto de Fenelon que cto mais adiante (parte I, cap. 2, B) © Essai, XV, p69. + Base ponto foi muito bem salientado por M. Foucault, op. ct, p. 10.0 cexemplo no qual cle se apdia, porém, é bastante contestivel. Serd que se pode A nogio de “govern” 8 uso legitimo da forea, que os autores cristios colocavam, nem a de sua apropriagio exclusiva, que Maquiavel havia levantado. Ela reside ago- +a na utilizagio intensiva do conjunto das forgas disponiveis. Passa- ‘gem do direito da forga a fisica das forcas. — Deslocamento, a seguir, da antiga concepgao do ministério para o problema do ministro. Quando competia ao principe governar, a reflexdio permanecia centrada sobre a natureza de seu oficio. Proce- dia ele do poder espiritual? Em que medida devia submeter-se a este? Quais eram suas obrigagdes? A estrita doutrina ministerial havia dado lugar, desde o século XI, a um reconhecimento progressivo da auto- nomia do poder real em suas fungSes seculares. Mas este s6 adquiriu sua plena independéncia ao revestir-se dos atributos da soberania. A partir do momento em que o principe representava o corpo politico do Estado mais do que fazia ele proprio esse corpo agir, a questio da escolha dos ministros tornou-se de primeira importan Maquiavel, em O principe, s6 lhe havia dedicado um capitulo bastante curto:% assunto secundério, de fato, uma vez que, contraria- mente idéia medieval de que os bons conselheiros faziam bom principe, os ministros, segundo Maquiavel, “[eram] bons ou nao con- forme a sabedoria do principe”. © problema do ministro transferia- se para 0 do julgamento do principe. Naudé concede-Ihe um lugar bem maior em suas Consideragdes politicas sobre os golpes de Esta- realmente considerar como uma novidade, ov como sinal de uma transformagao. decisva, a presenga da palavra coisas na defnisio do governo por G. de la Perriére (Le Miroir politique, 1555) que ele comenta longamente: "Governo € a correta Aisposigio das coisas, cujo encargo se assume para conduri-las a um fim adequa- do” (f.23r-v)? Com efcto, o autor acrescenta: “como descrever 0s filésofos mo- rais eredlogos", referindo-se&tradicio antiga e medieval. Além disso, ele faz sua Aefinigao ser precedida da frase: “Governo pressupde ordem, na medida em que sem ordem nio se pode devidamente governar”. E dificil nao perceber na formu- Ia de la Perriére um eco direto da célebre definigio agostiniana da paz (A cidade cde Deus, XIX, 13): “A paz de toda coisa &a trangiilidade que a ordem oferece, ‘ ordem nio ¢ sendo uma disposicio das coisas semethantes e dessemelhantes que atribui a cada uma o lugar que Ihe cabe (ordo est parium et disparivom rerum sua ‘exique loca tribuens dispositio” © Cap, 22: “Dos secretirios que os principes tém perto dees (De his quos «secrets principes habert)”. Gaudet traduia mais brevemente: “Dos ministros”, F importante notar que a funcio do ministro se inscreve ainda numa certa ¢cono- mia do segredo, “ Reinar e governar do (1639) — todo 0 quinto e tltimo capitulo —, mas permanece muito préximo de Maquiavel quando esereve que “[os ministros] dependem absolutamente da escolha que o principe pode fazer”.6° Reflexos da sabedoria do principe, eles sito de certo modo o instru- ‘mento pelo qual, exteriorizando-se, ela toma consciéncia de si mes- ma, A competéncia deles nao se exerce sobre objetos especificos. ‘Momento necessario da pura reflexividade da vontade soberana, eles servem apenas para reduzir a distancia entre a humanidade falivel do principe e sua decisio irrevogavel.©” Assim, o papel dos ministros néo se distingue do dos conselheiros, “servidores secretos ¢ ficis”.® F, Hobbes que separari rigorosamente suas fungdes especificas: “Um conselheito, se tem unicamente o direito (estando desprovido de todo comando e de toda jurisdigio) de dar pareceres, relacionados a ques- tes piiblicas dificeis, ao detentor do poder supremo, nao é um mi nistro piblico”.® A escolha dos ministros nao sera entao mais de- terminada, num fim deliberativo, pela simples relagio do principe com sua propria vontade, mas, segundo as exigéncias administrativas, pe- la relagio orginica do aparelho do Estado com o corpo da nacio. Objetivagao da fungo ministerial — relativa as finangas, aos assun- tos militares, 4 instrugdo do povo ete. — que corresponde & minis- terializagio da atividade governamental. No século XVII, os minis- tos € que irdo redefinir as regras da arte de governar. Considerations politiques sur les coups d'Etat, p. 153. | se 0 principe sejulga bastante forte, aurorizado, judicioso e capa para estar acima de seus conselheiros ¢ confidentes, € bom que tena trés ou qua- tro deles, porque, depois que eles tiverem opinado sobre algum incidente, ele po- der obter diversas propostas ou meios eexcolher aquila que julgar mais conve- jente de execurar. Mas se ele tiver um espirtofraco, se for pouco perspicazein- paz de escolher o melhor conselho e fazi-lo cumprir, é mais conveniente, sem daivida, que se confie a somente um conselheiro, que ele escolheri como o mais jdicioso e methor preparado de todos” (ibid, p. 153). Cl. as observagdes esclare- ‘cedoras de L. Marin em sua apresentagio, pp. 56-7. © Ibid p. 154, © Léviathan, cap. 23, xadusio fancesa do texto latino por F-Tecaud,p. 259, nota 47. O texto inglés é menos expliito. ‘A nogio de “governo” 45 Capitulo 2 AS ARTES DE GOVERNAR As artes de governar: esse plural indica que nao buscamos des- ‘cobrir uma esséncia, um principio fundador do qual se pudesse dedu- zir um método de governo. Ele designa uma multiplicidade nao ape- nas de artes, de técnicas, de sistemas de regras, de modelos de aco, mas também de definigdes do “governo”. Nada menos equivoco, co- ‘mo vimos, do que esse termo que remete a formas de relacao, tipos de instituigdo e eixos de finalidade muito diversos. O que nao impede ‘que se possa agrupar num género 0 conjunto dos textos, seja qual for sua forma literdria (didlogo, discurso, tratado, sermao, poema, carta tc.), que instruem o principe acerca do que ele deve ser, saber e fazer para dirigir bem seu Estado. Género antigo cuja tradi¢ao remonta as civilizagées do Egito e da Mesopotimia,! essa literatura é pouco es- tudada e no encontra geralmente lugar na hist6ria das idéias politi cas, menos porque, dirigida a principes, ela ndo teria mais interesse numa cultura democrética do que em razdo de sua orientagao moral. Desde Maquiavel, o tema da virrude do principe, objeto da “pare- nética” régia, pertence a um mundo de ilusdes em que se misturam sem discernimento, como se cumprissem a mesma fungao, quimeras, figuras ideais e construgdes ut6picas. ‘A “cigncia politica”, assim, teria tornado caduca a arte de go- vernar, como 0 provaria o apagamento progressivo dessa expressio em Hobbes. Ora, isso nao é verdade, Contrariamente a0 esquema "CEP. Hador, “Furstenspiegel”, col. 556-64. 2A parenétca, ou partnese (do grego parainess: exortago, encorajamen- to, designa um ginero de discurso que exorta as agdes virtuosas, CE. Séneca, Car- tas a Luctlio, XV, 95,1, que traduz esse termo por “ensinamento de precetos” (pars praeceptiva philosophiae, ‘As attes de governar a historiogeifico convencional, que opde a nova racionalidade estatal dos séculos XVLe XVILA ideologia medieval do bonumt commune, a arte de governar nao foi substituida de um s6 golpe pela ciéncia do Estado, mas transformou-se gradualmente para infiltrar-se em sua armagio, nela introduzindo, sob uma linguagem moderna, s tos discursivos as vezes muito antigos. Nem ruptura nem, obviamen- te, simples continuidade: & em termos de deslizamento, de deslocamen- to, de desmoronamento, 4 mancira dos gedlogos, que caberia descre- ver os estratos do discurso politico que vemos se formar a partir do século XVI. Usilizarei, por ora, uma outra metifora. Distinguem-se em. fisica dois regimes de escoamento dos fluidos: laminar (ou em lencol) e turbulento. O escoamento laminar efetua-se por deslizamento de camadas de fluido umas sobre as outras, com efeitos de viscosidade, enquanto o regime turbulento é caracterizado pela formagao de siste- ‘mas turbilhonares, as velocidades variando de maneira aleatéria. Tal- ver seria pertinente, por analogia (¢ portanto sem pretender nenhu- 1ma utilizagao rigorosa dos conceitos), distinguir, na historia das idéias, politicas, periodos de escoamento laminar, em que vemos sobreporem- se superficies discursivas homogéneas — assim, no século XIl, as do humanismo platonizante e do direito civil romano, ou, no século XU, as do agostinismo e do aristotelismo —, com uma maior ou menor resisténcia viscosa, e periodos de regime turbulento, marcados por tuma brusca aceleragao, em que os fluxos discursivos perdem sua in- dividualidade, decompdem-se ¢ misturam-se entre si— assim, apés a perturbagio maquiaveliana, as polémicas dos séculos XVI e XVII em torno da ragion di Stato. A mecinica dos fluidos aplicada, como me- tifora experimental, As correntes de pensamento permitiria, desse mo- do, escapar is periodizagdes estereotipadas nas quais a anzlise se em- bota, ¢ considerar 0 discurso, no como uma superficie sobre a qual se projetam grandes sombras iméveis, mas como um verdadeiro es- paco de circulagio. Em virtade dessa hipétese, procurarei mostrar que linhas de in- clinagéo conduzem dos Espelhos dos principes (Specula principum) ‘medievais as maximas de Estado do século XVI, no interior do géne- +o das artes de governar. Como se passou de uma ética do regimen inscrita na relagio especular do principe com seu modelo perfeito, a ‘uma técnica governamental determinada pelos interesses do Estado? ‘Veremos que entre uma e outra a figura do Principe maquiaveliano representa menos um corte brutal do que uma transigao, forte ¢ sur- 48 Reinar e governar preendente, sem diivida, derrubando clichés e convengées, mas atra- vés da qual se prolonga uma antiqiissima pedagogia régia, a0 mes- ‘mo tempo que nela emerge uma consciéncia nova das condigoes da agi politica. O principe: nao livro fundador, manifesto de uma ci cia nascente, mas texto de articulagao entre a literatura dos Espelhos ‘€ 05 manuais de Estado, Para que se possa formar no século XVI. uma cigncia positiva do Estado, serd preciso romper-se a forma do espe- Iho na qual O principe, a despeito de sua ironia subversiva, perma- necia encerrado, A. O GENERO TRADICIONAL DOS ESPELHOS. Por que as artes de governar, até o século XVI, tiveram a forma do espelho? E no fim do século XII que aparece o primeiro tratado sobre 0 governo do principe tendo o titulo de Espelbo (Speculum: 0 Speculum regale de Godofredo de Viterbo (1180/1183). Arrolam-se a seguir mui- 108 outros: o Konungs-Skuggsja (Speculum regale, 1260) noruego, 0 Speculum: regis de Simon Islip (1337/1349), 0 Speculum regum do franciscano Alvarus Pelagius (1341/1344), 0 Speculum morale regium de Robert Gervais (1384) etc. Certamente um grande ntimero de obras do mesmo tipo tém titulos diferentes: Liber de regimine, ou de ins- titutione, ou de instructione principum, por exemplo. Mas adotou-se © habito, desde W. Berges, de designar pelo nome genérico de Fiirs- tenspiegel, Espelhos dos principes, todos os escritos pertencentes a0 género da parenética régia. Denominacao legitima, segundo P. Hadot, pelo fato de que “eles observam desde a mais alta antigiiidade as mes- ‘mas leis ¢ as mesmas tradigées”.> ‘Sem contestar a continuidade do género, o fato é que a imagem do espelho desempenha, na representacdo dos deveres do principe, um papel especifico que convém analisar mais de perto, Encontramo-la ja em Cicero,* a propésito da escolha do melhor dirigente: 3 P, Hadot, art. citado, col. $56. * De re publica, I, 42, 69, p. 46. Esse lvro, que Santo Agostinho cita com freqitnca, fi perdido na Idade Média e redescoberto no inicio do século XIX. As artes de governar 49 “Lélio entdo: Adivinho ja de que dever ¢ de que fun- 40 vais encarregar esse homem, de quem cu desejaria ou- virte falar. [Cipiao:] Nao imporei a ele muito mais do que isto, disse 0 Africano, {pois ela compreende mais ou menos to- do o resto): cumpre que ele jamais cesse de instruir-se e de observar-se a si mesmo (a seipso instituendo contemplan- doque), que inspire aos outros 0 desejo de imiti-lo (ad imi- tationem sui vocet alios) e, pelo brilho (splendore) de sua alma e de sua vida, oferega-se a si mesmo como um espe- Iho (sicut speculum) a seus concidadios”. governante, aqui, ndo contempla num espelho 0 modelo a0 qual deve se esforcar por se assemelhar. Fle serve de espelho para os homens que conduz. Fle é esse espelho gragas claridade que dele ir- radia. Com efeito, 6 virtude que governa diretamente através daquele ‘que, pelo estudo eo exame de si, aprendeu a se governar, de tal sorte ‘que “apresenta sua vida a seus concidados como uma lei (stam vitarm ut legem praefert suis civibus)”.5 Lei viva: essa figura, que tem sua origem na filosofia helenistica, exercera uma grande influéncia sobre os autores medievais a partir do século XII. Fla tornara a dar a0 tema da exemplaridade do rei, que séculos de ética mondstica haviam re- duzido a uma estrita disciplina da carne, um lugar central na econo- mia do governo, ligando a fungao diretiva do principe ao briho de sua visibilidade. “E deveis saber que o rei deve resplender e reluzir entre todos e sobre todos os outros por virtude, por sabedoria e por grasa, por todas as boas obras. [...] E, pela razio de seu oficio, ele deve assemelhar-se a Deus de alguma maneira”, escreve, entre tantos ou- tros, o dominicano Jacques de Cessoles (século XIV), comparando 6 rei a um espelho cuja pureza se reflete sobre a nacio. principe-espelho pressupée o espelho do principe. Séneca, no De clementia composto para o joven Nero, utiliza a imagem do spe- culm nesse segundo sentido. 5 Cl. LK, Born, “Animate Law in the Republic and the Laws of Cicero”, p. 133, © De ludo seacchorum (Le jew des exches moralisé), fo. S ss. (ctado por D.M. Bel, ‘dda éthique de la royauté,p. 89). so Reinar e governar “Empreendi escrever sobre a cleméncia, Nero César, para desempenhar de certo modo a funcao de espelho € encaminhar-te, oferecendo-te tua imagem, a vohipia maior que hd no mundo.”? Os espelhos, com efeito, foram inventados para permitir ao ho- mem conhecer-se.® Mas hd, nesse tratado, uma perfeita circularidade ‘entre o principe, o espelho e o modelo de virtude que ele reflete. Este no é senio o proprio Nero (*ninguém te busca um modelo [exem- lar] fora de ti mesmo”), convidado a contemplar nao o espetaculo de seus vicios ou de suas fraquezas para cortigi-las, ou o retrato de tum imperador ideal para imit-lo, mas sua propria exceléncia. Para que serve, entdo, exorté-lo mansuetude se cle ja possui essa virtude ‘no mais alto grau? Para transformar essa disposigdo natural em pra- tica refleti * Quero te fazer tio familiares quanto posstvel os atos € as palavras que te honram, a fim de que o gesto de hoje, simples movimento instintivo (quod mune natura et impetus est), se torne uma maneira de ser consciente e desejada (fiat judicivm)” 10 Pode-se ver nessa atitude apenas uma forma sutil de adulagio. Séneca, porém, defende-se.!™ Acorrentando Nero a perfeigdo de sua natureza, ele quer obrigé-1o nao simplesmente a permanecer ele mes- mo, mas a demonstrar, através de sua conduta, suas qualidades ina- tas: “Situagiio ingrata, em verdade, se essa bondade que ostentas fos- se apenas uma aparéncia fingida”.1? Nero deve mostrar sua virtude, * De clementia,1, 1, p-2- * Citado por P. Courcelle, Connais-ti a * De clementia, 6p. 4 40 thi, 1,2, p. 8. Sobre esse tema, ef. Cartas a Lucio, Il, 16, 6: tranformar ‘um impetus em habitus anima "Cl. De Clementi, I, 2, p. 8: *Gostaria mais de te chocar com verdades do que te agradar com lisonjas” (maxima de Agrippa). © Bids 1, 6, p.4. mdm. p49. Asartes de governar 3 a fim de demonstrar sua perfeigo natural. Assim, o espelho the é ¢s- tendido para que, exercitando-se em permanecer o mesmo, ele corri- ja seus impulsos — de célera, por exemplo — pelo simples desejo de continuar a assemelhar-se. A c6lera, com efeito, altera os tragos pelo enfeamento da alma_13 ‘Muito bem conhecido dos autores medievais, © De clementia constitui talvez a origem da expressio “espelho do principe”. A ima- gem reaparece no século VIII sob a pena de Alcuino, um dos princi- pais astesios do renascimento carolingio, em seu tratado De virtutibus et viti’s (799/800) enderegado ao conde Wibo de Bretanha. Apés ter escrito 0 combate das vircudes ¢ dos vicios que domina constante- ‘mente a vida humana — tese corrente da literatura patristica — e ter exortado Wibo a manter a paz, “terror dos inimigos visiveise invisi- veis", entre os que observam os preceitos divinos, Alcuino expde em conclusio o objetivo de seu livro: “Redigi estes conselhos, carissimo filho, em poucas palavras, conforme teu desejo, a fim de que os tenhas todo dia sob os olhos como um pequeno manual (manualem li- bellum) no qual possas examinar-te e conhecer o que deves fazer ou evitar (quid cavere, vel quid agere)” 15 A obra desempenha portanto o papel de um espelho moral, mes- ‘mo se a palavra nao é empregada. Mas Alcuino escreve alhures que, zna Sagrada Escritura, “o homem pode examinar-se a si mesmo como num espelho (quasi in quodam speculo)”.1® © exame de si implica pportanto a imagem de um espelho que permita a cada um saber o que cle é (qualis sit) ¢ Ihe mostre 0 que cle deve ser (quo tendat).'? Instru- ‘mento tanto de autoconhecimento quanto de purificacao. Ele ndo ser- ‘ve mais, como em Séneca, para ligar o principe & sua propria perfei ‘elo, mas para dar-lhe os meios de corrigir suas imperfeigdes; nao mais, Ch infra, pare cap. 3, A 1 De vitutbus et vitis, 617 C. ibid, 638, 16 De letionis studi, PL 101, 616 C. 1 hid. 2 Reinar e gavernar o encaminha, pela contemplagao de sua prépria imagem, 4 volipia, ‘mas, por uma meditagio catértica, & beatitude celeste. Jonas d’Orléans, que leu os tratados de Alcuino, emprega termos idénticos no De institutione regia (831), 0 mais represcntativo dos Espelhos dos principes carolingios. lugar em que o faz nio é sem importéncia, }& que se trata do capitulo em que explica o que é 0 reie quais sao seus deveres. Depois de varias citagdes biblicas, entre as quais a do Deuteronémio (17, 14-20), éintroduzido um longo trecho de uma obra andnima que ele atribui a Sd0 Cipriano, o De duadecim abusivis saeculi.'® Essa passagem, intitulada “Rex iniquus” (O rei injusto}, conhecerd até o século XIII uma fortuna excepcional. Cons- titui um dos t6picos da tradigao dos Fiirstenspiegel. Assim, ¢ interes- sante que seja apresentada “como uma espécie de espelho”: Inserimos neste opiisculo, fruto de nossa peque- rez, algumas palavras de Sio Cipriano, mértir de Cristo, ue oferecemos a vossa serenidade (o bispo Jonas dirige-se 40 rei da Aquitanial a fim de que as tenha ao alcance da mao, as leia eas medite com freqiiéncia. Em suas palavras, contemplai incessantemente, como num espelho (quasi in quodam speculo), o que deveis ser, fazer ou evitar”.!9 O espelho adquire assim a fungio de um manual familiar do qual convém servir-se todo dia, tendo em vista conduzir-se (quid agere, ‘quid cavere) e modificar-se (quid esse). Ele nao se inscreve numa re- Jago narcisica consigo mesmo, mas numa prética ascética. Remece aquele que governa os outros a necessidade de governar-se a si mes- ‘mo para conformar-se, nao & exceléncia de sua natureza, como o Nero do De clementia, mas & eminéncia de seu ofi © sentido da palavra esta fixado ¢ evoluird pouco. A partir do século XII, porém, assiste-se a uma proliferagao de Espelhos de todo tipo. H. Grabes, que lhes dedicou um importante estudo,”° enumera mais de 250 até o século XVIL. Espelhos instrutivos que visam a en- riquecer 0 conhecimento — como o Speculum majus de Vicente de 4 Ver bibliografa: Pseudo- Cipriano. De insttutione regia, p. 140. 2 Speculum, Mirror and Looking-las. ‘As artes de governar 33 Beauvais (cerca de 1256), que retine em sua monumental arquitetura todo o saber da época ¢ acerca do qual Emile Male dizia que os ca- pitulos estavam transcritos na fachada das catedrais, 0 Speculum: ju- diciale (1271) de Guilherme Durand de Mende, coletinea de direito candnico, © Mirror of the World (1481) de William Caxton, modelo dos Espelhos enciclopédicos ingleses ou espelhos exemplares1 que so guias de vida moral e espiritual, apresentando catdlogos de virtu- des e de vicios opostos ou de exempla edificantes (Speculum christiani, Speculum conscientiae, Speculum peccatoris ete.). Em que categor dispor os Espelhos dos Principes? E verdade que eles se dirigem pes- soalmente ao principe, a quem expoem regras de conduta e exemplos de virtude. Mas, & diferenca dos Specula carolingios que enunciavam os deveres do principe em relagdo a Igceja e a0 povo cristao, eles ten- dem cada vez mais a levar em conta as exigéncias concretas da res publica. Antes do século XI, o principe governava homens (0 “povo de Deus”); com a formago das monarquias territoriais, ele governa um regnum. A matéria sobre a qual se exerce o poder nao é mais, como veremos, o corpo mesmo de seus siiditos, mas 0 corpo poll do reino. Dai o cardter instrutivo mais acentuado de um certo ntime- +10 de Espelhos dos principes, que conservam todavia sua fungio exem- plar. Assim, 0 Liber de informatione principum anénimo do final do século XIII foi impresso em 1517, em sua tradugo francesa, com 0 titulo de Miroir exemplaire et tris fructueuse instruction [..] du régime et gouvernement des rois, princes et grands seigneurs qui sont (Espe- lho exemplar e proveitosissima instrucio (...) do regime e governo dos reis, principes e grande senhores que sao]. Convém notar que 0 género dos Specula praticamente nao faz nenhum uso, nem literdrio nem doutrinal, da rica simbélica do espe- Iho desenvolvida, desde os primeiros séculos, pelos misticos e os ted- logos.”2 Trata-se de duas tradi¢des distintas que raramente interferem. Um Filipe de Méziéces (1327-14053 — que escreve em seu Songe du vieil pélerin Sonho do velho peregrina] que, “pela virtude do espe- tho que fala moralmente, assim como A luz do sol se vem planamen- Jaramente] as coisas criadas em geral neste mundo”, assim tam- 2 Sobre essa dstingi, ef. DS, 10, art. “Miroir, col. 1292. 2 Ibid, col, 1295-1301 23C£.D. M, Bell, Etude sur “Le Songe du viel paterin™ SA Reinace governar ‘bém cada um vé claramente seus defeitos “sem reverberagao como em. relagao ao sol” — € uma excecio. Nenhum autor pés em cena, como cle, numa espécie de coreogratia solar, a Rainha Verdade e suas Da- mas (Paz, Misericérida e Justiga), cada uma segurando um espelho, em volta do principe que clas iniciam nos segredos de seu oficio.2 Assim, convém limitar o termo speculum, se 0 aplicamos & arte de governar, a seu sentido historico de manual, guia de conduta, inscre~ vendo-se certamente numa estrutura analégica do ser que permite es- tabelecer correspondéncias entre o visivel eo invisivel, mas pobre em ressondncias metaféricas. B. OS ESPELHOS POLITICOS NO SECULO XVI Um indicio interessante da evolucao do género aparece num au- tor menor do século XVI, j4 evocado, Guitherme de la Perriére. Ele explica em seu prefacio por que “quis dar & [sua] presente obra o ti- tulo de Espelho politico”. A primeira razio “éque, assim como num espelho aquele que nele se mira e olha nao vé tio-somente sua face mas vé por linha reflexa a maior parte da sala ou quarto onde estiver, do mesmo modo todo administrador politico que se quiser mirar no presente espelho (ndo de cristal, de prata, de vidro ou de ao, mas de papel) podera ver aqui, resumido e sumaria- mente agregado, tudo que Ihe & necessario ver para exercer bem e devidamente seu oficio, sem dar-se 0 trabalho de fo- theae varios autores gregose latinos quedfusamenteesre- vveram sobre isso” A metéfora, desenvolvida desta vez.com certo preciosismo, con- ‘tém um elemento novo: a sala ou quarto onde esté aquele que se mira. ‘Oespelho nao reflete, em virtude de simetrias analégicas, a idealidade de um modelo transcendente, mas, por um fenémeno puramente fisi co, a imagem do lugar onde se esta. Essa irrupsao do espago na rela- 2% Ibid. p. 121. 2% Le Miroir politique, t. 11 Asamtes de governar 38 ¢a0 especular do principe com seu oficio é, sem davida, um fendme- ‘ho notavel. Ela reflete a emergéncia do territério como dominio con- ccreto, geogeaficamente estruturado (contrariamente ao conceito pu- ramente juridico do regnim medieval) do exercicio do poder. A “fa- ce” do principe se inscreve dentro de coordenadas espaciais com as quais ela forma um todo, Essa é, talvez, a primeira ligdo do texto. Evi- temos porém forgar sua interpretagdo. O que o espelho mostra nao é tanto a realidade de um pais, em sua diversidade material,2® quanto tuma sintese do que escreveram “varios autores gregos ¢ latinos” so- bre a ciéncia do governo. O Espelho politico € um compendium para uso dos “administradores politicos”, aos quais falta tempo para “fo- Shear” 0s livros eraditos. Um manual, portanto, que oferece aos go- vernadores?? a representagao de uma repiblica bem ordenada. Sob esse aspecto, ele situa-se na continuidade dos espelhos medievais, a cuja tradigdo, para citar Vicente de Beauvais,2* faz explicitamente referéncia. a. O LIVRO SECRETO DO PRINCIPE E entre os tedricos da ragion di Stato que a ruptura com a for- ‘ma antiga do speculum se realiza com clareza. Nao que seja abolida a fungio instrutiva do espelho, mas este se acha de certo modo divi- dido no interior de si mesmo, mostrando ao principe nao apenas 0 que ele deve fazer e como deve aparecer, mas igualmente o que lhe é ne- cessirio esconder. O espelho nao oferece mais © puro brilho de sua superficie. Ele se abre, em profundidade, para um ponto obscuro: © livro secreto do principe, que contém o inventario dos recursos e das forcas de seu Estado, Na Idade Média, os autores de Specula citavam freqiientemente este versfculo do Deuteronémio 17, no qual viam um resumo de suas exortagdes: “[O rei] deverd escrever num rolo, para % Tal como buscari cella, por exemplo, Le Miroir des Francois de Ni colas de Montland (1581), que marca, segundo a expresso de D. Reynié ("Le regard souverain”, p. 44), “0 iniio da preocupagio exearstiea”. Mas no se ta- ta, propriamente falando, de umn manual do principe. ® *Govenador pode ser chamado todo monarca, imperador, rei, principe, senhor, magistrado, prelado, juiz e semelhante” (Le Miroir politique, f. 23). 2 Ch. infra parte I, cap. 3, C. 56 Reinare governar seu uso, uma c6pia desta Lei [dada por Deus a Israel] [..]. Ela nao 0 deixards ee a lerd todos os dias de sua vida [...)”29 Na segunda me- tade do século XVI, o livro do Estado substitui, no centro do manual do principe, o livro da lei divina. Scipione Ammirato p6s em evidéncia, num capitulo de seus Dis- corsi sopra C. Tacito (1594), a ligagdo entre essa escrita secreta ¢ os registros feitos pelos mercadores. Prova, entre outras, do papel decisi- vo desempenhado pelo desenvolvimento do comércio, no final da Ida de Média, na transformagdo das maneiras de pensar: a passagem de ‘uma racionalidade dirigida a um fim para uma racionalidade calcula~ dora efetuou-se no terreno da economia antes do da pratica politica.2° “Os ricos mercadores tém um livro, que eles chamam 6 livro secreto. Esse livro nao deve chegar as méos de to- dos 0s empregados da loja, somente o dono o conserva jun- toasi, enele faz.a lista de todos os seus negécios, € 0 resu- mo ea anilise de todos os seus recursos ¢ capacidades. [...] Um principe deve fazer o mesmo com seu Estado.”5! O imperador Augusto, de acordo com Sueténio, teria assim man- tido secretamente o computo de todas as forgas do povo romano. “Compreendendo bem em seu divino entendimento ‘quanto o fardo que tinha em seus ombros era pesado e im- portante, © que Ihe era necessirio ser prudente e avisado ‘pata manter tio grande maquina, [ele] escreveu de seu pré- rio punho (ndo querendo confiar essa tarefa & suficiéncia € 20 discernimento de um outro) um livro do Estado, que 2% Ct. infra, pare, ap. 2, C. °° Cf. H, Maker, In Namen des States, pp. 133-4, para uma ahorda- ‘gem geral da questo, Sobre a escrta dos mercadores, cf i Mouton, col. *Crlisaions e sie” 9, 1967; particule a parte : *AMforeset place de Phomme dans le monde: fortuna, raion, prdenza™. Ob- servag6es interessantes de J.-l. Fournel e J~Cl, Zancarini em sua introduce aos Avertissements politiques de Guichardin [Guicciardini], pp. 11-7. Discors sopra C. Taito, ta fr Mell, livro I, 5° discus, p. 28. As artes de governar 7 depois de sua morte foi apresentado a Tibério, livro esse ‘que continha todas as riquezas piblicas, 0 nimero dos ci- dadios e confederados que portavam armas, o niimero das, galeras, dos reinos e provincias submetidas a0 Império, os tributos, os pedgins, 0s gastos necessrios eas doases ou liberalidades.” Tal é 0 verdadeiro espelho do principe — “Aprende, principes, ‘com o maior prfncipe que jamais existiu no mundo, em que livro vos deveis mirar € contemplar”: aquele no qual, olhando-se, ele vé no seu modelo ideal, mas os detalhes de suas forgas reais. Enquanto cespelho medieval remetia indefinidamente o principe ao principe, atta vés de sua imagem transfigurada, é na materialidade mesma do Es- tado, doravante, que o principe aprende a se conhecer. © cogito prin- ipesco ndo é mais mediatizado por um imperative de perfeigao (“co- nhece tuas feaquezas para cresceres em virtude”), mas pela simples consideragao do poder (“conhece tuas forgas para aumentares tua dominagao”). b, Da €t1Ca A ESTATISTICA Com a mutagao do espelho do principe em livro do Estado, a contabilidade das forgas substitui o catalogo das virtudes. Mudanca capital, certamente, na evolagao dos manuais de governo, O mais im- portante, porém, nio reside na transigao de uma visio moral para uma visio politica das coisas, mas no apagamento progressive do princi pe em provcito do Estado,,Em Ammirato, o Estado j4 no mais se redux 20 stato do principe. Ele é descrito como uma “grande maqi 1na” cujos elementos é necessario conhecer. Governar nao é tanto sub. ‘meter 0s desejos dos individuos quanto controlar forgas coletivas (re- cursos, populagao, armas, aliados). Dois géneros de obras vao entao se desenvolver: um que faz do conhecimento dos homens a condigio dda ago politica, o outro que incorpora esse conhecimento a0 conjunto ° Thid.,p.29. . A. Cholkier, citando a mesma passagem em seu Thesaurus politicorum aphorismorim, Moguntiae (1613), acrescenta que 0 imperador Ale~ ‘xandre Severo (+235) ¢, nos tempos modemos, Cosme de Medicis (t 1464) man- ‘inham igualmente um Rationarizon ou Arcanum libra: (eR. de Mattei I pro: blema della “Ragion di Stato” nelle della controriforma, p47) 38 Reinar ¢ governar do saber requerido para dirigir o Estado. De um lado, uma psicolo- sia cada vez mais sutil a servico da habilidade principesca e, de ma- neira mais geral, dos jogos da ambicdo, dos quais O artesao da for- tuna de Francis Bacon oferece um brilhante exemplo.9 De outro, uma sociologia cada ver mais exaustiva a servigo da administragio publi ca: nela os homens nfo so mais considerados como objetos de pai xGese de comportamentos rivais que eriam um estado permanente de conflito interindividual, mas como classes funcionais passtveis de um inventério quantitativo, “Sabei, escreve Fénelon ao delfim,*4 o mimero de ho- ‘mens que compéem vossa nagio, quantos homens, quantas rulheress quantos lavradores, quantos artesios, quantos médicos, quantos comerciantes; quantos padres ¢ religiosos, ‘quantos nobres e militares. O que se diria de um pastor que no soubesse o mimero de seu rebanho? £ facil a um rei saber o méimero de seu povo: basta que o queira, Ele deve saber se ha suficientes lavradores; se ha, proporcionalmen- te, o mesmo tanto de artesios, de médicos, de militares a cargo do Estado.” ‘A essa contagem sistematica acrescenta-se 0 exame minucioso dos caracteres regionais, dos costumes ¢ dos procedimentos locais: 3) Faber fortunae. Esse texto, que teve virias edigBes em francts no século XVI, éna verdade extraldo do De dignitate ct angmentis scientiaruom (1605, trad. lat. 1623), livo II (Do progresso e da promogao dos saberes, pp. 246-70). Ox preceitos da “arte de fazer fortune” slo de dois tipos: geraise partculares. Os preceitos gerais consistem em conhecer bem a si mesmo ¢conhecer bem os outros. Esse ikimo ponto implica que se conhega a personalidade deles (para tanto, € preciso “informar-se sobre o carSter, as pretensbes, os projetos, as fraquezas ¢ os defeitos daqueles com quem temos de lidar, sobre as pessoas nas quais se apéiam, ‘de quem obtém sua autoridade, por qual lado sio mais acessiveis e © que mais hes atrai” etc, mas também suas 266es, pois os homens mudam com ela. Esses dois, tipos de investigacio s4o, para os preceitos gerais, © que a premissa menos, nos raciocinios priticos,€ para a maior. Bacon define seis maneiras de conhecer os hhomens: 1) pelo aspecto e os tragos de seu rosto, 2) por suas palavras, 3) por suas agdes, 4) por suas inclines, 5) por seus projetos, 6) pelo relato de outrem (cto de acordo com a tradugio francesa de 1685). Examen de conscience sur les devoire dela royauté, p. 87. Asartes de governar 9 “Ele deve conhecer a indole dos habirantes de suas diferentes provincias, seus principais costumes, suas fran- quias, seu comércio e as leis de seus diversos traficos den- tro e fora do reino. Deve conhecer os diversos tribunais estabelecidos em cada provincia, 0s direitos dos impostos, 105 abusos desses impostos etc.”. Ha uma grande diferenga entre 0 homem observado pelos téc- nicos da habilidade principesca e aquele estudado pela cigncia do Es- tado: o primeiro individualiza-se a partir de uma natureza imutavel que. diversidade das circunstancias, sem alteré-la, modifica; 0 segun- do distribui-se em massas ou categorias ativas sobre o fundo, nao de uma natureza universal, mas de uma multiplicidade concreta mode- lada pela histéria. Pode-se perguntar, obviamente, se um e outro de- correm de uma antropologia comum no discurso tedrico da sobera- nia no século XVII. O fato notavel na transformagio sofrida pela literatura dos es- pelhos — reflexo da relagdo do principe com a substancia mesma de seu poder — consiste na rapida expansao dos livros do Estado ou, como se did depois de Politanus,?5 de estatistica, em detrimento dos manuais de instrugio do principe. A partir da segunda metade do culo XVI, os dados materiais cujo registro secreto Ammirato aconse- Ihava ao principe so metodicamente recolhidos, descritos ¢ publica- os. 0 italiano F. Sansovino foi certamente o primeiro, em 1567, em seu liveo Del governo et administratione di diversi regni et republiche, a fazer a descrigio cifrada das riquezas dos Estados, de sua popula- ‘go, de seu comércio, de sua industria e de suas finangas. Os traba- Ihos desse género passaram a ser numerosos a partir do final do sé- culo XVI Entre os mais célebres, as Relazioni wniversali (1592)°7 de G, Botero, autor do primeiro tratado sobre a razo de Estado, ofe- 2 Microscopium statisticim quo sts Impert Romano-Germanic repre semtatur(cetea de 1672}. ™ Sobre a histéria da palavea “estatstca™ e da disciplina correspondente, aléin das referéncias citadas por D. Reyni, art. citado, ef. M. Rassem e J. Stagl, Statistik und Staatsbeschreibung in der Newzeit. 37 CE.F. Chabod, “Giovanni Botero", i Sriti sul RinascBinento, pp. 326+ 51; A. Albonico, “Le Relation’ universal di G. Borero”, in A. E. Baldini (ed.), Botero eta *ragion di Stato”, pp. 167-84. 0 Reinar e governar

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