FIG. 146
8 presentes, invadidos por um furor que em cada um tem acentos e movimentos
diversos, formassem uma tinica figura, com muitas maos estendidas, muitos sem-
blantes ansiosos, estupefatos ou pensativos; e o movimento orbital da massa, sus-
citado pela luz proveniente dos espacos longinquos, voltasse ao espago, em uma
circulagao vorticosa, sem fim. Efetivamente nao existe o fendmeno, masa série que
vai ao encal¢o dos fenémenos, das infinitas causas e dos infinitos efeitos. O mun-
do de Leonardo nao é mais o da natura naturata, mas o da natura naturans.
Qual é, pois,a posicao do pensamento de Leonardo na data da Epifania quando
em 1482, sentindo-se incompreendido em Florenca, oferece os seus servigos de
cientista e de técnico ao duque de Milao? Juntou-se ao circulo dos neoplaténicos,
como comprova a insisténcia sobre 0 motivo do furor, mas dele se afasta brusca-
mente porque nao aceita o vago estetismo, o espiritualismo abstrato daquela filoso-
fia de cortes passa & oposigao, ainda que seja no proprio terreno do neoplatonismo.
A Epifania ¢ 0 Sao Jerdnimo, outro quadro incompleto, ainda séo obras neoplaténi-
cas, embora sejam seguramente heréticas com respeito ao neoplatonismo oficial de
Lorenzo, de Ficino, de Botticelli. E esta provado que nao gozava do favor da corte
dos Medici pelo fato de que procura em Mildo um ambiente cultural totalmente di-
verso; € se apresenta ao duque mais como engenheiro do que como artista, saben-
do que naquela sociedade a anélise e 0 conhecimento direto das coisas, a novidade
das invengGes, a engenhosidade das técnicas contavam mais do que o abstrato pen-
samento dos filésofos.
Botticelli nao responde & polémica antibotticelliana da Epifania: de resto, 0 ad-
versdrio fugira, deixando a obra em estado de esboco. Responder mais tarde,
zangado e desconfiado, com a Natividade mistica, apocaliptica e reacionéria, em
1501: 0 ano em que Leonardo voltara de Milao ja carregado de gloria e trazendo
para Florenga uma nova pintura.
A cidade como monumento
Muitos dos protagonistas da arte florentina trabalham, jé a partir da década de
1430, fora da Toscana, contribuindo assim para orientar diversamente a produgao
artistica de cidades (para citar apenas os casos mais significativos) como Milio,
Mantua, Padua, Veneza, Ferrara, Rimini, Bolonha, Perugia, Roma, Napoles. Seria,
contudo, um erro considerar a hist6ria da arte italiana do Quatrocentos como a
da lenta irradiagao das “novidades” elaboradas pelo “centro” florentino, superan-
do as obstinadas resistencias de um gosto ainda ligado ao pasado, porque se ne-
garia desse modo a indubitavel originalidade das experiéncias que se desenvol-
vem, a partir da metade do século, em centros igualmente importantes, e algumas
vezes mais vitais que a propria Florenca.
Do ponto de vista sociolégico, nao se pode deixar de notar, antes de tudo, uma
significativa diferenga entre a cidade toscana e os outros pélos da cultura artistica
do Quatrocentos: enquanto Florenga por todo 0 século ainda € regida, pelo menos
formalmente, pelas normas democraticas que a Comuna instituiu no Duzentos e
no Trezentos, quase todas as cidades acima citadas (com excegao, notavel, da re-
publica de Veneza) sao sedes de “senhorias”; é portanto do mecenato do principe
ede sua corte que depende a atividade de intelectuais e de artistas. Daf deriva nao
O Quatrocentos 269uma dialética menor entre posig6es diversas, mas uma coesao mais sélida de in-
tengdes e maior homogeneidade da pesquisa artistica: delineiam-se desse modo
aquelas que mais tarde serao chamadas as “escolas” citadinas e regionais, nao sobre
a base de uma continuidade estilistica ou técnica impossivel, mas como conse-
giténcia de uma contigitidade de pesquisa e como resultado da vontade da corte
do nticleo urbano de caracterizar-se no confronto, e na concorréncia, com a cor-
te eo nticleo urbano vizinho.
Do ponto de vista ideolégico, a passagem de uma sociedade democratica a
uma sociedade em que o poder é concentrado nas maos de uma tinica pessoa nao
comporta absolutamente a rentincia ao historicismo, que é 0 modo de proceder, a
estrutura mesma da cultura humanistica; comporta, antes, a passagem de uma
ideologia que tende a reencontrar e, algumas vezes, a relacionar, ainda que artifi-
cialmente, as raizes historicas da comunidade a uma ideologia que tende a fundar
na antigitidade da histéria a autoridade do principe.
Explica-se, assim, no plano mais estritamente figurativo, a nitida superiorida-
de do classicismo monumental e documentario de Leon Battista Alberti (em ativi-
dade em Ferrara, Rimini, Roma, Urbino, Mantua) sobre o classicismo ideolégico
de Filippo Brunelleschi, que evoca a tradicao florentina; do amplo universalismo
de Piero della Francesca (em atividade em Ferrara, Rimini e Urbino) sobre a con-
temporanea pesquisa estética dos pintores florentinos; e, enfim, a importancia as-
sumida pelo historicismo dramatico, quase cénico, emocionado ¢ emocionante, de
Donatello, cujo altar de Pédua assinala uma mudanca de direco decisiva em toda
a Itdlia setentrional.
No nivel urbanistico, se a cidade nao é mais a livre comuna que se autogover-
na e que decide autonomamente o préprio desenvolvimento urbano, mas se tor-
naa capital de uma organizagao regional, sede de um organismo estadual dirigi-
do e dominado por uma tinica vontade, a do “senhor”, orienta-se ela propria para
tornar-se monument, representacao ou demonstracao visivel da harmonia bem
dirigida que reina no interior do Estado: & 0 tema da cidade ideal, em que 0s opos-
tos se contrabalangam e a razao organiza, segundo a geometria, todas as coisas.
Seria errado, portanto, limitar a incidéncia do tema aos raros exemplos de cidades
construfdas no Quatrocentos, uma vez que o modelo da cidade ideal, ou melhor,
da cidade concebida segundo uma teoria, é essencial em uma cultura como a hu-
manistica, em que a representagao-imitacao é 0 modo fundamental do conhecer-
ser e a operacao artistica € concebida como imitagao de um modelo.
A cidade ideal é, portanto, um pélo indispensavel no projeto artistico do Qua-
trocentos, assim como a teoria é um momento indispensdvel do processo arti
co: evocada quase obsessivamente em marchetarias e pinturas, a cidade ideal nao
éum projeto a ser realizado, suplantando a histéria, mas um esquema formal que,
enquanto tal, age no interior da cidade real; nado uma utopia, mas teoria de uma
praxis constante que tende a requalificar, a cada intervengao, a cidade existente.
Quando o humanista Silvio Piccolomini, papa de nome Pio 11, decide transfor-
mar a sua cidade natal, Corsignano (entao chamada Pienza), em uma moradia pa-
ra a corte pontificia (1458-62), confia o encargo a um seguidor e colaborador de
Leon Battista Alberti, Bernardo Rossellino, Na parte préxima da rua principal,
que, seguindo o espigao da colina, divide horizontalmente o burgo medieval,
Rossellino projeta o nticleo mais representativo: a nova catedral. Aos lados dela,
270 HISTORIA DA ARTE ITALIANA ~ DE GIOTTO A LEONARDOligeiramente divergentes, os palicios Piccolomini e Borgia e, defronte do edificio
sacro, 0 Paldcio Puiblico. A intervencao nao se limita 4 empenhada construgao de
um centro monumental: atrés do Palacio Publico criado um segundo largo, me-
nor, com funges comerciais, e na extremidade nordeste constréi-se um bloco de
casas para os mais pobres. A cidade inteira fica transformada, uma vez que o no-
vo entra em relacdo com o velho. “Os edificios principais distinguem-se pela
maior regularidade arquitetdnica, nao pela maior grandeza (a autoridade nao se
exprime com a superioridade dos meios materiais, mas com o prestigio da cultu-
ra); essa regularidade atenua-se nos edificios secundarios, e se perde naqueles pa-
raa gente comum, os quais se inserem sem dificuldade no tecido compacto do
burgo medieval” (Benevolo).
A ordem social reflete-se, pois, na estruturagao das formas; nao existe mais a
oposigao tinica entre cidade e campo, mas hd também uma gradagao, da nao-for-
ma do campo ao grau minimo de estruturacao dos edificios comuns, até o grau
maximo do lugar onde o poder se manifesta.
‘A praca é concebida rigorosamente como unidade perspéctica, tornada visivel
pela pavimentagao que, marcando a retfcula formada pelas intersegdes das linhas
ortogonais, integra os episédios singulares, tornando-os elementos de uma tinica
unidade arquitetonica. O palacio Piccolomini retoma 0 esquema do florentino pa-
lacio Rucellais a fachada da igreja ¢ impensavel sem o precedente albertiano de
San Francesco de Rimini: mas Rossellino, se aceita a referéncia tipolégica do arco
triunfal, renuncia, contudo, a articulacao plastica que era do templo Malatestiano,
para conceber a fachada quase como fundo de uma cena que se abre aos lados, pa~
ra possibilitar aos espectadores a apreciacao da paisagem. O mesmo instrumento
perspéctico que estrutura e organiza a cidade fornece também 0 modo correto de
ver a natureza: demonstra-o 0 bocal do poso diante do palicio Piccolomini, cujo
eixo de inclinacao marca exatamente a bissetriz do angulo formado pelo palacio e
pelo flanco direito da catedral.
Convenerunt in unum*
Federico da Montefeltro é 0 “senhor” militar; capitao corajoso e afortunado, deve
as suas armas ¢ & sua astticia a conquista e a prosperidade do Estado. Atento leitor
da Politica de Arist6teles, tende & constituicao de um Estado que se identifique
com o seu fundador, e sabe que nesse proceso a arte pode ter uma funcao essen-
cial, nao apenas como justificativa do poder. Tornado principe de Urbino em
1444, pensa ser o Péricles de uma nova Atenas; munificente e aberto, pretende fa-
zer de sua corte o centro mais vivaz da cultura contemporanea. Nao hé na cida-
de uma tradi¢ao cultural; é preciso, portanto, atrair de toda parte, nao somente
da Itdlia, os melhores talentos: Luciano Laurana é dalmata, Francesco di Giorgio
Martini, sienense, Piero della Francesca, Luca Pacioli, Signorelli, toscanos, Meloz-
zo da Forli, romagnolo, Giusto di Gand, flamengo, como também os artistas que
tecem os tapizes com Histérias de Tréia, Pedro Berruguete, espanhol; os pintores
que iluminam os livros da rica biblioteca ducal sao ferrarenses, dirigidos por Ves-
pasiano da Bisticci, florentino a altura de Botticelli, Paolo Uccello, Pollaiuolo,
Giuliano da Maiano.
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