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PARTE | - Estado e Sistema de Protecao Social Acceptance by the State of responsibility for full employment is the final necessary demonstration that the State exists for the citizens — for all citizens -and not for itself or for a privileged class. (Lord William Beveridge) Introdugao A discussao sobre o tamanho e as fungdes a serem desempenhadas pelo Estado, hoje tao comum no ambito das Politicas de Protecéo Social e particularmente na area da sade, embora ampla, ndo ¢ ainda um tema superado e sequer consensual. Ao iniciar este trabalho, retomando a andlise sobre o papel que tem sido atribuido ao Estado, objetiva-se langar um foco sobre um debate travado ha séculos, na esfera académica e politica: qual 6 a adequada conformagao do Estado, no capitalismo? Nao ha divida de que para entender a evolugéo do papel reservado ao Estado ao longo do século XX e inicio do atual, € preciso compreender no apenas como se dao as transformagées e crises vividas pelo capitalismo no periodo, mas também a relagao, ainda que contraditéria, entre Estado e capitalismo. Muito embora o objetivo aqui nao seja fazer um profundo estudo sobre o sistema em si, nem tragar um perfil do desenvolvimento do capitalismo, também nao & possivel dissociar 0 debate académico e as orientagdes politicas do momento histérico vivido pelo capitalismo. Por isso, a primeira parte deste trabalho tem como suporte inicial a j4 consagrada divisdo das fases do capitalismo, que considera dois pontos de inflexéo, ou seja, a primeira grande crise vivida pelo sistema nos anos 1930 e depois nos anos 1970 A PARTE |, que pretende trazer a tona a discussao sobre 0 papel que cabe ao Estado no ambito das politicas sociais, pode ser vista sob duas perspectivas: i) A primeira, conforme j4 observado acima, procura acompanhar o papel que foi reservado ao Estado ao longo do tempo usando as etapas que intermediam os dois pontos de inflexdo do capitalismo, definidos por suas crises, como corte metodolégico. Nesta primeira perspectiva, o Capitulo 1, trata do periodo que antecede a primeira grande crise do capitalismo, quando a visdo dominante era de um Estado quase que “desnecesério” e do periodo posterior a esta orise, entre os anos 1930 e os anos 1970, quando dominou a orientagéo de um modelo mais estatizante. 0 capitulo 2, completa a andlise mostrando a discussao que se trava no period pés anos 70's, quando hé uma retomada das orientagdes do Estado Liberal, que & acompanhada de uma redefinicéo da fungao reservada ao Estado ii) A segunda perspectiva busca contrapor uma viséo macroeconémica do papel do Estado as especificidades microeconémicas dos diversos mercados e, particularmente, daquele onde so transacionados os servigos de satide. Sob esta ética, no capitulo 1, 0 centro da discussao esta na ampliagao das fungdes do Estado, conforme definido por Keynes, que da sustentagéo ao nascimento dos welfare states. No capitulo 2, 0 objetivo é tratar os principios microeconémicos que sustentam a defini¢go de um papel regulatério para o Estado. A regulagao € apresentada como uma das formas de atuagdo do Estado, mas nao deve ser vista como a tnica, ainda que, sob a perspectiva da teoria olassica, a regulagdo em si represente uma ampliagéo da atuacdo do Estado ou uma “concessao” a sua atuagao. Nas duas perspectivas, 0 objetivo é mostrar uma correlagao entre o momento econémico, histérico e politico, como determinante das interpretagdes das fungdes do Estado e 0 resultado obtido em termos de adogao de Politicas de Protecéo Social. Em outras palavras, trata-se de apontar a existéncia de condicionantes que permitiram e definiram o nascimento e evolugéo dos welfare states, especialmente nos paises desenvolvidos. 4 ESTADO E CAPITALISMO: UMA CONVIVENCIA PACIFICA? 4.1 — Entre a mao invisivel do mercado e a visibilidade do Estado Sob a ética da Economia, nao € novo o debate sobre o tamanho que deve ter © Estado, nem sobre as fungdes a serem por ele desempenhadas. A depender da visio que se tenha sobre a tendéncia das forcas “naturais” de mercado ao equilibrio ou de sua capacidade auto-reguladora, seré apontada a maior ou menor necessidade de atuagdo do Estado e, portanto, uma politica econémica mais ou menos intervencionista. Aqueles que entendem o sistema econémico como formado por pontos sucessivos de equilibrio defenderao um Estado minimo, deixando os desequilibrios temporérios a cargo das livres forgas do mercado. Pode-se aqui visualizar todas as teorias de base liberal, desde a teoria Classica até suas versdes posteriores - as teorias Neoclassica e das Expectativas Racionais. Aqueles que, por outro lado, percebem a Economia e os mercados como em recorrente estado de desequilibrio, ou em “estado constante de experimentagao reflexiva sem ponto de equilibri HUTTON, 1998, p. 59), ou ainda, nao acreditam na forga auto-reguladora do mercado buscam, na maior presenga do Estado, uma forma de contrapor os desequilibrios ou de corrigir as falhas do mercado. Aqui estéo incluidas as teorias de orientagao Keynesiana. Considera Polanyi (2000) que o mercado e a prépria economia de mercado (ou economia capitalista) é uma instancia social integrada, condicionada politica e historicamente. Tendo isso em mente, pode-se, por analogia, entender como 0 processo de desenvolvimento do capitalismo, ao definir necessidades intrinsecas ao sistema, aliado as particularidades histéricas e politicas vividas pelos diferentes paises, tem definido um movimento de alternancia na concepeao do papel a ser desempenhado pelo Estado. Isso ndo significa que o fenémeno em si, da relagao capitalismo versus Estado, tenha sido ou possa ser sempre pacifico, significa, porém que, sob a légica de anélise dialética, para entender a natureza desta relagao, ¢ preciso compreender sua contradigao implicita (SADER, 2002). Uma contradicao posta no fato de que, ao mesmo tempo em que o Estado é negado em prol das livres forgas de mercado, sustentaculo ideolégico do capitalismo, dele necessita o sistema, para Ihe dar sustentagao e condigées de acumulagao. Por isso mesmo, 0 periodo aureo do capitalismo foi aquele em que o Estado esteve mais presente, ou seja, entre meados dos anos 1930's e meados dos 1970's. Compreender que hé uma correlagao entre as necessidades do sistema em dado momento histérico e as orientacées politicas torna possivel clarear a légica existente no periodo que vai do nascimento do capitalismo, no século XVIII, até o inicio do século XX, quando ocorre sua primeira grande crise, Neste momento, a existéncia de um mercado crescente, em que a oferta estava mais limitada por questées de desenvolvimento tecnolégico que por limitagdes da demanda, a andlise dominante, a partir dos escritos de Adam Smith (1776), Jean-Baptiste Say (1814) e David Ricardo (1817), apontavam no sentido de pregar o Liberalismo econémico reservando ao Estado, como aponta Smith, as fungdes basicas e gerais de defesa, justica, obras pUiblicas e educagao (SMITH, 1983, livro 5°)" * p idéia de existéncia de uma demanda ilimitada é fundamental na andlise de Smith, Ricardo e Say. Em Ricardo, se lé que ‘a demanda 96 é limitada pela produgao" (RICARDO, 1982, Cap. XXI, p. 197) em Smith, "o desejo de comida é limitado em qualquer homem pela capacidade do estomago humano, mas o desejo pelos confortos e omamentos da habitagao, indumentéria, carruagem mobilidrio doméstico parece nao ter limite ou fronteira certa” (SMITH, 1983, Vol |, p. 167). Em Say, 0 enunciado da lei dos mercados mostra a inexisténcia de problemas na demanda (SAY, 1963) Na teoria de Smith, pressupondo a divisdo do trabalho e a ldgica de uma economia mercantil (com a qual ele efetivamente raciocinou), os produtores privados buscam produzir quantidades cada vez maiores, visando levar sua produgao 20 mercado e troca-la por outros produtos de que necessitam.” Desta forma, ao buscar atender seus objetivos individuais, 0 produtor acaba por atender aos objetivos da sociedade, os quais estéo baseados na satisfagdo das necesidades e, portanto, na disponibilidade de bens e servigos. Em outras palavras, hd nesta perspectiva, uma harmonia de interesses individuais e coletivos, nao sendo assim necessério que o Estado intervenha. Nao negam Adam Smith ou Ricardo a existéncia de desequilibrios, mas eles serao sempre parciais e temporarios, cabendo ao préprio mercado retomar o equilibrio, através de sua “mado invisivel” que se expressaré no redirecionamento dos capitais e/ou alteragdes nos pregos, encontrando assim uma nova situagéo de equilibrio, em nivel de pleno emprego. Pode ser identificada uma relacdo intrinsica entre o nivel de desenvolvimento do capitalismo e a forma de interpretagéo da sua légica de funcionamento, implicando, por consequéncia, orientagdes politicas determinadas. Nao se trata aqui de justificar 0 Liberalismo Econémico pregado por Adam Smith ou reafirmado por Say e Ricardo. ? Observe-se que, para a teoria Cléssica, a economia capitalista tem uma légica de economia de consumo @ n&o é tratada como uma economia monetaria de produgio como o € em Mar & posteriormente em Keynes. Esta légica, de n8o principalidade do dinheiro, esta por exemplo, em Ricardo em que "nenhum homem produz a no ser com o objetivo de vender, e ele jamais vende a no ser com a intengo de comprar alguma outra mercadoria, que pode ser imediatamente til pare ele ou que pode contribuir para a produgdo futura. Produzindo, entao, ele se torna necessariamente ‘ou 0 consumidor de seus prépris bens ou comprador e consumidor dos bens de outra pessoa (...) As produgSes S20 sempre compradas por produgdes ou por servigos: 0 dinheiro 6 apenas o meio pelo qual a troca é efetuada" (RICARDO, op. cit. Cap. XI, p. 197 © 198). Trata-se de reconhecer que, naquele momento, se, por um lado, a realidade econémica apontava para uma nao necessidade do Estado, por outro lado, a defesa do livre mercado atendia aos interesses do sistema nascente, ou como salienta Keynes © individualismo e 0 faissez-faire no poderiam ter garantido seu dominio permanente na conduta dos negécios publicos, se nao fosse pela conformidade as necessidades e desejos dos empresérios da época (KEYNES, 1926, p. 119). Desta forma, é somente na primeira grande crise do sistema capitalista, quando, a maioria dos paises e particularmente a Inglaterra vivem um crescimento acentuado do desemprego, que é rompida “a ordem econémica que valorizava acima de tudo o respeito as normas do livre mercado” (BELLUZZO, 2003). E 0 momento historico que faz quebrar 0 quase consenso sobre a capacidade auto- reguladora do mercado. E Keynes ° que, desacreditando de uma “taxa natural de desemprego” tao elevada, que discordando de Adam Smith de que o bem comum repousasse no “natural esforgo de cada individuo para melhorar sua condigao” (KEYNES, 1926, p. 108), traz a tona a discusséo de um papel a ser desempenhado pelo Estado, até entéo considerado desnecessério ou aceito em suas estritas fungdes de policia e guardiao da propriedade privada e dos contratos. Assim, na crise de 1929, que é uma crise do /aissez-faire, é posta em xeque a harmonia do sistema capitalista, séo externalizadas suas possibilidades de desequilibrio e crise, levando ao questionamento de sua ldgica de funcionamento e as propostas politicas dai decorrentes, Em outras palavras, @ economia deixa de ser ° Keynes nao € 0 Unico nem o primeiro a questionar os principios do laissez-faire € nem a aponter um papel para o Estado, mas ¢ quem sistematiza e transforma em proposta politica esta discussao (Ver KEYNES, 1926) vista como auto-regulada e harmonizada pela mo invisivel do mercado e abre-se um espaco para a atuagao visivel do Estado Com isso, s4o gestados novos modelos ou formas de entendimento do sistema, a partir dos quais surge uma nova proposta para a atuacdo do Estado, que vai além das fungdes descritas por Adam Smith De acordo com Sader, as andlises antiliberais e estatizantes tomam trés linhas diferentes: 0 comunismo soviético; o fascismo (Hitler e Mussolini) e 0 Estado do bem-estar Keynesiano (SADER, 2002). Para os objetivos do presente trabalho, importa a concentragéo na analise dos principios que norteiam a teoria Keynesiana como uma forma de contraposigao a teoria do laissez-faire. Desta forma, o préximo item € dedicado a esta discussao, abordando, como e por que Keynes via na atuagéo do Estado uma forma de contrapor a instabilidade propria do capitalismo, com a qual ele conviveu. O entendimento desta andlise é fundamental para que posteriormente possam ser discutidas as condigdes sob as quais nasce o Welfare State 4.2 — Keynes e a funcao do Estado: indo além do papel anticiclico. A analise do Estado em Keynes é antes de tudo e sempre, uma analise das mazelas do capitalismo. Ninguém como Karl Marx no século XIX e John Maynard Keynes no século XX entendeu a natureza do sistema capitalista. Os dois foram capazes de compreender a ldgica de funcionamento deste sistema e propor suas * Isso néo significa que outras andlises no tenham sido feitas antes. Entre @s mais importantes, destace-se a critica de Karl Marx que hd muito jé havia mostrado as tendéncias de crise e desequilibrios do capitalismo através de sua teoria da crise de superprodugao (MARX, 1980) teorias, mesmo sob perspectivas antagénicas. Enquanto Marx buscava a substituicdo do capitalismo, Keynes defendia sua conservagao dizendo, De minha parte, acredito que o capitalismo, sabiamente conduzido, pode provavelmente tornar-se mais eficiente para atender aos fins econémicos do que qualquer outro sistema alternative por enquanto em vista, mas que em si é de diversas formas, extremamente censuravel (KEYNES, 1931, p. 321, grifo nosso). Ele acreditava nas potencialidades de desenvolvimento econémico do capitalism, mas n&o o defendia da forma como se apresentava. Explicitamente fala das suas caracteristicas “censuraveis’. Por isso mesmo, Keynes advogava uma condugao sabia do sistema, a qual nao poderia ser feita pelos préprios capitalistas, mas sim pelo Estado e por organismos supranacionais, capazes de “domar” o impeto capitalista 1.2.1- 0 conceito de “economia monetaria de producao”: a quebra da primeira maxima do laissezfaire No item anterior, foi visto que a economia do laissez-faire baseava suas andlises no tratamento da economia capitalista como se ela fosse uma economia monetizada (0 dinheiro cumpre o papel de meio de troca), e cujo objetivo final é 0 consumo. Keynes, ao reconhecer o especial papel, de “objeto do desejo”, do dinheiro, na economia capitalista, na qual ele tem fungdes que vao além daquela de meio de troca, faz emergir uma concepedo deste sistema como uma “economia monetéria de produgao”, em contraposic&o a uma economia “ndo-monetéria”, mercantil ou ainda uma economia real Keynes define a economia monetaria de produgdo ° como aquela na qual o objetivo no & a produgdo de bens e servigos, mas a produgao e acumulagao de riqueza, especialmente a riqueza em sua forma mais pura, ou seja, o dinheiro. Ele mostra que, sob a ética do capitalismo, a produgao de mercadorias nao é um fim em si mesma, mas apenas um meio ou um instrumento para que 0 capitalista alcance seu objetivo. © Assim, diferentemente do queria fazer crer Adam Smith, nada garante que, na busca para atingir seus proprios interesses, a produgao e acréscimo de riqueza, os produtores acabem por atingir os objetivos coletivos. Isso porque, nas palavras de Keynes, (© mundo ndo € governado do alto de forma que o interesse particular e social sempre coincidam. Nao é administrado aqui embaixo para que na pratica eles coincidam. Nao constitui uma dedugao correta dos principios da Economia que o auto- interesse esclarecido sempre atua a favor do interesse puiblico Nem € verdade que 0 auto-interesse seja geralmente esclarecido (KEYNES, 1926, p. 120). © sentimento basico que domina a economia mercantitcapitalista esta pautado pelo desejo da posse do dinheiro, sendo que nela o dinheiro funciona como objeto de desejo, mas também como um porto seguro ou ponto de reftigio para uma suposta protegao contra a incerteza. Também é a acumulagao de riqueza e néo a produgéo de bens e servigos ou 0 consumo, o objetivo Ultimo desta economia Assim, haveré momentos, néo poucos, em que o objetivo individual de acumulagao de riqueza sera atingido independentemente da produgao de bens, fazendo com que * Este conceito, que se sustenta no papel de principalidade do dinheiro dentro da economia capitalsta, fo! desenvolvido por Keynes entre o Tratado sobre a Meda e a Teoria Geral, sendo que ecebeu 0 nome de economia empresarial, economia monetéria da produg3o © economia Monetaria. (Ver Collected Wrtings on John Maynard Keynes, vols. 13 © 14) ° A compteenséo do papel do dinheiro na economia capitalista passa também e forgosamente por Marx, no qual esta questao tratada com 0 diagrama D-M-D' discutido no capitulo IV de © Capital (A Transtormagao do dinheiro em Capital) (MARX, 1980, vol |, cap. IV) © objetivo coletivo de satisfagdo de necessidades e, portanto, de disponibilidade de bens e servigos se frustre. Esta andlise de Keynes pée abaixo a primeira justificativa da economia do laissez-faire contra a presenga do Estado. Se ndo hé conformidade ou harmonia entre os interesses individuais e coletivos, se 0 mundo ndo é governado de cima, fazendo coincidir estes interesses, existe no apenas um espaco, mas uma demanda pela intervencdo do poder piiblico, visando ao bom funcionamento do sistema. 1.2.2- O Ciclo Econémico e a quebra da segunda maxima do laissezfaire A segunda maxima da economia do Jaissez-faire, que justificava a auséncia de interferéncia do Estado, € que 0 mercado € auto-regulével. Quando ha um movimento que tira o sistema do seu equilibrio, existe um contramovimento automatico, exercido pela mao invisivel do mercado, que o faz retornar ao seu ponto de equilibrio de Pleno Emprego. Se ha desemprego, ele € voluntario ou friccional. © mundo no qual Keynes vivia apontava no sentido oposto. Por conseqiléncia, a situagao socioeconémica e politica do periodo em que viveu condicionou a génese e a prépria evolugdo do seu pensamento. © principal ‘pano de fundo" de suas andlises é 0 periodo entre as duas grandes guerras mundiais, a primeira grande crise do capitalismo em 1929 e a depresso que se seguiu, além do ocaso do Império Britanico e a emergéncia hegeménica dos Estados Unidos. Em outras palavras, Keynes vivencia um periodo nada harménico do sistema, com niveis de desemprego atingindo os 25% da classe trabalhadora, na crise de 1929, nos Estados Unidos e outros paises desenvolvidos, redugao de pregos, faléncia de empresas e desvalorizagao de capital.” Tudo isso fez com que ele questionasse a existéncia de uma forga contréria que sempre conduziria 0 sistema ao equilibrio de Pleno Emprego, quando deste ponto ele se afastasse. A economia podia se encontrar em equilibrio em pontos inferiores ao Pleno Emprego. Dito de outra forma, é possivel que no haja incentivos & ampliagdo da produgdo mesmo que todos os fatores ainda nao estejam empregados. O equilibrio de Pleno Emprego é uma situagao particular e nao a regra. Iniciado um processo de desequilibrio, seja na fase ascendente ou descendente do ciclo econémico, a tendéncia é que ele se amplie, sem que haja nenhuma forca intrinsica ao mercado, capaz de contrarrestar este movimento. Belluzzo ressalta que, nos momentos em que o medo do futuro é superado pelo otimismo, quanto aos resultados dos novos empreendimentos, os espiritos animais atropelam qualquer cdlculo racional e produzem nova riqueza e novas fontes de trabalho. Mas 0 sucesso ndo aplaca, sendo excita o desejo, suscitando a febre de investimentos excessivos e maldirigides, _ bolhas especulativas nos mercados de agdes, tudo isso apoiado no endividamento imprudente (BELLUZZO, 2002) Nos momentos de depressao, eventualmente, o equilibrio pode, em um tempo longo, ser restaurado, mas sé depois de uma grande desvalorizagao da riqueza e, por conseqiiéncia, da imposi¢ao de grande sofrimento a sociedade. A economia nao pode esperar o “tempo necessério" para que novas condigées de valorizagao se facam presentes, incitando novamente os empresdrios para o investimento. Deixado asi é comum que, 7 Uma ampla andlise sobre 0 periodo € tracada por Hobsbawm (1995) e Skidelsky (2000). na reversdo da exuberancia, 0 medo do futuro vai predominar ]. A corrida por formas perversas do valor e da riqueza vai afetar negativamente a valorizagéo e a reproducdo da verdadeira riqueza social, ou seja, a demanda de ativos reprodutivos e de trabalhadores (BELLUZZO, 2002) Nestes periodos de depresséo, quando nao ha incentive a produgéo de riqueza nova, quando o instinto capitalista 6 de protegao da riqueza e de busca de um porto seguro e de formas mais liquidas da riqueza, caberia ao Estado direcionar os investimentos capitalistas por meio da criagéo de demanda, gerando um movimento anticiclico e fazendo com que, no atendimento a demanda do setor plblico, os capitalistas pudessem vislumbrar setores com capacidade de retorno e, Portanto, com condigées de investimento. Para Keynes, 0 “remédio para 0 ciclo econémico nao consiste em suprimir os booms e manter permanentemente uma semidepressdo, mas sim em suprimir as depressées e manter continuamente uma situagéo vizinha do boom” (KEYNES, 1964, p. 322). Se 0 Governo agisse de forma a garantir esta situagao, estaria mantendo os niveis de investimento e, com ele, 0 emprego e a renda Ao questionar as duas maximas da economia do /aissez-faire e defender o aumento das fungdes do Governo “como a tinica maneira de evitar a destruigao do sistema econémico vigente na sua integridade e como condigao do funcionamento bem-sucedido da iniciativa privada” (KEYNES, 1964, p. 380), Keynes faz ruir a hegemonia da defesa das livres forcas de mercado e o reconhecimento do individualismo como a Unica forga viva da sociedade. © ® Em 1926, Keynes escreve o cléssico artigo “O fim do Laissez-Faire” onde questiona os que acreditavam nas forgas auto-veguladoras do mercado (KEYNES, 1926. h: SZMRECSANYI (Org), 1978). E, entretanto, em sua mais completa e conhecida obra "A Teoria Geral do Emprego, do Juro do Dinheiro”, publicada em 1936, que ele completa sua visdo sobre a légica de funcionamento do capitalismo e, com isso, define de forma mais elaborada o papel do Estado. O papel reservado ao Estado na teoria de Keynes, entretanto, ndo se esgota na contraposigao aos momentos de crise e tampouco na sustentagao da estrutura econémica do capitalismo. Por conhecer os beneficios mas também a légica perversa do sistema, ele atribuia ao Estado um papel mais abrangente, como se vera a seguir. 1.2.3- A natureza instével do capitalismo: indo além do papel anticiclico do Estado® Para entender o perene papel atribuido por Keynes ao Estado, é preciso mergulhar um pouco mais em sua visdo da ldgica de decisao capitalista; entender o que fazia com que a instabilidade crénica, fosse uma caracteristica natural do capitalismo ou de por que, da mesma forma que a guerra € algo demasiadamente sério para ser confiada apenas aos generais, a realizacdo dos investimentos nao pode ser deixada_exclusivamente aos ctitérios dos [capitalistas] investidores (KEYNES, 1964, p. 320) Inicialmente, concentrando na perspectiva econémica, a andlise de Keynes se aprofunda para entender a correlagao entre as variéveis macroeconémicas e 0 processo de decisdo capitalista. A decisdo central ¢ a do investimento por ser esta a varidvel de gasto mais volatil, quando comparada ao consumo. E, entretanto, a partir da decisdo de investimento que serao gerados o Emprego e a Renda investimento é, porém, uma decisao dificil e seu comportamente, instavel, pois se baseia na expectativa sobre o futuro, 0 qual é incerto. © conceito da ° A instebilidade do capitalismo € central na andlise de Keynes € tornou-se um eixo estruturante do Pés- keynesianismo. Maiores conhecimentos sobre @ questao podem ser buscados em Davidson (1986) e Minsky (1986) e ainda em Carvalho (1988). incerteza ganha em Keynes uma dimenso ampliada, que vai muito além da idéia de risco. O conhecimento incerto engloba aqueles problemas, sobre os quais néo ha base cientifica para fazer um calculo probabilistico. A cada momento a riqueza existente e a capacidade de fazé-la aumentar através do investimento sdo avaliadas, a luz dos acontecimentos passados, mas com vistas ao futuro, quando o resultado desta deciséo vai tomar forma. A dificuldade est4 em decidir sobre uma base incerta, a melhor maneira de conservagao da riqueza. Como nem sempre a “melhor escolha” passa pela decisdo relativa a produgao de riqueza nova, isso significa que a demanda por ativos reais e trabalhadores nao sera realizada. Por outro lado, se da decisdo de investimento dependem variaveis- chave, como o Emprego e a Renda e por conseqiiéncia, a vida das pessoas, Keynes se pergunta como tal decisdo pode ser abandonada nas maos dos capitalistas? E esta ldgica de decisdo, propria do sistema capitalist, que faz com que seja vislumbrada uma fungéo para o Estado, que vai além daquela de contrapor as decisées dos produtores no momento de baixa do ciclo econémico Nao se trata mais de criar demanda, no momento em que o mercado sozinho néo visualiza setores capazes de gerar retorno suficiente que justifique o investimento, ou quando 0 medo do futuro supera 0 otimismo. Nao se trata de administrar a taxa de juros em momentos especiais ou produzir uma retomada da “eficiéncia marginal do capital" quando o ciclo econdmico esta em sua fase de vale. * Keynes dizia: ‘[...] pelo conhecimento incerto, eu n&o quero dizer a mera distingéo entre o que € conhecido como certo daquilo que € apenas provavel. O jogo de roleta nao esta sujetto, neste sentido, 8 incerteza, [..] 0 sentido em que estou usando o termo é aquele em que a prospecedo de uma guetra Européia ¢ incerta [..] sobre estes problemas nao ha base cientifica sobre @ qual se posse fazer qualquer célculo probabilstico” (KEYNES, 1973, Vol. XIV p. 113 € 114) Trata-se de dar ao Estado um papel de atuacao continua na economia, de zelar para que a instabilidade, que € crdnica e da natureza do capitalismo, seja amenizada de forma a garantir um estégio de continua proximidade do Pleno Emprego. Sob uma perspectiva politica e mais ampla, Keynes via que o mundo em que vivia era diferente e, assim, era necessério “inventar uma nova sabedoria para uma nova era”. Portanto, para esse autor, encontrar novas politicas e novos instrumentos para adaptar e controlar a agao das forgas econémicas, de maneira que elas nao pudessem interferir nas idéias contemporaneas, sobre a definigéo do que era correto e préprio no interesse da estabilidade social e da justica social (KEYNES, 1931, p. 295, tradugao e grifos nossos) Em resumo, Keynes propunha que o Estado tivesse uma atuagao mais ampla sobre a economia, que ultrapassava aquela de contrapor-se aos maus momentos do ciclo econémico, Sua visdo era de um capitalismo reformado ou administrado ou ainda, salvo do socialismo, mas também salvo de si mesmo. Considerava ser necessério existir uma “compreensiva socializagéo do investimento” e deu ao Governo uma grande responsabilidade na organizagao direta do investimento. Caberia ao Estado “assegurar o emprego étimo dos recursos de todo o sistema” (KEYNES, 1964, p. 340). Ele pregava que a maior parte das decisdes deveria ficar com o mercado descentralizado em vez de transferida a um planejamento central, reafirmando, portanto, sua crenga no sistema e seu entendimento sobre a conformagao da sociedade naquele momento. Dizia que “nosso problema [dos ingleses] € oriar uma organizagao social que possa ser tao eficiente quanto possivel, sem ofender nossas nogées de uma satisfactory way of life [mantendo a liberdade]’ (KEYNES, 1926, p. 126) Keynes alertou para as dificuldades do trabalho do Governo em uma comunidade livre, em fung8o das “exigéncias de justica social” vis-a-vis, uma sociedade totalitaria. Por isso, via na Politica Fiscal um forte instrumento de acao para os policymakers, no sentido de estabilizar a economia, e considerava ainda que era através da estabilidade econémica e da manutengao de elevados indices de emprego, que seriam mantidas a estabilidade social e a justiga social. os welfare states" 1.3 - 0 Estado e a génese dos sistemas de protecao so Tendo mostrado a sustentagdo tedrica da alteragdo do papel do Estado na economia’ com a teoria de Keynes, cumpre agora analisar quais as condigdes politico-sociais e histéricas que déo condigées ao nascimento dos Estados de Bem — Estar Social - os welfare states, que podem ser entendidos como, O estado no qual o poder organizado é deliberadamente usado (através de politicas e em termos administrativos) no sentido de modificar 0 jogo das forgas de mercado no minimo em trés diregdes — primeiro, para garantir aos individuos e familias uma renda minima independentemente do valor de mercado de suas propriedades; segundo, reduzindo a inseguranga dos individuos e familias frente as contingéncias sociais relativas a doenga, velhice e desemprego e; terceiro, assegurando que a todos os cidadéos sem distingao de status ou classe, sejam oferecidos um certo grupo de servigos sociais acordados, ‘' Para maiores conhecimentos sobre os welfare states, podem ser buscados os trabalhos desenvolvidos por Kornis (1994), Teixeira (1962) e Vianna (2000) *2 J no pos-guerra, ocorreram importantes transformagdes no papel do Estado. Nas palavras de Belluzzo, “as fungGes de garantir 0 cumprimento dos contratos, de assegurar a liberdade na esfera politica e econémica — apanagios do Estado Liberal - sdo enriquecidas pelo surgimento de novos encargos e obrigagées: tratava-se de regular 0 ciclo econémico e de criar espagos de ntegracdo social nao-mercantis" (BELLUZZO, 2003) dentro do melhor padrao disponivel. (BRIGGS, 1961, apud EATWELL, MILGATE, NEWMAN, 1998, p. 895, tradugéo e gtifos nossos) Hé que se considerar que, embora seja fundamental conhecer e estudar os modelos ou sistemas de protegao social, “mais importante ainda ¢ conhecer 0 que lhes dé sustentagao, qual é o amalgama destes sistemas” (DAIN, 2005). Sob a perspectiva politico-social, observa-se que as condigdes subjacentes \l guerra mundial e 4 Depressao, ampliando a disposi¢ao da sociedade em sobrepor © interesse coletivo aos interesses individuais, permitem uma corrente de solidariedade sobre a qual é construida a ldgica dos sistemas de protegao social. A abrangéncia da abordagem coletiva sobre a individual, presente no welfare state, pode ser vista em Marshall ‘geralmente é aceito que [...] @ principal responsabilidade pelo bem-estar dos cidadéos deve ser do Estado (MARSHALL, 1977, tradugdo nossa). Por isso mesmo, muitos dos sistemas que nascem neste periodo, nos paises desenvolvidos, especialmente europeus, séo baseados em financiamento fiscal ou com tributos em geral e nao contributivos. Certamente que o conceito ou o reconhecimento do “tisco social’ fez nascer sistemas de protecéo social universalistas e nao atrelados ao trabalho ou ao mérito, mas a necessidade de cada individuo. Retomar a questao do welfare state, entretanto, nao significa considerar os sistemas ai nascentes como de um Unico formato e sequer que ela seja restrita ao periodo da II guerra mundial. Pelo contrario, analisando sob uma perspectiva mais abrangente do conceito™, “esta é€ uma questéo que perpassa as diferentes *® Giaimo chama atengo para o fato de que muitos dos estudos sobre Welfare State ignoram mudangas no interior de instituig6es e grupos nao estatais. Por isso ela adota a terminologia de Sistema de Protegao Social, por ser mais abrangente. Ao falar sobre a amplitude politica temporal do Welfare state, queremos usé-la neste sentida dado por Giaimo (GIAIMO, 2002, p. 7) orientagées politicas (liberais, trabalhistas, etc), sendo neste sentido, democratica” (DAIN, 2002) Perpassa, ainda, a dimensdo temporal fazendo com que néo se restrinja ao. periodo da guerra, quando a solidariedade é mais forte. E possivel observar que, desde entao, hé uma mudanga na forma como a sociedade vé o papel do Estado, sendo que a discusséo, a partir dai e até hoje, dé-se mais sobre o tamanho do welfare state que sobre seus principios. * © que permite, entretanto, um pronto consenso no nascimento do Welfare State, é 0 momento em que ele surge ou, como mostra Marshall, *... [é que ele] nasce em um mundo de austeridade — de racionamento, de controle de pregos, de cupons, de restrigses de renda e de casas requisitadas para o uso de homeless’ (MARSHALL, 1977, p. 322, tradugdo nossa). Em outras palavras, um momento em que 0 conceito de risco social amplia a disposigao de partilhamento da sociedade. Sob a perspectiva histérica e econémica, 0 longo periodo que vai de meados dos anos 40's até meados dos anos 70's é quando o sistema capitalista vive sua fase aurea. E quando ha um crescimento e a imposigao deste sistema como dominante, mas também é quando hé maior intervengao do Estado, seja diretamente dando sustentagdo a acumulagdo capitalista, como nos paises periféricos, seja indiretamente, por meio dos sistemas de protegdo social, protegendo as classes trabalhadoras e, com isso, atendendo as demandas do capitalismo nos paises centrais. Este é um momento em que pode ser observada uma convivéncia pacifica entre 0 Estado e 0 capitalismo, ainda que isso nao signifique que esta nao seja Isso nao significa que os sistemas de protegao social nao tenham se alterado nem sofride revezes, Significa que desde entao, o tema do bem-estar continua na pauta dos policymakers. também uma relacdo contraditéria. A todo momento o sistema tenta negar o Estado ainda que dele necessite, sob formas diferentes, nos diversos momentos. Nos paises avancados, assistiu-se, neste periodo, a uma crescente intervened do Estado no campo das politicas sociais, o que é explicitado por Dain (2000, p.18), no sentido de que, a Politica Social, ao se materializar através do gasto pliblico deu sustentagao direta e indireta de demanda agregada, permitindo a integracdo das demandas capitalistas e da democracia no mesmo programa de protegao social. Os welfare states, guardadas as suas diferengas e niveis de penetragao nos diferentes paises centrais, crescem no bojo de um longo periodo de desenvolvimento do capitalismo, ao qual também deram sustentagao. Neste sentido, € possivel falar em uma “permissividade” das forgas capitalistas em relagao aos sistemas de protegdo social, o que se justifica, portanto, porque no atendimento as demandas democraticas, so dadas condigdes para que a acumulacao capitalista se faga presente. Ha, assim, uma conformidade dos interesses da sociedade em termos de protegao social e os objetivos de acumulagdo de riqueza, para desespero dos criticos dos welfare states. A nova forma de ver a atuagao do Estado ganha forga na maioria dos paises, ainda que tome formas diferenciadas. Nos paises periféricos, como o Brasil"®, por exemplo, onde a insergao no capitalismo se da de forma tardia, a necessidade de uma industrializacao a “passos largos” fez com que o Estado, além de prestador de servigos pubblicos, atuasse de forma a realizar investimentos em infra-estrutura, dando sustentagao & ampliagao da produgao e circulagao de bens e, portanto, de '® © processo de industrializagao no Brasil se dé a partir dos anos 1950's. Ver Lessa (1993). acumulagdo capitalista. Com isso, coube muitas vezes ao Estado a concentragao da propriedade e da produgao de bens Nos paises centrais, por outro lado, particularmente na Europa, 0 poder puiblico vai além, assumindo o papel de sustentéculo do bem-estar da sociedade, Estado Keynesiano, ou o Estado do bem-estar social ali presente, possui uma abrangéncia extensa, definindo para si um papel atuante e visando a promogao do bem-estar da populagSo como um todo, mostrando nao haver incompatibilidade entre as politicas de protegdo social e a defesa do capitalismo, conforme as orientagdes Keynesianas. 1.3.1. - As diferengas entre os modelos de sistemas de protegao social Os sistemas de protecdo social tendem a surgir junto com os processos de industrializacao, como instrumento de contribuicéo para a sobrevivéncia do capitalismo, através da protedo das classes operarias, acomodando, desta forma, a demanda capitalista A escolha do modelo a ser seguido, por outro lado, reflete os valores de uma sociedade, reafirmando a importancia da discusséo dos modelos, suas diferengas e principalmente o contexto em que surgem ou sua ambientacao. Assim, 0s modelos de sistemas de protecdo social que surgem no bojo da visdo welfariana e que foram adotados pelos dversos paises, em fungao de suas conjunturas e forcas politicas, econémicas e histéricas, podem ser tipificados, a partir de Titmuss em: “residual welfare model of social policy; industrial achievement

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