Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 12
QUINE E OS DOGMAS DO EMPIRISMO A polémica com 0 empirismo permeia todo °o conjunto das refle- xoes quineanas sobre a linguagem ¢ a ciéncia. Em particular, as teses sobre as quais repousa 0 edificio da epistemologia de Quine aparecem, no nivel explicito do discurso destinado a arrazod-las, como © desfe- cho de uma trama onde o empirismo tradicional € enredado em seus proprios pressupostos . Por si 6, esse fato seria uma razdo suficiente para que uma investigagao da natureza propria da epistemologia de Quine nao perdesse de vista o projeto empirista tradicional. Pretendo, nesse artigo, examinar algumas raz6es mais fortes. I Tornou-se uma tese quase trivial, nos meios empiristas, entender a distingao entre filosofia e ciéncia em termos de uma oposigao entre questdes de linguagem e quest6es de fato. A ciéncia debruga-se sobre 0 real e o explica, elaborando um discurso complexo que se regula pelo ideal de verdade: trata-se de exprimir “o que realmente ocorre”. A epistemologia tematiza a linguagem enquanto instrumento que a ciéncia utiliza, explicitando a teia de relagdes que ela mantém com 0 material trabalhado: trata-se de exprimir a maneira como € expresso © que realmente ocorre. Terfamos aqui duas espécies de enunciados: uns aceitos ou rejeitados em virtude da ocorréncia ou nao de fatos no mundo, outros em virtude das condic6es e critérios que regem 0 pro- cesso de expressdo lingufstica enquanto tal (1). P Essa oposig¢éo determina, mais precisamente, a distingao entre ciéncias naturais e epistemologia. A mesma oposigao serve para dis- tinguir as ciéncias naturais da matematica e da légica. Aquelas con- teriam enunciados associados a condigdes fatuais de verdade, estas enunciados verdadeiros em virtude das relacSes entre os elementos linguisticos componentes e independentemente de fatos particulares. (1) Essas observages, embora aplicdyeis a varios autores herdeiros do Cir- culo de Viena, dirigem-se mais diretamente a Carnap. Sendo nosso ob- jetivo acompanhar a construgéo da epistemologia quineana enquanto trabalho de andlise critica do empirismo, esse privilégio justifica-se pelo privilégio concedido a Carnap pelo proprio Quine, ao fazer dele um re- Ppresentante exemplar das concep¢ées criticadas. 6 As duas distingdes caracterizam essencialmente a diregfo tomada pela epistemologia empirista. Fundadas numa concepeio particular das relag6es entre linguagem e mundo, orientam as tentativas de expli- cita-las. A critica quineana propde-se a evidenciar o fracasso dessas tentativas e a localizar as causas do fracasso na debilidade dos pres- supostos que as sustentam. Cabe, acredita Quine, aprender as ligdes desse fracasso, remover os pressupostos e definir, de modo realista, um novo estatuto para a epistemologia. Il O projeto epistemoldgico empirista aparece basicamente, para Quine, como um projeto de fundamentac&o das ciéncias. Ele bifurca- se em duas diregdes: uma conceitual, preocupada com a anilise dos significados dos enunciados cientificos, outra doutrinal, preocupada com o assentamento da verdade desses enunciados. Ambas conduzem a um trabalho redutivo: trata-se de reduzir conceitos, definindo-os uns em termos de outros, e de reduzir leis, provando-as umas na base de outras. Conceitos mais obscuros mostrar-se-iam redutiveis a con- ceitos mais claros, leis menos dbvias derivaveis de leis passiveis de certeza maxima. Idealmente, 0 sucesso desse plano traria a possibi- lidade de apresentar a ciéncia como um discurso composto exclusiva- mente por termos claros e afirmagdes logicamente legitimaveis a par- tir de verdades imediatamente evidentes. Na medida em que é ra- zoavel supor que a evidéncia de uma lei depende da clareza dos ter- mos em que se exprime, o trabalho conceitual surge como condigaio de realizacao do trabalho doutrinal (2) . Em matemitica, a parte conceitual assume a forma de redugio a logica: tradugo da matematica em termos de uma linguagem cujo vocabulario contenha apenas expressées légicas, de modo que toda sentenga matematica seja sistematicamente traduzivel por uma senten- ¢a formulada em notacio légica. Na medida em que as leis légicas sdo dbvias, ou ao menos derivaveis de modo dbvio a partir de ver- dades dbvias (3), a questo da legitimagio das verdades matemati- cas ficaria reduzida 4 questéo mais clara da legitimacdo das leis 16- gicas. Os trabalhos de Frege e Russel aparentemente constituiram-se na realizagio desse projeto. De fato, porém, essa realizagfio deve ser admitida com ressalvas, pois implica em admitir a teoria dos conjun- tos como parte da légica. Isto porque as linguagens propostas para a tradugao da matemdtica contém necessariamente expressdes conjun- to-teoréticas. A dificuldade de admiti-lo torna-se mais premente se (2) Sobre essa maneira de apresentar o projeto empirista, cf. Epistemology Naturalized, in Ontological Relativity and other essays, pp.69-90. (3) cf. Epistemology Naturalized, p. 70. ] 63 examinamos a questo do ponto de vista do interesse doutrinal. Um dos fatores que contribuiram para a insergao da teoria dos conjuntos na légica foi certamente a “naturalidade” de suas nogdes basicas e a “evidéncia” do principio irrestrito de abstragdo, que se acreditava bastar como tnico axioma independente da ldgica elementar. A des- coberta da inconsisténcia desse principio, bem como a natureza arti- das modificagdes necessdrias para preservar a consisténcia da teoria, ameagaram tanto a clareza de tais nogdes quanto a certeza im- putavel as leis da teoria e, consequentemente, sua natureza légica. A redugio da matematica a teoria dos conjuntos e a légica deixou de ser nitidamente uma reducao do menos claro ao mais claro, do menos evidente ao mais evidente: “Como um fundamento para a matemati- ca, portanto, a teoria dos conjuntos é muito menos firme do que aqui- lo que sobre ela esta fundado; pois o senso comum em teoria dos conjuntos € desacreditado pelos paradoxos” (4) . Mesmo deixando de lado o problema da incluséo da teoria dos conjuntos na légica, o objetivo doutrinal perseguido mostra-se inatin- givel, pois “sabemos, a partir do trabalho de Godel, que nenhum siste- ma axiomatico consistente pode abranger a matematica, mesmo quan- do renunciamos a auto-evidéncia. A reduc&o nos fundamentos da ma- tematica permanece matematica e filosoficamente fascinante, mas nao realiza 0 que o epistemdlogo gostaria: nao revela a base do conheci- mento matematico, nfo mostra como a certeza matematica é possi- vel” (5). Iil O projeto empirista de fundamentacao em ciéncias naturais pode ser formulado de maneira andloga: “Assim como a matematica deve ser reduzida a légica, ou a légica e a teoria dos conjuntos, o conheci- mento natural deve ser baseado de algum modo na experiéncia sensi- vel. Isto significa explicar a nocgdo de corpo em termos sensoriais; eis 0 lado conceitual. E significa justificar nosso conhecimento das ver- dades da natureza em termos sensoriais; eis o lado doutrinal da bifut- cagdo” (6). Também aqui o sucesso doutrinal suporia o conceitual: enunciados tratando de impressGes sensiveis seriam supostamente mais claros e, se verdadeiros, mais evidentes que enunciados sobre entida- des construidas, como corpos. A redugao indicaria a evidéncia de que disporia cada enunciado das ciéncias naturais, permitindo sua funda- mentagdo sobre verdades imediatamente verificaveis . (4) Foundations of Mathematics, in The Ways of Paradox and other essays, p33. (5) Epitemology Naturalized, p.70. (6) idem, p.71. == 64 Configura-se assim 0 que Quine chamou de reducionismo radical (7). Em sua forma mais elaborada, que incorpora a manobra da de- finigao contextual e toma o enunciado como unidade de significagao, “jmpGe-se a tarefa de especificar uma linguagem de dados sensiveis e mostrar como traduzir nela o resto do discurso significante, enun- ciado por enunciado” (8). Foi Carnap, na Aufbau, quem mais se aproximou da realizag&o do projeto. A primeira restrig&o possivel a essa realizacao € andloga a uma que se fez no caso da matemiatica,. Carnap nao traduz enunciados das ciéncias naturais em termos de uma linguagem pura de dados sensiveis, mas admite na linguagem para a qual os traduz expressdes da légica em sentido amplo, incluindo a teo- ria dos conjuntos. Em termos ontol6gicos, isso implica em um com- promisso com toda a infinidade de conjuntos que é insepardvel dessa teoria. Ora, “ha filésofos que prefeririam decidir-se sem mais rodeios em favor dos cerpos a aceitar todos esses conjuntos ...” (9). Tam- bém aqui fica comprometido 0 cardter de clarificagao pretendido pelo trabalho de reducao. Apesar do paralelismo, a matematica mostra uma vantagem, do ponto de vista conceitual. Admitindo-se a teoria dos conjuntos como parte da légica, € possivel traduzir a matemética em termos de uma linguagem ldgica. De fato, 0 préprio Quine indica varias maneiras de fazé-lo (10). Por outro lado, mesmo admitindo-se a linguagem pro- posta na Aufbaw como epistemologicamente inobjetavel, Carnap nao chega nem sequer a esbocar um método satisfatério para traduzir nela a ciéncia natural. Ele pretende reduzir grande parte dos enunciados mais ordindrios sobre 0 mundo fisico a atribuigGes de qualidades sen- siveis a pontos-instantes, entendidos como quadruplas de ntimeros reais. Tais atribuiges seriam reguladas por cdnones arquitetados “de modo a obter-se 0 mundo mais preguicoso compativel com nossa ex- periéncia” (11). Entretanto, embora tais cdnones sejam suficientes para governar a associagao de valores de verdade a enunciados do ti- po de “a qualidade q esta no ponto instante X; y; w; z’”, eles nfo bas- tam para permitir a eliminagao do conectivo “esté em”, que permane- ce indefinido. Ora, absolutamente nao se vé como esse conectivo poderia fundar sua pretensao a um lugar no vocabulario primitivo de uma linguagem de dados sensiveis (12). (1) cf. Two Dogmas of Empiricism, in From a Logical Point of View, p. 39, (8) idem, ib. 9) Epistemology Naturalized, p.76. (10) Em suas obras sobre a teoria dos conjuntos e, sucintamente, em New Foundations for Mathematical Logic, in From a Logical Point of View, pp.80-101, (11) Two Dogmas of Empiricism, p.40. (12) cf. idem, ib.; cf. também Epistemology Naturalized, pp.76-77. Ost O que resta entao do projeto conceitual? A necessidade de fazer intervir a teoria dos conjuntos acarretara uma limitagdo ainda tole- ravel. Poder-se-ia ainda insistir na inclusdo dessa teoria na ldgica e defender a necessidade do uso de express6es légicas em qualquer lin- guagem, sem maiores problemas. A segunda restrigéo é, porém, um yerdadeiro fracasso: fracasso na tentativa de discernir o significado empirico de enunciados da ciéncia natural . A gravidade dessa consequéncia atinge também a parte doutrinal. Fla pretendia apontar, para cada enunciado, um conjunto de enun- ciados verificdveis sobre a experiéncia imediata a partir dos quais ele udesse ser logicamente inferido. Impde-se também aqui uma restri- cao tolerdvel, que deriva da constatagao facil de que leis gerais nao comportam, em principio, inferéncia logica a partir de enunciados ve- rificaveis (13). Entretanto, isso nao levaria necessariamente ao aban- dono do projeto. Admitindo-se que qualquer que seja a evidéncia que a ciéncia comporte, sera sempre evidéncia sensorial, poder-se-ia esperar que a reducao da ciéncia 4 experiéncia imediata (e teoria dos conjuntos) “extraisse e esclarecesse a evidéncia sensorial da ciéncia, mesmo se os passos inferenciais entre a evidéncia sensorial e a doutri- na cientifica devessem falhar do ponto de vista da certeza” (14). O fracasso do projeto conceitual, porém, impde ao doutrinal uma situa- cao intoleravel: a impossibilidade de distinguir 0 que conta como evi- déncia para cada enunciado, mesmo como evidéncia insuficiente. IV O projeto reducionista tinha por objetivo o discernimento do sig- nificado empirico de enunciados das ciéncias naturais, isto €, 0 discer- nimento de uma classe de eventos sensoriais cuja ocorréncia verifica- ria um enunciado em questdéo e de uma classe de eventos cuja ocor- réncia o falsificaria (15). Vimos como fracassa a tentativa carna- piana de levar a cabo esse projeto. O préprio Carnap abandona o re- ducionismo radical, contentando-se em fazer corresponder aos enun- Ciados da ciéncia nao tradugdes em linguagem fenomenalista, isto é, sentengas equivalentes, mas conjuntos de sentengas implicadas e con- juntos de sentengas implicantes. Tais correspondéncias nao permitem eliminar da linguagem cientifica expressdes que nao dizem respeito & experiéncia imediata ou a ldgica, exigéncia que caracterizava essen- cialmente o plano inicial. Estamos diante da incapacidade de solu- cionar um problema? Ou da inexisténcia de problema para resolver? Quine toma a segunda diregdio. Refletindo sobre 0 abandono do ideal de tradugao em linguagem fenomenalista, conclui: “Ao perder a espe- (13) cf. Epistemology Naturalized, p.74. (14) idem, ib. i (1S) cf. Two Dogmas of Empiricism, p.40. = 66 = ranga em uma tal tradugao, portanto, o empirista esté concedendo que os significados empiricos de enunciados tipicos sobre o mundo exterior sao inacessiveis e inefaveis. Como deve ser explicada esta ina- cessibilidade? Simplesmente pelo motivo de que as implicagdes expe- rienciais de um enunciado’ tipico sobre corpos séo demasiadamente complexas para admitirem axiomatizagio finita, por mais ampla que seja? Nao; tenho uma explicacdo diferente. Ocorre que um enunciado tipico sobre corpos nao possui nenhum fundo de implicagdes expe- rienciais que possa reclamar como préprio” (16). O problema que o empirismo nao foi capaz de solucionar nao 6, de fato, um problema real. Apenas péde aparecer como tal em virtu- de de um pressuposto falso: o de que a cada enunciado est&o associa- das uma classe de eventos sensoriais cuja ocorréncia o verificaria e uma classe de eventos sensoriais cuja ocorréncia o falsificaria. Em outros termos, 0 empirismo nao foi capaz de indicar como identificar © significado empirico de cada enunciado, pelo simples fato de nao haver o significado empirico de cada enunciado. Esse falso pressu- posto sobrevive ainda sob outras formas, por exemplo, “na suposi¢ao de que cada enunciado, tomado isolado de seus camaradas, pode ad- mitir de algum modo confirmagao ou invalidagéo” (17) . Essa suposigao est4 implicita na distingo, acima mencionada, en- tre ciéncias naturais, de um lado, matematica e légica de outro: na distingéo entre enunciados sintéticos e analiticos. Seriam sintéticos aqueles cujas classes de eventos sensoriais associadas nao fossem va- zias, analiticos aqueles cuja classe de eventos verificantes abrangesse qualquer evento. Do mesmo modo que fracassaram as tentativas de indicar as classes de eventos supostamente associadas aos enunciados ditos sintéticos, fracassaram também as de fornecer critérios para de- limitar precisamente 0 conjunto de enunciados ditos analiticos de uma linguagem dada (18). Assim como a possibilidade de efetivacaio do projeto reducionista, também a possibilidade de distinguir os enuncia- dos em sintéticos © analiticos permanece um pressuposto infundado, “um dogma nao empirico dos empiristas, um artigo metafisico de £€” (8). Tais dogmas correspondem a uma concepcfo particular — e fal- Sa, na perspectiva quineana — das relagdes vigentes entre linguagem e mundo. Essa concepgao pretende valer-se de um argumento aparen- temente correto. Do ponto de vista do conhecimento, a relagdo fun- damental entre uma teoria e seu dominio objetivo exprime-se no pre- (16) Epistemology Naturalized, p.79. (17) Two Dogmas of Empiricism, p.41. (18) Sobre esse fracasso, cf. Two Dogmas of Empiricism, pp.20-37. (19) Two Dogmas of Empiricism, p.37. = 6h dicado “verdadeiro”. A verdade de uma teoria depende obviamente tanto da linguagem quanto de fatos extra-linguisticos, tanto da maneira como usamos as palavras quanto do que ocorre no mundo. Isso leva a supor que a yerdade de cada enunciado da teoria se resolve em um componente linguistico e outro fatual. Para um empirista, esse ultimo deve, em ultima andlise, reduzir-se a uma classe de experiéncias con- firmatorias. Podemos conceber ainda a existéncia de enunciados onde 9 componente linguistico baste para estabelecer sua verdade, onde o componente fatual seja nulo. Enunciados-dessa espécie serao chama- dos de analiticos . Quine localiza o erro desta argumentagao na passagem do reco- nhecimento de que a verdade de uma teoria depende da linguagem e do mundo & afirmagao de que a verdade de um enunciado pode ser analisada em um componente lingufstico e outro fatual isoldveis: “To- mada coletivamente, a ciéncia possui sua dupla dependéncia em rela- cao a linguagem e a experiéncia; mas essa dualidade nao pode ser tracada de modo significativo nos enunciados da ciéncia tomados um aum” (20). Ciéncia e mundo defrontam-se como blocos. indivisiveis ea idéia de que ao recorte de uma teoria em enunciados corresponde um recorte andlogo do mundo em fatos nao pode pretender senao o estatuto de dogma. Quine mantém a tese de que o significado rele- vante para a ciéncia é o significado empirico. Contra o empirismo tradicional, mantém a tese da indivisibilidade do significado empirico de uma teoria. Contra o empirismo dogmatico, advoga um empirismo sem dogmas. Vv O empirismo tradicional repousa sobre pressupostos que nao se mostra capaz de fundar. O empirismo sem dogmas repousa sobre a tese da indivisibilidade do significado empirico de uma teoria. Cabe a Quine fundd-la mediante uma andlise da linguagem que revele a verdadeira natureza das relagdes que ela mantém com o real. “A linguagem é uma arte social. Ao adquiri-la, temos que de- pender inteiramente de pistas intersubjetivamente disponiveis quanto ao que dizer e quando. Portanto, nao se justifica o confronto de sig- nificados linguisticos senfio em termos das disposigdes dos homens a responder abertamente a estimulagdes socialmente observaveis” (21). A linguagem resume-se em um conjunto de disposigGes a comporta- mentos verbais, moldadas nos individuos por um processo de treina- mento social. Toda a investigac’o sobre o contetido semantico da lin- guagem resolve-se, em tiltima instancia, numa investigagao de com- (20) Two Dogmas of Empiricism, p.41; sobre a argumentagao e sua critica, cf. Two Dogmas of Empiricism, pp.36-37, 41-42. (21) World and Object, p.IX. 68) = portamentos verbais associados a situagdes estimuladoras apropriadas, O processo de aprendizagem da linguagem consiste no estabelecimen- to dessas associagdes entre express6es e condigdes de sua proferigao, por meio de mecanismos psicolégicos, como o do condicionamento operante; a titulo de resultado final, a linguagem nada mais é que o conjunto de padrdes comportamentais produzidos. A andlise seman- tica determina-se, em Quine, como algo que visa fundamentalmente explicitar certos tragos dos usos linguisticos em termos de conexées entre comportamentos manifestos e as varidveis que os regulam (22). Essa demarcacao dos limites da andlise da linguagem opera na demarcagio do ambito da epistemologia: “Ela (a epistemologia) es- tuda um fendmeno natural, o sujeito humano fisico. A esse sujeito humano concede-se um certo input experimentalmente controlado — certos padr6es de irradiagéo em frequéncia arranjadas, por exemplo — e, na plenitude dos tempos, © sujeito fornece como output uma descricao do mundo exterior tridimensional e sua histéria. A relacio entre 0 magro input e 0 output torrencial é uma relag&o que somos in- duzidos a estudar em algum sentido pelas mesmas razées que sempre induziram 4 epistemologia; a saber, a fim de verificar como a evi- déncia se relaciona com a teoria e de que maneiras a teoria da natu- reza de alguém transcende toda evidéncia disponivel” (23) . O tipo mais basico de determinaga&o do uso de expressdes lin- guisticas consiste na associacao direta a sentencas de classes de estimu- lages nao verbais apropriadas a induzir sua emissiéo. Entretanto, se esse fosse o tinico tipo relevante de determinagiio, a linguagem permi- tiria pouco mais que o mero relato de experiéncias atuais. A comple- xidade da sistematizacao da experiéncia, presente, passada e futura, de que a linguagem nos prové nao seria possivel sem recurso a pa- drées de associagao de outra ordem, correspondendo a uma radicali- zagéo no movimento de conceitualizagéo. “Nao podemos permane- cer com uma conceitualizagao corrida da corrente imaculada da expe- riéncia; precisamos € macular a corrente. Requer-se a associagao de sentengas nao apenas com a estimulagado nao verbal, mas com outras sentengas, se devemos explorar as conceitualizagées acabadas e nao apenas repeti-las” (24). A utilidade da linguagem, ao menos em fungaio de conhecimento, esta na possibilidade que oferece de sistema- tizagéo da multiplicidade de estimulagdes que nos assolam. Essa sis- tematizagaéo — conceitualizagao progride desde a ordem mais ba- sica da operacao direta com estimulagdes nado verbais até ordens su- periores, onde tais estimulagdes intervém apenas indiretamente e a (22) cf. Ontological Relativity, in Ontological Relativity and other essays, Pp.26-29; também World and Object, capitulo 1. (23) Epistemology Naturalized, pp .82-83. (24) World and Object, p.10. | | — 69 — niceitualizagao opera sobre resultados de operagoes anteriores. Uma rota cientifica nada mais 6 que o resultado final desse complexo de relagoes de associagao e tudo © que se pode dizer de seu significado empirico deve poder ser justificado em termos do processo de cons- trugdo do complexo. A teoria ¢, de fato, “um tecido de sentengas associadas de maneira variada, umas as outras © a estimulos nao ver- pais, pelo mecanismo da resposta condicionada” (25) . Consideremos uma sentenga S de uma teoria, atada a estimula- Ges nao verbais nao diretamente, mas por meio de sentengas Sise 25555 de modo que estimulacgdes n&o verbais serao apropriadas ou nao a assereao de S sob 0 pressuposto da assertabilidade de Sy. Sn: Su- ponhamos a ocorréncia de estimulagdes apropriadas a rejeigao de S, também sob a suposigao da assertabilidade de S,,. ..;S,. Abrem-se duas possibilidades: ou mantemos S,,...,Sn € rejeitamos S, ou mante- mos § e rejeitamos algumas das sentengas S),...S,. Nesse sentido, nao se pode dizer que uma estimulagio qualquer esteja atada a S co- mo componente de seu significado empirico. No caso de sentengas re- guladas por associagOes intersentenciais, torna-se impossivel atribuir- Thes significado empirico uma a uma isoladamente. Essa impossibili- dade torna-se mais evidente quanto maior a complexidade do sistema das associagdes (26). A idéia de que as sentencas de uma teoria respondem individual- mente no tribunal da experiéncia resulta de uma generalizagao indevida a partir de certa espécie particular de sentengas: aquelas associadas diretamente a estimulacgdes nao verbais. Trata-se de sentengas con- dicionadas ostensivamente a situagdes publicamente partilhdveis, de modo que todos tender&o a asserta-las de maneira uniforme sob as mesmas estimulagdes. A tais sentengas — sentengas de observagao — pode-se em algum sentido atribuir significado empirico isoladamen- te, mas ainda de modo relativo (27). No entanto, se ainda faz sen- tido falar do significado empirico de uma sentenga de observagao, é Seguramente ilusério generalizar essa propriedade para sentencas cujas condicdes de assergio e rejeic¢io se determinam em termos de asso- Ciagoes entre sentencas. Uma teoria tomada em bloco possui implica- gGes empiricas, mas elas nao se repartem pelos enunciados individual- Mente. Em suma, a propria natureza do processo de conceitualizagao, de que a ciéncia é a realizagdo mais perfeita, funda a tese quineana da indivisibilidade do significado empirico de uma teoria. (25) idem, p.11. ‘on cf. Philosophy of Logic, p.5-7; também Two Dogmas, p.42-44. cf. Two Dogmas, p.43. = 70 — VA A analise do processo efetivo de construgao de teorias leva ao re- conhecimento da impossibilidade de determinag&o do valor de verda- de de todos os enunciados verdadeiros sobre 0 mundo na base da evi- déncia empirica disponivel. Isso equivale a reconhecer a indetermina- cao de nossa teoria sobre o mundo por consideragdes exclusivamente empiricas. Como estabelecé-la entéio? Na medida em que formos ra- zoaveis, por consideragGes de simplicidade (28). Dadas varias teorias igualmente accitaveis do ponto de vista da evidéncia empirica, a ado- gao de uma delas como verdadeira passa a depender de critérios prag- maticos, dizendo respeito tanto 4 maneira como cada uma delas siste- matiza os dados disponiveis, quanto aos préprios dados. Fica com- prometida, portanto, a tentativa de estabelecer os limites que separam epistemologia e ciéncia na base de uma distingao entre questdes de linguagem e questdes de fato. Por um lado, consideragdes sobre a linguagem so essenciais no momento de decis&o entre teorias incom- pativeis e empiricamente aceitaveis. “A teoria da relatividade de Einstein foi aceita em consequéncia n&o apenas de reflexdes sobre o tempo, a luz, corpos impetuosos e as perturbagdes de Merctirio, mas também de reflexdes sobre a prépria teoria enquanto discurso e sua simplicidade em comparagfio com teorias alternativas’ (29). Por outro lado, se € fung&o da epistemologia explicitar as etapas do pro- cesso de construgao da ciéncia, revelar o que nesse processo opera apenas tacitamente, expor e resolver problemas por ele colocados, ocupa-se com questdes de fato em dois sentidos: como investigacio empirica de um fendmeno natural — a ciéncia como processo natural no mundo — e como investigag&o que recorre a conceitos e critérios cujo valor s6 pode ser medido em termos de sua adequacio ao objetivo cientifico nuclear, a sistematizagio dos dados da experiéncia. Em outros termos, nenhuma questao 6 puramente lingufstica, nenhuma pu- ramente fatual. Essa propria distingao é herdeira dos dogmas do em- pirismo tradicional, da idéia de que seria possivel tracar claramente a linha que separa enunciados dotados de contetido nao verbal de enunciados desprovidos de tal contetido (30). Também a distinc’o entre enunciados sintéticos e analiticos é herdeira desses dogmas. A maior imunidade das leis légicas e mate- maticas a revisGes empiricas aparece como consequéncia nfo mais da falta de relevancia empirica, e sim da conveniéncia de sua manutengao em termos da simplicidade de nosso sistema cientifico global (31). O (28) cf. World and Object, pp. 19-21. (29) idem, p.272. (30) cf. On Carnap’s Views on Ontology, in The Ways of Paradox and other essays, p.134; também World and Object, p.271. (31) cf. Two Dogmas of Empiricism, pp. 43-44. = asso do projeto de fundamentacaéo em matematica torna-se assim pee rave. Se excluirmos a evidéncia empirica como absolutamente Be te para a matematica, € natural que procuremos funda-la em ia terreno (32). Se, pelo contrario, admitimos a homogeneidade ia critérios em matematica e ciéncias naturais, nao € preciso encon- trar para aquela titulos de legitimidade de espécie diferente dos que yalem para estas; ¢ eles resumem-se na capacidade de colaborar na edificagao de teorias capazes de sistematizar e predizer experiéncias, jualquer que seja 0 modo como 0 fagam. E nao se vé, do ponto de yista quineano, como seria possivel estabelecer de outra maneira o yalor de conhecimento da propria epistemologia . A atribuicao do carater de ciéncia empirica 4 epistemologia pode, de inicio, parecer paradoxal: como pode uma investigagéo que toma como objeto a ciéncia enquanto tal depender de uma parte dessa mes- ma ciéncia? A objecio alimenta-se, porém, do velho e ilusdério ideal dv fundamentacao. Eles sao, na verdade, interdependentes. A crenga na viabilidade do ideal justifica a recusa em recorrer a ciéncia no tra- balho epistemolégico. Tal recusa, por sua vez, impede que se alcance a compreensao nitida do processo de conhecimento, permitindo a cren- ¢a no ideal ilusGrio de uma fundamentagao absoluta de toda concei- tualizagao. A andlise empirica do processo de conceitualizagao permi- te perceber que cabe a epistemologia descrevé-lo mais do que funda- mentd-lo”. Buscamos 0 entendimento da ciéncia como uma institui- Gio ou processo no mundo e nao pretendemos que esse entendimento seja nada melhor que a ciéncia que é seu objeto” (33). O empirismo tradicional aparece, para Quine, como a tentativa surpreendente de fundar o privilégio cientifico da experiéncia de modo dogmatico, nado empirico. Ao empirismo sem dogmas cabe fundd-lo empiricamente, naturalizar a epistemologia. Um empirismo sem dogmas, entretanto, € ainda um empirismo. Por um lado, a construgao da epistemologia quineana faz-se em opo- sig¢ao a epistemologia empirista tradicional, podendo-se dificilmente discernir nessa construg’o os momentos critico e positivo. Por outro lado, essa propria caracteristica da epistemologia quineana reforga seus lacos com 0 empirismo. Consentindo em adotar a problematica empi- tista como ponto de partida, Quine instala-se no campo tedrico onde tal problematica ganha sentido. A reestruturag%o radical da visio em- Pista tradicional, que se exprime no principio da indivisibilidade do significado empirico das teorias e na maxima da naturalizag&o da epis- temologia, nao pretende anular os efeitos dessa instalacao inicial, mas ViMOs que se constitui antes em uma tentativa de interpretagao conse- quente e aprofundamento dos pressupostos mais basicos das concep- ———— G2) cf. Phi i i) ae Philosophy of Logic, p.99. istemology Naturalized, p.84. —72— g6es criticadas. Quine nao hesita em admitir que “seguramente nao se tem outra escolha sendo ser empirista, na medida em que esta em questo a teoria do significado linguistico” (34), nem tampouco que “enquanto empirista, continuo a conceber o esquema conceitual da ciéncia como um instrumento para, em Ultima instancia, predizer a ex. periéncia futura a luz da experiéncia passada” (35). Que a nogdo de significado empirico contém um nucleo que nao pode ser ignorado em qualquer investigacao sem@ntica radical, 6 uma tese quase trivial, Que ela contenha tudo aquilo que esteja envolvido em questdes de sig- nificatividade de expresses linguisticas, € uma tese particularmente empirista. Que o esquema conceitual da ciéncia seja, em alguma ins- tancia, um instrumento de sistematizagio de experiéncias, € uma tese. quase trivial. Que ele o seja em Ultima instancia, é uma tese parti- cularmente empirista. Vimos em que medida essas duas teses fundam a substituigéo da postura empirista tradicional por aquela do empiris- mo sem dogmas. Seriam elas os dois dogmas do empirismo sem dog- mas? LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS REFERENCIAS Quine — Word and Object, M. I. T. Press, Cambridge, 1970. — The Ways of Paradox and other essays, Random House, New York, 1966. — From a Logical Point of View, Harper & Row, New York, 1963. — Philosophy of Logic, Prentice-Hall, New Jersey, 1970. — Ontological Relativity and other essays, Columbia U. P., New York, 1969. (34) Epistemology Naturalized, p.81. (35) Two Dogmas of Empiricism, p.44.

You might also like