Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 12
ANAIS “Do {K ENCONTIZO NACIONA LDA ANPURL. RI Zoo\ As Escatas po Pooper E 0 Poper pas Escatas: O Que Pope o Poper Loca? CARLOS BERNARDO VAINER Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal 1. Introdugao! Nos dltimos anos, politicos € partidos progressistas tém reiterado que a luta para conquistar governos municipais tem outros objetivos, mais ambiciosos e generosos, que o de simplesmente administrar localmente a crise econdmica ¢ social. Sera esta uma pretensao realista? Até que ponto é possivel inventar e tilhar caminhos que realmente ultrapassem o limitado horizomte da gestio da crise ¢ da adesio subordinada & guerra dos lugares? E possivel ir algm de uma ago governamental cuja virtude maxima seja a de apaziguar localmente conflitos sociais engendrados pela estrutura social e agravados pela ofensiva neoliberal? Em que medida, apesar dos constrangimentos de toda ordem a que estio submetidos, podem os governos municipais alterar significativamente 0 quotidia- no alienante ¢ miserével da imensa maioria dos tadinos? A busca de um roteiro que ajude a refletir sobre estas questdes, a proxima sessio revé, mesmo se rapidamente, 0 debate politico, mas também te6rico-conceitual, sobre as escalas da ago politica, debate que se tem estruturado sobre as oposig6es entre o local/regional, o nacional e © global. A terceira sesso apresenta de forma sucinta a proposta de uma abordagem das relagdes, interescalares capaz de combinar, ao invés de opor, as miltiplas escalas, conformando 0 que designamos de estratégias (analiticas e politicas) transescalares. A quarta sesso discute as margens de agaio de um governo municipal para introduzir - ou liderar, se se prefere - mudangas capazes de alterar a correlacao de forgas entre os diferentes segmentos sociais, assim como as condigdes materiais ¢ imateriais de vida dos grupos sociais do Rio de Janeiro — IPPUR/UFRI. subalternos. Pretende-se mostrar, em confronto com 0 que tém proctamado agéncias multilateriais € consultores internacionais, que o campo de possibilidades dos governos locais 6, simultanea- mente: a) mais amplo, uma vez que as cidades nao estdo condenadas a adotar estratégias empresariais competitivas; b) menos amplo, pois qualquer projeto— econdmico, politico e/ou cul- tural ~ estar condenado ao fracasso se ficar confinado a escala local. Na Conclusio ensaia-se a elaboragio de 3 objetivos (ou diretrizes) gerais para um governo municipal. 2. As Escalas da Aco Politica. Nao seria exagero dizer que o debate intelectual € politico se vem realizando sob o signo de categorias que remetem as escalas espaciais: globalizagdo, blocos regionais, desenvolvimento local, dissolugao das fronteiras nacionais. identidades locais, entre outras, so expressdes que frequentam com igual intensidade tanto os trabalhos ¢ encontros académicos, quanto os meios de comunicagio de massa ¢ 0 debate politico. Do ponto de vista do pensamento social © politico, desde o grande debate que antecedeu acompanhou a 1 Guerra Mundial, a questo da escala de aco nunca se havia colocado com tanta centralidade. No inicio do século assistiu-se a oposigao entre as escalas nacional x internacional, centre projetos que se fundavam no nacionalismo ou no internacionalismo. Hoje vemos o debate ser dominado pelo par local x global, com uma participagiio menos marcante dos que enfatizam a escala nacional ou, mesmo, regional. Como no inicio do século, as proposigdes politicas buscam amparo em estudos empiricos e teorias que pretendem fundar cientificamemte as diferentes ‘Uma primeira tentativa de sistematizagao das idgias agui expostas foi apresentada na VI Semana de Plangjamento Urbano e Re- gional, promovida pelo IPPUR/UFRI, em novembro de 1999. Posteriormente, o contato coma Secretaria de Planejamento de Belém ce sua extraordinariaexperiéncia incitou-me a desdobrar propositivamente alguns de meus argummentos. A maior divida deste trabalho € com Fabricio Leal de Oliveira, Fernanda Sanchez e Pedro de Novais Lima Junior pela permanente interlocugo no ambito do Seminario Globalizagio ¢ Politicas Terrtoriais. Revisire-se, porém. como de praxe, que as idéiase proposias aqui expressas sio de intra responsabilidade do 140 opsdes, produzindo 0 que Swyngedouw chamou de narrativas escalares (Swyngedouw, 1997). Como no inicio do século, o embate gira em torno a. uma mesma pergunta: qual a escala pertinente (ou prioritéria), seja para a andlise econdmica e social, seja para a ago politica eficaz? 2.1. Transformar 0 Global Numa Esfera de Lute Politica Podemos comegar pelos que defendem como prioritéria para a agdo a escala global: eles propugnam a existéncia, ou, pelo menos, a emergéncia, de uma sociedade civil globalizada, no ambito da qual caberia construir e fortalecer a cidadania global Em documento recentemente distribufdo através da Internet (Site do S11 — Mass Action for Global Justice and the Environment), grupos e organizagdes que pretendem dar continuidade a0 processo iniciado em Seattle, convocam para manifestagao contra a reunido do World Economic Forum (WEF), em Melbourne. A palavra-de- ordem € inequivoca: “Our resistance must be as global as capital!”. De modo geral, esta linha de intervengao esta fundada na convicgio de que: “As sociedade contempordneas, a despeito das suas diversidades ¢ tensoes internas e externas, estado articuladas numa sociedade glo- bal. Uma sociedade global no sentido de que compreende relagaes, processos ¢ estruturas saciais, econdmicas, politicas e culturais, ainda que operando de modo desigual ¢ contraditério. Nesse contexto, as formas regionais ¢ nacionais evidentemente continuam a subsistir ¢ atuar <..> Mas 0 que comega a predominar, a apresentar-se como determinagao basica constitutiva, é a sociedade global, a totalidade na qual pouco a pouco tudo o mais comega a parecer parte, segmento, elo, momento” (Ianni, 1997, p.39) Na verdade, nos diferentes campos tedricos, politicos ¢ ideolégicos, poucos sao os que questionam a existéncia de um processo, dito de globalizagio ou mundializago, que vem reconfi- gurando, desde os anos 70 e, mais aceleradamente, desde os 80, as relagdes entre Estado, economia e sociedade, de um lado, ¢ entre Estados nai € corporagées transnacionais, de outro lado. Ha, porém, importantes divergéncias sobre a natureza e sentido deste processo: enquanto para alguns o jonais que se assiste éa progressiva unificagao do espaco global, simultaneamente causa e consequéncia da dissolugao dos estados nacionais (Ianni, 1997), para outros “la globalisation n'est pas une homogénéisation, mais au contraire elle est Hextension d'un petit nombre de nations dominantes sur l'ensemble des places financiéres nationales” (Bourdieu, 1998, p. 44). Outro importante ponto de dissenso diz. respeito & avaliagio da necessidade histdrica — ou nao - deste proceso, destacando-se como mais numerosos aqueles que © reconhecem como inexoravel e imeversivel, ‘posto que inexordveise irreversfveis seriam suas causas — entre outras, a reestruturacio produtiva, a crise € desagregacao do welfare state, acrescente dominagao das relagiies societdrias pela esfera mercantil. Em contraponto, resistem aqueles que afirmam que “a ‘globalizagéio’ nao é uma nova fase do capitalismo, ‘mas wna retérica ‘invocada’ pelos governos para justificar sua submissao voluntéria aos mercados ‘financeitos” (Bourdieu e Waequant; 2000). Ou ainda que “a sugestiio de que o atual modelo econdmico é imposto ‘objetivamente’ pelos modos de produzir é funcional para o pensamento dominante” (Benjamin et al., 1998, p. 64). O que interessa registrar, tendo em vista os objetivos desta sesso, é a presenga de expressivo contingente de pensadores e organizagies os quais, face ao que véem como sendo 0 movimento objetiva e econdmicamente inescapavel de globalizagdo, propugnam a esfera global como campo ~ ou arena — prioritéria da ago politica. Seja através de um internacionalismo renovado no qual se reconhecem certas herangas da vetha tradicao comunista, e mesmo anarquista, seja através da afirmagiio uma nova cidadania que se estaria construindo na luta pela democratizagio das agéncias globais, a proposta de cidadania glo- bal parece sintetizar um claro projeto politico- ideolodgico. Tratar-se-ia, pois, como de certa maneira sugere Tani (1997), de responder ao mercado glabal através da constituicao de uma arena politica apta aregular, ou, segundo certas correntes mais criticas, contestar politica e culturalmente, a hegemonia absoluta da I6gica econdmica, encarnada pelo capi- tal financeiro e pelas corporagdes globais. lanni formula de maneira singela 0 projeto, lembrando que trata-se de conferir ao individuo a mesma cidadania global jé conquistada pela mercadoria (anni, 1997, p. } 141 Apesar da infinidade de posturas analiticas ¢ projetos politicos reconhecfveis no campo dos que, na auséncia de melhor conceito, poder-se-ia designar de globalistas, um ponto de convergéncia é dado pelo reconhecimento, conformado ou entusiasta, de que o Estado nacional é cada vez mais impotente para fazer frente aos desafios colocados pelos realidades politicas, econémicas, sociais, culturais e ambientais* 2.2. Todo Poder ao Poder Local. Outro campo é 0 dos que apostam nas identidades locais, no patriotismo de cidade, no regionalismo. Engajar as cidades e os lugares na competigao global, eis as diretrizes, ou palavras-de-ordem escalares - politico-escalares - langadas por esta cor- rente, Borja e Castells, em extenso documento pro- duzido para a Conferéncia de Istambul, expressam de maneira plena as concepcdes e projetos hoje hegeménicos, difundidos sistematicamente pelo Banco Mundial ¢ outras agéncias globais, assim como por consultores internacionais. A idéia dominante vern sintetizada como segue: “La importancia estratégica de lo local como centro de gestion de lo global en el nuevo sistema tecno-econémico puede apreciarse en tres ambitos principales: el de la productividad y competiti- vidad econémicas, el de la integracién socio-cul- tural y el de la representacién y gestién politicas” (Borja, Castells, 1997, p. 14). Para estes autores, os governos locais, mais eficazmente que qualquer outra instituicdo ou nivel escalar, esto em condigées de: a) atrair e promover a competitividade das empresas; b) oferecer base histrica e cultural para a integragao dos individuos. “Simplificando, podria decirse que los estados nacionales son demasiado pequeios para controlar y dirigir los flujos globales de poder riqueza y tecnologia, y demasiado grandes para representar la pluralidad de intereses sociales ¢ identidades culturales de la sociedade, perdiendo tanto legitimidad a la vez como instituciones representativas y como organizaciones eficientes Borja, Castells, 1997, p.18). Em outros termos, 0 governo local teria a extraordindria capacidade de cumprir de maneira vantajosa as tradicionais fungdes que sempre foram as dos estados nacionais, quais sejam: a funcdo de acumulagao e a fungao de legitimagao. 3s gobiernos locales disponen de dos importantes ventajas comparativas con respecto a sus tutores nacionales. Por un lado, gozan de una mayor capacidad de representacién y de legi- limidad con relacién a sus representados; son agentes institucionales de integracién social y cul- tural de comunidades territoriales. Por otro lado, gozan de mucha més flexibilidad, adaptabilidad y capacidad de maniobra en un mundo de flujos entrelazados, demandas y ofertas cambiantes y sistemas tecnolégicos descentralizados ¢ intera- ctivos” (Borja, Castells, 1997, p. 19) Mas, afinal de contas, 0 que é exatamente 0 lo- cal? Esta pergunta foi formulada de maneira explicita por Duncan, ¢ a resposta nao foi nada animadora: “Perhaps the most irritating feature of ‘locality research’ is the variety of quite different meanings and uses ascribed to ‘locality’. This, it is unani- mously agreed, was one of the chief faillings of the earlier tradition of community research, wich also tried to specify how space made a difference to so- cial process. <...> Gregson <...> identifies eight common uses. Worse {worst?), some of these uses are contradictory but even so writers shift from one to another even within the same piece of work. This is of course not surprising given that ‘locality’ was rarely specified prior to use, with little or no exami- nation of what the concept was" (Duncan and Sav- age, 1989, p. 193)° fato de que “rhe locality idea has been taken on board as self evident, without examination of what ‘locality’ is or might be” (Duncan and , 1989, p.179) parece ainda mais problematico quando se tem em mente que o discurso da agéncias muhtilaterais e dos consultores internacio- 2 fanni vai mais longe: ao questionar a proposta de uma federagdo mundial, pretende condenar ao lixe da histéria nao apenas o Estado nacional, mas a prépria forma Estado: “<...> pensamenso ciewtficw ainda se aclu surpreendide pelas novus caracteristicas dea reulidade social. Ainda ndo assinilou a metamortase nacional em sociedade global. Por isso agarra-se a nogio de Estade, esquecende que 0 Estado é também um produto historico, eriagie da soviedade civil <...>" (anni, 1997, p. 41), *0s limites deste antigo impedem uma revisto mais cuidadasa dos véris significados sentidos atibuidos a0 conceito de local, que Vio desde a idéia de que ele € circunscrito pelos limites geogrificos no interior do qual opera umm mercado de trabalho definide pelo cemmut- ing didrios dos trabathadores (Sinith, 1990) atéaideia de que ele € definide por relagées de inclusdo identitdria/conuanitiria. Sobre este debate. ver, por exemplo, o acerbo confronto entre Duncan (1988) ¢ Duncan & Savage (1989). de um lado, e Cooke (1989), de out. 142 nais pretendem difundir a preeminéncia da agio e do poder locais nos mais diferentes contextos sécio-territoriais. Até que ponto é possivel imaginar que as realidades a que remete a nogio de local sejam minimamente comparaveis ou redutiveis ao mesmo conceito em formagGes sécio- histéricas e territoriais tdo distintas quanto a comuna francesa, 0 county ou a city americana, 0 municipio brasileiro, a aldeia asidtica, etc? Tais dificuldades te6rico-conceituais, entre- tanto, ndo parecem tirar 0 sono dos homens praticos, como nos mostra a singela definigao de um dos idedlogos desta nova pérola do repertério governamental que atende pela sigla de DELIS - Desenvolvimento Local Integrado e Sustentavel. Sendo vejamos “<...> 0 conceito de local nao é sinénimo de pequenoe nao alude necessariamente a diminuigao ou redugao. Pelo contrétio, considera a maioria dos setores que trabalha com a questo que 0 lo- cal nao é uma espago micro, podendo ser tomado como um municipio ou, inclusive, como uma regio compreendendo varios municipios” (Franco, 1998, p.7)'. Mas se 0 local ndo remete a qualquer circunscrigio ou realidade social reconheciveis, como operar conceitualmente com tal nogdo? A. resposta, singela como todos os consensos deste tipo, ressucita a velha nogio de regido de planejamento’ , que, deu por encerrada a discussio sobre 0 conceito de regido com a sabia ¢ pragmética conclusio de que ‘regido é o espago escolhido pelos planejadores para intervir’ “<.,.> local adquire a conotagao de alvo socioterritorial das agSes e passa en definido pelo préprio desenvolvimento local integrado € sustentavel” (Franco, 1998, p.7). lo a ser * Oarbitrio neste discussio & tal que se encontrain, com relativafacilidade, definig Escapa aos objetivos deste trabalho aprofundar © debate acerca do conceito de local, mesmo porque, como sugere Bottazzi (1996), isto exigiria avangar também na discussio da nogao de comunidade, ela também dominada por ambigui- dades ¢ polissemias*. Ha que registrar, porém, que o campo do que poderiamos designar de Jocalistas nao & ocupado apenas por agéncias multilaterais e consultores internacionais, ou apenas pelos porta-vozes de uma realismo pragmatico que recomenda o coesionamento de cada localidade ~ e, quase sempre, de cada cidade ~ em torno de um projeto estratégico patridtico e competitivo. Ao lado destes comparecem, embora muito minoritarios e com pouca repercurssio numa academia cada vez mais domesticada pelas pautas de pesquisa ¢ treina- mento das agéncias globais, aqueles que, reivindicando a tradigao libertéria, autogestiondria ¢ antiestatista de certas correntes comunistas € anarquistas, proclamam a necessidade de: “<...> nouvelles formes de I’agir politique au- dela des limites de la “nationalité”; d’abandonner definitivement les formes politico-organisa- tionelles cristalisées sur le terrain ‘national’; de conjuguer immédiatement I'action politique *lo- cale’, enracinée dans le tetritoire, avec la dimen- sion de la globalité; <...> de tisser et de eréer des rapports, des projets, des initiatives de lutie et de coopération autre, entre sujets, lieux, territoires divers et variés; de préfigurer, partout ou cela est possible, a partir de la dimension locale, des éléments d’auto-gouvernement, de démocratie radicale et d’appropriation par le bas de rouages administratifs; de conditioner les administrations locales au travers des conflits et des rapports de force, pour conquérir droits, des espaces et une {ofalmente inversas sobre o"tamanho do local ‘Dans fe flou, on pourrait penser a Mespace local comme dune région historique. & une partition administrative de type dr département ou du canton, ow a une forme inermédiaire entre les deux: Vidée sous-entendue par Vadjectf “local” est cependant celle d'un espace restreint, réduit ”(Bottazzi, 1996, p.79 — negrito do autor), Nao parece que estas inconsisténcias ineomadem os localistas eos defensores do poder e do desenvolvimento locais * Este renascimento da nogo de regido de planejamento certamente ndo € consciente, pois a heranga do saber ¢ do debate sobre planejamento foi quase totalmente perdida no aparetho de estado, entre outras razbes, pela desmontagem das agéncias planejadoras e ‘o banimento dos quadros que as operaram até o inicio dos anos 80. Tal fato talvez explique que os quadros que hoje vocalizam ¢ instrumentalizam as novas politicas govemnamentais, sejam eles de organizagdes governamentais, nfio-governamentais, quase nao governamentais ou para-governamentais, anunciem suas ret6rieas ¢ modelos operacionais como inovagées de itiina gerago, Os novos profetas da nova visio de integracio do desenvolvimento muito teriam a aprender estudando o triste destino dos PDR - Planos de Desenvolvimento Rural... Integrado. "Como mosira Bottazzi, a substituigdo da nogao de focal pelo de comunidade - ou comunitério ~ nao resolve o problema, antes © complica, constituido simples fuze en avaut, }S que “le vecours fa “‘communainé” sans explications s"avere étre d'wiltélimitéc eril peut engendrer de ta confusion” (Bousz2i, 1996, p. 81). 143 meilleure qualité de vie; de construir et d’étendre, au-dela des frontiéres, les réseaux de contre- pouvoirs et de la nouvelle solidarité” (Associa- zione Ya Basta, 1997). Criticando ferozmente o localism competitive que realiza 0 projeto do capital global, ¢ no gual “chaque ‘communauté territoriale homogene’ lutte contre les autres pour trouver une place au soleil dans le marché politique et économique de la nouvelle Europe” hé palavras-de-ordem que fazem ecoar os manifestos dos commumards parisienses de 1870: “Pour Vabolition de toutes les frontigres et la construction d'un réseau de communautés solidaires” (Associazione Ya Basta, 1997). Por mais opostos que sejam os horizontes do neo-localismo competitivo ¢ os do neo-localismo autogestionario ¢ libertdrio, num ponto a convergéncia é notavel: a rejeigio da escala nacional ¢ do Estado nacional como campo ¢ ator predominante da agao politica. Que se esteja & busca de uma forma de assegurar a incorporagzio do local ao movimento do capital global ou uma forma de combater radicalmente. a partir do lo cal, este mesmo movimento, a escala nacional & vista como inadequada, ou, pelo menos, claramen- te secundaria. A posico dos militantes acima citados ¢ clara: “Contre Europe de Maastricht, contre le nationalisme centralisateur et étatique. contre tout nationalisme ... pour un réseau de communautés solidaires” (Associazione Ya Basta, 1997) No outro extremo do campo neo-localista encontramos posigdes um pouco mais matizadas que. quase sempre, reconhecem que o Estado nacional deverd preservar algumas de suas prerrogativas, inclusive para impedir os riscos de uma excessiva fragmentagao em que dominem os uribalismos e fundamentalismos de todos os tipos (Borja. Castells. 1997. p. 31). O autoritarismo eo Oapeloa spew () apares i Péchelle régionate de VEurope, qui pourrait affrir we abreraaive ‘pete pon tents Te pays E nternacionalisino, uina vez que uma de suas lutas centrais seria con ambémem Bourdicw centralismo do Estado nacional, também neste arrazoado, sao convocados ao banco dos réus: “<...> cuanto més centralizado es un estado mis dificil le es establecer un puente entre el sistema global y las distintas culturas y territorios que forman parte de la nacién. En esas condicio- nes, los gobiernos locales y regionales estan emergiendo, en todo el mundo, como entidades mis flexibles, unidas al terreno de sus identidades, potencialmente capaces de negociar una adap- taci6n continua ala geometria variable de los flujos de poder” ( Borja, Castells, 1997, p. 31) 2.3. Por um Projeto Nacional Globalistas moderados, neo-internacionalistas mais ou menos radicais, neo-localistas patri € competitivos, comunalistas autogestio pois, reencontram-se no seu combate ao Estado nacional. Que em alguns casos a perda de capacidade do Estado nacional seja saudada, que em outros casos ela seja nostalgicamente lamentada, 0 que parece relevante destacar € que a polaridade local x global domina o debate contemporineo — com a mesma intensidade que a polaridade nacional x internacional no inicio do século. A revisio do debate sobre as escalas da aco politica nao poderia completar-se, contudo. sem uma mengio 2 resisténcia dos que reivindicam acentralidade da escala nacional como tinica capaz de propiciar resisténcia efetiva ao processo de dissolucdo das soberanias e, mais que isso, de dissolugao cultural e societiria a que parece nos condenar a globalizacio. Para os neo-nacionalistas, as elites, ¢ nao as tendéncias irreversiveis da economia, € que estariam condenando o estado nacional. Sao as elites que “estdo nos dizendo, todo 0 tenpo, <...> que o Brasil nao tem mais sentido” (Benjamin et al, 2000. p. 62). Neste discurso de delineia uma M fuctrait inventer un nowvel iternationalisme, au moins {la séressiom marionatiste qui la faveur de la erise, menace vropéens” (Bourdieu, 1998, p. 47), Para Bourdieu os sindicates desempenhariam papel genta neste novo a precarizagio do trabatho que a ‘concurrence qu elle vse & instaurer entre les iravaitiews de différents pays” (Bouedieu, 1998. p. 100), Para os militantes da Associazione Basta Ya, 20 contri, sindicatos & partidos devem ser abandonades, assim come todas “ley formes politico-organisarionelles eristalisées sur fe rerrain ‘national Associazione Ya Basta, £997). Una elaboragio mais sofisicada c. simultaneamente, mais comprometida com a andlise rnarxistavandnica enconterse em Smith, segundo, enquantoo capital se moveem direc a unificago do espag The working class nustattemp the precise opposite; as arclass divided ir ust strive toward quatizanion at the global sete, ravésdo desenvolvimento signal The palit sal jaure for tie work class les precisely inthe equalisation of conditions and levels os production, a process conti cally rustrated with: cupitatisnn. This ts the real historical resolution of the cenarcdiction bewseen equalizarion and differentiation tt cu be achieved 1a the exieut thar spatial co-operation among the working eluss is developed as a poltiefal force: he werking class 1990. p.t53) rectainns ns huanan nusuce promt isswnderdevelopment by capiaal (Stith 144 historia concebida como evolugao e atualizacio da oposigao entre nag3o x no nago: “A vitdria — tempordiria, porque a-historica ~ da perspective da ‘ndo-nagao’ sobre a perspectiva da nagdo impoe uma dura luta politica” (Benjamin et al, 2000, p. 63), Para esta corrente, ao escamotear a escala nacional, globalistas e localistas de todos os matizes estariam fazendo 0 jogo da prépria globalizacdo, cujo ponto de ataque central, ndo por acaso, é o Estado Nacional, nica escala ¢ instituigao escalar em condigdes de viabilizar, suscitar, a construgio de alternativas vidveis ao cupitalismo simultaneamente globalitirio © fragmentador “O que reclamar do poder local vistos os limites da sua competéncia que reivindicar aos estados federados: que solicitar eficazmente aos agentes econdmicos globais, quando se sabe que estes podem encontrar satisfa ganho simplesmente mudando o lugar de sua operagao? Para encontrar um comeco de resposta, 0 primeiro passo é regressar as nogdes de nacdo, solidariedade nacional, Estado nacional” (Santos, 2000, p.95 — negrito do autor). A estratégia escalar, pensada como estratégia de resisténcia, esti claramente ancorada na esfera nacional. ¢ tem por foco a constru projeto nacional (Benjamin et al co aos seus apetites de Jo de um 1998). Di maneira cada vez mais recorrente, 0 discurso nacionalista muitas vezes ver acompanhado de uma invocagio do modelo nacional-desenvol- vimentista com forte intervengao estatal. Nao deixa de ser surpreendente que se 0 discurso neo- nacionalista, que se apresenta como colocana na extrema esquerda, evoque positivamente momen- tos de nossa histéria em que regimes ditatoriais ter-se-iam engajado no que € visto como processo de construco nacional (Benjamin et al. 1998). 2.4, Uma imagem sintética do debate: em que esvala se constréi a cidadania? Sem a pretensio de dar por esgotada uma revisto aqui apenas esbogada, pode-se tentar uma imagem sintética, através de uma répida men 0 Curioso embate que opde globalistas. localistas ¢ nacionalistas quanto ao sentido ¢ lugar — ou melhor. escala — da cidadania. Como jd vimos antes, globalistas vém insistindo na necessidade de construir a cidedlanic global. com as respectivas instituigdes ¢ legalida- des que a sustentem. A cidadania global seria a linica e derradeira trincheira contra a fragmen- lagiio, os chovinismos, a explosio dos tribalismos € fundamentalismos através dos quais a globali- zagio ameaga a propria sobrevivéncia da sociedade, enquanto conceito e experiéncia comum de vida societal. Que esta cidadania glo- bal seja resultado de um processo de democra- tizagao das agéncias multilaterais e internacionais hoje dominadas pelos estados nacionais ¢ pelas corporagdes multinacionais, ou, ao contrario, o resultado da luta contra estas mesmas instituigdes, a nogio e 0 projeto de cidadania global unificam © projeto politico deste campo ~ algumas vezes. sob a égide da retérica neo-internacionalista. Os nacionalistas. de sua parte, acionam o conceito tradicional de cidadania, referido a0 Estado nacional, para desqualificar 0 projeto de cidadania global; “<...> a expresso cidadio do mundo torna- se um volo, uma promessa. uma possibilidade distante. Como os atores globais eficazes so. em Ultima andlise, anti-homem ¢ anticidadao. possibilidade da existéncia de um cidadao do mundo € condicionada pelas realidades nacionais, Na verdade, 0 cidadao s jo 0 €) como. cidadao de um pais” (Santos, 2000, p. 113). Na outra ponta, localistas acionam permanen- temente uma espécie de senso comum em que © local se constitui eseala mais pertinente para o exercicio da cidadania pela razio mesma de que © ‘cidadao vive no local, na cidade, no municipio’. Gragas a uma {do simpléria quanto ideologi- camente eficaz sociologia intuitiva, opera-se a redugio dos problemas contemporaneos a uma dimensio meramente gestionaria: ~<...> & na esfera local que os problemas sao melhor identiticados ¢, portanto, toma-se mais facil encontrar a solugto adequada’ (Franco, 1998, p. 8 Esta reducao da cidadania a escala local cncontra suporte também numa sociologia mais 6.0 € (ou sofisticada em que a experiéncia e agéncia parecem operar apenas, ou essencialmente, nesta esfera, Taylor <...> sees the local level as the arena of ‘experience’, where people live their daily lives As a common-sense approach this is attractive Since people live in smal scale arcas it seems ap- propriate to focus on this level when studying peo- ple’s actions. Perhaps the most explicit attempt to theorise this point is in the work of Giddens 145 Giddens developed the concept of ‘locale’ as an aid to the analysis of human agency <...> ” (Duncan, and Mike, 1989, p. 185). Assim, somente 0 coesionamento localizado ¢ localista de uma cidadania identificada com © lugar, af enraizada e patrioticamente unificada, permitiria romper o isolamento a que a sociedade informacional de consumo de massa langa os individuos. Contra a cidadania local vemos ser acionado ‘© mesmo argumento utilizado contra a propost de cidadania global: somente o Estado nacional instaura um espago € um conjunto de relagdes no contexto dos quais a nogao de cidadania faz sentido, O lugar de nascimento ou residéncia nao conferem cidadania. ¢ esta é uma realidade politico-institucional inescapsivel. “In feudal society the status of vassals m bt have been defined by the manor in which they were born = although even here it was a social unit of a manor, of the status of an internationally recognised oath of felaty that mattered. not the “Jocality’ as such, But this is surely not the ease for modern nation-states” (Duncan, and Mike, 1989. p. 200). Cidadao local, cidadao nacional. cidadao glo- bal aparecem pois como os agentes/sujeitos politicos que viriam, cada um a seu modo. atualizar as diferentes escalas como espacos politicos estratégicos* 3 Lutas de Escalas, Escalas de Luta: uma Perspectiva Transescalar Neil Smith ja disse que a escalaridade da vida cotidiana esta impressa e expressa em todus as configuragdes escalares, desde 0 nosso corpo. ale © internacional, passando pelo comunitirio, urbano, regional (Smith, 1993)". Isto quer dizer cu vivo cotidianamente no mundo e no meu local no meu municipio, na minha cidade. no meu pais A idgia de que 0 cotidiano seja feito de relagdes primdtias é completamente anacrénica. produzin- do uma imagem absolutamente ideolégica da esferst local, como se esta constituisse segmento societério onde ainda predominariam relagies comunitarias (Bottazzi, 1996), Por outro lado. The seu lobul configurauons whose content cand relations are fl Para uma interessante eritica das abo com relacivese estruturas estivers, ver Hutvey. 19% igualmente mitica parece sera imagem de um mundo social feito 4 imagem das formas mais abstratas do capital, puro fluxo de informacdes, em que todas as relagdes entre escalas ¢ agentes concretos. coletivos e individuais, estivessem transcendidas. quando nao simplesmente em dissolugao" Oentendimento de que os processos econdmi- cos, politicos, sociais, culturais tem dimensdes escalares nfo pode conduzir a reificagio das escalais, como se estas antecedessem e contivessem (como um recepticulo) os processos. O que temos sio processos com suas dimensdes escalates, quase sempre transescalares (haveré ainda hoje algum processo social relevante cuja compreensio ¢ modificagio seja possivel através uma andlise ou intervengio uniescalar?), Esta compreensio auloriza que « process- based approach focuses attention on the mechanisms of scale transforma- tion and transfression through social conflict and struggle” (Swyngedouw, 1997, p. 141), Em outros termos, a andlise da escala no pode pretonde substituir a andlise dos processas. Como bem observou Swyngedouw as escalas so produzidas elas mesmas em processos profun- damente heterogéneos, conflituais e contestados: “<...> scale is neither an ontologically given and a priori definable geographical territory nor a politcally neutral discursive strategy in the con jon of narratives” (Swyngedouw, 1997. p. struc 140), Isto explica que “scales become the arena and moment, both discursively and materially, where sociospatial power relations are contested and compromises are negotiated and regulated. Seale, therefore, is both the result and the outcome of social struggle for powerand control” (Swyngedouw. 1997. p. 140). Assim, as escalas nfo esto dadas. mas clas mesmas. objeto de confronto. como também € objeto de confronto a definigao das escalas Prioritérias onde os embates centrais se dario Smith é particularmente claro ¢ feliz ao expor esta visao: <...> the construction of scale is a social process, ie. societal activity wich. in turn, produces and is seale is produced in and through lf the exervilay, as Sih asists, «6 expressed i bodily, communats, urban, regional, neanonal, supernatenal anel L eomested, and perpenually wansyressed” (Swyng sdoww. 1997. p14) ns (phs-mioemas?} em gus os Fluxos operam un dialética sem qualquer permanéncia ow Pant produced by geographical structures of social interaction” (Smith, 1993, p.97). Antes de serem os campos possiveis da agio politica, as escalas constituem, portanto, os resultado, sempre contestéveis e contestados, de embates, assim como o sio as relagdes intere: lares ¢ a predominancia de uma escala sobre as a ‘scale demarcates the sites of social con- test, the object as well the resolution of contest” (Smith, 1993, p.101. Escolher uma escala é também, quase sempre, escolher um determinado sujeito. tanto quanto um determinado modo e campo de confrontago. Os limi tes deste artigo impedem desenvolvimentos mais amplos aeste respeito; cabe, porém, antes de prosseguir em diregio a uma interpelacio das possibilidades ¢ limites do poder local, explicitar, mesmo se forma telegrfica, a posigiio que informa o tratamento das perguntas formuladas ao inicio do trabalho. Seguindo sugestdes presentes em Harvey. Swyngedouw. Smith, Bourdieu, enite outros, parece- nos indispenséivel interpelar cada um dos discursos escalares anteriormente apresentados a partir do que temos designado de abordagem ou estratég transescalares"", A idgia central pode ser expressa como segue! qualquer projeto (estratégia?) de “WFansformaGio envolve, engaja e exige taticas em cada uma das escalas em que hoje se configuram os processos sociais, econdmicos © politicos estratégicos.| Desta perspectiva, «le Taz a forga das corporagées multin: menos em sua globalidade que em sua capacidade de articular agdes nas escalas global. nacionais, re € locais, Embora confundindo, a nosso ver. at ° onais © que sejam escalas ¢ 0 que sejam niveis de abstragio! passagem seguinte de Harvey pareve conttibuir para clucidar os fundamentos de uma abordagem analitica uma estratégia propositiva transes Assim. no que concerne “Theoretical practice must be constructed as w continuous dialectic between the militant particula- rism of lived lives and a struggle to achieve sufti- cient critical distance and detachement to formulate global ambitions” (Harvey, 1997, p. 44) "No que diz respeito & agdo politica: a woria: Embora no seia wbjeto deste trabalio. eae destacar que. de analitcas fescalas de anise), quanto do ponte de vistada constr Esiaconfusio, comuinent gu se oporia as abstrayies Ja iuicioal © do ulobal, enconira umaexpressao perleita,e por isso mesmo carcatutal uma reflexso critica sobre a propria nogao de desenratvimente focal, ver Vator, 1998 P, de wstratégias politeas,istod, de st esque pensanto focal como verdade ontoligicaem si. autoevidents, ¢- portanto, come concregao que “The problem for socialist polities is to find ways to answer such questions, not in any final sense, but precisely through defined modes of cont munication and translation between different kinds and levels of abstraction” (Harvey, 1997, p.42) Colocada nestes termos, a reflexdo sobre as possibilidades ¢ limites da ago de um governo municipal ganha uma nova profundidade, dis- tanciando-se de ilusdes neo-localistas € do ceticismo globalista. Do ponto de vista da pers- pectiva localista, ter 0 controle da administrago local, que quase sempre ¢ erradamente con- fundida com 0 poder local. significa ter todo 0 poder do mundo — ou pelo menos, segundo algumas perspectivas. todo 0 poder possivel, ja que o capital globalizado de tal forma ter-se-ia desterritorializado que estaria imune a qualquer forma social de controle. mesmo que no mero sentido regulatério. Do ponto de vista globalista, 4 conquista de uma prefeitura ¢ muitas vezes percebida como uma armadilha que enreda as forgas progressistas na administragio localizada vitoria de Pirro atrayés da qual a engrenagem sistémica coopta e incorpora a sua din Jmica as fargas contestatdrias emergentes, Que projeto é possivel elaborar a partir de uma perspectiva transescalar’? 4.0 Que Pode o Poder Local? Para comegar. & fundamental ter claro os limites das conquistas materiais ¢ imateriais que | os movimentos ¢ lutas populares so capazes de aleangar na escala global: a estrutura social, econdmica e politica, que opera na interagio en- internacional. € 0 princi- pal doterminante das condicdes de vida das classes subalternas em nossa sociedade. ¢ somente mudangas estruturais profundas serio capazes de abrir possibilidades para uma reversio do quadro de desigualdades ¢ de miséria social. Rejeitamos. assim, ad limine, a pretensio neo-localista de conceber © local. quase sempre a cidade. como campo de um desenvolvimento local alternative de construgao de alternativas we as escalas nacional ¢ ©. a fortiori, societarias Kode visa, atransescalaridade € necessiria tanto paraabordagens ‘em Cox and Mair (1989) 147 ral constatacdo deve servir antes para orientar do que para encerrar a reflexdo. Afinal, a cidade iio € apenas o reflexo da sociedade; a cidade é. cla mesma, um universo social. econémico e politico; a cidade produz. riquezas, produz © reproduz as, politicas, culturais, etc.) A apenas uma reproducio.-toealizada ¢ reduzida, da estrutura social; ela é também, um. complexo de relagdes sociais ~ relagées econdmi- cas, mas também de_relagdes poder. “Trsistamos um pouco mais nesta tese. de dificil entendimento para estruturalistas ¢ globalista estreitos: a relagiio entre a cidade e a estrutura social nao é uma relagio passiva, em que a cidade é meramente reflexo das estruturas!: ao contratio, a cidade contribui para configurar a estrutura social, Nio esta inscrito na estrutura social brasileira que apenas sejam asfaltadas as ruas dos bairros habitados pelas classes superiores e médias. nem que a dgua chegue apenas a alguns cantos da cidade. Mas 0 fato de que isso acontega em nossas cidades. ¢ nao nas cidades francesas ou canadenses, para citar um exemplo,introduzalgumas diferengas expressivas na configuragao destas sociedades, Tampouco est inscrito na estrutura social brasileira que os recursos captados pelo governo local sejam sistematicamente alocados de modo a reproduzir a desigualdade ur- bana ou a alimentar a acumulagio privada de segmentos especulativas do capital de promogio imobilidria, ou outros segmentos da “clite local” En outros termos. isto significa que a cidade além de herdar desigualdades da estrutura social as aprofunda. Hé. pois. toda uma ampla luta con- tra a desigualdade que é estritamente urbana e que deve ser travada na esfera local. ‘Heidade € também. nela mesma, um poderoso anismo de geracao e apropriagdo de riqueza. niio esti inscrito nem totalmente determinado que na estrutura social. Que alguns poucos promotores imobilidrios capturem imensos valores ~ mais- valias imobilidrias ~ gragas a investimentos piiblicos que poderiam estar sendo consagrados 2 reducio das desigualdades estritamente urbanas. eis algo que nao nos & imposto por nenhuma tei do mercado; ao contririo, & pura ¢ simples apropriacio privada de recursos piiblicos. Esta lei “Emout abu” (Kevin Cox & Andrew Mair. 1989. p. 1279 * Evidemtemente, de donna detathiados das coalizes le poxk Focal, movlaidades de afrmacio sania de -ada cidade instaura de fora nica, uma artieulaga de mecanismas de jeerminados grupos ede seas valores e perspectivas. E somente estudos lem revelar sevtensio¢ naturezt de ead um ds niecaalsiis existentes em) cada eidade particular do mais forte que se institucionaliza — ao mesmo tempo que se traveste de lei do mercado -, manifesta, de maneira plena, a estreita solidarie- dade entre 0 poder econémico e 0 poder politico que configura, simultanea ¢ combinadamente, a economia ¢ a politica urbanas. Sea cidade produz ela mesma mecanismos de poder e de apropriagio de recursos, se ela constitui espago de afirmagao de legitimidades valores simb6licos! a disputa pela cidade pode, e deve, “SEF ATisputa por este conjunto de recursos de que cla 6 origem e depositiria, eternizando, como em stias ruas ¢ edificagdes, mecanismos de reprodugio daexploracao e.da dominagio's Por outro lado, como uma cidade nao existe solta no ar, as formas de dominagao ¢ acumulagao que a caracterizam nao podem ser percebidas sem um olhar para suas articulagées regionais, nacionais e, cada vez mais. internacionais. De que forma as coalizdes dominantes locais se articulam horizontal e verticalmente? Enquanto grupos de interesses € segmentos de classe, que posicao ocupam e como interagem com o bloco hegemd- nico nacionalmente? Como e com que redes globais a cidade esti conectada? Normalmente, pelo menos nas cidades de maior expresso, ax coalizdes locais envolvem desde interesses locais tradicionais até grupos externos (nacionais ou estrangeiros). Que peso tém os varios grupos? Qual o papel de segmentos da classe média tradicional? E as velhas oligarquias? Para sintetizar o argumento, podemos dizer que cada cidade 6, portanto. campo e objeto de relagées de geragio ¢ apropriagao de recursos — materiais, politicos, simbélicos ~ que resultam das formas particulares Gnicas que estruturam 0 poder e as relages econd- micas. Este conjunto de relagdes, e os recursos que clas colocam em movimento ¢ disputa, sao um espago bastante amplo para alteragdes reais na vida das classes ¢ grupos dominados 5 Conclusao: & busca de alternativas para as estratégias competitivas. Nem universo fechado pelas sobredeterminagdes cstruturais (globais). nem campo totalmente aberto 1s lormulagies. criicadas por Cox & Mair, olocal é eoncebido como wero “revipiente relutivumente passin dr restrutura ecificamente urbane, formas 148 para a construgdo de alternativas, o local, a cidade em primeiro lugar, constitui escala ¢ arena de construgao de estratégicas transescalares ¢ de sujeitos Politicos aptos a operarem de forma articulada com coalizes e aliangas em miltiplas escalas. ~—TSto significa que, mais além de necessério, é possivel romper tanto com 0 “fatalisme de la pensée néo-libérale” ¢ a “économie naturalisée du néo-liberalisme” (Bourdieu, 1998, p. 74), quanto com o determinismo estruturalista, também economicista, que condena 0 local a ser mero recepticulo e sintese concreta das determinagées abstratas da l6gica do capital. A fim de propor o debate de alternativas que rompam radicalmente com a perspectiva compe- {itival® arriscamos o que poderiam ser os objetivos centrais de um governo local comprometido com os sgTupos sociais subalternos e voltado para a construgiio de alternativas societérias. O pressuposto & que a politica local deve ser concebida como parte de uma estratégica transescalar e, portanto, esté desafiada a definir objetivos ambiciosos, pois rejeitam ox pressupostos de que nao ha opge: pois reconhecem que a escala local no encerra em si sendo parte dos desafios a serem enfrentados pela resisténcia ao projeto neo-liberal de reconfiguragio escalar Os objetivos seriam * redugdo das desigualdades ¢ melhoria das condigdes (materiais e imateriais) de vida das classes trabalhadoras, e, de modo mais amplo, das classes ¢ grupos sociais oprimidos ¢ explorados, através principalmente da transfe réncia de recursos (materiais ¢ simbélicos) em seu favor — e, necessariamente, em detrimento das classes ¢ grupos dominantes; * avango e radicalizagio de dindmicas sociais, politicas, culturais, que propiciem a organizagiio e a Juta populares. , de modo mais geral, a constituigao de sujeitos politicos coletivos expressando interesses, segmentares © gerais, das classes ¢ ‘upos sociais explorados e oprimidos. fazer, ¢ realistas. "A afirmagao da possibilidade de ruptura radical com o projeto competitive bey * enfraquecimento dos grupos e coalizes dominantes, envolvendo desde a desmontagem de mecanismos tradicionais de reprodugao de seu poder (clientelismo, etc) até a desarticulagio de suas aliangas horizontais (no Estado e na regio) ¢ verticais (com grupos nacionais e internacionais), passando também por desaiticulacao das redes (in- clusive dentro da administragio publica) e dispositivos (inclusive legais) que favorecem a privatizagiio de recursos piiblicos e a captura de vultosos recursos extraidos direta ou indiretamente da populagao, através de posigdes monopolistas {adquiridas, quase sempre, pelo exercicio do poder politico, pela advocacia administrativa, pela troca de favores entre familias e pela corrupgao)."7 Embora enunciados separadamente, ha um intima e necessiria articulacao entre os objetivos acima citados. Sendo vejamos. A melhoria das condigdes materiais de vida sera ef€mera e pouco consistente se nao estiver apoiada na organizagio e luta. Mais que isso, sem organizagao e luta dos setores populares. dificilmente sera capaz o governo urbano de levar adiante uma expressiva transferéncia de recursos, permanecendo refém da burocracia, da rotina administrativa da mdquina governamental e das pressdes e chantagens dos grupos sociais que tradicionalmente dominam a cidade e capturam, desde sempre, tanto os recursos gerados pela acu- mulagao urbana quanto os recursos concentrados (sejam eles de origem local, estadual, nacional ou internacional) nas maos do governo local, Sem avangos na luta ¢ organizagao, dificilmente se ultrapassard o patamar das pequenas concessées que via de regra configuram o clientelismo—quando concessbes no varejo por pequenos caciques locais — ou o populismo — quandos as concessées sao associadas as dadivas de algum lider iluminado"’, Por outro lado. dificilmente sera possivel avangar de maneira substancial na mobilizago, lutae organizagio populares se os processos politicos involucrados nd conduzem, ce uma maneira ou outra, dio leit mdnico é fundamental e,em certo sentido, condigao mesma da construgdo de una nova hegemonia: mesino porque nao sao raFos os que, hoje. embora situados no campo do pensamento Letico e proximos aos movimento populares, parecem convencids de que no npgies. Assim, porexemplo. varios sioas prefeituras progressistas que vém aderindo aos discursos e as priticas competitivas ¢ de marketing, Notivel. igualmente, que um autor como Harvey ensaie aidgia de que o localismo competitivo poderia vir a constiuir-se em eaminho para o socialismo! (Harvey. 1995) Dois exemplos tipivos: a) as famosas mafias dos transportes que dominam muitas de nasssas grandes cidades: b) 0 capital de promogao imobiliria, que internatiza ganhos fundidrios resultantes de investimentos piblicas, Hi, na historia brasileira, muitos exemplos de como possivel combinar de varias maneiras com varias dosag ‘populism oclientelismoe 149 a conquistas reais, perceptiveis e valoradas positivamente por amplos segmentos das classes & grupos explorados e oprimidos. As vit6rias parciais, expressem-se elas em melhorias coneretas nas res. condigdes de vida, na conquista de pos simbolicamente relevantes da perspectiva popular, ou na afirmago da legitimidade e legalidade de determinadas praticas e valores — por exemplo. a liberdade de opgao sexual e os direitos dela decorrentes -, eis elementos centrais de um estratégia urbana que se pretenda trasnformadora, Finalmente, € evidente a estreita articulagao entre avancos que sejam obtidos nos dois primeiros abjetivos e 0 terceiro objetivo. Se recursos sio transferidos, se avangam a luta e organizagio popu- lar, se se fragiliza o clientelismo, o resultado ¢, necessariamente, que se conquistam nova importantes posigdes para golpear ainda mais duramente os mecanismos perversos através dos locais reproduzem seu poder, A\ quais coaliz6 particulares também devern ser desenvolvidas, na esfera regional (metropolitana, mas nao apenas), nacional e internacional, para criar alternativas de aliangas e acordos de cooperaciio que favoregam a coalizio popular e o fortalecimento de seu projeto, em detrimento da velha coalizio dominante. ‘intetizando, a aposta é que € possivel tragar objetivos que sejam, simultanemanete, ambiciosos e realistas, orientando um projeto de revolugao urbana permanente. Evidentemente, esta revolugao urbana permanente se expressa € combina os miltiplos objetivos c escalas de maneira dife- renciada em cada cidade, respondendo as formas especificas da desigualdade na cidade, a sua morfologia, & configuracdo das coalizées domi- nantes. & posigio da cidade na regiao e no pais, a experiéncia de uta e organizacio populares e de outros setores oprimidos: 6 que significa que a revolucio urbana ¢ algo a ser inventado ¢ reinventado a cada momento. em cada cidade. Bibliografia Anderson, Benedict (1999) - “As promessas do Estado-nagio para o inicio do século”: in Heller Agnes et al. - A crise dos paradigmas em ciéncias sociais ¢ os desafios para o século XX1. Rio de Janeiro, Contraponto. Associazione Ya Basta (1997) - Un monde .... des mondes. Meeting européen a Venice fe 12-13- 14 Septembre 1997: 3.1.8.4 Benjamin et al. (1998) - A opeao brasileira. Rio de Janeiro, Contraponto, 1998. Borja. Jordi: Castells, Manuel (1997) - Local y glo- bal: la gestion de las ciudades en fa era de la informacién. Madrid, Habitat/Taurus. Bottazzi. Gianfranco (1996) - “On est toujours Je veal” de quelque “global”. Pour unc Ure jdéfinition de espace local; in Espaces ct Socigtés. n! 82-83. p.69-92. Bourdieu, Pierre (1998) - Contre-feux: Propos pour servir & la résistance contre Vinvasion néo- libérale. Paris, Liber Raisons d’Agir; 1998 Cooke. Philip (1989) - Locality-theory and the pov- erty of ‘spatial variation’; in in Antipode, 21:3. pp. 261-273 Cox. Kevin and Mair, Andrew (1989) - “Levels of abstraction in locality studies”; in Antipode, vol. 21.n, 2, september. p.121- Dunean, Simon (1988) - “What is locality”: in Peet. R. & Thrift. (eds); New models in geogra- phy; London, Alien & Unwin, 1988, pp. 221- Duncan. Simon and Savage, Mike (1989) - “Space, scale and locality”; in Antipode, 21:3, pp. 179- 206, Fiori, José Luis (1998) - ~O capitalismo e suas vias de desenvolvimento”: in Haddad, Fernando (org.}; Desorganizando 0 consenso: nove entrevista com intelectuais esquerda Paulo/Petrdpolis. Editora Fundagio Perseu Abramo/Vozes: 1998. Franco, Augusto de (1998) - "Desenoviimento lo- Sa0 cal integrado ¢ sustentavel: dez consensos” in Proposta. ano 27, setembro/novembro. n° 78. pp.6-19. Harvey, David (1995). “L'accumulation flexible par Vurbanistation: reflexions sur le “post- modernise” dans la grande ville américaine™; in Futurs Antéricurs. n, 29, pp. 121-145. Harvey, David (1997) - Justice. nature and geogr: phy of difference. Oxford. Blackwell Publish- cers, 1997. anni, Octavio (1997) - A sociedade neito, Civilizagiio Brasileira, 1997, Oliveira. Francisco de. Elegia para uma re(1i Santos. Milton (2000) - Por uma outr lobal. Rio de Ja- 150 do pensamento tnico & consciéncia universal. Rio de Janeiro, Editora Record. Smith, Neil (1990) - Uneven development. Nature, Basil Blackwell Publisher, 1990. Smith, Neil (1993) - “Homeless/global: scal a places”: in Bird et alii (eds); Mapping the fu- lures; local cultures, global change. London/ capital and the production of space. Oxford. New York, Routledge, pp. 87-119 ‘Swyngedouw, E. (1997) - “Neither global nor local: “glocalization’ and the politics of scale”; in Kewin R, Cox (ed.); Spaces of globalization: reasserting the power of the local. New York / London, The Guilford Press, pp. 137-166. Vainer, Carlos (1998) ~ “Entrevista”; in Proposta, ano 27, setembro/novembro, n!’78, pp. 40-47.

You might also like