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APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO NECESSARIA PERANTE O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PORTUGUES E O ART, 21.° DO CODIGO CIVIL DE MACAU (*) Pelo Prof. Doutor Luis de Lima Pinheiro (*) SUMARIO: Introdugao I. _Asnormas de aplicagao necesséria vigentes na ordem juridica interna A) Conceito de norma de aplicagdo necesséria B) Determinagdo das normas de aplicago necesséria C) O art. 21.° do Cédigo Civil de Macau A relevancia de normas imperativas estrangeiras A) Identificagao do problema B) Principais teses sobre a relevancia das normas imperativas estrangeiras ©) Posigdo adoptada de iure condendo D) Posigao adoptada de iure constituto E) Relevancia de normas imperativas de terceiros Estados no quadro do Direito material da lex causae Introdugao O tema das normas de aplicago necessdria tem merecido grande atengdo por parte dos internacionalprivatistas portugueses, (*) 0 presente texto corresponde, com pequenas alteragSes, & comunicago apre- sentada nas Jomadas de Direito Civil e Comercial: o Cédigo Civil e o Cédigo Comercial de Macau, que se realizaram em Macau em Setembro de 1999. (**) Professor da Faculdade de Direito de Lisboa 24 LUufs DE LIMA PINHEIRO como dao conta as dissertagdes de doutoramento recentemente apresentadas ('). O tema constitui o objecto da dissertaco do Pro- fessor MARQUES Dos SANTOS (?) e € versado nas dissertagdes dos Professores Moura Ramos (3) e HELENA Brito (4). Também na minha dissertacgio sobre 0 Contrato de Empreendimento Comum (Joint Venture) em Direito Internacional Privado tive ocasiao de apresentar, por forma sucinta, posi¢des nesta matéria (°). Esta atengao € justificada. O peso das normas de aplicacao necess4ria na regulacdo das situacdes “privadas” internacionais é discutido, como é discutido se existe aqui uma alternativa ao pro- cesso conflitual. Mas mesmo quem entende, como é 0 meu caso, que as normas de aplicagao necesséria sio, pelo menos na ordem juridica portuguesa, excepcionais, e que ainda constituem um pro- cesso conflitual de regulagao, nao nega a importancia tedrica e o interesse prético do tema. Do ponto de vista tedrico, é um tema que pde em jogo a con- ciliag&o de tendéncias unilateralistas com os sistemas conflituais de base bilateralista e que, a meu ver, constitui um terreno de elei- ¢4o para a aplicagao da metodologia jurfdica no quadro do Direito Internacional Privado. No plano pratico, é decisivo saber se e sob que condigdes um Orgao de aplicagéo do Direito pode e deve respeitar a pretensio de () Anteriormente ver ISABEL. Dz MaGaLHAes CoLLaco — Da Compra e Venda em Direito Internacional Privado, Aspectos Fundamentais, vol. I (Diss. Doutoramento), Lis- boa, 1954, 315 e segs.; Id. — Prefécio a Manuel Cores Rosa — Da questdo incidental em Direito Internacional Privado, Lisboa, 1960, XXII; Ferrer Correia — “Nuevos rum- bos para el derecho internacional privado”, in Estudos vdrios de direito (1982), 223-254, Coimbra, 1976, 240 e segs.; Id. — “Consideragdes sobre o método do Direito Intemnacio- nal Privado”, in Estudos Varios de Direito, 309-398, 1982, 395 e segs.; e, mais recente- mente, Id. — A Venda Internacional de Objectos de Arte, Coimbra, 1994, 49 e segs.; Moura Ramos — Direito Internacional Privado e Constituigdo — Introdugdo a uma and- lise das sua relagdes, Coimbra, 1980, 114 e segs.: Id. — Aspectos recentes do Direito Internacional Privado portugués (sep. BFDC — Est. Afonso QUEIRO) Coimbra, 1987, 16 e seg. @)_ As Normas de Aplicagao Imediata no Direito Internacional Privado. Esbogo de Uma Teoria Geral, 2 vols., Coimbra, 1991. @) Da Lei Aplicdvel ao Contrato de Trabalho Internacional, Coimbra, 1991. ()_A Representacdo nos Contratos Internacionais, Coimbra, 1999. ©) Lisboa, 1998. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 25 aplicabilidade de normas que nao integram a ordem jurfdica com- petente segundo o sistema de Direito de Conflitos. O Cédigo Civil de Macau contém uma disposigo inovadora nesta matéria, que consta do art. 21.°. Dai que me tenha parecido particularmente oportuno ocupar-me deste tema nas Jornadas de Direito Civil e Comercial: 0 Cédigo Civil e o Cédigo Comercial de Macau, organizadas pela Faculdade de Direito da Universidade de Macau. I. As normas de aplicacao necesséria vigentes na ordem juri- dica interna A) Conceito de norma de aplicagéo necessdria Tradicionalmente as situacdes “privadas” internacionais sdo reguladas pelo sistema de Direito de Conflitos. Em ordens juridicas como a portuguesa 0 sistema de Direito de Conflitos é formado essencialmente por um conjunto de normas de conflitos bilaterais e de normas sobre a interpretagao e aplica- ¢40 destas normas de conflitos. No Direito portugués estas normas sao, em geral, de forte legal e constam principalmente do Cédigo Civil e de convengées internacionais de unificagao do Direito de Conflitos. Portanto, a aplicagdo de uma norma material a uma situacio privada internacional depende, em princfpio, da sua integragao na ordem juridica competente segundo o sistema de Direito de Con- flitos. Mas existem outros modos de regulagaio das situagdes “priva- das” internacionais. Desde logo, ha normas de Direito material especial, i.e., nor- mas materiais criadas especificamente para situagdes internacio- nais, cuja aplicacao, por resultar de normas de conflitos especiais, € independente do sistema de Direito de Conflitos. A moderna doutrina internacionalprivatistica tem chamado a atengdo para a existéncia de normas de Direito comum cuja apli- cagdo a situagdes “privadas” internacionais também nao depende do sistema de Direito de Conflitos. Fala-se a este respeito de nor- 26 LUufs DE LIMA PINHEIRO mas autolimitadas e de normas de aplicacg4o imediata ou neces- saria. E autolimitada aquela norma material cuja esfera de aplicagao No espaco nao corresponde a que resultaria da actuacao do sistema de Direito de Conflitos (5). Isto pode resultar, em primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos especial (explicita ou implicita). Tal norma de conflitos é unilateral e ad hoc porque se reporta exclusivamente a uma norma material determinada da ordem juridica do foro (7) A autolimitagao também pode ser o produto de uma valoracgio casuistica, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstancias do caso (8). Se a norma autolimitada reclama uma esfera de aplica- g4o mais vasta do que aquela que decorreria do Direito de Con- flitos geral trata-se de uma norma de aplicag4o imediata ou neces- sdria (°). Para FRANCESCAKIS seriam normas de aplicacao imediata as normas “cuja observagdo é necessdria para a salvaguarda da orga- nizagao politica, social ou econédmica do pafs” (!°) Com efeito, a actual importancia das normas de aplica- gdo necessdria est4 intimamente relacionada com o fendmeno da ordenagao e intervencao estadual por via normativa nas relagdes privadas. () Sobre as diferentes acepgdes da expressio “norma autolimitada” ver Lima Prxneiro (n. 5) 771 com mais referéncias. (7) Sobre estas normas unilaterais ad hoc ver bibliografia cit. por Lima PINHEIRO (n. 5) 774 n. 119 ¢, ainda, Nevnaus — Die Grundbegriffe des internationalen Privatrechts, 2 ed., Tubinga, 1976, 105 € segs., seguido por KRoPHOLLER — Internationales Priva- trecht, 3.* ed., Tubinga, 1997, 94 e seg. @) Ver WENGLER — Internationales Privatrecht, 2 vols., Berlim e Nova Iorque, 1981, 89 ¢ seg., 93 p. 781 € aditamento p. 1292 e Lima Prvneiro (n. 5) 774. ©) No mesmo sentido, Marques Dos Santos (n. 2) 697. (9) “Conflits de lois (principes généraux)”, in Rép. dr. int., t. 1, Paris, 1968, n° 137, Para um critério material de qualificagdo das normas de aplicagdo necessé- fia apontam igualmente WENGLER (n. 8) 88 € seg., Marques Dos Santos (n. 2) 927 segs., 934, 940 e seg. 1033, cp. 959 e Moura Ramos (n.° 3) 667 € segs., cp. 671 e seg. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 7 Mas nem sempre as normas de aplicagio necessdria sio expressao do intervencionismo estadual. Nao parece possivel caracteriz4-las pelo seu contetido e fim ("'). Se, por indicagio expressa do legislador, uma norma se sobrep6e a ordem juridica chamada pelo Direito de Conflitos geral, esta norma é de aplicagao necesséria, independentemente de quaisquer outras consideracées. Por exemplo, o DL n,° 275/93, de 5/8, com a redacgo dada pelo DL n.° 180/99, de 22/5, determina que “Todos os contratos relativos a direitos reais de habitagao periddica e a direitos de habi- ta¢ao turistica em empreendimentos turisticos sitos em Portugal, por perfodos de tempo limitados em cada ano, ficam sujeitos as disposigdes do presente diploma, qualquer que seja o lugar e a forma da sua celebracao” (art. 60.°/7). Segundo a interpretacdo mais correcta ('7), isto significa que as disposi¢des materiais do diploma devem ser aplicadas qualquer que seja a lei reguladora do contrato, quando o imével estiver situado em Portugal. Estas disposigdes so, por conseguinte, nor- mas de aplicagdo necesséria. Todavia, contrariamente ao que se verifica com o Direito material especial, sao diminutos os casos em que 0 legislador esta- belece uma norma de conflitos ad hoc para normas ou leis indivi- dualizadas de Direito comum. Daf que muitos autores coloquem 0 acerto no estabelecimento da “autolimitagao” por via interpreta- tiva, principalmente com recurso a um critério teleolégico que atenda ao fim politico-juridico prosseguido pela norma material. Esta “autolimitagéo” por via interpretativa suscita, porém, questdes muito delicadas. Parece muito duvidoso que a interpretagéo de uma norma possa ser conclusiva quanto 4 sua esfera de aplicagdo no espaco. (") Neste sentido Loussouarn — “Cours général de droit international privé”, RCADI 139 (1973) 271-385, 328 e seg.; ScHWANDER — Lois d'application immédiate, Sonderankniipfung, IPR — Sachnormen und andere Ausnahmen von der gewohnlichen Ankniipfung im internationalen Privatrecht, Zurique, 1975, 283; Eon Lorenz — “Die Rechtswahlfreiheit im internationalen Schuldvertragsrecht", RIW 33 (1987) 569-584, 578 € seg,; Viscuer — “Zwingendes Recht und Eingriffsgesetze nach dem schweizerischen IPR-Gesetz”, RabelsZ 53 (1989) 438-461, 446; Scuric — “Zwingendes Recht, ‘Ein- griffsnormen’ und neues IPR”, RabelsZ 54 (1990) 218-250, 226 e segs.; MAYER — Droit international privé, 5.* ed., Paris, 1994, 90. () Conforme com o art. 9.° da Dir. 94/47/CE que o DL n.° 180/99 veio transpor. 28 LUfS DE LIMA PINHEIRO O contetido e o fim da norma podem fornecer indicagées impor- tantes para 0 efeito, mas ndo parece que a interpreta¢ao da norma material possa por si conduzir a uma solucdo conflitual ('). A formulagao de uma norma de conflitos ad hoc ou uma valo- ta¢do casuistica sobre a aplicabilidade da norma no espago passam necessariamente por um raciocinio conflitual, por uma avaliacao dos lagos que a situag&o estabelece com os diversos Estados em presenca, que é exterior ao processo interpretativo da norma mate- rial a que diz respeito. Por exemplo, algumas decisées dos tribunais portugueses tém entendido que as normas sobre despedimentos contidas na lei por- tuguesa sao aplic4veis mesmo que o contrato de trabalho seja regido por uma lei estrangeira. Isto decorre da considera¢ao do fim de protecgdo destas normas e da sua relagdo com os direitos fun- damentais consagrados na Constitui¢éo. Mas nao se encontra esclarecido qual o elemento ou elementos de conexao de que depende a aplicag&o destas normas. Enquanto uma decisdo afirma que elas séo sempre aplicdveis quando se trate de trabalhadores portugueses, outras decisGes, relativas a trabalhadores portugueses de consulados portugueses, ndo seguem o mesmo entendimento. necessdrio um raciocinio conflitual, que valore o signifi- cado dos diferentes elementos de conexio. No exemplo dado, parece que a execugao do contrato de tra- balho em Portugal € uma ligacao suficiente para desencadear a aplicagao destas normas. Perante a Convengdo de Roma sobre a (3) Ver Ravet-Drosnic — The Conflict of Laws. A Comparative Study, vol. 1, 2 ed., 1958, 102 e seg.; Wenater — “The General Principles of Private Intemational Law”, RCADI 104 (1961) 271-469, 358 e seg. € n. 10; Gerhard Kecet — “The Crisis of Conflict of Laws”, RCADI 112 (1964) 91-267, 198 e segs.; Id. — “Die selbstgerechte Sachnorm”, in Gedachinischrift fr Albert EHRENZWEIG, org. pot Erik Jayme e Gerhard Keoex, 51-86, Karlsruhe e Heidelberga, 1976, 78, assinalando que extrair uma norma de conflitos de uma norma material € dificilmente possfvel, pois que a norma de conflitos é politico-juridicamente um aliud; Scuuria — Kollisionsnorm und Sachrecht. Zu Struktur, Standort und Methode des internationalen Privatrechts, Berlim, 1981, 57. Nao excluindo em absoluto essa possibilidade, mas entendendo que s6 se verifica em casos excepcionais, ‘Cavers — “Contemporary Conflicts Law in American Perspective”, RCADI 131 (1970) 75-308, 122 € segs.; Prerre Lative — “Tendences et méthodes en droit international privé”, RCADI 155 (1977) 1-425, 120 e segs.; Ferrer Correia — Direito Internacional Privado. Alguns problemas, Coimbra, 1981, 38 ¢ segs. ¢ 60 € segs., maxime n.° 31; MAR. (Ques Dos SANTOS (n. 2) 381 € segs. € 655. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 29 Lei Aplicdvel 4s Obrigagdes Contratuais isto j4 decorre da norma de conflitos geral (art. 6.°). Mas Moura Ramos defende que essas normas também sao aplicdveis quando residentes habitualmente em Portugal sejam contratados através de estabelecimentos situa- dos em Portugal para prestarem trabalho no estrangeiro (!*), Neste caso essas normas actuaréo como normas de aplicagao necesséria ao abrigo do art. 7.°/2 da convengao. Tenho por certo que essas normas j4 nao sero aplicdveis necessariamente se trabalhadores portugueses ou residentes habitualmente em Portugal forem con- tratados por estabelecimentos situados no estrangeiro para presta- rem trabalho no estrangeiro. As normas de aplicagao necesséria nao constituem pois uma alternativa ao processo conflitual ou de regulacdio indirecta ('5), mas uma manifestagao de um certo tipo de unilateralismo ('®), que coloca o problema do Direito aplicdvel em fungao de normas indi- vidualizadas (1). Este modo de colocar 0 problema aproxima-se ('4) CE. (n. 2) 790 e “Contratos internacionais e protecgo da parte mais fraca no sistema juridico portugués”, in Contratos: Actualidade e Evolugdo, Porto, 1997, 331-357, 352. Sobre 0 ponto ver ainda Lima Pineiro — Direito Internacional Privado — Parte Especial (Direito de Conflitos), Coimbra, 1999, 188 e seg. ('5) Cp. no sentido de serem uma alternativa ao “método conflitual”, FRANCESCA- xis (1. 10) n,2* 23 ¢ segs., 64 € segs., 89 ¢ segs. ¢ 124; BaTirFoL — “L'avenir du droit inter- national privé”, in Choix d'articles, 315-331, 1973, 320 e seg.; Id. — “Actualité des inté- réts du droit international privé”, in FS Konrad ZWEIGERT, 23-35, 1981, 24 e seg.; Id. — “De T'usage des. principes. en droit international privé”, in Est. Ant6nio FERRER COR- REIA, 103-119, Coimbra, 1986, 116 (mas cp. Id. L’avenir... 327 e “L’état du droit inter- national privé en France et dans l’europe continentale de ’ouest”, Choix d’articles, 11-31, 1973, 24); Marques Dos Santos (n. 2) 37, 816 e segs., 840 € seg. ¢ 963. Ver a critica de Picont — Ordinamento competente e diritto internazionale privato, Milo, 1986, Le segs. (8) Ver também Gorior — “Le renouveau de la tendance unilatéraliste en droit international privé”, R. crit. 60 (1971) 1-243 e 415-450, 211 e segs.; Virta — “Diritto intemazionale privato”, in Dig priv. civ., vol. VI, 1990, n. 24; Marques Dos SaNTos (n. 2) 1040, 1048 ¢ seg. e 1061; Viscer — “General Course on Private International Law”, RCADI 232 (1992) 9-256, 42 e seg.; BATIFFOL-LAGARDE — Droit international privé, vol. I—8.*ed., Paris, 1993, 425 e segs.; e, PicoNe — “Caratteri ed evoluzione del metodo tradizionale del conflitti di leggi”, RDI 81 (1998) 5-68, 57 e seg. () Como escrevi em A Jurisprudéncia dos Interesses e.0 Direito Internacional Privado (relat6rio de mestrado policopiado), Lisboa, 1986, 65, “Nao estaré aqui de todo ausente um raciocfnio de DIP, mas é um raciocinio de todo subordinado a uma especial vinculagao do fim de uma norma a uma dada realidade espacial e que, como tal, parte da norma material e no da relago juridica.” 30 LUfS DE LIMA PINHEIRO daquelas correntes de pensamento, fortemente representadas entre Os internacionalprivatistas estadounidenses, que favorecem uma considera¢ao do fim prosseguido com normas e regimes juridicos individualizados ('8). Se a aplicagao da norma material do foro depende de uma norma de conflitos ad hoc ou de uma valorago conflitual casuis- tica, esta norma nunca é, por certo, imediatamente aplicdvel ('9), Trata-se de um processo de regulagao indirecta. A diferenga relati- vamente 4 regulagao por via do sistema de Direito de Conflitos é técnica: resulta da substituicdo deste sistema por normas de confli- tos ad hoc ou por uma valoragao conflitual casuistica. Por esta razo prefiro a expressao “norma de aplicagdo neces- séria” a “norma de aplicago imediata”. B) Determinagao das normas de aplicagéo necessdria A questao fundamental que se coloca nesta matéria é a de saber quando € que o intérprete deve entender que determinada norma ou lei é de aplicagao necesséria. Se houver indicagao expressa do legislador o problema é de facil resolugZo. A norma de conflitos especial prevalece sobre o Direito de Conflitos geral. Na falta de solugdo expressa cabe ao intérprete demonstrar que se verifica um dos seguintes pressupostos: — a vigéncia de uma norma de conflitos especial implicita; — a necessidade de criagdo de uma solugiio conflitual espe- cial 4 luz da teoria das Jacunas da lei; (Ver Cavers — “A critique of the choice-of-law problem”, Harv, L. R. 47 (1933) 173-208; Id. — “Contemporary Conflicts Law in American Perspective”, RCADI 131 (1970) 75-308, 122 € segs. ¢ 137 © segs.; Curr — Selected Essays on the Conflict of Laws, Durham, 177 € segs., 186 ¢ seg. e 383; €, EHRENZWEIG — Private International Law, vol I, Leyden ¢ Nova lorque, 1967:5.9 e 64. Sobre este relacionamento, ver Lima PINHEIRO (n. 17) 62.¢ segs.; MARQUES os Sanros (n. 2) 332; €, segs. ¢ 570 ¢ segs. e GueD! — “The Theory of the Lois de Police, A Functional Trend in Continental Private International Law — A Comparative Analysis With Modem American Theories”, Am. J. Comp. L. (1991) 661-697. (9) Of Tousiana — Le domaine de la loi du contrat en droit international privé (contrats internationaux et dirigisme étatique), Paris, 1972, 230 e segs.; DeBy-GéRarp — Le role de la regle de conflit dans le réglement des rapporis internationaux, Paris, 1973, 37 © segs. ¢ 48 e segs.; NeuHAus (n. 7) 105 e segs., seguido por KroPHouLer (n. 7) 94 e seg.; Pure Lative (n. 11) 106; e, ScHuRiG (n. 9) 233 e segs. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 31 — a vigéncia de uma cldusula geral que permita colocar o problema da aplicabilidade da norma material em fungao das circunstancias do caso concreto. Como ja se assinalou, sao diminutos os casos em que o legis- lador portugués estabeleceu expressamente uma norma de confli- tos especial para normas de Direito material comum. A demonstragao da vigéncia de uma norma de conflitos espe- cial implicita ou da necessidade da criacao, pelo intérprete, de uma solugao especial, est4 sujeita a directrizes metodoldgicas estritas. A norma de conflitos implicita deve inferir-se das proposigdes legais ou de praticas acompanhadas de uma convicgdio de vincula- tividade. Na falta de norma de conflitos implfcita, a criagio de uma solugao conflitual pelo intérprete pressupde a revelagdo de uma lacuna que deva ser integrada dessa forma. Na maioria dos casos, pelo menos, s6 pode tratar-se de uma lacuna oculta, porque a situa- ao se encontra em principio abrangida por uma norma do sistema de Direito de Conflitos. Por conseguinte, a revelagio da lacuna pressupée uma interpretacAo restritiva ou uma reducio teleolégica da norma de conflitos geral. E € uma questao em aberto até que ponto no Direito Interna- cional Privado portugués vigora uma cléusula geral que permita ao intérprete uma valoracao conflitual casuistica. Perante a omissio do legislador e a tibiez da jurisprudéncia nao vejo fundamento para a vigéncia desta clausula geral. De onde decorre que, na falta de norma de conflitos especial ou de revelagao de uma lacuna que deva ser integrada mediante a criag&o de uma solugao conflitual especial, o intérprete no pode atribuir a uma norma material o cardcter de norma de aplicacao necessdria. Esta norma s6 pode relevar através da cléusula de ordem piblica internacional, como limite a aplicagao do Direito estrangeiro. Mas para isso é necessdrio que se trate de uma norma fundamental da ordem juridica portuguesa e que o resultado con- creto a que conduza o Direito estrangeiro competente seja mani- festamente incompativel com esta norma. Dai que as normas de aplicagdéo necessdria sejam excepcio- nais. Nao se encontra aqui, portanto, uma alternativa global ao sis- 32 LU{S DE LIMA PINHEIRO tema de Direito de Conflitos, mas um limite ao funcionamento deste sistema que s6 se verifica em casos excepcionais. Em matéria de contratos obrigacionais, vigora na ordem juri- dica portuguesa o art. 7.°/2 da Convencgao de Roma sobre a Lei Aplicdvel As ObrigagGes Contratuais, que permite a sobreposi¢ao das normas de aplicagao necesséria do foro a lei designada pelas normas de conflitos da convengao. Também o art. 16.° da Convengao da Haia sobre a Lei Apli- cAvel aos Contratos de MediagAo e 4 Representago permite a apli- cacao de normas de aplicacao necessdria do Estado com o qual a situag4o apresente uma conex4o efectiva (tanto pode ser o Estado do foro como um terceiro Estado). Estes preceitos nada dispdem sobre a determinacao das nor- mas de aplicagao necessaria e, por conseguinte, nao vém alterar a posigdo assumida a este respeito em tese geral (7°) C) Oart. 21.° do Codigo Civil de Macau O Cédigo Civil de Macau contém uma disposi¢do inovadora sobre as normas de aplicacio necessdria vigentes na ordem interna. Sob a epfgrafe “Normas de aplicagao imediata” 0 art. 21.° deter- mina que “As normas da lei de Macau que pelo seu objecto e fim especificos devam ser imperativamente aplicadas prevalecem sobre os preceitos da lei exterior designada nos termos da seccao seguinte.” A “Nota de Abertura” e a “Breve Nota Justificativa” do Cédigo informam que a Professora ISABEL DE MAGALHAES COL- LACO colaborou decisivamente na preparacdo das normas de Direito Internacional Privado, o que permite supor que a redaccaio do art. 21.° se deve a esta insigne internacionalprivatista. Nao cabendo fazer aqui uma exegese aprofundada desta dis- posig&o, assinalar-se-4 que ela evoca, por um lado, o art. 7.°/2 da supracitada Convengao de Roma, que se refere as “regras do pafs () Ver também Lima Prsseiro (n.° 5) 776 e, relativamente & Convengao da Haia, Kansten — “Explanatory Report”, in Conférence de la Haye de droit international privé. Actes et documents de la treiziéme session, vol. IV, 1979, n.° 94. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO. 33 do foro que regulem imperativamente 0 caso concreto, indepen- dentemente da lei aplicdvel ao contrato”. Em ambos os preceitos aflora uma ideia de imperatividade internacional: trata-se de normas que além de materialmente imperativas, também reclamam aplicagio a situagdes internacio- nais independentemente da lei aplicdvel segundo o Direito dc Con- flitos geral (?'). O art. 7.°/2 da convengao é, a este respeito, mais explicito. O art. 21.° do cédigo limita-se a referir as “normas que pelo seu objecto e fim especfficos devam ser imperativamente apli- cadas”. Esta “aplicacao imperativa” j4 contém em si a ideia de aplicacaio independente do sistema de Direito de Conflitos. O art. 21.° do cédigo também tem um alcance diferente do art. 7.°/2 da Convencao de Roma. Esta ultima disposi¢ao limita-se a permitir a sobreposi¢o das normas de aplicagéo necesséria do foro a lei designada pelas normas de conflitos da convengao. Como j4 se assinalou ela nada dispée sobre a determinagdo das normas de aplicagao necessdria. J4 o art. 21.° do cédigo admite que a impera- tividade internacional da norma seja inferida do seu objecto e fins. Por este lado, a disposigdo evoca o art. 17.° da Lei de Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado, de 1995. Segundo este artigo, “E ressalvada a prevaléncia sobre as disposi- gOes que se seguem das normas italianas que, em consideragao do seu objecto e do seu fim, devam ser aplicadas nao obstante 0 cha- mamento da lei estrangeira” (7). De disposigées desta natureza resulta, segundo me parece, que o intérprete ficaré colocado numa posigao diferente daquela que foi atrds definida perante o Direito Internacional Privado por- tugués. O intérprete é autorizado a aplicar uma norma material a uma situagao internacional sempre que, partindo da sua interpreta- ¢4o e perante o conjunto das circunstancias do caso concreto, con- clua que a norma “reclama aplicagdo”. Apesar do acento colocado @!) Ver Max Keiter-Kurt Steur — Allgemeine Lehren des internationalen Priva- trechts, Zurique, 1986, 244 € seg. (@) “E farta salva la prevalenza sulle dispozioni che seguono delle norme italiane che, in considerazione del loro oggetto e del loro scopo, debbono essere applicate nonos- tante il richiamo alla legge straniera”. Ver também o art. 18.° da Lei sufga de Direito Inter- nacional Privado e 0 art. 3076.° do Cédigo Civil do Quebeque (com a redacgio dada em 1991). 34 LU{S DE LIMA PINHEIRO no objecto e fins da norma, creio, pelas raz6es atrds expostas, que € sempre necess4rio um raciocfnio conflitual 7). Assim, uma dis- posi¢&o desta natureza vem a traduzir-se numa modalidade de cl4usula geral que permite uma valoracao conflitual casuistica. Isto nao deve significar a aplicacgao sistematica de regras imperativas do foro como normas de aplicacéo necesséria. A sobreposi¢ao de normas materiais do foro ao Direito estrangeiro competente segundo o sistema de Direito de Conflitos contraria os fins prosseguidos por este sistema. Uma norma s6 deve ser quali- ficada, por esta via, como de aplicacao necess4ria, quando haja raz6es suficientemente ponderosas para justificarem um sacrificio dos fins prosseguidos pelo sistema de Direito de Conflitos. E tam- bém necessério que a “pretensdo de aplicabilidade” no caso resulte claramente da interpretagao da norma, designadamente a luz da intengo legislativa, e de valoracées conflituais compativeis com 0 sistema de Direito de Conflitos (*4) Como assinala, perante o Direito italiano, TREVES, o critério de identificagao das normas de aplicagaio necesséria deve ser res- tritivo, por forma que esta normas continuem a constituir uma excepcao (7). II. A relevancia de normas imperativas estrangeiras A) Identificagéo do problema A discussao sobre as normas de aplicacao necessaria veio sus- citar a questdo de saber se, e em que termos, deverd ser dada rele- vancia a normas materiais de ordenamentos estrangeiros que nao sao os chamados pelo sistema de Direito de Conflitos a regular a situacao. (@) Cp. Tullio Treves — “Articolo 17”, in Riforma dei sistema italiano di diritto internazionale privato: legge 31 maggio 1995 n.° 218 — Commentario, RDIPP 31 (1995) 986-990. @*)__Ver também as consideragdes tecidas por Van Hecke — “Intemational Con- tracts and Domestic Legislative Policies”, in FS F. A. MANN, Internationales Recht und Wirtschaftsordnung. International Law and Economic Order, Munique, 1977, 183-191, 186 e Viscuer — “Art. 18” in IPRG Kommentar, Zurique, 1993, n.° 3. @) Op. cit. (n. 23) 989. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO. 35 As normas imperativas estrangeiras s6 podem ser aplicadas na ordem juridica local por forga do titulo de aplicagdo que uma pro- posi¢do vigente nesta ordem juridica lhes conceda. A esta luz, cabe distinguir entre normas imperativas da lex causae — a lei designada pelo sistema de Direito de Conflitos — e normas imperativas de terceiros ordenamentos. Poderd pensar-se que as normas imperativas da lex causae sio aplicdveis no quadro do titulo de aplicagao conferido a essa lei pelas normas de conflitos gerais. Mas ha quem defenda que a apli- cabilidade de certas categorias de normas imperativas, designada- mente as chamadas “normas de intervengao”, pde em jogo “inte- resses conflituais especfficos”, diferentes dos que sao tutelados pelas normas de conflitos gerais, devendo por isso depender exclu- sivamente de normas de conflitos especiais (7). Com efeito, as normas de conflitos especiais limitam o dom{i- nio de aplicacdo das normas de conflitos gerais (77). Isto teré por consequéncia a inaplicabilidade das normas imperativas da lex causae que sejam reconduziveis 4 categoria normativa prevista na norma de conflitos especial. Por exemplo, caso se entenda que, pelo que toca aos seus efei- tos sobre a validade de um contrato, sao aplic4veis as normas de defesa da concorréncia do Estado em que ocorram as praticas res- tritivas da concorréncia ou em que se produzam os seus efeitos ("8), nao serao chamadas as normas de defesa da concorréncia do Direito regulador do contrato, quando nao seja o do mesmo Estado. @) Ver Keoet (n. 13 (1976]) 82 € seg. e “Die Rolle des dffentlichen Rechts im internationalen Privatrecht”, in FS Ignaz SEIDL-HOHENVELDERN, Volkerrecht, Recht der Internationale Organisationen. Weltwirtschaftsrecht, 243-278, Col6nia et al., 246 € 250 € segs.; Scuuic (n. 11) 217 e 226 e segs.; ScunypER — Wirtschaftskollisionsrecht. Sonderankniifung und extraterritoriale Anwendung wirtschaftsrechtlicher Normen unter besonderer Beriicksichtigung von Marktrecht, Zurique, 1990, 244 ¢ segs.; e, BASEDOW — Recenséo a KREUZER (Zum einflufifremdstaatlicher Eingriffsnormen auf private Rechts- geschdfie, Heidelberga, 1986), JZ (1986) 1053-1054, 1054 e “Conflicts of Economic Regulation”, Am. J Comp. L. 42 (1994) 423-447, 435 e segs. Ver ainda Lima PINHEIRO (n. 5) 781 e seg. com mais referéncias. @) O mesmo se verificando com as solugées conflituais ad hoc que, na falta de norma de conflitos especial, sejam criadas pelo intérprete. @*) Designadamente por via de uma bilateralizagao, limitada aos efeitos do Direito da Concorréncia sobre situagdes “privadas”, do n.° 2 do art. 1.° do DL n° 371/93, de 29/10. 3% LUIS DE LIMA PINHEIRO S6 nao ser4 assim se for configurada uma conexdo cumula- tiva, por forma a que tais normas imperativas sejam aplicdveis quer quando integram a /ex causae quer quando vigoram na ordem juri- dica do Estado que apresenta a conex4o especial com a situagao. Adiante veremos até que ponto devem ser consagradas solu- ges deste tipo. Quanto as normas imperativas de terceiros ordenamentos, coloca-se a questo de saber se a ordem juridica local lhes confere um titulo de aplicagao mediante proposigdes juridicas especiais ou se, de outro modo, permite a sua tomada em consideragao. Um exemplo importante de regra sobre a relevancia de nor- mas imperativas de terceiros ordenamentos € 0 n.° 1 do art. 7.° da Convengio de Roma sobre a Lei Aplicdvel 4s Obrigagdes Contra- tuais (9): “Ao aplicar-se, por forga da presente Convengio, a lei de um determinado pais, pode ser dada prevaléncia as disposi- ges imperativas da lei de outro pais com o qual a situagao apresente uma conex§o estreita se, e na medida em que, de acordo com o direito deste tiltimo pais, essas disposigdes forem aplicdveis, qualquer que seja a lei reguladora do con- trato. Para se decidir se deve ser dada prevaléncia a estas dis- posigdes imperativas, ter-se-4 em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequéncias que resultariam da sua aplicago ou da sua nao aplicagao.” Assinale-se que esta norma sé confere relevancia as normas imperativas de terceiro Estado que sejam de aplicacdo necessdria (visto que sé se refere as disposigdes que sejam aplicaveis qualquer que seja a lei reguladora do contrato). Se as normas imperativas do terceiro Estado forem aplicdveis a titulo de Direito regulador do contrato 0 art. 7.°/1 nao lhes confere relevancia. Isto exprime a tendéncia para encarar o problema da relevancia de normas impe- tativas de terceiros Estados como uma das vertentes do tema das normas de aplicagao necessaria. @) Sobre este preceito ver Marques Dos Santos (n. 2) 1020 ¢ segs. ¢ Lima Prxuetro (n. 5) 778 e seg. e bibliografia af referida. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 37 Esta atitude nao se me afigura justificada: por que razdo se ha-de tratar diferentemente as normas imperativas de terceiros Estados, que apresentam uma ligagio significativa com a situacao, conforme na ordem juridica estrangeira sejam ou no encaradas como normas de aplicag&o necesséria? A distingao conduzir4, designadamente, a que normas imperativas de contetido e finali- dade semelhantes e que sao consideradas aplicdveis no caso pelo Direito Internacional Privado do sistema de onde promanam sejam tratadas de modo diferente, conforme a sua aplicagao dependa ou nao, segundo o mesmo Direito Internacional Privado, de integra- rem © estatuto obrigacional (°°) O que nao se afigura aceitavel. Por conseguinte, 0 problema diz respeito 4 relevancia de quaisquer normas imperativas estrangeiras, que nao estejam inte- gradas na ordem juridica competente segundo o Direito de Confli- tos geral (31). Acrescente-se que n.° 1 do art. 7.° da Convengéo de Roma nao vigora na ordem juridica portuguesa, porque Portugal fez a reserva prevista na al. a) do n.° | do art. 22.° da Convengao. B) Principais teses sobre a relevancia das normas impera- tivas estrangeiras Com respeito 4 relevancia de normas imperativas de terceiros ordenamentos em matéria de obrigagdes contratuais fazem-se representar na doutrina duas teses fundamentais: a teoria do esta- tuto obrigacional e a teoria da conexdo especial. Segundo o entendimento tradicional, que corresponde a teoria do estatuto obrigacional, as normas imperativas estrangeiras s6 serao aplicadas quando integrem a /ex causae (32). Normas de ter- €®) Ver ainda Lowa Prueiro (n. 5) 780 e seg. @!) Poder pensar-se que € esta a perspectiva adoptada no art. 19.° da Lei suiga de Direito Internacional Privado e no art. 3079.° do Cédigo Civil do Quebeque (com a redac- do dada em 1991) —cf., pelo que toca ao Direito sufgo, Frank ViscHer — “Art. 19.°” in IPRG Kommentar, Zurique, 1993, n.° 12. Mas a verso italiana do art. 19.° da Lei sufga refere-se expressamente a “normas estrangeiras de aplicagdo necesséria”. ©) Por todos ver IsABEL DE MAGALHAEs CoLLACO, num primeiro momento do seu pensamento (n. 1) 319 e segs.; Scunrrzer — Handbuch des internationalen Privatrechts, 42 ed., vol. I, Basileia, 1958, 787 (com respeito & legislagdo sobre divisas); Mann — 38 LUIS DE LIMA PINHEIRO ceiros ordenamentos s6 poderdo relevar enquanto pressupostos de facto de normas da lex causae, em termos que adiante se escla- recerao. A dita teoria da conexdo especial nao corresponde a uma con- cep¢o unitdria. Na formulagao que Ihe foi dada pelo primeiro WENGLER, tra- duz-se numa cléusula geral segundo a qual serao aplicadas, além das normas juridicas que pertengam ao estatuto obrigacional, as de qualquer outra ordem juridica, dispostas a aplicar-se, desde que exista uma relacdo suficientemente estreita entre a ordem juridica em causa € 0 contrato e tendo como limite a sua conformidade com a ordem piiblica do foro (33) Esta cldusula geral utiliza um conceito designativo indetermi- nado — a relagdo estreita — e contém uma remissao condicionada a vontade de aplicagio das normas em causa. Encontram-se variantes desta concepgao em NEUMAYER, Tou- BIANA € outros autores (*4), “Conflict of Laws and Public Law", RCADI 132 (1971)107-196, 157 segs.; Banirro.. — An. a Cass. 17/10/72, R. crit. 62 (1973) 521-524, 522 e seg. No domfnio das obrigagées voluntérias, tem-se em primeira linha em vista a lex contractus conquanto, em rigor, a lex causae possa também ser a designada por uma das normas conflitos, contidas no sistema, que concemnem a questées parciais (mormente capa- cidade, forma, valor negocial do comportamento e modo de cumprimento). @)_ 1941: 181 € segs., 185 e segs. e 197 e segs. Num segundo momento [(n. 8) 92 € segs. ¢ 110], WeNcLer veio sugerir a formulacdo de uma cléusula geral de ordem piiblica Yernacional (positiva) “em sentido proprio”, por forga da qual € permitida a aplicagio de normas imperativas de terceiros Estados dispostas a aplicar-se quando, na perspectiva do Estado do foro, servem um interesse da comunidade juridica internacional, considerada no seu conjunto, com respeito & conformagio juridica das relagdes internacionais e quando existe uma disposigao semelhante no Estado do foro, que reclama um dominio de aplica- do excepcional, mesmo que nao se possa dizer que com isso seja promovido indirecta- ‘mente um interesse nacional do Estado do foro. Neste segundo caso, trata-se, em certo sen- tido, de uma ideia de reciprocidade: um Estado que edita normas com um dominio de aplicacdo excepcional reconhece aos Estados estrangeiros uma correspondente competén- cia, Esta solucdo seria ainda de seguir quando no Estado do foro nio hé disposicdo equi- valente mas 0 juiz verifica que o Estado do foro teria adoptado regulagao correspondente, se a necessidade de uma tal regulaco tivesse af sido sentida. (4) Neumayer — “Autonomie de la volonté et dispositions impératives en droit international privé des obligations”, R. crit. (1957) 579-604 e (1958) 5.3-78, 1958; Tou- BIANA (n. 19) 256; Lanpo — “The Conflict of Laws of Contracts. General Principles”, RCADI 189 (1984) 223-447, 404 e segs.; DroBnic — “Die Beachtung von ausliindischen Eingriffsgesetzen — eine Interessenanalyse”, in FS Kar! NEUMAYER, 159-179, 1985, APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO, 39 Sao também variantes desta concep¢ao as solugdes consagra- das no n.° 1 do art. 7.° da Convengao de Roma e no art. 16.° da Convengao da Haia sobre a Lei Aplicavel aos Contratos de Media- ¢4o e & Representacdo. Ao nivel dos sistemas nacionais posso referir 0 art. 19.° da Lei suiga de Direito Internacional Privado e 0 art. 3079.° do Cédigo Civil do Quebeque (com a redaccfo dada em 1991). Entre nds é defendida uma concepgao préxima por MARQUES DOs SANTOS, que partindo da ideia basica de reconhecimento no Estado do foro da vontade de aplicagao das normas de aplicagao imediata estrangeiras propde a adopgao de uma “regra de reconhe- cimento” “que dé um titulo e legitime a relevancia, no Estado do foro, de tais regras, de acordo com as condicées e dentro dos limi- tes fixados por este Ultimo Estado” (5) Como limites ao “reconhecimento” coloca MARQUES DOS SANTOS a exclusdo de pretensdes de aplicagaio exorbitante e das normas que colidam com interesses do Estado do foro ou com inte- resses afins aos de este Estado (3°). Que dizer destas teses? 15.9 e 178 e seg., ver também “Das Profil des Wirtschafiskollisionsrechts", RabelsZ 52 (1988)1-7: 5 e 7; CuristIAN Von Bar — Internationales Privatrecht, vol. I, Munique, 1987, 235; Mayer (n. 11) 92 € seg.; Martiny “Art. 34” in Minchener Kommentar zum Bargerlichen Gesetzbuch, vol. X, 3.* ed., Munique, 1998, n.° 48 (mas cp. SONNENBERGER “Einl. IPR” in op. cit., n° 59 ¢ 61 € segs.); Barirro.-Lacarne (n. 16) 429 e seg. Cp. KecEL — Internationales Privatrecht — ein Studienbuch, 7.* ed., Munique, 1995, 119 e 850; ver ainda Rozas-Lorenzo — Curso de Derecho Internacional Privado, 2+ 4., Madrid, 1993, 537 e segs. ¢ a critica de Basepow — “Wirtschaftskollisionsrecht — The- oretischer Versuch ber die ordnungspolitischen Normen des Forumstaates”, RabelsZ 5.2 (1988) 8-38, 25 e seg. C)_ (N. 2)1046; mais adiante, o autor fala, a este respeito, em “atribuir eficdcia” as regras de aplicagdo imediata estrangeiras (op. cit. 1047], classificando como “regras de reconhecimento” as que constam dos arts. 7.°/1 da Convengio de Roma e 19.° da Lei suiga de Direito Internacional Privado. C*)_N. 2 1052. Os interesses comuns no seriam pois uma condigéo de aplicagio, mas um limite & aplicagdo. Estes interesses comuns poderiam ser referidos apenas a alguns Estados com os quais Portugal tenha particulares afinidades, nos dominios politico, econémico, social ¢ cultural [op. cit. 1056]. A época, 0 autor entendia que esta construgio poderia “ser aplicada” na ordem juridica portuguesa, invocando a “préxima adesio” & Convengao de Roma, o art. 65.°/2 CC como regra “que assegura 0 reconhecimento em Portugal de certas normas de aplicagdo imediata estrangeiras mediante a elaboragio de uma conexio especial” e o art. 31.°/2 e /3 da Lei 13/85., de 6/7 (Lei do Patrim6nio Cultu- ral Portugués). 40 LUfS DE LIMA PINHEIRO Quanto a teoria do estatuto obrigacional parece que, levada As suas tiltimas consequéncias, impediria qualquer desenvolvimento e aperfeigoamento do sistema pela jurisprudéncia e pela ciéncia juri- dica. Estaria vedado 0 desenvolvimento de normas de conflitos especiais ou de clausulas gerais, com cardcter bilateral, mesmo no caso de, na ordem juridica do foro, o legislador haver consagrado normas unilaterais ad hoc ou uma cléusula geral com respeito a aplicabilidade de certas normas materiais do foro. Por exemplo, ficaria liminarmente exclufda a possibilidade de bilateralizar uma norma unilateral segundo a qual certas normas protectoras do titular de um direito real de habitagdo periddica ou de um direito de habitagdo turistica se aplicam sempre que o imével esteja situado em Portugal, por forma a aplicar normas de contetido e fung&o semelhante existentes na lei da situagdo do imé- vel, quando o imével estiver situado no estrangeiro. Ora, esta atitude é contrdria a tendéncia actual para reconhe- cer 0 papel criativo da jurisprudéncia e da ciéncia juridica e difi- cilmente se vé a razdo por que ao intérprete ha-de ser negada, em relagao as normas unilaterais ad hoc, aquela possibilidade de bila- teralizagéo que, em principio, lhe é reconhecida com respeito a outras normas unilaterais (°) Quanto & teoria da conexo especial, é de sublinhar que as clausulas gerais sobre a relevancia de normas imperativas de ter- ceiros Estados deixam uma larga margem de apreciagio ao intér- prete, que tem por correlativo a incerteza sobre o regime juridico aplic4vel e a imprevisibilidade de solugdes (38). Uma maior certeza e previsibilidade de resultados s6 podem ser alcancadas mediante uma determinagao das conexdes relevan- tes e das exigéncias que devem ser postas ao contetido e fim das normas imperativas estrangeiras. O que aponta para o desenvolvi- mento de normas de conflitos especiais. Para 0 efeito poderd apostar-se mais na bilateralizacdo das solugées consagradas para as normas autolimitadas de Direito interno ou na criagdo de normas de conflitos bilaterais indepen- dentemente de um processo de bilateralizacao. @) Ver ainda Lima Prvuemo (n. 5) 783. @)_ Cf. IsaBeL DE MAGALHAES CoLLAgo (n. 1) 328 seg. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICAGAO 41 C) Posigéo adoptada de iure condendo De jure condendo, dou preferéncia a criagao de normas de remissdo condicionada a certas categorias de normas imperativas vigentes em Estados que apresentam determinada conexao com a situagdo (°°). A remissao sera condicionada 4 “disposi¢ao a aplicar-se” das normas em causa, quer se trate de normas de aplicagdo necesséria ou de outras normas imperativas que “reclamam aplicagéo” por forga do respectivo sistema de Direito de Conflitos. Na elaborago destas normas entrarao em linha de conta nao s6 as finalidades de politica legislativa de normas e regimes mate- riais individualizados, mas também o conjunto de principios e ideias orientadoras do Direito Internacional Privado, designada- mente os principios relativos 4 conformagio global do sistema e a tutela dos interesses tipicos das partes. Frequentemente estas normas deverao estabelecer a aplicagao cumulativa das normas imperativas do Estado que apresenta a conexao especial com a situagao com as normas imperativas da lex causdae. Assim, por exemplo, no que toca aos contratos, defendo uma remissao condicionada ao Direito do lugar em que o contrato deve ser executado (“°). Esta remiss&o condicionada justifica-se com res- peito quer as normas imperativas relativas 4 sua execugo (*") quer as regras que estabelecam requisitos de validade do contetido e do ©) Em sentido convergente ver Scuuric (n. 11) 229 € segs. e 238 ¢ segs. () Sobre a jurisprudéncia inglesa em matéria de invalidade do contrato cujo objecto ou fim é contrério a disposigdes da lei do lugar da execugdo, que aponta até certo ponto neste sentido, ver Lima PinHeio (n. 5) 787 € seg. (*), A decisio proferida pelo STJ em 7/6/83 [BMJ 328: 447}, relativamente a um contrato de trabalho, parece apontar neste sentido. Com efeito, pode ler-se nesta decisao: ““A remissao [feita no contrato] para a lei e usos locais quanto a exigencias de cardcter sani- tério, horérios de trabalho, descanso, actividades politicas ou religiosas, segredo profissio- nal em obras de cardcter militar ou de seguranca (...) é perfeitamente compattvel com a aplicago genérica da lei portuguesa fa titulo de lex contractus]; dado versar sobre pontos especificos inerentes a trabalho prestado no territério daquele pais, ou mesmo se impor por razdes de soberania”. Sobre a aplicabilidade das normas de Direito piblico vigentes no lugar da execugao do trabalho ver Lima Pineiro (n. 14) 191 e bibliografia af indicada. 42 LUIS DE LIMA PINHEIRO fim do contrato (*). E nao deve excluir a aplicagao das regras do Direito regulador do contrato que digam respeito a estas matérias. A aplicacao a validade e 4 execugao do contrato das normas contidas na lei do lugar onde o contrato é executado permite resol- ver grande parte dos problemas suscitados pelas normas imperati- vas “‘dispostas a aplicar-se” de terceiros Estados. Por certo, nao ser4 possivel aplicar, por via destas normas de conexao especiais, as normas imperativas de todos os Estados que apresentam lacos significativos com a situagéo. Mas é também duvidoso que este resultado seja desejavel, pelo cimulo de normas imperativas de diferentes Estados a que conduz, com a conse- quente limitacao da autonomia dos sujeitos das relagdes privadas internacionais. Acresce que este resultado sé é atingivel por meio de uma cléusula geral, com os inconvenientes atrds referidos. D) Posigéo adoptada de iure constituto Nao vigora na ordem jurfdica portuguesa qualquer regra geral sobre a relevancia de normas imperativas de terceiros ordenamen- tos. O mesmo se verifica perante 0 Cédigo Civil de Macau. Todavia 0 Direito Internacional Privado portugués contém algumas regras relevantes em dom{inios especificos. A mais importante é a que consta do art. 16.° da Convengao da Haia sobre a Lei Aplic4vel aos Contratos de Mediacao e a Representago: “Na aplicacao da presente Convengiio poderd atri- buir-se efeito as disposigdes imperativas de qualquer Estado com © qual a situagdo apresente uma conexio efectiva, se e na medida em que, segundo 0 direito desse Estado, tais disposigdes forem (®) Ver também Zweicert — “Nichterfilllung auf Grund austiindischer Leistungs- verbote”, RabelsZ 14 (1942) 283-307, 295.; Id. — “Droit international privé e droit publi- que”, R. crit. 54 (1965) 645-666, 649; Tountana (n, 19) 297 e segs.; e, SPERDUTI — “Droit international privé et droit public étranger” Clunet 104 (1977) 5-15, 13 e seg. Indicagdes neste sentido encontram-se jé em TavaRES De MepeiRos — Da Reciprocidade Internacio- nal no Cumprimento das Obrigacoes Civis, Lisboa, 1892, 29 ¢ seg. € 5.7. ‘No que toca a validade do contrato, serdo relevantes os requisitos estabelecidos pela ei do lugar da execugdo ao tempo da celebragdo do contrato. As normas proibitivas ou limitativas que sejam adoptadas pela lei do lugar da execugo posteriormente a conclusio do neg6cio deverao apenas ser tidas em conta como pressupostos de facto das normas da lex contractus relativas & exoneragio do devedor. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO, 43 aplicaveis, qualquer que seja a lei designada pelas suas regras de conflito” (*). Também o disposto no n.° 2 do art. 31.° da Lei n.° 13/85, de 6/7, sobre o patriménio cultural portugués, pode ser encarado como consagracao legislativa de uma conex4o especial estabele- cida com 0 pais da proveniéncia dos bens culturais. E a seguinte a redacgao do preceito: “Sao nulas e de nenhum efeito as transacgGes realizadas em territ6rio portugués sobre bens culturais méveis prove- nientes de paises estrangeiros quando efectuadas em infracgao da respectiva legislagao interna reguladora da sua alienagao ou exportagdo”. Ha ainda certas normas de remissdo condicionada que permi- tem ter em conta a “vontade de aplicagao” de normas estrangeiras — arts. 36.°/1 in fine (forma da declaragdo), 45.°/3 (responsabili- dade extracontratual), 47.° (capacidade para constituir direitos reais sobre coisas iméveis ou dispor deles) e 65.°/2 (forma das dis- posi¢6es por morte), todos do Cédigo Civil, e art. 9.°/6 da Con- vengao de Roma (forma do contrato) (+). Fora destes dominios especificos, a criagao, pelo intérprete, de normas de conflitos especiais, que atribuam um titulo de apli- cago a normas imperativas de terceiros Estados, pressup6e a reve- lagéo de uma lacuna oculta mediante interpretagdo restritiva ou reducdo teleolégica das normas de conflitos gerais em causa (*). E deve obedecer aos critérios estabelecidos, na ordem juridica por- tuguesa, para a sua integragdo. Se o pr6prio legislador introduziu limites 4s normas de con- flitos gerais com respeito a normas autolimitadas do foro, designa- damente por meio de normas unilaterais ad hoc, encontra-se muito (*) Sobre este preceito ver Von Overseck — “La contribution de la conférence de La Haye au développement du droit international privé”, RCADI 233 (1992) 9-98, 50 e segs. (4) Sobre estas disposigdes ver Lowa Prtsiro (n, 14) 66, 146 € seg., 149, 15.3 ¢ seg. e 229 € seg., com mais referéncias. No Cédigo Civil de Macau ver arts. 35.°/1 in fine, 44.°13, 46.° € 62.°/2. (®) Ver Lima Prvneino (n. 5) 790 e, sobre o sentido da reserva posta a aplicagao do n? 1 do ant. 7.° da Convengao de Roma, 783 ¢ seg., com mais referéncias. “4 LUfS DE LIMA PINHEIRO facilitada a revelagao de uma lacuna oculta com respeito a aplica- bilidade de normas imperativas semelhantes contidas em ordena- mentos estrangeiros (“). Na falta de demonstrag4o em contrério, é de supor que as nor- mas unilaterais ligadas as normas autolimitadas do foro consa- gram, como resultado de uma valoracao conflitual, solugGes que se revelam adequadas para todas as normas que apresentam contetido e fungdo equivalentes, quer sejam normas do foro ou normas estrangeiras. Por isso estas normas unilaterais ad hoc sao, em prin- cfpio, bilateraliz4veis (47) Observe-se que em matéria de contratos cambiais existe mesmo uma norma bilateral de fonte internacional, que consta da al. b) do art. VIII do Acordo Relativo ao Fundo Monetério Inter- nacional. Esta norma estabelece uma conex30 especial com a regu- lamentagao cambial do Estado cuja moeda estd em causa (8) Abre-se ainda a possibilidade de uma aplicacao analdgica de normas de conflitos especiais consagradas pelo legislador para Tegras imperativas estrangeiras relativas a certas questies. Também se pode colocar a questo de saber se essas solugdes Particulares nao constituem a manifestagao de um principio mais geral. Em todo o caso, uma generalizagao, por via analégica, da clausula geral que consta do art. 16.° da supracitada Convengao da (5) Relativamente aos sistemas que consagrem uma cléusula geral facultando uma valoragdo conflitual casufstica de normas individualizadas da ordem juridica do foro ver Lima Prvseiro (n. 5) 792 € seg. (2) Em sentido favordvel a bilateralizagto, Neumaver (n. 34) 38; Zweicexr (n. 42 [1965}) 656 e segs.; Touiana (n, 19) 230 € segs., 241 ¢ segs. e 258 e segs.: Desy-GénarD (1. 19) 48 ¢ segs.; Neutiaus (n. 7) 40 e seg. e 106, seguido por KroPHoLLeR (n. 7) 95; KEGEL (a. 13 [1976}) 75; Martinek — Das internationale Karteliprivatrecht. Ein Beitrag zur Kollisionsrechiliches Sonderanknilpfung im internationalen Wirtschafisrecht, Heidel- berga, 1987, 45 ¢ segs. e 94 e segs. Sobre o ponto ver ainda WENGLER (n. 8) 92 ¢ FERRER Correia (n. 1 [1982]) 390. Cp. Francescakis — “Quelques précisions sur les lois d'appli- cation immédiate et leurs rapports avec les regles de conflits de lois R. crit. 55 (1966) 1-18, 9 © segs., Marques Dos Santos (n. 2) 822, 941 € 1002 e seg. ¢ BATIFFOL-LAGARDE (a. 16) 429. Sobre os limites a bilateralizagao de normas unilaterais ver Lima PINHEIRO (a. 5) 307 € seg. € 790 € seg. (*) Segundo este preceito, os “contratos cambiais que envolvam a moeda de qual- uer membro ¢ que sejam contrérios & regulamentagio cambial que esse membro mante- nha ou introduza, em conformidade com o presente Acordo, nao sero executorios nos ter- rit6rios de nenhum membro.” APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 45 Haia parece-me indefensvel. O legislador portugués, ao formular uma reserva ao art. 7.°/1 da Convencao de Roma, mostrou-se cla- ramente desfavordvel & generalizagao de uma solugdo deste tipo. E nao vejo que de solugdes muito especfficas, como a consa- grada no n.° 2 do art. 31.° da Lei n.° 13/85, se possa retirar qual- quer princfpio geral sobre a relevancia de outras normas de tercei- ros Estados. E) Relevéncia de normas imperativas de terceiros Estados no quadro do Direito material da lex causae Nos casos em que a ordem jurfdica local nao atribui um titulo de aplicagao a normas imperativas de terceiros Estados, estas nor- mas podem ainda ter relevancia no quadro do Direito material da lex causae. Antes de terminar, importa fazer uma brevissima referéncia a esta tomada em consideragdo das normas imperativas de terceiros Estados no quadro do Direito material da lex causae (*). Esta tomada em consideragao verifica-se indubitavelmente NOs casos em que a norma é considerada como um pressuposto de facto da aplicagéo de uma norma material da lex causae (°°). A hipotese de escola é a da relevancia da norma proibitiva do pais de execuc4o do contrato como facto gerador de impossibili- dade de cumprimento. Parece de exigir, para 0 efeito, que a vigén- cia da norma constitua um impedimento efectivo A execugao da prestagdo, quer pela impossibilidade material de a realizar (mor- (©) Sobre 0 significado da expresso “tomar em consideragtio” ver Lia PINHEIRO (n.° 5) 794 seg. (®) Ver MANN — “Proper Law and legality in Private International Law”, Brit. YBIL 18 (1937) 97-113, 110 e seg.; WeNcLER — “Die Ankniipfung des zwingenden Schul drechts im internationalen Privatrecht. Eine rechtsvergleichende Studie”, ZvgiRW 45 (1941) 168-212, 202 € segs. e (n. 13) 388 ¢ segs.; ISABEL DE MaGALHAEs CoLtaco (n. I [1954]) 319 ¢ segs.; Eunenzwaic (n, 18) 83 e seg.]; EHRENZWEIG-JAYME — Private Inter national Law, vol. Ill, Leyden ¢ Nova lorque, 1977, 9 e seg.; Moura RAMos (n. 3) 699 segs.; Marques bos Santos (n. 2) 985 e segs.; ZimMER — ““Auslindisches Wirtschaftsrecht vor deutschen Zivilgerichten: Zur Unterscheidung zwischen einer normativen Beruck- sichtigung fremder zwingender Normen und einer blo8en Beachtung ihrer tatsiichlichen Folgen”, [PRax 13 (1993) 65-69, 67 e segs. 46 LUIS DE LIMA PINHEIRO mente sem colaboragao das autoridades publicas), quer pelo risco efectivo de uma sangdo em caso de inobservancia da proibigao (5'). Além desta hipétese, coloca-se o problema das consequéncias que advém, para a validade de um negécio juridico, da contra- riedade do seu objecto ou fim a normas imperativas de terceiros ordenamentos. Quando o Direito portugués for chamado a reger o negécio juridico, a violagao de uma norma imperativa estrangeira s6 pode- tia constituir fundamento de nulidade por contrariedade a lei do objecto ou do fim do negécio, perante os arts. 280.° e 281.° do Cédigo Civil, se a norma imperativa fosse aplicada. A jurisprudéncia de diversos paises e, designadamente, a alem, tem evitado este resultado, entendendo que a invalidade do negécio cujo objecto seja contrério a normas imperativas de terceiros Estados decorre da contrariedade aos bons costumes. Com efeito, os tribunais alemaes tém reiteradamente considerado imoral 0 contrato que as partes celebram em violacdo de normas imperativas de terceiros Estados, quando estas normas correspon- dem também a um interesse piblico alem&o ou servem interesses geralmente atendidos por todos os povos (*7). @')_ Ver wencter (n. 8), ndo excluindo que a impossibilidade, em lugar de condu- Zir & exoneragdo do devedor, possa resultar numa adaptac&o da obrigaco de prestacao, quando for concebivel a sua execugao noutro lugar. A superveniéncia de leis imperativas, que ndo cause uma impossibilidade de cumprimento, pode relevar como alterago da base do negécio — ver Scuuric (n. 11) 240 e segs. e ViscueR (n, 16)176 e segs. Observe-se ainda que a consciente violagdo de uma lei estrangeira pode fundamentar uma pretensio de indemnizag2o por prejufzos causados mediante uma actuacdo contréria aos bons costu- ‘mes nos termos do ar. 826° BGB — cf. Maxtiny — “Internationales Vertragsrecht zwis- chen Rechtsgefille und Vereinheitlichung”, ZeuP (1995) 67-88, 87 e seg. e jurisprudéncia af referida. Quanto aos problemas especificos suscitados pela invocacdo, como impedimento a execugo de contratos celebrados com entes piiblicos, de modificagées legislativas no pais ‘onde contrato deve ser executado, ver Von HOFFMANN in FiscHER — Von HorrMaNn — Staatsunternehmen im Volkerrecht und im Internationalen Privasrechs, Heidelberga, 1984, 43 e 60 e segs. e Bocksniect — “Hardship, Force Majeure and Special Risks Clauses in International Contracts”, in How (org.), Adaptation and Renegotiation of contracts in International Trade and Finance, 159-169, Deventer ct al., 1985, 167 e seg. () Ver, por exemplo, a deciséo proferida pelo BGH, em 22/6/72 [BGHZ 59: 82), no caso das méscaras de bronze € a jurisprudéncia do RG com respeito aos contratos envolvendo contrabando cit. por CuristiaN Von Bar (n. 34) 234 n, 218. Ver também Droanic (n. 34) 161 € seg. APONTAMENTO SOBRE AS NORMAS DE APLICACAO 47 Para um sistema que consagre uma conexo especial com a lei do pais onde o contrato deve ser executado, designadamente com respeito aos requisitos de validade do objecto e do fim do contrato, raramente o problema se colocaré. Mas enquanto esta solugao nao for consagrada pelo Direito positivo a contrariedade aos bons costumes do objecto ou do fim do contrato constitui, por assim dizer, a “valvula de seguranga” do sistema (5). Assinale-se, por ultimo, que 0 érgio de aplicagao dispoe de uma certa margem de apreciag4o, quando determina se a violagio de uma norma imperativa estrangeira constitui, na perspectiva do Direito material da Jex causae, uma conduta ofensiva dos bons costumes. Resumo I. As normas de aplicagao necessdria sao uma das modalida- des de normas autolimitadas. E autolimitada aquela norma material cuja esfera de aplicacdo no espago nao corresponde a que resul- taria da actuag4o do sistema de Direito de Conflitos. Isto pode resultar de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos especial (explicita ou implicita) ou de uma valoragao casujstica, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstancias do caso. Se a norma autolimitada reclama uma esfera de aplicacado mais vasta do que aquela que decorreria do Direito de Conflitos geral trata-se de uma norma de aplicagao imediata ou necessdria. A formulagao de uma norma de conflitos ad hoc ou uma valo- Ta¢do casuistica sobre a aplicabilidade da norma no espago passam necessariamente por um raciocinio conflitual, por uma avaliacao dos lagos que a situacio estabelece com os diversos Estados em Presenga, que é exterior ao processo interpretativo da norma mate- rial a que diz respeito. As normas de aplicagfo necessdria nao constituem pois uma alternativa ao processo conflitual ou de regu- lag4o indirecta, mas uma manifestagdo de um certo tipo de unila- teralismo, que coloca 0 problema do Direito aplicdvel em funcaio de normas individualizadas. (©) Ver desenvolvimento em Lima PINHEIRO (n. 5) 795. € seg. 48 LUIS DE LIMA PINHEIRO Perante o Direito Internacional Privado portugués o intérprete 86 pode atribuir a uma norma material o cardcter de norma de apli- cacao necesséria em duas hipéteses: quando a norma material for acompanhada de uma norma de conflitos especial e quando for revelada uma lacuna do Direito de Conflitos que deva ser integrada mediante a criagdo de uma solugdo conflitual especial. J4 perante o art. 21.° do Cédigo Civil de Macau o intérprete é autorizado a aplicar uma norma material a uma situagdo interna- cional sempre que, partindo da sua interpretagao e perante 0 con- junto das circunstancias do caso concreto, conclua que a norma “reclama aplicagéo”. Il. As normas imperativas estrangeiras s6 podem ser aplica- das na ordem juridica local por forga do titulo de aplicag’o que uma proposi¢ao vigente nesta ordem juridica Ihes conceda. As normas imperativas da lex causae sao aplicdveis no qua- dro do titulo de aplicagao conferido a essa lei pelas normas de con- flitos gerais. Mas este titulo de aplicagdo pode ser limitado pelas normas de conflitos especiais que se reportem a determinadas cate- gorias de normas imperativas. Quando as normas imperativas de terceiros Estados merece preferéncia, de iure condendo, a criagio de normas de remissdo condicionada a certas categorias de normas imperativas vigentes em Estados que apresentam determinada conexfo com a situacao. De iure constituto, nao vigora na ordem juridica portuguesa qualquer regra geral sobre a relevancia de normas imperativas de terceiros ordenamentos. O mesmo se verifica perante 0 Cédigo Civil de Macau. Todavia o Direito Internacional Privado portugués contém algumas regras relevantes em dominios especificos. Fora destes dominios especificos, a criagdo, pelo intérprete, de normas de conflitos especiais, que atribuam um titulo de aplicagao a nor- mas imperativas de terceiros Estados, pressupde a revelagio de uma lacuna oculta mediante interpretagdo restritiva ou tedugao teleolégica das normas de conflitos gerais em causa. As normas unilaterais ad hoc ligadas as normas autolimitadas do foro séo, em princfpio, bilateralizaveis.

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