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355 Artigo Article: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14 (2) :355-365, Abr-Jun, 1998
355 Artigo Article: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14 (2) :355-365, Abr-Jun, 1998
355 Artigo Article: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14 (2) :355-365, Abr-Jun, 1998
1 Departamento de Saúde Abstract This paper deals with issues of citizenship and people’s participation in health ser-
Comunitária, Faculdade
vices, based on an analysis of concepts displayed by a specific group, i.e., users of Primary Care
de Medicina, Universidade
Federal do Ceará. Clinics in Program Area 3.1 in the city of Rio de Janeiro, Brazil. The paper analyzes health care
Rua Prof. Costa Mendes 1608, users’ ideas as the ones most heavily influencing the chapter on health in the Brazilian Constitu-
5 o andar, Fortaleza, CE
tion. The historical context is the discussion underway on the role of patients in the relationship
60431-970, Brasil.
malubosi@agevir.com.br to professional health care providers, who in turn face the challenge of building a “health and
2 Núcleo de Estudos de hygiene mentality” among the people. Data were gathered through a field study using a qualita-
Saúde Coletiva, Hospital
tive social research methodology and identify salient points among the ideas of people receiving
Universitário Clementino
Fraga Filho, Universidade care. There was a gap (or distortion) in their concept of citizenship alongside aspects which, if
Federal do Rio de Janeiro. analyzed according to the subjective plane of these social agents, show that they expect channels
Av. Brigadeiro Trompowisky
s/no, 5o andar, Rio de Janeiro, RJ
to be created by which they can express their opinions, particularly at the practical level. The
21949-900, Brasil. analysis thus points to the strategic role of day-to-day relationships in the social change process
and the acquisition of rights, meanwhile seeking to shed light on the feasibility of this process in
view of the subjectivity of the agents giving it life.
Key words Consumer Participation; Health Services Research; Public Health
Resumo Este trabalho aborda a questão da cidadania e da participação popular em saúde, ten-
do por base a análise das concepções de um grupo específico: os usuários que freqüentam as Uni-
dades de Cuidados Básicos da Área Programática 3.1 do Município do Rio de Janeiro, Brasil.
Analisa-se suas concepções referentes ao tema em estudo, confrontando-as com as que orientam
o texto constitucional no capítulo referente à saúde, ao mesmo tempo em que se discute o papel
dos usuários em sua relação com os profissionais que os assistem, em face do desafio da constru-
ção de uma ‘consciência sanitária’. As informações foram obtidas a partir da aplicação de técni-
cas qualitativas e apontam importantes elementos nas concepções dos usuários; se por um lado,
constata-se um distanciamento da condição de cidadãos, por outro, indica-se a existência de as-
pectos que, situados no plano subjetivo, aguardam a construção de canais que possibilitem a
sua expressão, sobretudo no nível das práticas. Neste sentido, a análise aponta, ainda, para o pa-
pel estratégico desempenhado pelas relações cotidianas no processo de mudança social e cons-
trução dos direitos, buscando simultaneamente elucidar a viabilidade deste processo tendo em
vista a subjetividade dos agentes que lhe dão vida.
Palavras-chave Participação Comunitária; Pesquisa sobre Serviços de Saúde; Saúde Pública
da população favelada do Rio de Janeiro (Iplan- forma da linguagem e, deste modo, apreensível
rio, 1990). no discurso dos usuários do setor.
Nosso espaço de observação correspon- Partindo dessas premissas, realizamos nos-
deu, portanto, às unidades públicas de servi- so estudo junto à população usuária das uni-
ços básicos, localizadas na área programática dades de saúde já citadas. Optamos por entre-
em que se insere a Universidade Federal do vistar pessoas que há mais tempo freqüenta-
Rio de Janeiro (AP-3.1), o que significa dizer vam as unidades e que mantinham uma certa
que trabalhamos com um universo de cinco regularidade dentro desta prática. Buscávamos
unidades: algumas ligadas a instituições for- com isto usuários que já tivessem estabelecido
madoras – Germano Sinval Faria (Ensp), Vila um vínculo com as instituições e, conseqüen-
do João (UFRJ) –, e as não vinculadas – centros temente, com seus profissionais. Outro crité-
municipais de saúde de Ramos, Penha e Ilha rio, este de ordem mais prática, foi o de esco-
do Governador. Sendo, fundamentalmente, a lher os entrevistados dentre os usuários que
dimensão subjetiva o plano no qual se situa aguardavam atendimento no interior das uni-
nosso objeto, o material básico com que tra- dades e, portanto, dispunham de tempo para
balhamos foi o discurso dos agentes. A natu- nos oferecer seus depoimentos.
reza do objeto impôs a metodologia qualitati- Já que partimos de uma perspectiva quali-
va como concepção teórica de abordagem, na tativa, no que se refere à amostragem, não se
medida em que se apresenta como “aquela colocaram para nós questões como represen-
capaz de incorporar a questão do significado e tatividade, verificabilidade ou generalização
da intencionalidade como inerentes aos atos, nos termos em que estas questões, dentre ou-
às relações e às estruturas sociais” (Minayo, tras, impõem-se à tradição quantitativa. Aqui,
1992:10). nossa preocupação foi “menos com a generali-
Bakhtin (1986), apud Minayo (1992:110), zação e mais com o aprofundamento e abran-
considera a palavra “o fenômeno ideológico por gência da compreensão”....Um critério não nu-
excelência” e define o “caráter histórico e social mérico, portanto a amostra ideal sendo “aque-
da fala como campo de expressão das relações e la capaz de refletir a totalidade nas suas múlti-
das lutas sociais que ao mesmo tempo sofre os plas dimensões” (Minayo, 1992:102).
efeitos da luta e serve de instrumento e de mate- A questão da validade dessa amostra foi por
rial para a sua comunicação”. É a partir da pa- nós assumida pela sua capacidade de respon-
lavra que se pode, portanto, aprender o con- der às questões que nos colocávamos, conside-
teúdo simbólico das práticas. rando-se suficiente o número de entrevistas no
As ciências sociais empregam o termo Re- momento em que observávamos a reiteração e
presentações Sociais para nomear as catego- esgotamento das categorias nos discursos dos
rias de pensamento, de ação e de sentimento entrevistados.
que expressa a realidade, no sentido de afirmá- Dentre as técnicas disponíveis, optamos
la ou negá-la (Minayo, 1992). Deste modo, des- pela entrevista, elegendo, na medida do possí-
vendar um dado aspecto da realidade impõe o vel, o procedimento não diretivo, por entendê-
conhecimento não só do fato objetivo, como lo como um meio que possibilitaria ao entre-
também da sua representação. Qualquer co- vistado discorrer sobre o tema em questão, sob
nhecimento que pretenda informar um fenô- uma lógica própria. Entretanto, optar por esta
meno social, exatamente por ser social neces- técnica não implica destituí-la de problemas, a
sita considerar estas duas dimensões. começar pelo que se entende por não diretivi-
No caso específico deste trabalho, falar em dade (Michelat, 1975; Thiollent, 1987).
direito, cidadania e controle social em saúde, Ainda assim, e sem desconhecer as ques-
conceitos fortemente vinculados ao processo tões sócio-epistemológicas aí envolvidas, cuja
de conscientização da saúde como um direito, complexidade não pode ser aqui analisada,
implica o conhecimento da dimensão subjeti- adotamos a perspectiva de Michelat (1975),
va – representações, idéias, pensamentos – dos quando sugere a entrevista não diretiva como
sujeitos envolvidos. O resgate dessa subjetivi- uma técnica que oferece vantagens para apre-
dade vem constituindo um alvo de reflexão ca- ensão do conteúdo simbólico, permitindo ao
da vez mais ressaltado na literatura recente entrevistado uma ‘atitude de exploração’, na
(Minayo & Coimbra Jr., 1993; Alves & Minayo, medida em que não estrutura completamente
1994). o campo de investigação.
No que se refere à consciência sanitária, e
considerando estratégico o espaço da assistên-
cia, nosso ponto de partida foi o estudo das
manifestações desta consciência expressas sob
Cidadania, participação popular e saúde: beça. Eu fico assim xôxo, encabulado. Eu perco
a visão dos usuários até o apetite... Aí muda o funcionamento do
corpo todo.”
• A análise do material obtido das entrevistas “Pra que é que eu vou tomar isto? Se eu tiver
levantou um grande volume de informações que pegar, quem sabe é Deus.”
que, após sucessivas leituras e classificações, Para este grupo, saúde é um estado que de-
foram organizadas em torno do que se poderia pende da natureza, das relações sociais, das re-
considerar quatro grandes temas, por meio dos lações afetivas e de Deus (ou outros ‘seres
quais procuramos apreender nosso objeto: o superiores’, entidades do domínio espiritual).É
conceito de saúde, a consciência sanitária, o portanto, uma concepção que, apesar de incor-
cotidiano do atendimento, a transformação do porar o discurso médico (biológico), ultrapas-
quadro atual. sa-o revelando (e, em certos momentos, colo-
cando em questão), por meio da análise da gê-
O Conceito de Saúde nese da doença, a própria ordem social (Herz-
lich, 1991).
No discurso da população, a saúde aparece co- Assim, por meio dos discursos emitidos so-
mo um conceito pluridimensional, ultrapas- bre a doença, evidenciam-se as vivências, o co-
sando, em muito, a dimensão biológica. tidiano das pessoas – aspecto que, em vários
Nosso estudo reforça as conclusões de ou- pontos, insinua-se na fala dos usuários.
tros autores que, trabalhando com a visão po- “Uma pessoa saudável é igual eu, tenho saú-
pular referente à saúde, apontam diferentes ní- de, graças a Deus. Disposição que Deus me dá
veis que se integram na concepção do grupo. prá trabalhar.”
Ngokwey (1988) apud Minayo (1988:357), “Estar doente é não dar pra fazer nada, me
pesquisando o sistema etiológico popular ba- dá uma moleza, aí eu falo pra mim: Eu tô doen-
seado em um estudo com famílias na região de te.”
Feira de Santana, na Bahia, aponta vários do- “Quando eu estou bem? Quando estou sem-
mínios que se integram nas explicações formu- pre trabalhando.”
ladas pelos entrevistados: Por outro lado, a manifestação fundamen-
a) natural; tal da doença é a dor.
b) psicossocial; “Ah! Quando eu não estou sentindo nenhu-
c) sócio-econômico; ma dor, né? Aí estou bem, com saúde.”
d) sobrenatural. “Quando não estou sentindo nada... não
No modelo acima, a causação natural refe- sentindo nada, não tem problema.”
re-se à relação entre a saúde e os fenômenos da “Uma pessoa saudável é uma pessoa que
natureza; a sócio-econômica, às condições ma- não sente nada.”
teriais de existência (salário, alimentação, as Em um estudo desenvolvido junto aos pro-
relações no trabalho etc.); a psicossocial, aos fissionais de saúde (Bosi, 1994), verificamos
sentimentos e emoções e, finalmente, a sobre- que, de modo unânime, eles indicaram que,
natural ao domínio metafísico, espiritual (Mi- para a população, a saúde se reduz à ausência
nayo, 1988). de dor, fato que, segundo estes profissionais,
Estas mesmas dimensões foram identifica- liga-se à ausência de uma ‘postura preventiva’
das na fala dos usuários da rede pública de ser- por parte dos usuários.
viços por nós estudados. A pluridimensionali- Entretanto, tomando como base os depoi-
dade do fenômeno saúde emergiu no discurso, mentos anteriores, podemos relativizar esta
a partir das referências feitas ora à etiologia das constatação se considerarmos alguns outros
doenças, ora à conceituação mais direta daqui- ângulos, a partir dos quais se pode pensar a
lo que o grupo entende por saúde. Nas trans- questão. Inevitavelmente nos vem à lembrança
crições abaixo, podemos constatar, respectiva- o pensamento de Lèriche (1936) apud Cangui-
mente, as quatro dimensões apontadas por lhem (1990:73) que “ao definir a doença não
Ngokwey (1988) apud Minayo (1988). achou outro meio de defini-la a não ser por seus
“Em primeiro lugar, pra ter saúde é preciso efeitos”. Do ponto de vista do doente, a saúde,
ter uma boa alimentação, né?” afirma Lèriche, “é a vida no silêncio dos órgãos”
“ Eu acho que o que deixa as pessoas mais e “a doença (...) aquilo que perturba os homens
doentes hoje em dia é o custo de vida. Tem gente no exercício da sua vida e em suas ocupações”
que às vezes não tem alimentação direito porque (Lèriche, 1936 apud Canguilhem, 1990:68).
ganha só o salário; muito desemprego também...” Com efeito, Lèriche reconhece que “o silên-
“Porque eu quando, assim, me aborreço, cio dos órgãos” não equivale à inexistência da
uma das primeiras coisas que me dá é dor de ca- doença, mas acaba por concluir que se de ou-
tro modo “quisermos definir a doença será pre- “Os outros fica assim: ‘Ah! tá muito magra’,
ciso desumanizá-la” (Lèriche, 1936 apud Can- aí eu fico assim! ‘Pôxa’. Aí eu me olho no espe-
guilhem, 1990:22-23). lho... Ah! Eu vou lá no médico”.
Um fato bastante recorrente na literatura e “Eu tenho que ir no médico pra ver o que é.”
nas discussões no campo da saúde coletiva é a “Mas assim mesmo com saúde é sempre bom
redução que o conceito de saúde sofre quando a gente vir ao médico, para ver se realmente a
se iguala à ausência de dor (indicativo da au- gente está com saúde, né?
sência de doença). Se estamos de acordo com As falas acima transcritas reforçam, em
o fato de que saúde é muito mais do que isto, parte, algumas das conseqüências atribuídas
não podemos discordar de que também seja por autores, dentre eles, Capra, ao modelo do-
fundamentalmente isto. E aí retomamos Lèri- minante da ciência: “De acordo com o modelo
che, quando nos fala que a dor é “um fenôme- biomédico, somente o médico sabe o que é im-
no individual monstruoso e não uma lei da es- portante para a saúde do indivíduo, e só ele po-
pécie”. Se esse autor não toma a dor por doen- de fazer qualquer coisa a respeito disso, porque
ça, não nega que a dor seja um fato da doença. todo o conhecimento acerca da saúde é racio-
Por outro lado, lembra-nos Canguilhem nal, científico, baseado na observação objetiva
(1990:69): “...é unicamente por serem herdeiros de dados clínicos(...) a tendência para manter-
de uma cultura médica transmitida pelos clíni- se saudável não é comunicada, não sendo valo-
cos do passado que os médicos de hoje podem se rizada a confiança do indivíduo no seu próprio
adiantar em perspicácia clínica seus clientes organismo” (Capra, 1986:150).
habituais ou ocasionais”. De fato, a população confere autoridade aos
Deste modo, indagamos-nos: na ausência profissionais (particularmente ao médico) pa-
da mediação de um saber científico abstrato, ra definir, em grande parte, seu estado de saú-
como um indivíduo, ou um grupo, poderá en- de, o que expressa o caráter de classe da rela-
contrar outro critério para definir saúde que ção. Conforme assinala Boltanski (1984:29;37),
não a experiência concreta expressa pela au- “os membros das classes populares, conscientes
sência de dor ou outro desconforto? de sua ignorância, não são livres para desenvol-
Assim, a chamada “consciência preventiva”, ver um discurso sobre a doença, sendo suas ten-
não deveria ser tão esperada pelos profissio- tativas de explicação freqüentemente seguidas
nais de saúde, já que esta postura decorre de de uma constatação de ignorância ou do apelo
uma experiência mediatizada pela teoria, o ao único especialista autorizado a falar da
que não corresponde à experiência existencial doença: o médico (...) ao mesmo tempo, o prin-
da maioria da nossa população. cipal agente de difusão dos conhecimentos mé-
Lembremos, aqui, as dimensões tão bem dicos e aquele que limita sua reprodução”.
delimitadas por Berlinguer (1984:44) referentes Por outro lado, nossos dados discordam da
ao estar doente, sentir-se doente, identificar a radicalidade com que Capra (1986:154) afirma
doença e poder estar doente, respectivamente que “...o modelo biomédico é geralmente aceito,
caracterizando as alterações estruturais ou estando seus princípios tão enraizados na nossa
funcionais, as percepções orgânicas, a identifi- cultura que ele se tornou até o modelo popular
cação do quadro e a possibilidade material de dominante da doença”.
assumir a doença. A consideração dessas dis- Com efeito, a população usuária parece
tintas dimensões ajuda-nos a elucidar a gênese adotar muitos dos elementos do modelo bio-
dos obstáculos à conformação de uma cons- médico, entretanto não afirmaríamos que este
ciência preventivista entre a população usuá- modelo se tornou o modelo popular da doen-
ria da rede pública. ça. Isto se evidencia no modo mesmo como as
Obviamente que estas questões que alinha- categorias do discurso médico se apresentam
vamos brevemente apresentam muitas impli- na fala dos usuários. Retomando Boltanski
cações, podendo levar a vários outros desdo- (1984:30), constata-se que “a utilização pelos
bramentos. Entretanto, não sendo possível membros das classes populares de termos médi-
aprofundar a temática nos limites que aqui se cos tomados ao discurso do médico nunca está
impõem, procuramos, ao menos, não fugir à livre de subentendidos ou de reticências. O ter-
sua indicação, por entendê-la como um aspec- mo tomado da linguagem médica permanece
to importante a ser considerado no âmbito das então uma palavra estranha que não se integra
ações preventivas. na fala vulgar” e, acrescentamos, ao seu siste-
Como última observação dentro deste pri- ma de representações, de modo análogo ao lu-
meiro tema, cabe destacar a autoridade dele- gar dessas categorias no discurso médico.
gada ao médico para definir o que é estar ou Também Herzlich (1991:26) assinala que
não doente. “qualquer que seja a importância da Medici-
na Moderna, a doença (e a saúde, diríamos) é tiver o remédio na farmácia, vocês têm obriga-
um fenômeno que a ultrapassa e que a repre- ção de dar. Acontece que mesmo que tivesse o re-
sentação não é apenas esforço de formulação médio eu não queria’. Aí ele perguntou por que é
mais ou menos coerente de um saber, mas tam- que eu não queria. – Porque o senhor não me
bém questão de sentido”. Conforme vimos, pe- examinou”.
lo menos para a população usuária investiga- “Eles não escutam. Se for pedir ao médico o
da (e sem querer generalizar os achados), há dia, ele não escuta a gente. – ‘ Ah! não posso fa-
outras dimensões que se apresentam no estar zer nada!...’ A gente paga INPS, a gente tá pa-
doente. Estas, ausentes do discurso médico, gando pra eles... .”
são procuradas em outras racionalidades te- “(...) saber o motivo por que o médico não
rapêuticas. veio... às vezes a gente pode entender. Aqui não
É fato amplamente reconhecido por aque- dá satisfação não e eu acho que eles deveriam
les que atuam no cotidiano de assistência a dar sim. Você acha isto justo? Um desgraçado
questão da automedicação, da busca de tera- que vem lá da Paraíba com a família morar na
pias fora do espaço oficial (a exemplo das, as- favela. Vê se você acha isto justo... constrói um
sim chamadas, terapias alternativas – fenôme- prédio e ganha meio salário!”
no que ganha relevo na nossa sociedade). Não E quanto à participação? O que é participar
seriam estes indícios de uma resistência às im- para o grupo?
posições do modelo biomédico? Pelas várias alusões à questão da participa-
Ainda assim, não podemos desmerecer o ção da população no enfrentamento das ques-
poder médico em nossa sociedade e o mono- tões relativas à saúde, dentre outras esferas,
pólio de competência desta corporação no que torna-se claro que participar tem como princi-
tange à determinação do que é estar ou não pal objetivo ser ajudado. Nos depoimentos em
doente (Freidson, 1978). que a questão da participação merece um des-
taque, este é um mecanismo útil para expor os
A consciência sanitária problemas a fim que obter ajuda dos que ‘estão
lá em cima’, ou então, um método de resolução
Em inúmeros trechos dos depoimentos reco- de problemas que passam a ser responsabili-
lhidos, fica clara a fragilidade desta consciên- dade da população.
cia, no que tange tanto aos direitos como um “Se a gente não se reunir pra expor os pro-
todo, quanto ao direito à saúde. Entretanto, o blemas que nós temos, as pessoas que podem
interessante é perceber que mais do que pro- nos ajudar nunca sabem.”
priamente a ausência de uma consciência de “Se tem uma pessoa que te orienta, já é tudo.
direitos, nota-se a percepção nítida de que os Já tá participando. Já tá ajudando.”
direitos não existem para a massa da popula- “Participar no sindicato é bom... você tem
ção. A falta da concretização dos direitos que advogado de graça.”
não saem do papel fica clara na fala dos usuá- “Por exemplo, se mora num prédio, reunir os
rios, assim como a percepção da marcante di- moradores todos pra limpeza, consertar algo,
visão de poder presente na sociedade: conservar.”
“Infelizmente a vida é essa aí. Tem que ser o Pelo que indicam estes trechos que desta-
que eles querem, não o que a gente quer. É ou camos dentre os vários exemplos que podería-
não é? Querer não é poder.” mos citar, a concepção de participação que
“...a gente é mais baixo, a gente tem que fi- orienta o grupo, longe de significar um meca-
car por baixo mesmo. As classes baixas não têm nismo fundamental no processo de transfor-
muito poder que nem o alto.” mação social, é por ele concebida fora de sua
“A gente não pode fazer nada. A gente é bai- dimensão política, configurando uma prática
xo... Quem pode fazer é os grande lá...” perpetuadora das atuais relações.
Portanto, mais do que um desconhecimen- Dentro desta mesma linha, a população
to dos direitos, a população apresenta uma não participa de associações ou movimentos
sensação de resignação, de submissão, embora populares. Mas por que não participa?
se possa identificar na sua fala a percepção de “As pessoas não vão à Associação de Mora-
que a realidade deveria ser diferente, tendo em dores porque não acreditam. Aquela gente?... É
vista alguns direitos: aquele negócio... vai fazer e não faz.”
“Falei assim: – ‘Doutor, eu sinto muito, mas “Tá por fora esta Associação daqui. Isso aí é
esse remédio eu não vou comprar’. Afinal, ele tudo safado... Todo mundo quer tirar o dele.”
não tinha nem me examinado. Ele disse: – Por “Fazer reunião não resolve. Só faz dizer que
que é que você não vai comprar? Ninguém tem vai melhorar e a gente nunca vê melhora ne-
obrigação de dar remédio aqui não’. ‘– Tem! Se nhuma!”
za, era fácil detectar se foram bem atendidas, rios. Também retorna aqui a fala de uma parce-
se receberam afeto. la dos profissionais das unidades por nós estu-
Apenas secundariamente apareceram alu- dadas, quando apontavam o potencial estraté-
sões à competência técnica: gico da relação que estabelecem com os usuá-
“Ele é um bom médico. Pelo menos nunca rios (Bosi, 1994). Cientes da dimensão política
errou em nada.” presente na sua prática, que para o grupo não
“Um médico bom vê o problema da gente as- é só um fazer técnico, estes profissionais se dão
sim de cara.” conta de que o “incêndio que todos os dias lhes
Ao lado da importância da dimensão afeti- é dado apagar”, impossibilita-lhes contribuir
va, há que ressaltar que a população, não pos- para o processo de conscientização no sentido
suindo critérios técnicos para avaliar a compe- de uma transformação para melhor da situa-
tência do médico, lança mão de outros parâ- ção atual.
metros usados “cotidianamente na apreciação Enquanto isto, o que pensam os usuários
de outrem: amabilidade, a boa vontade, a com- sobre a possibilidade de alteração deste qua-
placência” (Boltanski, 1984:38). dro?
É importante destacar o quanto a popula-
ção reverencia as opiniões dos médicos consi- A transformação do quadro atual
derados “bons”. A figura do médico – e não a de
outros profissionais da equipe – e a relação que Aqui, o sentimento predominante que emana
mantém com os usuários é um elemento cen- dos depoimentos é a sensação de desânimo e
tral e de grande valor estratégico no espaço do desamparo; de não ter como reclamar e nem
atendimento; sua opinião tem grande influên- para quem:
cia até mesmo na esfera privada da vida das “A gente vai reclamar com quem? Vai falar
pessoas: com quem? E com quem a gente reclama, será
“Qualquer problema que eu sinto, até fami- que vai tomar alguma atitude?”
liar, eu converso com ele. Além de médico, ele é “Porque muita gente já reclamou e não
um amigo.” adiantou nada. Continua a mesma coisa...”
“Sabe, ele não vê esse negócio de paciente, ele “A gente não pode fazer nada. A gente vai re-
vê o que é melhor para mim. O que vai aconte- clamar com quem? Acho que não tem ninguém
cer de bom (...) pra mim, ele é assim, ‘super pai’.” pra gente chegar e falar.”
“É o seguinte: ele sabe conversar com a gen- Estes depoimentos (e, particularmente, o
te, dizer pra gente o que deve fazer, o que não de- estado de ânimo percebido nos relatos) apon-
ve fazer.” tam para uma reflexão, a nosso ver, digna de
“Porque a gente, quando chega perto do mé- destaque no que se refere ao tema em análise:
dico pra conversar, a gente nunca diz aquilo tu- os elementos que possibilitam a superação da
do que sente. Sempre fica faltando alguma coi- situação atual.
sa. Então ele me deixou bem à vontade. Eu pude Se uma reivindicação tem sempre por trás
falar boa parte dos problemas.” algo que está faltando, não basta, como desta-
Como se vê, a relação médico-paciente se cam Cohn & Jacob (1991), a presença de uma
baseia no duo afeto/confiança, o que confere carência para que se tenha uma reivindicação.
ao médico uma grande parcela de poder exer- Segundo afirmam esses autores, torna-se ne-
cido no cotidiano de tal relação, ainda que os cessário que a sociedade também tenha se co-
dois pólos nem sempre tenham consciência locado claramente a possibilidade de solucio-
disto. Poder que poderá influenciar não só na nar o problema e que, por sua vez, a solução
conduta das pessoas diante das ações desen- seja eticamente aceitável.
volvidas pelos serviços, como também na fa- Pelo que verificamos, muito mais do que
mília, no trabalho, na comunidade. um diagnóstico do que lhe é devido, falta à po-
E aí também se recoloca a tensão muitas pulação a crença de que a situação pode mu-
vezes verbalizada pela parcela dos profissio- dar. Os usuários acreditam que a realidade só
nais de saúde que reconhecem a importância pode ser transformada por outros segmentos;
central dos aspectos qualitativos do atendi- se alguém pode transformar esta realidade,
mento. Podemos perceber a dificuldade que certamente não são eles, já que se percebem
encontram para conciliar a continuidade de claramente excluídos do poder. Mais do que is-
um atendimento que seja bom para o usuário to: não percebem em si qualquer possibilidade
com o crescimento acelerado da demanda. de exercer poder.
A tensão quantitativo/qualitativo vivida pe- Com a crise ética que vem se agravando em
los profissionais parece encontrar suporte vários setores (Berlinguer, 1993; Rouanet, 1993;
quando se analisa a subjetividade dos usuá- Costa, 1994) em face do descompromisso con-
tinuado dos dirigentes com a saúde, torna-se quiste a eqüidade. A despeito dos avanços ob-
compreensível, assim, que esta seja a visão dos tidos no plano legal, a realidade dos serviços
usuários. oferecidos à população em muito se distancia
Por outro lado, na ausência de canais de da garantia do direito à saúde, tão almejada em
participação efetiva, mesmo que a população nosso País.
queira, torna-se muito difícil reivindicar, so- Para tanto, há que se considerar o papel dos
bretudo num contexto em que mesmo seg- usuários em sua relação com os profissionais e
mentos sociais mais fortemente organizados serviços, diante do desafio de construção de
defrontam-se com obstáculos excepcionais pa- uma consciência sanitária; por outro lado, rea-
ra levar à frente sua demandas. Desta forma, firma-se aqui a necessidade de estudos funda-
simples reclamações são, muitas vezes, evita- mentados na abordagem qualitativa, a fim de
das e substituídas por outras formas de expres- inserir a subjetividade dos atores – dimensão,
são desta insatisfação, como, por exemplo, o em geral, esquecida – nos planos e programas
abandono aos serviços. Os trechos abaixo reti- do setor.
rados das falas dos usuários são claros: Em relação às concepções dos usuários, a
“Eu não reclamo. Eu vou embora. A gente é presente investigação apontou importantes
mais baixo...” elementos, os quais se, por um lado, constatam
“Eu sou do tipo de pessoa que tem vergonha, o distanciamento do grupo da condição de ci-
não reclamo, eu procuro me calar.” dadãos, por outro, identificam aspectos funda-
mentais que, embora presentes na subjetivida-
de do grupo, não encontram canais de expres-
Conclusão são, principalmente no plano concreto das prá-
ticas.
Por meio deste estudo, constatamos, mais uma Por último, cabe ressaltar o papel estratégi-
vez, a falta de correspondência entre o discur- co das relações estabelecidas no cotidiano dos
so legal e a realidade concreta a que se referem. serviços para o processo de mudança social e
No caso específico do setor saúde, há ainda um construção dos direitos, em especial, no cam-
longo caminho a ser percorrido até que se con- po da saúde.
Agradecimentos Referências
As autoras agradecem a Rosa Maria Magalhães de ALVES, P. C. & MINAYO, M. C. S. (orgs.), 1994. Saúde e
Oliveira, pelo auxílio na realização do trabalho de Doença: Um Olhar Antropológico. Rio de Janeiro:
campo; à direção e às chefias das instituições partici- Editora Fiocruz.
pantes e, em especial, aos usuários, pelos depoimen- BERLINGUER, G., 1978. Medicina e Política. São
tos que nos confiaram. Esta pesquisa foi desenvolvi- Paulo: Hucitec.
da com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à BERLINGUER, G., 1993. O direito à vida e a ética da
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). saúde. Lua Nova, 30:121-143.
BERLINGUER, G., 1988. A Doença. São Paulo: Cebes/
Hucitec.
BOBBIO, N., 1992. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro:
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