355 Artigo Article: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14 (2) :355-365, Abr-Jun, 1998

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ARTIGO ARTICLE 355

Cidadania, participação popular e saúde:


com a palavra, os usuários da Rede Pública
de Serviços

Citizenship, people’s participation, and health:


beneficiaries of the Public Health Services Network
have their say

Maria Lúcia Magalhães Bosi 1


Kátia de Carvalho Affonso 2

1 Departamento de Saúde Abstract This paper deals with issues of citizenship and people’s participation in health ser-
Comunitária, Faculdade
vices, based on an analysis of concepts displayed by a specific group, i.e., users of Primary Care
de Medicina, Universidade
Federal do Ceará. Clinics in Program Area 3.1 in the city of Rio de Janeiro, Brazil. The paper analyzes health care
Rua Prof. Costa Mendes 1608, users’ ideas as the ones most heavily influencing the chapter on health in the Brazilian Constitu-
5 o andar, Fortaleza, CE
tion. The historical context is the discussion underway on the role of patients in the relationship
60431-970, Brasil.
malubosi@agevir.com.br to professional health care providers, who in turn face the challenge of building a “health and
2 Núcleo de Estudos de hygiene mentality” among the people. Data were gathered through a field study using a qualita-
Saúde Coletiva, Hospital
tive social research methodology and identify salient points among the ideas of people receiving
Universitário Clementino
Fraga Filho, Universidade care. There was a gap (or distortion) in their concept of citizenship alongside aspects which, if
Federal do Rio de Janeiro. analyzed according to the subjective plane of these social agents, show that they expect channels
Av. Brigadeiro Trompowisky
s/no, 5o andar, Rio de Janeiro, RJ
to be created by which they can express their opinions, particularly at the practical level. The
21949-900, Brasil. analysis thus points to the strategic role of day-to-day relationships in the social change process
and the acquisition of rights, meanwhile seeking to shed light on the feasibility of this process in
view of the subjectivity of the agents giving it life.
Key words Consumer Participation; Health Services Research; Public Health

Resumo Este trabalho aborda a questão da cidadania e da participação popular em saúde, ten-
do por base a análise das concepções de um grupo específico: os usuários que freqüentam as Uni-
dades de Cuidados Básicos da Área Programática 3.1 do Município do Rio de Janeiro, Brasil.
Analisa-se suas concepções referentes ao tema em estudo, confrontando-as com as que orientam
o texto constitucional no capítulo referente à saúde, ao mesmo tempo em que se discute o papel
dos usuários em sua relação com os profissionais que os assistem, em face do desafio da constru-
ção de uma ‘consciência sanitária’. As informações foram obtidas a partir da aplicação de técni-
cas qualitativas e apontam importantes elementos nas concepções dos usuários; se por um lado,
constata-se um distanciamento da condição de cidadãos, por outro, indica-se a existência de as-
pectos que, situados no plano subjetivo, aguardam a construção de canais que possibilitem a
sua expressão, sobretudo no nível das práticas. Neste sentido, a análise aponta, ainda, para o pa-
pel estratégico desempenhado pelas relações cotidianas no processo de mudança social e cons-
trução dos direitos, buscando simultaneamente elucidar a viabilidade deste processo tendo em
vista a subjetividade dos agentes que lhe dão vida.
Palavras-chave Participação Comunitária; Pesquisa sobre Serviços de Saúde; Saúde Pública

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Introdução Por outro lado, para que a relação dialética


conscientização/participação se desenvolva,
Este estudo versa sobre o tema da cidadania e parece-nos estratégico, no caso do setor saúde,
da participação popular no campo da saúde, o espaço micro da participação representado
enfocando as concepções de um grupo social por relações cotidianas, como as que se esta-
específico – os usuários das Unidades de Cui- belecem nos serviços de saúde. O cotidiano en-
dados Básicos de Saúde da Área Programática quanto experiência de vida torna-se funda-
3.1 do Município do Rio de Janeiro –, dando mental à localização de elementos através dos
continuidade à discussão que iniciamos em quais os atores sociais constroem suas percep-
outro número deste periódico (Bosi, 1994), em ções, ao mesmo tempo em que representa um
que abordamos a questão baseando-nos na espaço de luta, de exercício de poder, poder
subjetividade dos profissionais de saúde atuan- aqui entendido “não como um objeto natural,
tes nessas mesmas Unidades. uma coisa” (Machado, 1981:XII), mas como
Retomando os principais pressupostos que prática social e como tal constituída historica-
fundamentam esta investigação, partimos do mente podendo-se (nele) distinguir uma situa-
princípio de que a declaração de direitos que ção central e (outra) periférica, um nível macro
compõe a Constituição Brasileira (promulgada e (um) micro de exercício (Foucault, 1981).
em 1988) caracteriza-a como um dos textos A construção gradual de uma consciência
constitucionais mais avançados do mundo, em sanitária alimenta-se de práticas vivenciadas
especial no que se refere aos direitos no campo na realidade cotidiana e, neste plano, as expli-
da saúde. cações voltadas ao plano macroestrutural não
Contudo, é oportuno lembrarmos que “é parecem dar conta da complexidade das rela-
função prática da linguagem dos direitos, a de ções (sobretudo na esfera da subjetividade) aí
emprestar força particular às reivindicações dos presentes. Falar em construção da cidadania e
movimentos que demandam para si e para os em participação popular no campo da saúde –
outros satisfação de novas carências materiais e portanto, em exercício de direitos – pede uma
morais, ao mesmo tempo em que a torna enga- reflexão sobre estas noções tal como se apre-
nadora e obscurece a diferença entre o direito sentam na subjetividade que se associa à práti-
reivindicado e o direito reconhecido e protegi- ca dos usuários do setor.
do” (Bobbio, 1992:10). O papel dos usuários de saúde na relação
No caso brasileiro, o desafio que se coloca é cotidiana que estabelecem com a rede dos ser-
o de materializar em práticas as conquistas es- viços e com os profissionais que nela atuam,
tabelecidas no plano legal. Toda reflexão que longe de significar a mera busca de assistência,
será aqui desenvolvida sobre a questão do di- inscreve-se numa prática pluridimensional,
reito à saúde, a exemplo dos demais direitos dentre as quais se pode destacar a dimensão
sociais, pressupõe que sua conceituação deriva política.
de “um processo dinâmico e histórico onde estes Contribuir para o desvendamento da sub-
direitos emergem gradualmente de lutas que o jetividade deste grupo foi o que objetivamos
homem trava por sua própria emancipação e valendo-nos da análise da questão da cidada-
das transformações das condições de vida que nia, participação popular e saúde no interior
estas lutas produzem” (Bobbio, 1992:32). deste espaço.
Dentro do que aqui denominamos processo
de construção dos direitos em saúde, destaca-
mos dois aspectos como fundamentais: o pri- Percurso metodológico
meiro deles, a construção de uma consciência
sanitária entendida no contexto deste estudo Nosso estudo desenvolveu-se junto aos usuá-
como “a tomada de consciência de que a saúde rios que freqüentam as Unidades de Saúde per-
é um direito da pessoa” (Berlinguer, 1978:50); o tencentes à Área Programática 3.1 (AP-3.1) do
segundo aspecto, intrinsecamente associado Município do Rio de Janeiro. Esta área envolve
ao primeiro, a participação popular como me- a região da Ilha do Governador e Leopoldina,
canismo fundamental no referido processo. abrangendo, à época do estudo, um total de 38
Dentro do tema Cidadania e Saúde, a ques- bairros e 84 favelas – população que representa
tão da participação popular não pode ser, por- 14,5% da população total do Município do Rio
tanto, negligenciada, daí seu destaque dentro de Janeiro, sendo a terceira área em densidade
deste estudo, especialmente por se constituir demográfica no município (Carvalho, 1991).
também em direito garantido no texto consti- Dados sobre esta região atestam que nela
tucional, compondo uma das principais dire- residem 865.754 habitantes, sendo 23,1% cons-
trizes do atual sistema de saúde. tituídos por favelados, que representam 20,8%

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PARTICIPAÇÃO POPULAR E SAÚDE 357

da população favelada do Rio de Janeiro (Iplan- forma da linguagem e, deste modo, apreensível
rio, 1990). no discurso dos usuários do setor.
Nosso espaço de observação correspon- Partindo dessas premissas, realizamos nos-
deu, portanto, às unidades públicas de servi- so estudo junto à população usuária das uni-
ços básicos, localizadas na área programática dades de saúde já citadas. Optamos por entre-
em que se insere a Universidade Federal do vistar pessoas que há mais tempo freqüenta-
Rio de Janeiro (AP-3.1), o que significa dizer vam as unidades e que mantinham uma certa
que trabalhamos com um universo de cinco regularidade dentro desta prática. Buscávamos
unidades: algumas ligadas a instituições for- com isto usuários que já tivessem estabelecido
madoras – Germano Sinval Faria (Ensp), Vila um vínculo com as instituições e, conseqüen-
do João (UFRJ) –, e as não vinculadas – centros temente, com seus profissionais. Outro crité-
municipais de saúde de Ramos, Penha e Ilha rio, este de ordem mais prática, foi o de esco-
do Governador. Sendo, fundamentalmente, a lher os entrevistados dentre os usuários que
dimensão subjetiva o plano no qual se situa aguardavam atendimento no interior das uni-
nosso objeto, o material básico com que tra- dades e, portanto, dispunham de tempo para
balhamos foi o discurso dos agentes. A natu- nos oferecer seus depoimentos.
reza do objeto impôs a metodologia qualitati- Já que partimos de uma perspectiva quali-
va como concepção teórica de abordagem, na tativa, no que se refere à amostragem, não se
medida em que se apresenta como “aquela colocaram para nós questões como represen-
capaz de incorporar a questão do significado e tatividade, verificabilidade ou generalização
da intencionalidade como inerentes aos atos, nos termos em que estas questões, dentre ou-
às relações e às estruturas sociais” (Minayo, tras, impõem-se à tradição quantitativa. Aqui,
1992:10). nossa preocupação foi “menos com a generali-
Bakhtin (1986), apud Minayo (1992:110), zação e mais com o aprofundamento e abran-
considera a palavra “o fenômeno ideológico por gência da compreensão”....Um critério não nu-
excelência” e define o “caráter histórico e social mérico, portanto a amostra ideal sendo “aque-
da fala como campo de expressão das relações e la capaz de refletir a totalidade nas suas múlti-
das lutas sociais que ao mesmo tempo sofre os plas dimensões” (Minayo, 1992:102).
efeitos da luta e serve de instrumento e de mate- A questão da validade dessa amostra foi por
rial para a sua comunicação”. É a partir da pa- nós assumida pela sua capacidade de respon-
lavra que se pode, portanto, aprender o con- der às questões que nos colocávamos, conside-
teúdo simbólico das práticas. rando-se suficiente o número de entrevistas no
As ciências sociais empregam o termo Re- momento em que observávamos a reiteração e
presentações Sociais para nomear as catego- esgotamento das categorias nos discursos dos
rias de pensamento, de ação e de sentimento entrevistados.
que expressa a realidade, no sentido de afirmá- Dentre as técnicas disponíveis, optamos
la ou negá-la (Minayo, 1992). Deste modo, des- pela entrevista, elegendo, na medida do possí-
vendar um dado aspecto da realidade impõe o vel, o procedimento não diretivo, por entendê-
conhecimento não só do fato objetivo, como lo como um meio que possibilitaria ao entre-
também da sua representação. Qualquer co- vistado discorrer sobre o tema em questão, sob
nhecimento que pretenda informar um fenô- uma lógica própria. Entretanto, optar por esta
meno social, exatamente por ser social neces- técnica não implica destituí-la de problemas, a
sita considerar estas duas dimensões. começar pelo que se entende por não diretivi-
No caso específico deste trabalho, falar em dade (Michelat, 1975; Thiollent, 1987).
direito, cidadania e controle social em saúde, Ainda assim, e sem desconhecer as ques-
conceitos fortemente vinculados ao processo tões sócio-epistemológicas aí envolvidas, cuja
de conscientização da saúde como um direito, complexidade não pode ser aqui analisada,
implica o conhecimento da dimensão subjeti- adotamos a perspectiva de Michelat (1975),
va – representações, idéias, pensamentos – dos quando sugere a entrevista não diretiva como
sujeitos envolvidos. O resgate dessa subjetivi- uma técnica que oferece vantagens para apre-
dade vem constituindo um alvo de reflexão ca- ensão do conteúdo simbólico, permitindo ao
da vez mais ressaltado na literatura recente entrevistado uma ‘atitude de exploração’, na
(Minayo & Coimbra Jr., 1993; Alves & Minayo, medida em que não estrutura completamente
1994). o campo de investigação.
No que se refere à consciência sanitária, e
considerando estratégico o espaço da assistên-
cia, nosso ponto de partida foi o estudo das
manifestações desta consciência expressas sob

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Cidadania, participação popular e saúde: beça. Eu fico assim xôxo, encabulado. Eu perco
a visão dos usuários até o apetite... Aí muda o funcionamento do
corpo todo.”
• A análise do material obtido das entrevistas “Pra que é que eu vou tomar isto? Se eu tiver
levantou um grande volume de informações que pegar, quem sabe é Deus.”
que, após sucessivas leituras e classificações, Para este grupo, saúde é um estado que de-
foram organizadas em torno do que se poderia pende da natureza, das relações sociais, das re-
considerar quatro grandes temas, por meio dos lações afetivas e de Deus (ou outros ‘seres
quais procuramos apreender nosso objeto: o superiores’, entidades do domínio espiritual).É
conceito de saúde, a consciência sanitária, o portanto, uma concepção que, apesar de incor-
cotidiano do atendimento, a transformação do porar o discurso médico (biológico), ultrapas-
quadro atual. sa-o revelando (e, em certos momentos, colo-
cando em questão), por meio da análise da gê-
O Conceito de Saúde nese da doença, a própria ordem social (Herz-
lich, 1991).
No discurso da população, a saúde aparece co- Assim, por meio dos discursos emitidos so-
mo um conceito pluridimensional, ultrapas- bre a doença, evidenciam-se as vivências, o co-
sando, em muito, a dimensão biológica. tidiano das pessoas – aspecto que, em vários
Nosso estudo reforça as conclusões de ou- pontos, insinua-se na fala dos usuários.
tros autores que, trabalhando com a visão po- “Uma pessoa saudável é igual eu, tenho saú-
pular referente à saúde, apontam diferentes ní- de, graças a Deus. Disposição que Deus me dá
veis que se integram na concepção do grupo. prá trabalhar.”
Ngokwey (1988) apud Minayo (1988:357), “Estar doente é não dar pra fazer nada, me
pesquisando o sistema etiológico popular ba- dá uma moleza, aí eu falo pra mim: Eu tô doen-
seado em um estudo com famílias na região de te.”
Feira de Santana, na Bahia, aponta vários do- “Quando eu estou bem? Quando estou sem-
mínios que se integram nas explicações formu- pre trabalhando.”
ladas pelos entrevistados: Por outro lado, a manifestação fundamen-
a) natural; tal da doença é a dor.
b) psicossocial; “Ah! Quando eu não estou sentindo nenhu-
c) sócio-econômico; ma dor, né? Aí estou bem, com saúde.”
d) sobrenatural. “Quando não estou sentindo nada... não
No modelo acima, a causação natural refe- sentindo nada, não tem problema.”
re-se à relação entre a saúde e os fenômenos da “Uma pessoa saudável é uma pessoa que
natureza; a sócio-econômica, às condições ma- não sente nada.”
teriais de existência (salário, alimentação, as Em um estudo desenvolvido junto aos pro-
relações no trabalho etc.); a psicossocial, aos fissionais de saúde (Bosi, 1994), verificamos
sentimentos e emoções e, finalmente, a sobre- que, de modo unânime, eles indicaram que,
natural ao domínio metafísico, espiritual (Mi- para a população, a saúde se reduz à ausência
nayo, 1988). de dor, fato que, segundo estes profissionais,
Estas mesmas dimensões foram identifica- liga-se à ausência de uma ‘postura preventiva’
das na fala dos usuários da rede pública de ser- por parte dos usuários.
viços por nós estudados. A pluridimensionali- Entretanto, tomando como base os depoi-
dade do fenômeno saúde emergiu no discurso, mentos anteriores, podemos relativizar esta
a partir das referências feitas ora à etiologia das constatação se considerarmos alguns outros
doenças, ora à conceituação mais direta daqui- ângulos, a partir dos quais se pode pensar a
lo que o grupo entende por saúde. Nas trans- questão. Inevitavelmente nos vem à lembrança
crições abaixo, podemos constatar, respectiva- o pensamento de Lèriche (1936) apud Cangui-
mente, as quatro dimensões apontadas por lhem (1990:73) que “ao definir a doença não
Ngokwey (1988) apud Minayo (1988). achou outro meio de defini-la a não ser por seus
“Em primeiro lugar, pra ter saúde é preciso efeitos”. Do ponto de vista do doente, a saúde,
ter uma boa alimentação, né?” afirma Lèriche, “é a vida no silêncio dos órgãos”
“ Eu acho que o que deixa as pessoas mais e “a doença (...) aquilo que perturba os homens
doentes hoje em dia é o custo de vida. Tem gente no exercício da sua vida e em suas ocupações”
que às vezes não tem alimentação direito porque (Lèriche, 1936 apud Canguilhem, 1990:68).
ganha só o salário; muito desemprego também...” Com efeito, Lèriche reconhece que “o silên-
“Porque eu quando, assim, me aborreço, cio dos órgãos” não equivale à inexistência da
uma das primeiras coisas que me dá é dor de ca- doença, mas acaba por concluir que se de ou-

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PARTICIPAÇÃO POPULAR E SAÚDE 359

tro modo “quisermos definir a doença será pre- “Os outros fica assim: ‘Ah! tá muito magra’,
ciso desumanizá-la” (Lèriche, 1936 apud Can- aí eu fico assim! ‘Pôxa’. Aí eu me olho no espe-
guilhem, 1990:22-23). lho... Ah! Eu vou lá no médico”.
Um fato bastante recorrente na literatura e “Eu tenho que ir no médico pra ver o que é.”
nas discussões no campo da saúde coletiva é a “Mas assim mesmo com saúde é sempre bom
redução que o conceito de saúde sofre quando a gente vir ao médico, para ver se realmente a
se iguala à ausência de dor (indicativo da au- gente está com saúde, né?
sência de doença). Se estamos de acordo com As falas acima transcritas reforçam, em
o fato de que saúde é muito mais do que isto, parte, algumas das conseqüências atribuídas
não podemos discordar de que também seja por autores, dentre eles, Capra, ao modelo do-
fundamentalmente isto. E aí retomamos Lèri- minante da ciência: “De acordo com o modelo
che, quando nos fala que a dor é “um fenôme- biomédico, somente o médico sabe o que é im-
no individual monstruoso e não uma lei da es- portante para a saúde do indivíduo, e só ele po-
pécie”. Se esse autor não toma a dor por doen- de fazer qualquer coisa a respeito disso, porque
ça, não nega que a dor seja um fato da doença. todo o conhecimento acerca da saúde é racio-
Por outro lado, lembra-nos Canguilhem nal, científico, baseado na observação objetiva
(1990:69): “...é unicamente por serem herdeiros de dados clínicos(...) a tendência para manter-
de uma cultura médica transmitida pelos clíni- se saudável não é comunicada, não sendo valo-
cos do passado que os médicos de hoje podem se rizada a confiança do indivíduo no seu próprio
adiantar em perspicácia clínica seus clientes organismo” (Capra, 1986:150).
habituais ou ocasionais”. De fato, a população confere autoridade aos
Deste modo, indagamos-nos: na ausência profissionais (particularmente ao médico) pa-
da mediação de um saber científico abstrato, ra definir, em grande parte, seu estado de saú-
como um indivíduo, ou um grupo, poderá en- de, o que expressa o caráter de classe da rela-
contrar outro critério para definir saúde que ção. Conforme assinala Boltanski (1984:29;37),
não a experiência concreta expressa pela au- “os membros das classes populares, conscientes
sência de dor ou outro desconforto? de sua ignorância, não são livres para desenvol-
Assim, a chamada “consciência preventiva”, ver um discurso sobre a doença, sendo suas ten-
não deveria ser tão esperada pelos profissio- tativas de explicação freqüentemente seguidas
nais de saúde, já que esta postura decorre de de uma constatação de ignorância ou do apelo
uma experiência mediatizada pela teoria, o ao único especialista autorizado a falar da
que não corresponde à experiência existencial doença: o médico (...) ao mesmo tempo, o prin-
da maioria da nossa população. cipal agente de difusão dos conhecimentos mé-
Lembremos, aqui, as dimensões tão bem dicos e aquele que limita sua reprodução”.
delimitadas por Berlinguer (1984:44) referentes Por outro lado, nossos dados discordam da
ao estar doente, sentir-se doente, identificar a radicalidade com que Capra (1986:154) afirma
doença e poder estar doente, respectivamente que “...o modelo biomédico é geralmente aceito,
caracterizando as alterações estruturais ou estando seus princípios tão enraizados na nossa
funcionais, as percepções orgânicas, a identifi- cultura que ele se tornou até o modelo popular
cação do quadro e a possibilidade material de dominante da doença”.
assumir a doença. A consideração dessas dis- Com efeito, a população usuária parece
tintas dimensões ajuda-nos a elucidar a gênese adotar muitos dos elementos do modelo bio-
dos obstáculos à conformação de uma cons- médico, entretanto não afirmaríamos que este
ciência preventivista entre a população usuá- modelo se tornou o modelo popular da doen-
ria da rede pública. ça. Isto se evidencia no modo mesmo como as
Obviamente que estas questões que alinha- categorias do discurso médico se apresentam
vamos brevemente apresentam muitas impli- na fala dos usuários. Retomando Boltanski
cações, podendo levar a vários outros desdo- (1984:30), constata-se que “a utilização pelos
bramentos. Entretanto, não sendo possível membros das classes populares de termos médi-
aprofundar a temática nos limites que aqui se cos tomados ao discurso do médico nunca está
impõem, procuramos, ao menos, não fugir à livre de subentendidos ou de reticências. O ter-
sua indicação, por entendê-la como um aspec- mo tomado da linguagem médica permanece
to importante a ser considerado no âmbito das então uma palavra estranha que não se integra
ações preventivas. na fala vulgar” e, acrescentamos, ao seu siste-
Como última observação dentro deste pri- ma de representações, de modo análogo ao lu-
meiro tema, cabe destacar a autoridade dele- gar dessas categorias no discurso médico.
gada ao médico para definir o que é estar ou Também Herzlich (1991:26) assinala que
não doente. “qualquer que seja a importância da Medici-

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na Moderna, a doença (e a saúde, diríamos) é tiver o remédio na farmácia, vocês têm obriga-
um fenômeno que a ultrapassa e que a repre- ção de dar. Acontece que mesmo que tivesse o re-
sentação não é apenas esforço de formulação médio eu não queria’. Aí ele perguntou por que é
mais ou menos coerente de um saber, mas tam- que eu não queria. – Porque o senhor não me
bém questão de sentido”. Conforme vimos, pe- examinou”.
lo menos para a população usuária investiga- “Eles não escutam. Se for pedir ao médico o
da (e sem querer generalizar os achados), há dia, ele não escuta a gente. – ‘ Ah! não posso fa-
outras dimensões que se apresentam no estar zer nada!...’ A gente paga INPS, a gente tá pa-
doente. Estas, ausentes do discurso médico, gando pra eles... .”
são procuradas em outras racionalidades te- “(...) saber o motivo por que o médico não
rapêuticas. veio... às vezes a gente pode entender. Aqui não
É fato amplamente reconhecido por aque- dá satisfação não e eu acho que eles deveriam
les que atuam no cotidiano de assistência a dar sim. Você acha isto justo? Um desgraçado
questão da automedicação, da busca de tera- que vem lá da Paraíba com a família morar na
pias fora do espaço oficial (a exemplo das, as- favela. Vê se você acha isto justo... constrói um
sim chamadas, terapias alternativas – fenôme- prédio e ganha meio salário!”
no que ganha relevo na nossa sociedade). Não E quanto à participação? O que é participar
seriam estes indícios de uma resistência às im- para o grupo?
posições do modelo biomédico? Pelas várias alusões à questão da participa-
Ainda assim, não podemos desmerecer o ção da população no enfrentamento das ques-
poder médico em nossa sociedade e o mono- tões relativas à saúde, dentre outras esferas,
pólio de competência desta corporação no que torna-se claro que participar tem como princi-
tange à determinação do que é estar ou não pal objetivo ser ajudado. Nos depoimentos em
doente (Freidson, 1978). que a questão da participação merece um des-
taque, este é um mecanismo útil para expor os
A consciência sanitária problemas a fim que obter ajuda dos que ‘estão
lá em cima’, ou então, um método de resolução
Em inúmeros trechos dos depoimentos reco- de problemas que passam a ser responsabili-
lhidos, fica clara a fragilidade desta consciên- dade da população.
cia, no que tange tanto aos direitos como um “Se a gente não se reunir pra expor os pro-
todo, quanto ao direito à saúde. Entretanto, o blemas que nós temos, as pessoas que podem
interessante é perceber que mais do que pro- nos ajudar nunca sabem.”
priamente a ausência de uma consciência de “Se tem uma pessoa que te orienta, já é tudo.
direitos, nota-se a percepção nítida de que os Já tá participando. Já tá ajudando.”
direitos não existem para a massa da popula- “Participar no sindicato é bom... você tem
ção. A falta da concretização dos direitos que advogado de graça.”
não saem do papel fica clara na fala dos usuá- “Por exemplo, se mora num prédio, reunir os
rios, assim como a percepção da marcante di- moradores todos pra limpeza, consertar algo,
visão de poder presente na sociedade: conservar.”
“Infelizmente a vida é essa aí. Tem que ser o Pelo que indicam estes trechos que desta-
que eles querem, não o que a gente quer. É ou camos dentre os vários exemplos que podería-
não é? Querer não é poder.” mos citar, a concepção de participação que
“...a gente é mais baixo, a gente tem que fi- orienta o grupo, longe de significar um meca-
car por baixo mesmo. As classes baixas não têm nismo fundamental no processo de transfor-
muito poder que nem o alto.” mação social, é por ele concebida fora de sua
“A gente não pode fazer nada. A gente é bai- dimensão política, configurando uma prática
xo... Quem pode fazer é os grande lá...” perpetuadora das atuais relações.
Portanto, mais do que um desconhecimen- Dentro desta mesma linha, a população
to dos direitos, a população apresenta uma não participa de associações ou movimentos
sensação de resignação, de submissão, embora populares. Mas por que não participa?
se possa identificar na sua fala a percepção de “As pessoas não vão à Associação de Mora-
que a realidade deveria ser diferente, tendo em dores porque não acreditam. Aquela gente?... É
vista alguns direitos: aquele negócio... vai fazer e não faz.”
“Falei assim: – ‘Doutor, eu sinto muito, mas “Tá por fora esta Associação daqui. Isso aí é
esse remédio eu não vou comprar’. Afinal, ele tudo safado... Todo mundo quer tirar o dele.”
não tinha nem me examinado. Ele disse: – Por “Fazer reunião não resolve. Só faz dizer que
que é que você não vai comprar? Ninguém tem vai melhorar e a gente nunca vê melhora ne-
obrigação de dar remédio aqui não’. ‘– Tem! Se nhuma!”

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PARTICIPAÇÃO POPULAR E SAÚDE 361

“A gente perde tempo, sabe? Fica lá esse tem- O cotidiano do atendimento


po todinho, mas você não vê nada... É por isso
que não me interesso.” Uma afirmação bastante comum, ratificada in-
Podemos dizer que, ao lado de problemas clusive pelo estudo que realizamos junto a pro-
relacionados ao cotidiano das pessoas entre- fissionais de saúde (Bosi, 1994), é que, para os
vistadas (cansaço, falta de tempo etc.), há uma usuários, sem dúvida, o importante é ser aten-
forte descrença nos seus representantes. A bai- dido.
xa representatividade das lideranças revela-se, Com efeito, podemos dizer que esta expec-
portanto, um elemento essencial para a com- tativa esteve presente em todos os depoimen-
preensão da fragilidade de certas instâncias. tos obtidos. A população não suporta a nega-
No entanto, caberia explorar o papel que a par- ção do atendimento, apesar de demonstrar até
ticipação nesses, dentre outros mecanismos, uma boa dose de tolerância com os serviços,
pode desempenhar no processo de capacita- conforme veremos adiante.
ção desses atores para a negociação, junto a “Assim, certas coisas eu não aceito, como por
outros (particularmente, gerentes e profissio- exemplo, eu vir pra cá porque a minha filha ta-
nais das unidades), do atendimento de suas va muito doente, cheguei aqui às sete e meia ...
demandas. não tinha mais número. Chegou uma moça, pe-
Além disso, cabe destacar o crescimento da gou número. Então, tem certas coisas que a gen-
violência e de novas formas de dominação pre- te não consegue entender.”
sentes nos centros urbanos, destacando-se, “A doutora mandou eu trazer ela quinta-fei-
dentre estas, o narcotráfico, com seus desdo- ra. Eu trouxe. Cheguei aqui seis horas, não tinha
bramentos no nível da organização popular. mais número.”
Nos relatos, pudemos perceber o medo de “Agora, se eu não consegui pegar número e a
um envolvimento efetivo com as associações outra conseguiu, eu não entendo.”
nas alusões a tumultos, brigas, medo de sair de “Se a gente chegar aqui às seis horas, já não
casa etc. Este elemento encontra respaldo na pega número, tem que tá aqui às cinco horas?
opinião de Duarte et al. (1992): “Na periferia Sair de casa às quatro e meia, ou antes, é cedo
das grandes cidades – aparentemente, de modo demais, está escuro.”
acentuado no Rio de Janeiro – veio crescendo ao “Devia ter mais número porque, por exem-
longo da última década o poder de quadrilhas plo, para a gente trazer uma criança... cinco ho-
inicialmente ligadas aos jogos e loterias ilegais ras da manhã, com a fila... e ser atendida às 10
e agora, cada vez mais, à rede do narcotráfico”. da manhã... Pôxa! Desgasta a criança... .”
O autor acrescenta, ainda, que: “O poder juris- “Tá com um ano marcando a consulta. Ain-
dicional do crime organizado é conhecido em da não consegui. Um ano!”
diversas partes do mundo metropolitano mas o “A pessoa entra com um caso gravíssimo e
que distingue sua ação nos contextos periféricos não é atendida. E outra que não tem problema é
como o brasileiro, é o grau de penetrabilidade e atendida. Eu não entendo.”
a capacidade de obtenção de legitimidade para Poderíamos continuar destacando dezenas
certos efeitos e níveis – constrangendo as formas de trechos nos quais se torna patente que a po-
e limites muito singulares as possibilidades de pulação sente como uma violência a lógica do
consolidação da cidadania nesses meios popu- atendimento. Distante do cotidiano de trabalho
lares”. dos profissionais de saúde, para quem, muitas
Vemos assim que a afirmação da cidadania vezes, esta lógica representa uma importante
é um processo que encontra dificuldades não carga de trabalho (Bosi, 1994), os usuários in-
só no plano da subjetividade, como também, terpretam como uma injustiça os critérios utili-
ou mais, no nível das práticas nas quais se zados na organização da assistência e, em par-
constrói. Ao que parece, para os usuários da re- ticular, na distribuição dos números.
de pública de serviços, o processo de afirma- Dentre outros aspectos a destacar, eviden-
ção dos direitos terá que passar pelo seu reco- ciam-se as dificuldades encontradas pelo gru-
nhecimento e conscientização, tendo ainda po na compreensão de prioridades técnicas.
que ultrapassar barreiras seja no plano das re- Sem questionar se a ordem de prioridade é ou
lações que se estabelecem na sociedade mais não observada nos serviços, aspecto que não
ampla, seja dentro do próprio modelo assisten- foi objeto desta investigação, o que importa é
cial. E então, cabe indagar: o que se passa nes- que a população se sente injustiçada. Na hipó-
te espaço? tese de que as prioridades sejam de fato respei-
tadas, a sensação de injustiça, com todo o sofri-
mento que acarreta, advém em grande parte do
fato de que a população não tem acesso nem

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mesmo ao que se passa na organização interna universidades, freqüentemente, passem ao largo


do serviço. Que dirá ao conhecimento médico de questões de educação e saúde ligadas às ne-
apontado como base para os critérios técnicos! cessidades da população”. Tomando, a título de
Ao lado disto, problemas como o acesso aos exemplo, a questão da proximidade da mora-
serviços, a demora dos exames, muitas vezes dia como critério de escolha do serviço ou a
superando a possibilidade de o usuário supor- necessidade de emergência e ambulâncias nas
tar o incômodo, além da incapacidade do setor unidades – tantas vezes citadas pelos usuá-
em responder a uma série de outras demandas, rios –, longe de serem irracionalidades da po-
acarretam conseqüências importantes na saú- pulação, resultam de suas próprias condições
de da população, cuja resposta é a automedi- materiais que lhes impossibilitam o desloca-
cação, abandono do tratamento, entre outras mento em busca de auxílio nos casos em que
medidas: necessitem de atendimento imediato.
“Tirei uma ficha para a clínica médica e aí Para os que já vivenciaram trabalho de par-
expliquei o meu caso para ele (o médico) e ele to no período da madrugada, convulsões e ou-
disse: – ‘Vai para o Hospital do Fundão.’ E eu lá tros quadros que a população relata, passando
sei onde é esse Fundão... .” por estas situações numa região onde a violên-
“Os exames... o que eu acho ruim é isso. Os cia alcança níveis assustadores e sem qualquer
exames, demoram muito pra vir. Eu tô com um possibilidade de obter transporte (público ou
exame, sem poder tomar remédio... esperando particular), sem acesso a telefones e outros re-
há dois meses!” cursos para buscar ajuda, parece-nos mais do
“Eu não concordo com esta demora, devia que racional desejar/esperar que as unidades
ter um médico às 7:00h, outro às 11:00h...” locais possam responder a qualquer problema.
“Acho que devia ter mais especialistas aqui, Se estes aspectos de natureza mais objetiva
no posto, assim: médico de coluna, ortopedis- conformam necessidades verbalizadas pelos
ta...” usuários, a qualidade do atendimento também
Ao longo dos depoimentos, pode-se notar foi bastante destacada.
um total desconhecimento, por parte dos Coerentemente com a concepção de saúde
usuários, do alcance e dos limites dos serviços que, conforme vimos, engloba a dimensão psi-
a que recorrem. Para eles, os postos são estru- coafetiva, os usuários esperam dos serviços
turas incompletas que precisam ser comple- muito mais do que um conjunto de cuidados
mentadas com unidades de emergência, am- dirigidos a um corpo biológico. Os serviços de
bulatórios para diversas especialidades, com saúde parecem cumprir muitas funções, e a re-
médicos em número suficiente, laboratórios lação médico-paciente sobressai como o ele-
equipados para fornecer diagnósticos a curto mento mais destacado no julgamento da quali-
prazo e também precisam dispor de ambulân- dade do atendimento, superando, até mesmo,
cia. critérios tradicionalmente valorizados como,
A população não distingue unidades de por exemplo, a competência dos profissionais:
cuidados básicos de hospitais, ou outras estru- “Aqui eu, graças a Deus encontrei aquilo que
turas mais complexas. Esta total desinforma- estava procurando. Aquela atenção...”
ção leva as pessoas a uma verdadeira peregri- “Lá é uma burocracia incrível. Aqui, não.
nação em busca do atendimento causando, Aqui a gente já tem um conhecimento.”
por outro lado, um verdadeiro caos nos servi- “O de lá seria mais perto para mim, mas eu
ços cujos profissionais, a todo momento, vêem- prefiro o daqui. Eu tenho conhecimento, enten-
se na obrigação de referir os usuários para ou- deu? Eu acho o pessoal daqui legal.”
tros locais, fato percebido por estes últimos co- “Os médicos daqui são bons, as pessoas tra-
mo negação do atendimento. tam a gente como gente... atenção... atenção, sa-
No contexto deste estudo, constatamos que be?”
a atual organização dos serviços, cuja lógica se “Os médicos aqui não são assim iguais aos
mostra bastante racional para boa parte dos outros hospitais... Eles tranqüilizam a gente.”
profissionais e planejadores do setor, encontra “O médico conversa com a gente... explica...
impasses de várias naturezas em seu funcio- Isso me animou bastante e me ajudou muito.”
namento. Impasses que, como nos diz Valla “Ele (o médico) é carinhoso, é meigo.”
(1993:91) decorrem, em parte, “de suas forma- É interessante destacar a recorrência de al-
ções universitárias (que) revelam lacunas justa- gumas categorias empíricas como: atenção, ca-
mente nas áreas que se relacionam com os pro- rinho, bondade nos discursos analisados. Bas-
blemas agudos da população trabalhadora (...). tante curioso foi o fato de, na maior parte das
Nesse sentido, a ótica elitista dos currículos uni- entrevistas, não ter sido possível saber se as
versitários faz com que assuntos tratados nas pessoas “se curaram” ou não. Mas, com certe-

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PARTICIPAÇÃO POPULAR E SAÚDE 363

za, era fácil detectar se foram bem atendidas, rios. Também retorna aqui a fala de uma parce-
se receberam afeto. la dos profissionais das unidades por nós estu-
Apenas secundariamente apareceram alu- dadas, quando apontavam o potencial estraté-
sões à competência técnica: gico da relação que estabelecem com os usuá-
“Ele é um bom médico. Pelo menos nunca rios (Bosi, 1994). Cientes da dimensão política
errou em nada.” presente na sua prática, que para o grupo não
“Um médico bom vê o problema da gente as- é só um fazer técnico, estes profissionais se dão
sim de cara.” conta de que o “incêndio que todos os dias lhes
Ao lado da importância da dimensão afeti- é dado apagar”, impossibilita-lhes contribuir
va, há que ressaltar que a população, não pos- para o processo de conscientização no sentido
suindo critérios técnicos para avaliar a compe- de uma transformação para melhor da situa-
tência do médico, lança mão de outros parâ- ção atual.
metros usados “cotidianamente na apreciação Enquanto isto, o que pensam os usuários
de outrem: amabilidade, a boa vontade, a com- sobre a possibilidade de alteração deste qua-
placência” (Boltanski, 1984:38). dro?
É importante destacar o quanto a popula-
ção reverencia as opiniões dos médicos consi- A transformação do quadro atual
derados “bons”. A figura do médico – e não a de
outros profissionais da equipe – e a relação que Aqui, o sentimento predominante que emana
mantém com os usuários é um elemento cen- dos depoimentos é a sensação de desânimo e
tral e de grande valor estratégico no espaço do desamparo; de não ter como reclamar e nem
atendimento; sua opinião tem grande influên- para quem:
cia até mesmo na esfera privada da vida das “A gente vai reclamar com quem? Vai falar
pessoas: com quem? E com quem a gente reclama, será
“Qualquer problema que eu sinto, até fami- que vai tomar alguma atitude?”
liar, eu converso com ele. Além de médico, ele é “Porque muita gente já reclamou e não
um amigo.” adiantou nada. Continua a mesma coisa...”
“Sabe, ele não vê esse negócio de paciente, ele “A gente não pode fazer nada. A gente vai re-
vê o que é melhor para mim. O que vai aconte- clamar com quem? Acho que não tem ninguém
cer de bom (...) pra mim, ele é assim, ‘super pai’.” pra gente chegar e falar.”
“É o seguinte: ele sabe conversar com a gen- Estes depoimentos (e, particularmente, o
te, dizer pra gente o que deve fazer, o que não de- estado de ânimo percebido nos relatos) apon-
ve fazer.” tam para uma reflexão, a nosso ver, digna de
“Porque a gente, quando chega perto do mé- destaque no que se refere ao tema em análise:
dico pra conversar, a gente nunca diz aquilo tu- os elementos que possibilitam a superação da
do que sente. Sempre fica faltando alguma coi- situação atual.
sa. Então ele me deixou bem à vontade. Eu pude Se uma reivindicação tem sempre por trás
falar boa parte dos problemas.” algo que está faltando, não basta, como desta-
Como se vê, a relação médico-paciente se cam Cohn & Jacob (1991), a presença de uma
baseia no duo afeto/confiança, o que confere carência para que se tenha uma reivindicação.
ao médico uma grande parcela de poder exer- Segundo afirmam esses autores, torna-se ne-
cido no cotidiano de tal relação, ainda que os cessário que a sociedade também tenha se co-
dois pólos nem sempre tenham consciência locado claramente a possibilidade de solucio-
disto. Poder que poderá influenciar não só na nar o problema e que, por sua vez, a solução
conduta das pessoas diante das ações desen- seja eticamente aceitável.
volvidas pelos serviços, como também na fa- Pelo que verificamos, muito mais do que
mília, no trabalho, na comunidade. um diagnóstico do que lhe é devido, falta à po-
E aí também se recoloca a tensão muitas pulação a crença de que a situação pode mu-
vezes verbalizada pela parcela dos profissio- dar. Os usuários acreditam que a realidade só
nais de saúde que reconhecem a importância pode ser transformada por outros segmentos;
central dos aspectos qualitativos do atendi- se alguém pode transformar esta realidade,
mento. Podemos perceber a dificuldade que certamente não são eles, já que se percebem
encontram para conciliar a continuidade de claramente excluídos do poder. Mais do que is-
um atendimento que seja bom para o usuário to: não percebem em si qualquer possibilidade
com o crescimento acelerado da demanda. de exercer poder.
A tensão quantitativo/qualitativo vivida pe- Com a crise ética que vem se agravando em
los profissionais parece encontrar suporte vários setores (Berlinguer, 1993; Rouanet, 1993;
quando se analisa a subjetividade dos usuá- Costa, 1994) em face do descompromisso con-

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tinuado dos dirigentes com a saúde, torna-se quiste a eqüidade. A despeito dos avanços ob-
compreensível, assim, que esta seja a visão dos tidos no plano legal, a realidade dos serviços
usuários. oferecidos à população em muito se distancia
Por outro lado, na ausência de canais de da garantia do direito à saúde, tão almejada em
participação efetiva, mesmo que a população nosso País.
queira, torna-se muito difícil reivindicar, so- Para tanto, há que se considerar o papel dos
bretudo num contexto em que mesmo seg- usuários em sua relação com os profissionais e
mentos sociais mais fortemente organizados serviços, diante do desafio de construção de
defrontam-se com obstáculos excepcionais pa- uma consciência sanitária; por outro lado, rea-
ra levar à frente sua demandas. Desta forma, firma-se aqui a necessidade de estudos funda-
simples reclamações são, muitas vezes, evita- mentados na abordagem qualitativa, a fim de
das e substituídas por outras formas de expres- inserir a subjetividade dos atores – dimensão,
são desta insatisfação, como, por exemplo, o em geral, esquecida – nos planos e programas
abandono aos serviços. Os trechos abaixo reti- do setor.
rados das falas dos usuários são claros: Em relação às concepções dos usuários, a
“Eu não reclamo. Eu vou embora. A gente é presente investigação apontou importantes
mais baixo...” elementos, os quais se, por um lado, constatam
“Eu sou do tipo de pessoa que tem vergonha, o distanciamento do grupo da condição de ci-
não reclamo, eu procuro me calar.” dadãos, por outro, identificam aspectos funda-
mentais que, embora presentes na subjetivida-
de do grupo, não encontram canais de expres-
Conclusão são, principalmente no plano concreto das prá-
ticas.
Por meio deste estudo, constatamos, mais uma Por último, cabe ressaltar o papel estratégi-
vez, a falta de correspondência entre o discur- co das relações estabelecidas no cotidiano dos
so legal e a realidade concreta a que se referem. serviços para o processo de mudança social e
No caso específico do setor saúde, há ainda um construção dos direitos, em especial, no cam-
longo caminho a ser percorrido até que se con- po da saúde.

Agradecimentos Referências

As autoras agradecem a Rosa Maria Magalhães de ALVES, P. C. & MINAYO, M. C. S. (orgs.), 1994. Saúde e
Oliveira, pelo auxílio na realização do trabalho de Doença: Um Olhar Antropológico. Rio de Janeiro:
campo; à direção e às chefias das instituições partici- Editora Fiocruz.
pantes e, em especial, aos usuários, pelos depoimen- BERLINGUER, G., 1978. Medicina e Política. São
tos que nos confiaram. Esta pesquisa foi desenvolvi- Paulo: Hucitec.
da com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à BERLINGUER, G., 1993. O direito à vida e a ética da
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