Objetos de Desejo Adrian Forty PDF

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Nds, consumido- res, precisdvamos ser protegidos do mau design. Essa idéia, de que o mau design era nao apenas danoso para aqueles queo compravam e usavam, mas ruim para todos, para a cultura como um todo, ti- nha uma longa tradigo que remontava ao Deutsche Werkbund, na Alemanha do comego do século xx, a0 movimento de reforma do design da Inglaterra da metade do século x1x e mesmo antes. Ao chegar aos anos 1970, essa tra- digo dava seus tiltimos suspitos, embora na época nao soubéssemos disso. Todas as indicagdes eram de que o “bom design” estava com boa satide. Os professores ainda mandavam os estudantes de design ler Pioneiros do desenho moderno, de Nikolaus Pevsner, e Art and Industry, de Herbert Read, dois livros que promoviam explicitamente a “boa forma”, sem qualquer aviso ou adver- téncia contra as doutrinas que eles estavam prestes a absorver; com efeito, nao havia nenhuma critica a que se pudesse recorrer para resistira influéncia desses autores. Lembro dois episddios que me convenceram de como estava disseminada a ortodoxia da “boa forma” e como era dificil pensar historicamente sobre de- sign e sobre o campo que agora se costuma descrever como o da “cultura ma- terial”. O primeiro ocorreu numa conferéncia, em algum momento dos anos 1970. Eu acabara de dar uma palestra que ilustrara com alguns aspiradores de pé que nao poderiam de modo algum ser considerados exemplares da “boa forma”. Ap6s a palestra, fui levado para um canto por duas pessoas da platéia ecensurado, primeiro por ter mostrado objetos de design notoriamente ruim ¢, em segundo lugar, por nao ter emitido nenhum julgamento sobre a falta evidente de qualidade deles. Como nio percebia quanto isso estava errado? Ao nio criticar aqueles objetas, a0 aparentemente justificd-los, no compreen- dia eu que desfizera cinqiienta, cem anos de trabalho de erradicagio do mau design? Certamente deveria saber que 0 dever dos profissionais do design era proteger o piiblico daquele tipo de coisa, e ali estava eu a fazer propaganda deles. E assim por diante. Nada que eu pudesse dizer para aquelas pessoas poderia absolver-me da ofensa que cometera. Fiquei surpreso com essa reagao, porque até entdo ndo me dera conta de quo apaixonada ¢ dominante ainda era a crenga de alguns na “boa forma”. Aquela altura, jd haviam ocorrido varios fatos que me faziam pensar que as pessoas nao poderiam mais falar a sério sobre “boa forma”. Na Gri-Breta- nha, 0 Grupo Independente, de artistas, arquitets e critics, promovera no inicio dos anos 1950 uma visdo pluralista do design, pondo os produtos co merciais norte-americanos ao lado do alto design europeu, sem moralizagbes sobre a superioridade ou inferioridade cultural de um ou de outro. Em 1971, © designer Victor Papanek produzira sua critica ambiental e ecolégica do de- sign, substituindo os argumentos morais da “boa forma” por outros baseados em preocupacées ambientalistas e no hiato entre as culturas do primeiro e do terceiro mundo. E, vindo da Itdlia, o antidesign iconoclasta de designers mi- laneses como Ettore Sottsass jd era bem conhecido internacionalmente, gra- as, em particular, 4 exposigio de 1972 “Itdlia: a Nova Paisagem Doméstica”, no Museu de Arte Moderna de Nova York. Mas, se eu havia suposto que esses. eventos significavam que a ideologia da “boa forma” acabara, estava errado: pelo menos na Inglaterra, ela ainda estava muito viva. 0 segundo episédio confirmou isso ¢ também deixou claro como era difi- cil pensar design como proceso social. Eu costumava freqiientar o seminério semanal do historiador Eric Hobsbawm e, certa semana, 0 trabalho apresen- tado por um estudante foi sobre o ensino de design na Inglaterra da metade do século x1x. Na discussio que se seguiu, Hobsbawm atacou os objetos ex- postos na Grande Exposigdo de 1851, deixando claro que, na sua opiniao, o de- sign deles era execrdvel e que bastava olh4-los para ver que, com efeito, havia de fato necessidade, e das grandes, de implementar uma reforma no ensino do design. Fiquei surpreso — e desapontado — ao ver que um historiador tao perspicaz em tantas outras quest6es, ao tratar de design, simplesmente re- petia os mesmos argumentos desgastados que vinhamos ouvindo havia um século ou mais. Como podia alguém cujo julgamento histérico era, em geral, to agudo, ter a mente to obscurecida pela nogao de “boa forma”, ao tratar de artefatos materiais? Se cada vez que se quisesse comegar uma discussio sobre bens manufaturados e seu papel na vida das sociedades modernas, se acabasse tendo uma discussio sobre “boa forma”, que esperanga havia de que a historia das mercadorias fosse alguma vez levada a sério como um ramo da disciplina histérica? Objetos de desejo foi minha resposta. Olhando o livro em retrospectiva, hd alguns aspectos dele que na época pareciam corretos, mas que agora vejo que poderiam ter sido elaborados de mancira diferente. Em particular, hd em suas paginas forte énfase no design como um aspecto da produgdo, como resultado de decisdes tomadas pelos produtores. Embora cu ainda defenda essa perspectiva como um modo de compreender as raz6es da aparéncia das mercadorias, ndo hd diivida de que, seas olharmos como um vefculo social, para o que acontece quando comegam a circular no mundo — que ¢ 0 outro tema principal do livro -, 0s motivos dos designers e fabricantes e as intencdes que tém para seus produtos depois que ‘os consumidores passam a usd-los nao foram, com a freqiiéncia devida, le- vados em conta no livro. Escolhi enfatizar as agdes dos produtores, em parte porque, na época, se conhecia pouco sobre consumidores e consumo; ¢, se © que eu ia escrever nao deveria ser algo totalmente especulativo, era melhor que me concentrasse na producdo, pois nessa drea havia pistas muito boas para serem seguidas. Porém, mesmo quando eu estava escrevendo 0 livro, j4 havia um interesse crescente, em particular nos campos da sociologia e dos estudos culturais, pelo consumo. Isso se desenvolveu com rapidez e desde entdo houve enorme expansao no estudo do que se poderia chamar de “vida dos objetos”, e agora sabemos muito mais sobre o que acontece depois que eles entram no mundo e comegam a circular. Inspirados, em particular, pelo socidlogo francés Pierre Bourdieu (cuja obra eu ignorava quando escrevi este livro), surgiram muitos estudos dos objetos como veiculos de interagaoe troca social. Um exemplo classico é a andlise que Dick Hebdige fez da lambreta, criada na Itdlia do pds-guerra principalmente para uso das mulheres, mas que foi adotada inesperadamente por uma subcultura masculina da Gra-Bretanha dos anos 1960 chamada mods.' Se houvesse mais material desse tipo disponivel na época, eu 0 teria incorporado — e com certeza, se 0 livro fosse escrito nova- mente hoje, toda a argumentacdo teria de mudar para refletir essa virada dos tiltimos vinte anos na direcao do estudo do consumo. Contudo, livros sobre hist6ria so eles mesmos objetos histéricos e, como todos os livros de histéria, este também pertence a determinado momento. 1 Dick Hebdige, “Object as Image: the Italian Scooter Cycle", Block, n. 5, 1981. INTRODUGAO Quase todos os objetos que usamos, a maioria das roupas que vestimos e mui- tos dos nossos alimentos foram desenhados. Uma vez que o design parece fazer parte do cotidiano, justifica-se perguntar o que ele é exatamente ¢ como surgiu. Apesar de tudo o que jé foi escrito sobre o tema, nao ¢ facil encontrar respostas a essas questées aparentemente simples." A maior parte da literatura dos tiltimos cingiienta anos nos faria supor que o principal objetivo do design é tornar os objetos belos. Alguns estudos sugerem que se trata de um método especial de resolver problemas, mas poucos mostraram que o design tem algo que ver com lucro e menos ainda foi apontada sua preocupagao com a trans- missao de idéias. Este livro nasceu da minha percepgao de que o design é uma atividade mais significativa do que se costuma reconhecer, especialmente em seus aspectos econémicos ¢ ideolégicos. Em particular na Gra-Bretanha, o estudo do design e de sua histéria sofre de uma forma de lobotomia cultural que o deixou ligado apenas aos olhos e cortou suas conexdes com o cérebro e 0 bolso. £ comum supor que o design seria conspurcado se fosse associado demais ao comércio, uma tentativa mal- concebida de higiene intelectual que nao causou nenhum bem. Ela obscureceu © fato de que o design nasceu em um determinado estagio da histéria do capi- talismo e desempenhou papel vital na criagao da riqueza industrial. Limité-lo a.uma atividade puramente artistica fez com que parecesse fitil e relegou-o & condigao de mero apéndice cultural. ‘Amesma escassa atengao foi dada 4 influéncia do design em nossa forma de pensar. Aqueles que se queixam dos efeitos da televisio, do jornalismo, da propaganda e da ficco sobre nossa mente esquecem a influéncia similar exer- cida pelo design. Longe de ser uma atividade artistica neutra e inofensiva, 0 design, por sua prépria natureza, provoca efeitos muito mais duradouros do que os produtos efémeros da midia porque pode dar formas tangiveis e per- manentes as idéias sobre quem somos e como devemos nos comportar. Uma vez que design 6 uma palavra que aparece muito neste livro, é melhor definir jd seu significado. Na linguagem cotidiana, ela tem dois significados comuns quando aplicada a artefatos. Em um sentido, refere-se A aparéncia das coisas: dizer “eu gosto do design” envolve usualmente nogGes de beleza, e tais julgamentos sio feitos, em geral, com base nisso. Como ficaré claro em seguida, este livro nao trata da estética do design. Seu objetivo nao ¢ discutir se, digamos, o design dos méveis de William Morris era mais bonito do que 05 exibidos na Grande Exposigao de 1851, mas antes tentar descobrir por que esas diferengas cxistiram. O segundo e mais exato uso da palavra design refere-se 4 preparagdo de ins- trucées para a produgio de bens manufaturados, ¢ este é o sentido utilizado quando, por exemplo, alguém diz “estou trabalhando no design de um carro”. Pode ser tentador separar os dois sentidos ¢ traté-los de maneira indepen- dente, mas isso seria um grande equivoco, pois a qualidade especial da pala- vra design € que ela transmite ambos os sentidos, ea conjungio deles em uma tinica palavra expressa o fato de que so inseparaveis: a aparéncia das coisas é, no sentido mais amplo, uma conseqiiéncia das condigdes de sua produgao. Ahistoria, tal como a utilizo aqui, esta preocupada com a explicagdo da mudanga, €0 tema deste livro é, portanto, as causas da mudanga no design de bens de fabricacao industrial. Em outros aspectos da existéncia humana que foram estudados por historiadores - politica, sociedade, economia e algumas formas de cultura -, as teorias desenvolvidas para explicar a mudanga pare- cem muito sofisticadas em comparacdo com aquelas utilizadas na histéria do design. Essa pobreza foi causada, em larga medida, pela confusao do design com arte ea conseqitente idéia de que artefatos manufaturados sao obras de arte. Essa visdo foi estimulada pela colegao e exibigdo de bens manufaturados nos mesmos museus que exibem pinturas ¢ esculturas, e por boa parte do que a foi escrito sobre design. Assim, em livro recente, a declaragao de que “o de- sign industrial é a arte do século xx” parece calculada para obscurecer todas as diferencas entre arte e design.* A distingéo crucial é que, nas condigées atuais, os objetos de arte sio em geral concebidos e feitos por (ou sob a diregdo de) uma pessoa, o artista, enquanto isso nao ¢ verdade para os bens manufaturados. A concepcio ea fabricacao de sua obra permitem aos artistas consideravel autonomia, 0 que levou a crenca comum de que uma das principais fungdes da arte é dar livre expresso a criatividade e a imaginacio. Seja correta ou niio essa visio da arte, © fato é que ela certamente nao é verdade para o design. Nas sociedades capi- talistas, o principal objetivo da produgio de artefatos, um processo do qual © design faz parte, é dar lucro para o fabricante. Qualquer que seja o grau de imaginagio artistica esbanjado no design de objetos, ele nao é feito para dar expressao a criatividade e a imaginagao do designer, mas para tornar os produtos vendaveis e lucrativos. Chamar o design industrial de “arte” sugere que os designers desempenham o principal papel na produgio, uma concep- Ho errdnea, que corta efetivamente a maioria das conexées entre design ¢ os processos da sociedade. Quando se trata de explicara mudanga, aconfusio de design comarte leva a uma teoria causal que ¢ tio comum quanto insatisfatéria. Em muitas histé- rias do design, a mudanga ¢ explicada com referéncias ao carter e A carreira de artistas e designers — pode-se dizer que o design de méveis de Chippen- dale € diferente do de Sheraton porque Chippendale e Sheraton eram pessoas diferentes, com idéias artisticas diferentes. E quando tentamos identificar os motivos dessas diferencas que encontramos dificuldades, que se tornam mais, agudas quando levamos em conta nao apenas a obra de individuos, mas a apa- réncia de classes inteiras de bens que envolvem uma profusio de designers. Por que, por exemplo, o mobilidrio de escritério desenhado no comeco do século xx era completamente diferente do produzido na década de 1960? Falar de diferencas de temperamento artistico seria ridiculo. Os historiadores do design tentaram driblar o problema atribuindo as mu- dangas a algum tipo de proceso evolutivo, como se os bens manufaturados fossem plantas ou animais. As mudangas no design so descritas como se fossem mutagées no desenvolvimento de produtos, estégios de uma evolugéo progressiva na diregao de sua forma mais perfeita. Mas os artefatos nao tém vida propria e nio hd provas da existéncia de uma lei de selecdo natural ou 1B mecanica que os impulsione na dire¢ao do progresso. O design de bens ma- nufaturados nao é determinado por uma estrutura genética interna, mas pelas pessoas e as industrias que os fazem e pelas relagdes entre essas pessoas € industrias e a sociedade em que os produtos serio vendidos.3 Contudo, embora seja facil dizer que o design estd relacionado com a so- ciedade, em raras ocasides 0 modo preciso como essa conexio ocorre foi tra- tado satisfatoriamente pelos historiadores. A maioria das histérias do design ¢ da arte e arquitetura trata seus temas de forma independente das circunstan- cias sociais em que foram produzidos. Nos anos 1980, no entanto, entrou na moda referir-se ao “contexto social”. Por exemplo, Mark Girouard, em Sweet- ness and Light, livro sobre o estilo de arquitetura “Queen Anne” do século xx, comeca descrevendo a recep¢ao do estilo pelos eriticos e continua: O frenesi ¢ a euforia parecem surpreendentes até examinarmos seu contexto, do qual ele emerge como algo préximo da inevitabilidade. © “Queen Anne” floresceu Porque satisfazia # todas as mais recentes aspiragies das classes médias inglesas.* Essas observagées so seguidas por umas poucas paginas de generalizagio sobrea sociedade do século x1x, apds o que Girouard passa a descrever a obra dos arquitetos “Queen Anne” quase que inteiramente em termos arquitetoni- cos. Essas referéncias superficiais ao contexto social so como as ervas € os seixos em tomo de um peixe empalhado numa caixa de vidro: por mais realis- tas que sejam, sao apenas acessérios, ¢ tird-los causaria pouco efeito em nossa percepgo do peixe. O uso do “contexto social” é quase sempre um ornamento que permite que os objetos sejam vistos como se tivessem uma existéncia auto- noma, na qual tudo, excetoas consideracées artisticas, é insignificante. Para os historiadores, a grande atragao do “contexto social” tem sido salva-los do tra- balho de pensar sobre como os objetos se relacionam com suas circunstancias hist6ricas, e afirmagées imprecisas como a de Girouard - “algo préximo da inevitabilidade” — abundam em seus textos. O uso casual do “contexto social” é particularmente deplordvel no estudo do design, que, por sua propria natureza, coloca as idéias e crengas diante das realidades materiais da produgao. Neste livro, portanto, a histéria do design é também a historia das sociedades: qualquer explicagdo da mudanga deve apoiar-se em uma com- preensao de como o design afeta os processos das economias modemas e é afetado por eles. “4 Um dos aspectos de compreensdo mais dificil nesses processos é 0 papel desempenhado pelas idéias, pelo que as pessoas pensam do mundo em que vivem. Acredito que o design tem papel importante nesse dominio em parti- cular, o qual pode ser esclarecido, embora de um modo um tanto mecinico, tomando como referéncia a teoria estruturalista. Os estruturalistas sustentam que, em todas as sociedades, as contradi¢Ges perturbadoras que surgem entre as crencas das pessoas e suas experiéncias cotidianas sao resolvidas pela in- vengao de mitos. Esses conflitos sao to freqiientes nas sociedades avancadas quanto nas primitivas e os mitos florescem igualmente em ambas. Em nossa cultura, por exemplo, 0 paradoxo da existéncia de ticos e pobres e da grande desigualdade entre eles em uma sociedade que mantém a crenca no conceito cristo de igualdade de todos é superado pela histéria da Cinderela que é pro- curada por um principe e se casa com ele, provando que, apesar da pobreza, ela pode ser sua igual. Cinderela é um conto de fadas, ou seja, distante da vida cotidiana, mas hd uma profusao de variantes modernas (por exemplo, a secre- tdria que se casa com o patro) que permitem as pessoas pensar que o para- doxo nao ¢ importante ou nao existe. As historias eram 0 meio tradicional de transmitir os mitos, mas, no século xx, elas foram suplementadas por filmes, jomalismo, televisio e propaganda. Em seu livro Mitologias, o estruturalista francés Roland Barthes decidiu explicar 0 modo como os mitos funcionam e 0 poder que tém sobre nosso modo de pensar. Tomando uma variedade de exemplos que vao da linguagem dos guias turisticos as imagens de cozinhas nas revistas femininas e as repor- tagens sobre casamentos na imprensa, Barthes mostrou como essas coisas aparentemente familiares exprimem todos 0s tipos de idéias sobre o mundo. ‘Ao contrério da mfdia mais ou menos efémera, o design tem a capacidade de moldar os mitos numa forma sdlida, tangivel e duradoura, de tal modo que parecem ser a prépria realidade. Podemos tomar como exemplo a suposicio comum de que o trabalho no escritério moderno é mais amistoso, mais diver- tido, mais variado e, em geral, melhor do que o trabalho no escritério de “anti- gamente”’. O mito serve para reconciliar a experiéncia da maioria das pessoas, de tédio e monotonia no escritério, com o desejo de pensar que esse trabalho traz consigo mais status do que alternativas, como o trabalho na fabrica, onde nao hé fingimento em relago4 monotonia. Embora os aniincios de emprego em escritérios, as histérias em revistas e as s¢ries de televisao tenham sido res- ponsdveis pela implantaco na mente das pessoas do mito de que o trabalho 15 no escritério € divertido, sociivel e excitante, ele recebe sustentacao e credi- bilidade didria do mobilidrio moderno em cores vivas e formas levemente ale- gres, designs que ajudam o escritdrio a se equiparar ao mito. Para os empresdrios, a utilizagio desses mitos é necessaria pata 0 sucesso comercial. Todo produto, para ter éxito, deve incorporar as idéias que o torna- do comercializdvel, ¢ a tarefa especifica do design € provocar a conjuncao entre essas idéias e os meios disponiveis de producio. O resultado desse processo é que os bens manufaturados encarnam inumerdveis mitos sobre o mundo, mitos que acabam parecendo tio reais quanto os produtos em que estio encarnados. A extensa influéncia e a natureza complexa do design fazem com que esteja longe de ser ficil tratd-lo historicamente. O mimero de artefatos produzidos pela indistria ¢ infinito e até o design que parece mais insignificante pode revelar-se extraordinariamente complicado. Em vez de fazer uma tentativa va deserabrangente, decidi sugerir como a histéria do design de qualquer artigo manufaturado pode ser abordada, os tipos de questes que podem ser feitas as respostas que 0 estudo de seu design pode oferecer. Embora eu discuta uma grande variedade de objetos neste livro, muitos deles em minticia, minha escolha foi inevitavelmente um pouco arbitréria ¢ hd muitos casos em que ou- tro objeto teria ilustrado igualmente o mesmo argumento. Assim sendo, seria possivel afirmar que este livro poderia analisar um conjunto diferente de obje- tos e, ainda assim, manter seu argumento original. Em vez de discutir todos os aspectos de cada design apresentado, uma abordagem que poderia tornar-se tediosa, escolhi tratar o design numa série de ensaios em que cada capitulo desenvolve um tema. Como nenhum objeto é tratado de forma exaustiva, devo deixar ao leitor que aprofunde os outros temas que surgem de cada objeto e seu design em particular. Embora os capi- tulos devam sustentar-se sozinhos, pretendo que, em conjunto, apresentem a significagao do design em nossa cultura ea dimensio de sua influéncia em nossa vida e mente. 1 Anthony J. Coulson, A Bibliography of Design in Britain 1851-1970, Londres, 1979, dé uma oa indicacao da amplitude da literatura disponivel sobre o design britanico. 2S. Bayley, In Good Shape, Style in Indusirial Products 1900 to 1960, Londres, 1979, p. to. P. Steadman, The Evolution of Designs, Cambridge, 1979, discute em detalhe os problemas das analogias com os seres vivos. 4 Mark Girouard, Sweetness and Light, Oxford, 1977, p. 1. DOBYNS Ds DESEO > <<>> ><> <>< <>< <> => »1@)® 10? 18/2 0)® 18 /® ie 9990990999099 D [O12 [9/2 (9/20 [80 [98 999990999099 Die (9/0 (9/0 [Ve (9/0 [Oi 999939099093< 200900909090 »1@)® 0) 10)? 0)? eX 99999999090‘ 200000000006 9930990999090 200000000006 999999999090 0000000906 ELEC PEPE ry UU N GEMS Jie PROWESS Apesar de todos os seus beneficios, o progresso pode ser uma experiéncia dolorosa e perturbadora. Nossas reagdes a ele so freqiientemente ambi- valentes: queremos as melhorias ¢ os confortos que ele proporciona, mas, quando ele nos impée a perda de coisas que valorizamos, compele-nos a mudar nossos pressupostos basicos ¢ nos obriga a ajustar-nos 20 novo ¢ desconhecido, nossa tendéncia ¢ resistir. O que € descrito como progresso nas sociedades modernas ¢, na ver- dade, sindnimo, em larga amplitude, de uma série de medidas provocadas pelo capital industrial. Ente os beneficios esto mais alimentos, melhores transportes ¢ maior abundancia de bens. Mas é uma peculiaridade do capi- talismo que cada inovaco benéfica traga também uma sequéncia de outras mudangas, nem todas desejadas pela maioria das pessoas, de tal modo que, em nome do progresso, somos obrigados a aceitar uma grande quantidade de novidades a ele relacionadas ¢ possivelmente indesejadas. A méquina a vapor, por exemplo, trouxe maior eficiéncia a industria manufatureira e maior velocidade aos transportes, mas sua fabricagdo ajudou a transformar mestres artesios em trabalhadores assalariados e fez com que as cidades aumentassem em tamanho e insalubridade. A idéia de progresso, no en- tanto, inclui todas as mudangas, tanto desejéveis como indesejéveis. Receptor “Unit System” da Pye, 1922. Os primeiros rédios no tinham receio de exitir- se como um conjunto de aparatos técnicos. Réidio“Beaufor”, 1932. Amaioria dos primeiros aparelhosde rédio adotava a forma cde mobilia tradicional. De The Cabinet Maker, 27 de agosto de 1932. 20 sucesso do capitalismo sempre dependeu de sua capacidade de ino- var ede vender novos produtos. Nao obstante, de modo paradoxal, a maio- ria das sociedades em que o capitalismo criou rafzes mostrou resistencia A novidade das coisas, novidades que eram to evidentes na Inglaterra do século xvi1t quanto s2o hoje nos paises em desenvolvimento. O que entdo fez com que os povos das sociedades ocidentais estivessem preparados para aceitar produtos novos, apesar da ameaca de mudanca que represen- tam? Uma vez que qualquer produto bem-sucedido deve superara resistén- cia &novidade, parece ser um axioma que os produtos do capital industrial busquem criar aceitagio das mudangas que provocam. Entre as maneiras de obter essa aceitacdo, o design, com sua capacidade de fazer com que as coisas parecam diferentes do que so, foi de extrema importincia. design altera 0 modo como as pessoas véem as mercadorias. Para dar um exemplo desse processo, podemos examinar o design dos primei- ros aparelhos de rédio. Quando as transmissdes comegaram, na década de 1920, os receptores eram uma montagem grosseira de resistores, fios e val- vulas. Os fabricantes logo perceberam que se quisessem vender ridios para que as pessoas os pusessem na sala precisariam de uma abordagem mais sofisticada do design. No final dos anos 1920 e comego dos 1930, desenvol- veram-se trés tipos de solugao, cada uma das quais apresentava a mesma mercadoria, 0 rédio, de uma mancira totalmente diferente. A primeira era alojar 0 aparelho em uma caixa que imitava uma mobilia antiga, ¢ assim referia-se ao passado, A segunda era esconder o rédio dentro de uma pega demobilia que servia para alguma finalidade bem diferente, como uma pol- trona. A terceira, que se tornou mais comum a medida que as pessoas se familiarizavam com o rédio e 0 achavam menos perturbador, era colocd-lo dentro de um estojo desenhado para sugerir que pertencia a um mundo fu- turo e melhor.' Cada um desses designs transformou o rddio original, “pri- mitivo”, de modo a tornd-lo irreconhecivel. As trés abordagens evidentes nesses aparelhos de rddio - a arcaica, a supressiva e a utdpica— repetiram- se com tanta freqiiéncia no design industrial que se pode dizer que com- péem uma gramitica bésica do repertério da imagética do design. Se o design do século xx foi dominado pelas imagens utépicas, os fa- bricantes do século xvitt confiavam mais no modelo arcaico em seus es- forgos para superar a resisténcia A inovagio.* Descrever o design como uma atividade que invariavelmente disfarga ou muda a forma do que supomos sera realidade vai na diregdo oposta de muitos lugares-comuns sobre o de- sign, em particular a crenga de que aparéncia de um produto deve ser uma expresso direta da sua finalidade, visdo encarnada no aforismo “a forma segue a funcio”. A ldgica desse argumento é que todos 0s objetos coma mesma finalidade deveriam ter a mesma aparéncia, mas ¢ dbvio que esse nao € 0 caso, como mostra, por exemplo, uma olhada de relance na historia da ceramica: produziram-se xicaras numa variedade infinddvel de formas. 21 Rédio *poltrona”, 1933. Alguns fabricantes partiram para odisfarce direto, incorporando seus aparelhos de rédios ‘em outros tipos de iméveis. De The Cabinet Maker, 25 de fevereieo de1933,p.417 Design de aparetho de radio, 1932. A solugio alternative e que acabou porsera mais popular para o design do aparelho de résio foi usar formas ““modernas”, sugerindo um produto ‘que pertenceria 20 futuro. De The Cabinet ‘Maker, 17 de setembro de 1932, p. 522. Se 0 tinico propésito de uma xicara fosse servit de suporte para liquidos, poderia muito bem haver um tinico design, masas xicaras tém outros usos: como artigos de comércio, servem para criar riqueza e satisfazer 0 desejo dos consumidores de expressar seu sentimento de individualidade, e é da conjungao desses objetivos que resulta a variedade de designs. Muitos autores sustentaram que é errado dar aos artefatos formas que nao pertencam estritamente a eles prdprios ou ao seu periodo. Tal julga- mento nao constitui uma contribuicao particularmente ttil para a histéria do design. Certo ou errado, o fato é que, nos artefatos das sociedades in- dustriais, o design foi empregado habitualmente para disfarcar ou mudar sua verdadeira natureza e enganar nosso senso cronoldgico. Cabe ao his- toriador arrancar os disfarces, comparé-los e explicar a escolha de uma aparéncia em detrimento de outra, mas nao descartar 0 processo. Os bens manvfaturados variaram na aparéncia devido nao a imoralidade ou a in- tencionalidade de seus produtores, mas s circunstancias de sua produgio ¢ seu consumo. A fim de compreender o design, devemos reconhecer que seus poderes de disfarcar, esconder ¢ transformar foram essenciais para 0 progresso das sociedades industriais modernas. NEOCLASSICISMO: UM ANT{DOTO AO PROGRESSO As reagOes ao progresso sdo mais reveladoras quando uma sociedade experimenta seus efeitos pela primeira vez. Na Gra-Bretanha, 0 desen- volvimento do capital e da indistria atingiu uma escala significativa no final do século xvitt. A maioria das pessoas que registraram suas impressdes das mudangas em andamento estava muito envolvida nos eventos ¢ nao surpreende que, em geral, estivesse entusiasmada ¢ 86 raramente mencionasse seus receios quanto aos efeitos negativos, Cien- tistas como Joseph Priestley, economistas politicos como Adam Smith e empresdrios como Matthew Boulton, James Watt e Josiah Wedgwood compartilhavam a visio de que o progresso era um processo benéfico que continuaria indefinidamente. Porém essas pessoas eram apenas uma parte pequena das classes mé- dia e alta da Inglaterra do século xvii e seus pontos de vista eram nitida- mente radicais, Hé também provas de fortes posicdes contrdrias. Assim, 0 dr. Johnson,? reconhecendo que os homens nao eram mais selvagens, ad- mitia que houvera progresso no passado, mas que a humanidade jé havia atingido seu estdgio mais avancado e no via lugar para mais progresso no presente ou no futuro. Nio obstante, dr. Johnson e outros que compartilhavam de suas idéias mostravam muita curiosidade em relagao as mudangas que ocorriam 20 tedor deles, as novas fabricas e os homens que as dirigiam. Os principais distritos industriais do final do século xvii — Birmingham, Manchester, as minas de carvao de Coalbrookdale ¢ as olarias de Staffordshire ~eram visitados regularmente porviajantes, considerados entre as paisagens mais interessantes do pais e freqiientemente retratados por artistas.4 Contudo, apesar da curiosidade, nem todos se entusiasmavam com 0 que viam. Um viajante do século xvrit que registrou suas opinides foi o ilustre John Byng, mais tarde visconde de Torrington, que empreendeu uma série de excursées pela Inglaterra e Pafs de Gales entre 1781 ¢ 1794. Nao era sua inteng&o que seus didrios, publicados com o titulo de The Torrington Diaries, fossem impressos, ¢ a honestidade de suas opinides 0s torna muito valio- 80s para o historiador. Embore Byng fosse um personagem extremamente conservador ¢ mesmo reacionirio, ele se aventurou a visitar os novos cen- tros industriais, vendo-os invariavelmente com maus olhos assim que che- gava. Em 1792, escreveu sobre Aysgarth, no vale de Yorkshire: ‘Mas 0 que completou a destruigao de todo pensamento rural foi a construgio de uma fabrica de tecidos de algodo em um lado onde, desde entio, paisa- gem e tranqililidade foram destrufdas: falo agora como turista (como policial, cidadao ou homem de Estado, nio entro no assunto); as pessoas, de fato, en- contram-se empregadas; mas esto todas condenadas 2o vicio causado pela aglomeragio... Quando nio esto trabalhando na fébrica, saem a invadir a propriedade alheia, pilhar e entregar-se 4 devassidao — Sir Arkwright pode ter trazido muita riqueza para sua familia e para o pafs; mas, como turista, execro seus projetos que, tendo invadido todos os vales pastoris, destrufram 0 curso eabeleza da Natureza; porque temos agora aqui uma grande Fabrica deslum- brante, que absorve metade da gua das quedas acima da ponte. Com o sino tocando eo clamor da fabrica, todo o vale perturba-se; traigio € sistemas de nivelamento so 0 discurso; e a rebelido pode estar préxima.> 23 P. J. deLouthertourg: detalhe de Coalorook- dale dnote, éteo, #801. ‘As grandes inddstrias, como as fundigoes Coalbrookdale, em Shropshire, eram fonte de fascinioe admiragio para Viajantes e artistas do séculoxvi Alguns dias depois, ele ficou satisfeito quando perguntou a um homem se “o negécio do algodio nao beneficiava os pobres” e o homem respondeu: A pior coisa do mundo, em minha opinido, senhor, pois no nos torna nem ma- ridos robustos, nem mogas recatadas; pois as criancas criadas numa fibrica de algodio nunca tém exercicio ou ar e sio todas desavergonhadas eatrevidas.® Uma vez que Byng achava a industria manufatureira tio abomindvel, s6 podemos nos perguntar por que ele visitou tantas vezes as cidades indus- triais. Parece que sua curiosidade era tio forte quanto seu desgosto, ati- tude muito comum na época. © verdadeiro interesse de Byng eram as antiguidades. Ele viajava pelo pais em busca de reliquias e desejava ter vivido numa época em que o pais no estava coberto por estradas com postos de peddgio e as terras no eram cercadas. Seu gosto por antiguidades era compartilhado por muitos deseus contemporaneos, mas enquanto Byng, fiel ao seu conservadorismo ¢ patriotismo, preferia antiguidades inglesas, outros cagavam avidamente reliquias gregas ¢ romanas. O interesse pelas antiguidades clissicas fazia parte do movimento neo- classico, que se desenvolveu nas décadas de 1750 € 1760 dominou o gosto. europeu no final do século xvi11, © neoclassicismo pretendia recuperar para a arte eo design a pureza de forma e expresso que julgava faltar no 24 estilo rococé da primeira metade do século xvitt e que era identificada naquilo que Grécia e Roma haviam produzido. Boa parte da inspiracao do neoclassicismo veio com a descoberta de Herculano, em 1738, e Pompéia, em 1748, € as excursOes A Itdlia para estudar as reliquias cldssicas ao vivo tornaram-se parte da educagao artistica. Também entrou na moda, para os aristocratas cultos de toda a Europa, ir a Roma para ver, comprar e, em casos de extremo entusiasmo, participar de escavagoes.’ Os objetos procurados podiam ser antiguidades cldssicas ou inglesas, mas 0s motivos eram semelhantes. O estudo das ruinas gregas e romanas proporcionava inspiragio para como deveria ser o presente, O paradoxo do gosto setecentista — uma época to fascinada pelo progresso e ao mesmo tempo devotada ao estudo do passado distante - expressou-se em todos os produtos artisticos do neoclassicismo. Nao se tratava de reprodugées servis da Antiguidade: eles usavam imagens e formas do passado, mas pretendiam expressar sentimentos modernos. As vezes, os efeitos parecem despropo- sitados e contraditérios. Dr. Johnson descreveu a vida contemporanea em poemas que imitavam de perto o poeta romano Juvenal. Construgées novas, como as casas de campo do final do século xvitt, usavam formas e moti- vos daarquitetura antiga, mas tinham planejamento e organizacao internos projetados para servir a propdsitos decididamente modernos. Para popu- larizar o conhecimento cientifico da época, 0 médico e cientista Erasmus Darwin nio usou a linguagem da ciéncia, mas escreveu um poema épico classico, The Botanic Garden, publicado em duas partes, em 1789 e 1791, que 25 Benjamin West: Etriria, leo, 1791. pintura de West da fabrica de Wedgwood a transforma numa cena da Antiguidade, Aesquerda:josiah Wedgwood: cépia do vaso Portland, 1790. ‘A produsio do biscoito €em jaspe preto foi um triunfo téenico, que Wedgwood divilgou reproduzindo o famoso camafeu do séculos conhecido como Vaso de Portland. 2 direita: ingresso para vera cépia de ‘Wedgwood do Vaso de Portland, 1799. Wedgwood transformou sua bem- sucedida reprodugo do fameso vaso em um ‘evento social. OpasfanD doves NEWeoods Copy of THE PORTLAND VASE Gok Sve eben foi um grande sucesso popular. Darwin descrevia deliberadamente a cién- cia com metéforas e imagens clissica : 0 poder da maquina a vapor, por exemplo, era descrito numa longa e elaborada metéfora que o equivalia & forca de Hércules. Hoje, o resultado parece despropositado e artificial, mas. a popularidade do poema na época mostra que se tratava de uma maneira aceitdvel de comunicar idéias e conhecimentos progressistas. ‘Tio irrealista quanto 0 poema de Darwin ¢ a pintura que Benjamin West fez da fabrica de Josiah Wedgwood em Etruria: mulheres decorado- ras em trajes de matronas romanas, em poses languidas cléssicas, tendo ao fundo cenas de trabalho artistico, dificilmente poderiam ser menos re- presentativas das condig6es reais da fabrica, famosa em toda a Europa por seus métodos avancados de manufatura e seu alto grau de divisao entre os diferentes processos. Tanto isso era tipico da abordagem setecentista das novidades que, quando procurou anunciar suas habilidades técnicas de ceramista, Wedgwood decidiu reproduzir o vaso Portland, a famosa peca romana de ca- mafeu adquirida pelo duque de Portland em 1786. O objetivo das reprodugGes nao era apenas provar que eram to boas quanto os originais, mas também demonstrar a sofisticacio das técnicas de producio correntes e sua superio! dade em relagao ao que qualquer design novo e original pudesse fazer. A inquietagio com o progresso e um interesse compulsivo pelo pas- sado eram fenémenos relacionados. Em Detlinio e queda do Império Romano (776-88), Edward Gibbon descreve a Roma do segundo século depois de Cristo, a ldade do Ouro, como um lugar de paz e harmonia perfeitas, per- turbadas depois pela introdugao do cristianismo, vindo de fora. $6 recen- temente os historiadores questionaram esse retrato idealista da Idade do Ouro e argumentaram que, longe de ser estdtica, Roma passava por um perfodo de considerdveis mudangas internas, uma visdo que nio teria sido bem recebida no século xv111, pois teria privado a Antiguidade de uma de suas maiores atracées. Para as classes ociosas daquele século, boa parte do prazer do estudo da Roma antiga e de colecionar suas reliquias vinha do contato que isso lhes dava com uma civilizacio que fora aparentemente estdvel. O desejo de ver principios e designs cldssicos aplicados & vida con- temporanea vinha, em parte, de uma vontade de suprimir da consciéncia a tendéncia perturbadora da mudanga. £ claro que se pode argumentar que, por exemplo, quando Wedgwood introduziu o neoclassicismo no design de sua ceramica, ele o fez porque esse estilo estava na moda. Contudo, tal explicagao ¢ incompleta, no sen- tido de que nao nos diz por que o neoclassicismo, e nao outro estilo, es- tava na moda; para responder a isso e saber por que os consumidores do século xvtt1 preferiam 0 neoclassicismo a alternativas, precisamos saber 0 que esse estilo significava para cles. Infelizmente, a reconstrugdo das preferéncias dos consumidores no passado ¢ uma empreitada histérica cheia de dificuldades ¢ que, em geral, conduz a resultados insatisfatérios. Nao podemos confiar completamente nem mesmo nos relatos dos poucos consumidores que se dignaram a articular e registrar os motivos de suas escolhas, pois talvez nao estivessem plenamente conscientes deles, ou ndo os tenham registrado na totalidade. Além disso, nao podemos pressupor que as preferéncias de um consumidor fossem compartilhadas por outros, até mesmo outros da mesma classe, idade ou sexo. Nessas circunstancias, o melhor que podemos fazer é indicar os fatores motivacionais que pode- riam levar os consumidores a agir de uma maneira ou de outraem uma determinada época. Em geral, as melhores provas histéricas sobre prefe- réncias de consumidores vem dos fabricantes, dos quais podemos esperar, afinal, que soubessem avaliar a tendéncia do mercado; desse modo, deve- mos valorizar o testemunho deles acima de qualquer consumidor indivi- dual. As experiéncias de Josiah Wedgwood com o neoclassicismo confir- mam, em larga medida, que, entre outras coisas, era o estilo que fazia as, classes média e alta do final do século xviii se sentir mais & vontade com © progresso. 27 WEDGWOOD: NEOCLASSICISMO NA PRODUGAO INDUSTRIAL Em 1759, quando Josiah Wedgwood terminou a sociedade de cinco anos com o ceramista Thomas Whieldon, em Stoke-on-Trent, no condado de Staffordshire, mudangas considerdveis estavam ocorrendo nas fabricas de ceramica inglesas. No inicio do século, poucas oficinas empregavam mais do que meia duzia de homens e a maior parte de sua produgio era vendida localmente. Em 1750, alguns ceramistas jd haviam aumentado suas vendas com a ampliacio de seus mercados para lugares mais distantes do pais e empregavam mais homens em suas oficinas. Em 1769, acredita-se que uma fabrica média de Staffordshire 4 empregava cerca de vinte homens.® No final de sua sociedade com Whieldon, Wedgwood alugou uma ce- ramica perto de Burslem e comegou uma produgio prépria, reconhecendo com perspicdcia as oportunidades de negécio ali abertas. Como escreveu mais tarde, no comego do Livro de Experiéncias que iniciava entio: “Buvia que o campo era espagoso € 0 solo tio bom que prometiam ampla recom- pensa a quem trabalhasse com diligéncia em seu cultivo”.® Sabemos como Wedgwood desenvolveu esse cultivo gracas 4 excepcio- nal série de cartas que escreveu a seu amigo Thomas Bentley. Essas cartas proporcionam um retrato espetacular da mente de um empresdtio nos pri- meiros estdgios da industrializagao, revelando os problemas que enfren- tava e as solugées que encontrava.'° Em particular, elas mostram a impor- tancia sem precedentes que o design teria na producao de seus artigos. A demanda por artigos de ceramica aumentou constantemente durante oséculo xviii, mas ndo apenas devido ao crescimento da populagio. A nova popularidade do ché requeria tagas de cermica (uma vez que nao € possivel beber liquidos quentes com conforto num recipiente de metal), a0 mesmo. tempo que a expansdo colonial criava mercados no além-mar. Esses desdo- bramentos beneficiaram a industria como um todo e a maioria dos fabrican- tes aumentou seu comércio. Mas Wedgwood foi o mais bem-sucedido. Entre as razdes do seu sucesso incomum estavam a racionalizagio dos métodos de produgao em sua fabrica, suas criativas técnicas de marketing e, particularmente, sua atencio aos produtos. Ele nao somente estava deci- dido a produzir objetos de qualidade muito superior a dos outros ceramistas, como também dava grande importancia a aparéncia de seus artigos. Na década de 1750, os principais produtos de Wedgwood e Whieldon, da mesma foma que os dos outros ceramistas de Staffordshire, eram uma ceramica de alta temperatura e vidrada a sal, uma cerdmica de argila branca vidrada em cores variadas e uma ceramica de argila vermelha. Em seu Livro de Experiéncias, Wedgwood descreveu os problemas apresentados por esses produtos da seguinte maneira: A ceramica branca de alta temperatura (vidrada a sal) era 0 artigo principal de nossa manufatura; mas isso era feito havia muito tempo e os precos estavam agora to baixos que os ceramistas no podiam gastar muito com ela, ou fazé- Ja tio boa em todos os aspectos quanto os artigos que tinham feito até entao; e, em relaco 3 elegincia da forma, esse era um tema que recebia pouca atencio. © préximo artigo em importancia depois da ceramica de alta tempera- tura era uma imitago de casco de tartaruga, mas como nio houvera nenhum aperfeigoamento nesse ramo durante varios anos, 0 consumidor estava quase cansado dele; e, embora o prego tivesse baixado de tempos em tempos para au- mentar as vendas, o expediente nfo adiantou e era preciso alguma coisa nova para dar um pouco dealento ao negécio. Eu jé fizera uma imitagao de égata, que foi considerada linda ¢ um aperfei- goamento significativo, mas as pessoas estavam fartas dessas varias cores. Es- sas reflexGes me induziram a tentar algum aperfeigoamento mais sdlido, tanto nos biscoitos como nos vidrados, nas cores ¢ nas formas dos artigos de nossa manufatura."* Bule de chi, canecae Jarra vidrados asal, Staffordshire, ¢.1750. Produtos tipicos das cceramicas de Stafford- shire na metade do séculoxvn 29 Acsquerda: bulede chd moldado, vidrado verde, ‘casco de tariaruga, provaveimente Wedgwood, c. 1765, Um bule desse estilo era escrito porWedgwood como tipicode Staffordshire na metade do século xvi, Adireita:jarra de imitagao de dgata em argila vermelha com vidrados marrors, 1750. Exemplo canacterstico do tipo de utensilio de imitago de Agata descrito por Wedgwood, 30 Em seus primeiros anos em Burslem, Wedgwood procurou desenvolver novos produtos para substituir os insatisfat6rios existentes. Sua primeira inovagdo importante foi um vidrado verde, que inventou. Esse vidrado, combinado com um amarelo, era aplicado a cermica branca com orna- mento moldado, dando resultados vividos em cor e um tanto barrocos na aparéncia. Essa louga foi o produto basico de Wedgwood no comeco da década de 1760 ‘Ao mesmo tempo, Wedgwood também aperfeigoava um vidrado creme para as ceramicas brancas. Embora esse tipo de ceramica jé fosse produ- zido em Staffordshire havia algum tempo, Wedgwood estava interessado em fabricar um vidrado que fosse relativamente branco e desse resultados constantes na queima, Elejé ohavia aperfeigoado em 1765 por volta dessa época comesou a produgio em larga escala da ceramica creme, decorada com esmalte pintado ’ mio ou com esmaltes aplicados sobre decalques impressos ~ um proceso mais répido desenvolvido por Sadler ¢ Green, firma de Liverpool com quem Wedgwood fazia negécios. Em 1766, alouga creme jé era suficientemente bem-sucedida para que ele interrompesse a produgaio da louga com vidrado verde. As observagdes de Wedgwood em seu Livro de Experiéncias mostram que ele também estava preocupado com a forma de seus artigos, que jul- gava longe de satisfatoria. Foi somente na metade da década de 1760 que 0s desenhos comegaram a mudar significativamente. As formas basicas da cerdmica creme nao eram diferentes das da verde, emborao ornamento moldado fosse reduzido e, por fim, eliminado por inteiro;a mudanga mais notdvel ocorreu na decoragdo esmaltada, que podia ser muito intrincada e era aplicada 4 mio ou decalque depois que o biscoito era vidrado. Nos dez anos seguintes, até 1774, quando foi produzido o primeiro catdlogo de Wedgwood, as formas continuaram a se tornar mais simples, com uma decoragao que ficava cada vez mais neocldssica. A ceramica creme, ou “Queensware”, como Wedgwood rebatizou-a depois que a rai- nha Charlotte encomendou um servigo dessa louga em 1765, tornou-se um enorme sucesso nacional ¢ internacional. Como baixela, ela preen- cheu a lacuna entre a qualidade muito pobre da louga comum, feita em outros paises, e os produtos de alta qualidade muito caros, das fabricas de porcelana real, como Sevres, Meissen e Copenhague. Seu sucesso de- yeu-se muito também as qualidades essencialmente neocldssicas de pu- eza e simplicidade de forma. Parece que, de inicio, Wedgwood nao se deu conta disso, mas quando Ihe disseram, em 1769, que a simplicidade era apreciada, ele procurou aperfeicoar sua Queensware nessa ditecio."* A popularidade da Queensware continuou a crescer até o final da década de 1770, quando parece que o mercado ficou temporariamente saturado. Wedgwood escreveu em 1778 que nao era mais “o artigo seleto que costu- maya ser, pois toda loja, residéncia e casa de campo esta cheia dela”.'3 Nao obstante, com mais refinamento e aspecto neocldssico mais deliberado, continuou a ser produzida século x1x adentro. A principal fonte de conhecimento de Wedgwood acerca do revival clds- sico era seu colega, amigo e depois sécio Thomas Bentley, negociante de Liverpool que exportava sua louca para as colénias americanas e as Indias ‘ezquenda:bule Wedgwood imitando couve-fer,vidrado verde, ¢.1759.Esse5 tersilios exsticos, de cores vivs, eram um produto padtio de Wedgwood no comeso dda década de'766. Adireta: bule de cha Wedgwood com Vidrado creme e decorado com esmaltes pintados & mio, inal da década de 1760, Esteé um dos primeiros predutos de ceramica creme, quesubstituiram (5 utensilios com vidrado verde, at Prato Wedgwood com vidrado cremee decoregio esmaltada comdecelques aplicados, ¢.1775- Esmaltes pintadosa ‘mio tinham produciéo lenta ea introdugéo dos decalques acelerou ‘muito o processo de decoragio. ae Ocidentais. Bentley era um homem culto, ciente das mudangas artisticas que estavam ocorrendo na Europa e com muitos contatos sociais. Em 1769, ele e Wedgwood se associaram para produzir “artigos ornamentais” (dis- tintos dos produtos da ceramica creme, conhecidos como “louga util”) na nova fabrica de Wedgwood, em Etriria. Bentley mudou-se para Londres e ficou responsdvel pela comercializacao nessa cidade. "* Ele também levou seu conhecimento de arte para o design dos artigos omamentais. Foi sob sua influéncia que Wedgwood revisou seus desenhos e comecou a produ- zir objetos ornamentais neocléssicos e a fazer também a louca do dia-a-dia deliberadamente neocléssica. Foi nos desenhos dos objetos ornamentais — vasos, urnas, estatuetas, camafeuse placas de ceramica - que Wedgwood e Bentley foram mais fundo na aplicago do neoclassicismo. Quando entraram nesse mercado, a cera- mica ornamental na Inglaterra ainda era barroca e pesada. A intuigéo cer- teira de Bentley, de que poderia haver um mercado para cerdmica ornamen- tal neoclassica, surgiu presumivelmente de seu conhecimento do que estava acontecendo no mobilidrio contemporanco. O neoclassicismo, entre seus muitos outros efeitos sobre a arquitetura doméstica, introduziu a pratica da decoragao de interiores num estilo unificado, de tal modo que todos os aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Robert Adam: design para um aparador em Kenwood, 1768-69. Os designs deinteriores de Adam incluiam com frequencia omamentos antigos desenhados com precisio, executados geralmente fem madeira 05 ‘menores, em prata, ‘Ademanda por ‘omamentos antiges significava uma oportunidade para Wedgwood & Bentley. De The Works in Architecture ofR. 8). ‘Adom,1778,¥.1, 9.2, stampa vii a4 neoclissico, em parte mediante seus contatos sociais, mas também se apro- veitando da familiaridade com os tedricos do neoclassicismo. Por exemplo, eles adoravam divulgar o fato de 0 conde Caylus, autor de um bem conhe- cido estudo em seis volumes sobre antiguidades cldssicas, lamentar que nao houvesse equivalentes modernos dos antigos vasos etruscos, lacuna que —eles podiam agora anunciar— seus produtos preenchiam.'5 Wedgwood ¢ Bentley obtiveram seu conhecimento de design clissico em parte de seus contatos com a aristocracia, que hes mostrava e, as vezes, emprestava pecas de ceramica e esculturas antigas para estudar. Eles pos- sufam uma grande colegio de livros sobre arqueologia classica publicados no século xvi11 e Wedgwood fez amplo uso deles."® Ele também pensou ‘em empregar um artista em Roma para estudar as antiguidades originais e comunicar as novas modas do gosto artistico, mas esse plano nao deu em nada, embora tenha mais tarde subsidiado a viagem de John Flaxman a Roma.” Wedgwood utilizou esse conhecimento de antiguidades e fez com que seus artesdos produzissem cépias exatas, ou ento reinterpretassem os originais cldssicos. Ele descreveu esse método com as seguintes palavras: Pretendo apenas ter tentado copiar as belas formas antigas, mas no com ser- vidao absoluta. Tratei de preservar o estilo € 0 es rito ou, se quiser, a simpli- cidade elegante das formas antigas ¢, ao fazé-lo, introduzir toda a variedade de que era capaz, ¢ isso Sit W, Hamilton me garante que posso me aventurar a fazer, e que ¢ esse o verdadeiro modo de copiar o antigo. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. ‘Aesquerda: Wedgwood & Bentley: vaso ‘omamental com tres algasem Queensware, inicio dadécada de 1770. Muitosdos produtos de Wedgwood e Bentley eram obviamente mais rococésdo que neocldssicos.edesse ‘modo estavam mais préximos do que Wedgwood considerava A direita: Wedgwood & Bentley: Sacred Bacchus, Sacred to Neptune {(Consagrado a Baco, consagrado a Netuno] parde jarros para vinho e 4gua, basalto preto, 1775. Um exemplo de artigo omamenial em basalto preto desenvoivido no comego dadécada de 1770. Nio obstante, Wedgwood estava bem consciente da atragdo que o neoclassi- cismo exercia sobre seus clientes e nao hesitou em modificar seus desenhos conforme o conselho de especialista que recebera. Sua compreensio da forca da demanda por design neocléssico revelou-se quando escreveu a Bentley sobre uma determinada linha de produtos: “Eles certamente nfo sio antigos e isso é osuficiente para condend-los aos olhos da maioria de nossos clientes”. Boa parte do interesse de Wedgwood em cerimica estava nas descober- tas e nas inovagées técnicas; para torné-las lucrativas, os sécios precisavam encontrar-Ihes aplicagdes comerciais e, nesse sentido, 0 neoclassicismo foi valioso. Durante toda a sua vida, Wedgwood fez muitas experiéncias com vidrados ¢ biscoitos, ¢ era fascinado por tudo 0 que ia para o forno. Sua reputagio cra nao somente a de um fabricante, mas também de um pesquisador experimental, motivo que 0 levoua ser cleito para a Royal So- ciety. Experimentos ¢ inovagio cram, portanto, tio importantes para cle quanto a atividade empresarial e 0 comércio; 0 que o tornou tao excepcio- nal foi o fato de que era talentoso em tudo isso. Em suas experiéncias, Wedgwood desenvolveu e aperfeigoou dois bis- coitos novos, um negro, nao vidrado, chamado “basalto negro”, e outro branco, fino, levemente transhicido, chamado “jaspe”, que em sua forma nao vidrada tinha uma textura semelhante a do mérmore. Wedgwood criou também jaspes coloridos e, mais tarde, 0 “banho de jaspe”, um co- lorido de superficie para jaspe branco. Embora muitos dos primeiros arti- gos ornamentais fossem feitos de barro vitrificado, a partir da metade da década de 1770 uma proporcao crescente foi produzida com esses novos biscoitos, O basalto negro, uma invengio menos notdvel do que 0 jaspe, era usado principalmente em urnas e estatuetas, enquanto 0 jaspe foi de- senvolvido originalmente para proporcionar um material adequado a boas reprodugGes de gemas e camafeus antigos. Apés aperfeigod-los, os sdcios queriam encontrar outras aplicagées comerciais para eles. A solucao desse problema foi propiciada pelo neoclassicismo. Percebendo que 0 jaspe se parecia com o mdrmore, Wedgwood e Bentley viram suas possibilidades no crescente mercado para ornamentos neocldssicos. Ele se prestava a umnas, jarros e placas com desenhos moldados em relevo, e Wedgwood passou a fabricar tudo isso em padrdes antigos. No conjunto, os produtos foram um grande sucesso e satisfizeram perfei- tamente a demanda por ornamentos neoclassicos. Entre os poucos produtos que nio se revelaram populares, estavam grandes placas de jaspe em relevo para colocar em frisos e consolos de lareiras. Apesar de sua usual habilidade na comercializagio, Wedgwood e Bentley nao conseguiram vender esses pro- dutos, embora tenham tentado muitas vezes atrair 0 interesse de arquitetos e designers. Um dos abordados foi o arquiteto e paisagista Capability Brown, que advertiu Wedgwood de que os produtos eram inaceitaveis porque eram feitos de jaspe colorido; ele recomendou fazé-los de jaspe branco puro, de tal modo que se parecessem com mérmore."* Pelo menos dessa vez a faganha ‘Aesquerda: Josiah Wedgwood: Saificeto ‘Aesculepus(Sacrficio a Esculépio}, teste de ‘medalho em jaspeazul ‘ebranco, 6.1773. O desenvolvimento do jaspe fol uma proeza técnica, resultado de ‘muita experimentagio, como mostra este teste. Depois de desenvoler comaterial, Wedgwood precisava encontrar aplicagées para ele, Adireita: Josiah Wedgwood: vaso ‘omamental com relevo de Vénus em seu carro puxado por cisnes, jaspe branco com banho preto, 1784, Vasos e urnas ‘em formas antigas com motivos da Antiguicade ofereciam ormamentos apropriados para os teriores neoclissicos.. a7 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Embora Wedgwood e Bentley se referissem em seus catdlogos ao pro- gresso e aos “constantes aperfeicoamentos”, o objetivo dessas declaragdes parece ter sido chamar a atencao dos clientes para a existéncia de novos produtos. Porém os principais avangos técnicos, 0 desenvolvimento de novos materiais e processos nunca foram diretamente mencionados nos primeiros catdlogos como inovagdes, A maneira usual era descrever algo novo, como « encdustica, pintura com pigmentos e cera tratados a quente sobre lougas de “basalto”, que dava um efeito similar & cerdmica etrusca, como sendo a “redescoberta” de uma arte esquecida da Antiguidade. Do mesmo modo, em relagdo ao design dos produtos, nao enfatizava sua novidade, mas suas origens antigas. No catdlogo de 1779, os camafeus entalhes eram apresentados com a declaragdo: “Estes foram tirados exa- tamente das melhores gemas antigas”.” Uma vez que inclufam retratos de lorde Chatham, do papa reinante e de George 11, isso nao era poss/- vel, mas tinha 0 efeito de chamar a atengdo para a qualidade cldssica dos desenhos. Antiguidade, e nao novidade, era a qualidade comercializ4- vel. Sentimento semelhante orientou a escolha do nome de Etraria para a fabrica de Wedgwood, que estava longe de ser etrusca na aparéncia e na administragdo. Wedgwood e Bentley adotavam esse modo obliquo de anunciar suas inovagdes quando queriam que as pessoas soubessem delas. Mas quando introduziu métodos que nao tinham nenhuma relagdo com qualquer processo antigo, tal como a substituigao de esmaltes pintados 4 mio por decalques impressos, Wedgwood preocupou-se em manter em segredo essas novidades, que tiveram importantes efeitos em sua produ- fo e seus lucros.* A relutancia em divulgar algumas descobertas sugere que ele sabia que seus produtos eram populares porque no lembravam aos clientes os aspectos de progresso que seriam inaceitdveis para eles. Algumas das tentativas de Wedgwood e Bentley de convencer seus clientes das qualidades antigas de seus produtos ¢ processos novos pare- cem hoje ingénuas. Mas, se a propaganda era tosca, o uso que faziam do design para os mesmos fins era altamente sofisticado, e quanto mais exata era a referéncia que faziam as antiguidades, mais procurados se tornavam seus produtos. O objetivo deles no era fazer as pessoas acreditar que al- gum de seus artigos era antigo, mas convencé-las de que os produtos, em- bora feitos por processos modernos, eram tao bons ou até melhores do que os da Antiguidade. O valor muito especial atribuido a esse periodo no 39 Josiah Wedgwood: jarra de basalto preto decorada com pintura encatistica, ¢. 1770. Anova técnica decorativa cde Wedgwood foi descrita ‘como “a redescoberta de uma arte antiga”, noco reforcada pela forma etrusca desta jarra. ‘Wedgwood & Bentley: retratos em camafeu deGeorge ie da rainha Charlotte, aspe azul ¢ branco, 1778. Muitos dos retratos em ‘camafeu de Wedgwood ‘& Bentley eram de pessoasvivas, mas representadas Amaneira dos camafeus antigos. 40 século xvIII fez disso um modo muito eficaz de superar as reservas que os clientes poderiam ter em relagdo as suas inovacoes. De algum modo, a relago de Wedgwood e Bentley com o neoclassi- cismo era pragmatica. O estilo nao era essencial em sua producio, pois podiam e faziam artigos em estilos diferentes. Como observou Hugh Ho- nour, eles usavam as antiguidades com finalidade decorativa e estavam, na verdade, perpetuando 0 gosto rococé por decoracao sob fantasia antiga.?5 Nio obstante, se 0 neoclassicismo foi simplesmente mais um estilo deco- rativo para Wedgwood e Bentley, foi também muito valioso para o sucesso deles, gracas ao poder tinico que teve no século xvi1 de tornar moda os métodos modernos de manufatura. NOTAS 1 Esses desenvolvimentos so descritos de forma mais completa em Adrian Forty, “Wireless Style. Symbolic Design and the English Radio Cabinet 1928-1933", Arhi- tectural Association Quarterly, v. 4, n. 2, primavera 1972, pp. 23-31. 2° Algumas idéias sobre o imagindrio utdpico foram sugeridas por W. Benjamin em “Paris, the Capital of the Nineteenth Century”, reimpresso em W. Benjamin, Charles Baudelaire: A Lyric Pot in the Era of High Capitalism, Londres, 1973, pp. 155-77 W. Ben- jamin, “Paris, capital do século x1x”, em Obras ecolhidas,v. 3. S40 Paulo: Brasiliense, 1993] Manfredo Tafuri discutiu a significagdo de utopia no design moderno em Architecture and Utopia, Cambridge, Mass., 1979 (M. Tafuti, Projecto e Utopia. Lisboa: Presenga, 1985], e em seu ensaio “Design and Technological Utopia”, em Itely, The New Domestic Landscape, editado por E. Ambasz, Nova York, 1972, pp. 388-404, € re- feriu-se a0 tema em muitos outros escritos.

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