As Vozes Dos Escombros - Castro Montnegro

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As Vozes dos

Escombros
ʡ

I
reflecções sobre o que será

D iz o mito ou a História que não há vestígios alguns dessa história que


estou prestes a vos revelar, mas não é bem assim, porque tenho claras
evidências que foi vivenciado por minha persona e entre facto ou pesadelo
surge uma linha muito ténue para diferenciar.

Para perceberem em concreto o que vos vou confessar tenho que recuar um
pouco atrás no tempo e no espaço, ou seja, levar-vos para o prólogo dessa
acção para entenderem melhor o que se sucederá.
Através de uma pesquisa minuciosa e detalhada encontrei arquivos e
testemunhos escritos em papel (as minhas fontes serão mantidas em segredo)
que me induziram a um crescendo de curiosidade, porque descobri algo que
para vós parecerá uma incongruência ou falácia, mas eu ficarei com a certeza
dessa alucinante experiência cravada no pensamento, sendo um tormento
constante.

Guiando-vos para um lugar isolado, situado no meio do mar, uma recôndita ilha
coberta por uma numinosa bruma espessa. Finais do séc. XVI e meados do
séc. XVII, numa época atribulada, quando batalhas navais ocorriam ao longo
da costa sul e a dinastia filipina tomava poder, a escravatura era um mercado
que enriquecia os nobres e senhores feudais, onde anteriormente também um
avassalador terramoto no Anno de 1522 devastou durante a noite uma pacata
vila portuária, estimando-se entre 3 000 e 5 000 mortes. A situação agravou-se
com o surgimento de um tsunami, desencadeado pela entrada no mar do
material empurrado por deslizamento de terras, provocando a destruição de
vários navios na orla costeira (centenas segundo algumas crónicas).
Pois é nesse ponto essencial que quero dar início ao desenvolvimento do que
pretendo agora vos transmitir.
Enquanto massacres eram constantes e sangue era derramado, algures no
interior dessa selvagem ilha houveram rumores da existência de uma espécie
de conventículo ou pequena seita oculta, mas os seus seguidores nunca foram
encontrados, sendo procurados pela implacável inquisição, a mandato do
tribunal do Santo Ofício.
Especula-se que se reuniam em grutas ou em taciturnos matos, para
venerarem deuses pagãos e profanos, tinham também juramentos envoltos em
inquebrável secretismo.

O que tenho como referência, são documentos de autor anónimo que certo dia
outonal, foram encontrados vestígios de um rito proíbido e outras coisas
invulgares num lugar descrito como " sinistro e medonho" situado algures no
emsombrado interior dessa ilha. Ao pé do mesmo podia-se dar enfase a umas
"... “exóticas árvores”, com uns ramos fortes e umas raízes que se projectavam
à superfície apoderando-se do solo circundante.
Por detrás de uma destas constituições arbóreas, foi encontrado um altar com
uma cruz de pau invertida, este era feito de plantas trepadeiras e musgo,
estava manchado de sangue seco, com amarras e um pedaço de tecido
cetinoso branco. À sua volta exalava o cheiro a cera derretida e velas
apagadas, que após de uma atenta observação, concluiu-se que as mesmas
estavam colocadas em cinco posições diferentes, nos vértices de um círculo
camuflado, eficazmente coberto pelas folhas caídas de Outono e pintado de
negra tinta no chão encontrava-se um pentáculo/pentagrama invertido,
lançando o furor nos presentes, mas não havia sinais fiáveis de corpos ou de
crime, pensou-se mesmo em procurar esconderijos por ali perto, o que acabou
por distorcer mais a percepção da realidade presenciada.
"Após uma busca demorada à volta do local encontramos num buraco da
árvore um pergaminho coberto por teias de aranha-tigre (Argiope bruennichi),
um pouco rasgado e queimado contendo o seguinte texto:

Ritualis Tenebræ
MAJESTATIS DIABOLICVM
EGO INVOCAT REX TENEBRARVM
DOMINVS INFERNALIUM
DE ABYSSVS
EXSVRGE, EXSVRGE
LVCIFERI VOBISCVM

“É uma invocação! Um sortilégio dos hereges, algo terrível deve ter ocorrido
nesse lugar, uma sacrílega cerimónia ao demo, à velha iniquidade, um maléfico
chamamento das trevas!”

Agora tudo fazia mais sentido, era 1 de Novembro , data essa também em que
curiosamente na carismática capital olisiponense ocorreu durante a madrugada
do anno de 1755 um gigantesco e cataclismíco tremor de terra e posterior
maremoto, que destruiu por completo grande parte da até então cidade
medieval., evento este que serviu de inspiração ao poeta Voltaire. Após a
calamidade a cidade foi reconstruída pelo génio controverso e visionário
monsenhor Marquês de Pombal.
Aconteceu no dia 31 De Outubro, a noite das bruxas também conhecido por
Samhain (Sowain). Segundo a ancestral tradição, acreditava-se que o véu
entre dois mundos abre-se e os mortos deambulam como espíritos penados na
Terra.

Algumas peças já se começavam a encaixar, foi cometido nesse maldito local


um ritual de imolação!
O que surpreende é não haver rasto fidedigno, nem existência de cadáveres e
a constante certeza que ainda temos muito que desvendar.

Um dédalo de especulação invade-nos, tudo permanece muito omisso e difuso.


MISTÉRIO é a palavra que agora percorre vossas mentes indecentes, mas
preparem-se para aquilo que o capítulo seguinte trará ou não...

“I forbid you entrance here, you step on hollow ground


Don't you see this chapel
Shut up! Hold your tongue, they must rest
in silence
It's the rebirth of the unborn”
Mercyful Fate

Suspiria
Ab

Umbrarum
II
carta a ninguém

Ainda há muito mais para vos contar, passo agora ao documento


seguinte esse foi escrito por um dos presentes, pelo menos é o que parece,
não vá o diabo tecê-las . Assinou como Edmundo Bonifácio e este assim relata:

2 De Novembro de 1624
"A situação que me encontro é deveras proveniente de um maldito acto
blasfemo e sanguinário.
Vou tentar convencer o meu amigo Salomão Borga a irmos hoje à noite ao
local para inspecionarmos melhor, pode ser que encontremos mais pistas que
nos conduzam, tirem as dúvidas e nos façam resolver esse enigma..."
Edmundo Bonifácio

E foram estas as palavras redigidas. Mas o que virá agora decerto que vos
despertará para outra visão e opinião, pois o próximo documento é a prova viva
(apesar de não credível) daquilo que vos tenho andado a contar, esse registo é
fulcral para saberem daquilo que falo. Aqui vos deixo o último testemunho de
Edmundo Bonifácio:

3 De Novembro de 1624
" OH COMO É POSSÍVEL, AI DE MIM, NÃO SEI SE FOI REAL OU NÃO,
ESTAREI DOUDO??, NÃO, NÃO, NÃOOO....AQUILO MEXEU-SE E AIII QUE
TERROR....AQUILO ENVOLVEU-O E SUGOU-O, MASTIGOU E
REGURGITOU SOMENTE OS SEUS OSSOS...NÃO SEI COMO ESCAPEI
AQUELE HORRÍVEL…E O MAIS HEDIONDO SÃO AS SUAS MÃOS....ELE
ESTÁ MORTO? PERGUNTO-ME CONSTATEMENTE SOBRE O MEU
ESTADO DE LUCIDEZ.
NÃO HÁ COMO DESCREVER,AQUILO, ESTAVA VIVO, SÓ SEI QUE ELE FOI
ENGOLIDO...SÓ DE IMAGINAR OS GRITOS DE AJUDA E EU NADA PUDE
FAZER.
A CULPA FOI INTEIRAMENTE MINHA., NÃO MEREÇO ESSA TORTURA
MENTAL, AQUI DEIXO AS MINHAS ÚLTIMAS PALAVRAS ENQUANTO ME
PREPARO." E.B
Sim, meus caros e nada mais se sabe. Edmundo foi encontrado enforcado na
sua casa três dias depois, já exposto aos elementos, rijo, um pouco
descarnado e coberto de insectos saprófagos, essencialmente moscas
varejeiras e com o crânio levemente carcomido.
Por isso é que não indicarei nenhuma de minhas fontes até melhores
evidências surgirem.
Isto está escrito.
Existem muitas coisas estranhas e secretas no nosso mundo, por vezes estão
escondidas à frente dos nossos olhos e algumas caminham ao nosso lado.
.
.
.
.
.
.
“There is

no delight

the equal of dread.

As long as

it's someone else's.”

Clive Barker

.
.
.
.
.
.
III
o ominoso barulho das coisas

Longos anos se passaram e esse caso foi enterrado no esquecimento das


vastas areias de Cronos. Como sendo algo inexplicável, de cariz desconhecido,
visto que era um assunto evitado e nefasto para a pequena comunidade
daquela época, daquela específica porção de terra à deriva no domínio de
Posídon, tudo era explicado sem fundamento algum, como heresia ou ultraje.
E assim continuarei a tecer o meu propósito com veemência, poderão pensar
que foi imaginação ou hipérbole de minha parte, mas também quando estamos
adormecidos e a divagar em sonhos tudo é possível. Sonhos lúcidos,
alcançando de olhos abertos o outro lado.

“And the stars of heaven fell unto the earth,


even as a fig tree casteth her intimely figs,
when she is shaken of a mighty wind. And the heaven
departed as a scroll when it is rolled together,
and every mountain and island were moved out of their places."

Certa noite vagueava-me pelas plácidas e vazias ruas de uma urbe qualquer,
entretanto depois de uma algazarra no bar que ficou para trás, dei por mim a
passar por um jardim que desde sempre conheci, uma calmaria incrível, tantos
mascarados na rua e de repente parece que fiquei sózinho, senti então um
murmúrio, continuei a andar mas subitamente parei e espreitei para aquela
árvore da minha infãncia, que vista agora a perfilar-se nos contornos da
penumbra, parecia criar com os seus galhos e raízes uns desenhos incógnitos
e abstractos em minha retina e desde aí, desse momento, daquele subtil olhar,
fiquei a devanear num túnel de infinda estupefacção.
A natureza tem o poder de provocar no Homem um certo sentido de
inumanidade, como escreveu Michel de Montaigne. Abraça-nos e também
aprisiona. Uma flor carnívora, aparenta ser bela e inofensiva até que a presa
caia na sua letal armadilha, ou mesmo uma floresta que de dia é um
maravilhoso refúgio para os solitários e amantes desses delicados recantos
cheios de predadores que se mostram quando a noite cai sobre o mundo.
Parece que existem entidades invisveis nesses antros recônditos e indomaveis
onde muitos se aventuram em busca de emoções fortes.
“Ah, mas aqui, onde irreais erramos...sombras buscando corpos, se os achamos”
-FPessoa
Depois de vários dias deprimentes e iguais, voltei a passar nesse mesmo local,
num deambular nocturno, acompanhado por minha opaca companhia, ou seja,
minha sombra e uma melodia provocada pela chuva que molhava onde caía,
mas a mim lavava o frio âmago, então deparei-me com aquilo outra vez, a
seduzir-me o olhar na por entre as sombras e fendas da vedação, trazia
comigo um bloco de notas que serviu para me relembrar da pesquisa que
havera feito em alguns livros sobre fauna e flora da floresta Laurisilva e com
isto transcrevi alguma informação que eventualmente me ajudaria no processo
de identificação da espécie que me era desconhecida e solucionar a dúvida
sobre essa matéria.

“Ficus macrophylla é uma figueira oriunda da Austrália, utilizada igualmente


como ornamento em jardins clássicos lusitanos. Os nomes vulgares
conhecidos desta espécie arbórea são: figueira-da-austrália e figueira-da-baía-
de-moreton.
No entanto, os residentes locais intitulam erroneamente esta árvore de árvore-
da-borracha ou borracheira. A falta de estudo e conhecimento da já referida
planta poderá induzir outros ao erro de especificação e a sua verdadeira
nomenclatura, uma vez que árvore-da-borracha é considerado um vernáculo e
calúnia pelo qual se conhece outra figueira ornamental, a Ficus elastica.”

Visto que o jardim estava fechado e não se encontrava viva alma pela rua,
tentei entrar pela lateral, subi o muro e saltei a vedação metálica, tentando
provocar o mínimo som possível ao aterrar no solo que se encontrava húmido.
Já dentro do recinto, dei alguns passos até preencher o meu campo de visão
com o vislumbre completo daquela esplendorosa produtora de oxigénio.
Abismado aproximei-me e fiquei parado a olhar fixamente tal concepção da
Natureza, mas ao mesmo tempo essa transmitia uma aura sombria, sobretudo
aquelas raízes que eram um chamariz para os meus olhos e interesse para o
meu cogito. Decidi trepá-la lentamente e não consegui, tentei de novo com um
acréscimo de rapidez, mas como estava uma noite chuvosa e ventosa, segurei-
me ao tronco por instantes, perdi o equilíbrio, subitamente escorreguei e caí de
costas, provavelmente devo ter batido com a nuca, penso que desmaiei após a
queda ficando inconsciente. Ao reanimar-me, já não chovia, estava um silêncio
constrangedor e foi quando me tentava por de pé, reparei que tinha uma ferida
na perna direita, perscrutei a hemorragia, era um pouco preocupante e ainda
brotava algum sangue. Sentei-me e senti o mesmo estranho murmúrio que
tinha escutado da primeira vez que passei pelo jardim, este era de um tom
grave e prolongou-se, virei-me, mas inexplicavelmente senti-me a ser puxado
por algo, pensei que o meu pé estivesse preso, só quando o sacudi e olhei por
detrás do ombro esquerdo, não há descrição possível, nem há testemunhas
para além de mim, mas eu vi e a adrenalina aumentou rapidamente, as raízes
estavam a ganhar vida e eu a ser sugado lentamente por aqueles dentes de
sabre!
QUE HORROR! Estava a ser arrastado em direção às suas execráveis
entranhas, onde de vários orifícios jorravam plutónicos rios encarnados,
banhando o meu rosto e restantes membros gelados. Então numa sensação
nervosa e num batimento cardíaco acelerado, não sabendo como agir, usei
toda a força que tinha para me libertar daquela monstruosidade, o suor
escorria-me por todos os poros, cravei as minhas unhas no solo molhado até
as mesmas começaram a sangrar, já quase não tinha fôlego para gritar, então
ocorreu-me que possuía um canivete suiço no bolso direito das calças
lamacentas, alcancei-o com alguma dificuldade e utilizei este para tentar
libertar-me daquilo que já não eram antropomórficas raízes, mas sim uma
acumulação de pestilentas carcaças e corpos sépticos, que tinham servido de
alimento aquela voraz devoradora de humanos, aquela hedionda e discreta
árvore, que aparentava ser somente uma simples e aprazível criação divina.

.........................................................................................……………..
................................................................................
.............................................

- Onde estou?
Está totalmente escuro aqui.
Será que morri e isso é um transe hipnopômpico para o vácuo existencial?
Toquei-me e senti a minha carne , mas não havia nada ali, estaria eu a delirar,
querendo a todo o custo acordar e sair daquele lugar alheio e constrangedor.
Ouvi então um guincho lento e fui empurrado por um abalo que me fez sair por
um buraco estreito onde enfraquecido e tonto pelo tremor, com os braços
arranhados bati com a cara no chão. Ergui-me e escutei aquele murmúrio que
agora soava a um eco perdido e imerso numa escuridão plena.
Ficaria eu ali à espera do que nunca iria vir? O ou quem mais residia no meio
daquela árida desolação?
Essas questões mentais só provocavam pânico e aumentavam a ansiedade.
Levantei-me e decidi andar para ver aonde aquele seio de trevas me
conduziria...
Imaginem o que é vaguear no vazio, no isolamento como um cego, na total
ausência de luz e em terreno inóspito.
...
Um terror de uma profundidade maior assombrou-me quando uma vez no
silêncio parei e deitei-me, ouvi sons indescerníveis e iam-se acumulando cada
vez mais, como engrenagens sobrepostos uns aos outros. Tentando manter a
calma compreendi que esses eram projectados de dentro de mim!
Sentia o coração como uma bomba a pulsar sangue para todas as artérias que
me revestiam, senti o fluxo desse nas veias e as vibrações tacteis de minhas
mãos a embaterem no solo(ou algo semelhante), como réplicas assustadoras
que se assumiam de mim e me provocavam um pavor que nem mesmo
estando consciente do que se passava conseguia aniquilar aquelas ideias
horríveis que se apoderavam de minha mente.
A minha própria respiração lenta e pausada parecia trazer alguma ameaça
invisível do fundo dos pulmões, sentia a garganta seca a querer abrir-se e
regurgitar uma enorme massa de ar comprimido nos alvéolos que me davam a
sensação que eu iria explodir como um balão carnudo de hélio se tentasse
suster a respiração, talvez fosse uma boa escolha, definhava ali e pronto, não
seria preciso nem funeral, nem pieguices de choros egoístas, nem falsas
testemunhas.
De lá de onde vim, só tinha um avõ e avó que cuidaram de mim. Os meus pais
ou os dois elementos de sexos opostos que me geraram, morreram num
acidente de viação no Pico da Ara, quando eu só tinha 3 anos. deles memórias
não tenho, nem muita coisa que me agarre à vida ou à vontade de permanecer
naquela dimensão terrestre, mesmo os meus avós , já estão velhos, decrépitos
e acamados. Amigos, nunca foi algo que posso dizer que possuí, não tive
tempo suficiente para ver quem eram os verdadeiros. Sempre fui muito
solitário” I have said that i dwelt apart from the visible world, but i have not said
that i dwelt alone”.
Apesar da minha idade não ser muito avançada, acho que fiz o que tinha a
fazer e por isso posso agora dormir com a consciência descansada.
Não sei se estou morto ou se fui sequestrado, caí num poço? , não sei de
nada!!!
Ao abrir os olhos de uma escuridão para outra ainda maior, já não surgia em
mim nada que me impelisse a continuar, tinha sede e mal conseguia descolar
os lábios, tremia por falta de nutrição e nem forças existiam para fazer o que
fosse.
Que deserto de trevas ou condenação infernal seriam aquelas que me
atormentavam, que me distorciam e arranhavam os ossos como invisíveis
garras de matéria negra, puxando-me para o mais ínfimo dos horrores?!
Exausto de mim, apaguei-me…
... ... ...
Um clarão ao longe feriu-me a pupila, rasgando-a, dilacerando-me a visão que
já estava habituada aquela indízível noite eterna... maldita luminiscência, não,
não posso!!! Parem!!! - Entrego-me!
Num estado de desespero e tortura decidi rastejar-me ao longo do solo ermo
até que ouvi um marulhar de uma corrente subterrânea (seriam lençóis de
água?)
Já não tinha unhas, e com os dedos em carne viva comecei a escavar
vagarosamente sem saber ao certo o que fazia e porque o fazia, já não sabia
rigorosamente nada de nada, o instinto era a lei que agora me regulava. Ao
cravar as mãos no chão essas afundaram-se como engolidas por areia
movediça e realmente era areia e estava húmida! Dei uns berros de felicidade
após ingerir aquela água salgada e questionei-me seriamente sobre o meu
estado de sanidade.
Estarei numa gruta abaixo do solo ou será isso tudo resultado da minha
implausível paranoia?
Surgiram assim de lado nenhum umas vozes dificeis de distinguir virei-me de
costas e vi-os ou penso que vi, mas conseguia quase tocar-lhes, como se a
minha mente fosse um projector de imagens e hologramas e essas fizessem
parte de um amplo subconsciente colectivo...
No princípio eram árabes ou mouros a desembarcarem na costa de uma terra
desabitada, práticas e rituais ancestrais como o sacrifício de um cordeiro e o
rosto do imperador romano Diocleciano cunhado em moedas de prata. Vi
silhuetas, caras e lugares que nem sei se existem, vi gigantes a andarem sobre
a terra, fogueiras e tribos reunidas numa floresta a entoarem crípticos cânticos,
invocações e lascivas dançarinas com os seus corpos sibilantes, vi também
umas silhuetas e vestimentas orientais, barcos e naus ancoradas, bacanais e
orgias na praia e no mato, corpos nus, cabeças decepadas e empaladas e vi
mortes, várias mortes, documentos de sangue e vestígios levados pelas ondas
neptunianas...
E vi-me a ser afogado também num oceano em alto-mar estelar para nunca
mais regressar...Sonhei com lagartos, dragões do Komodo, crocodilos e outros
rostos reptilianos que me falavam e não me perguntem porquê...OLHOS NOS
OLHOS DOS OLHOS.

“From churning worlds of mindlessness


Come screams unheard before
Haunting voices fill the room
Their source remaining undefined
Shadows cast from faceless beings
Lost for centuries”
M.A-AoM

………
Em posição horizontal regressei aquilo que os demais apelidam de vida ou
algo que se pareça. Rodeado por uma multidão de estranhas sombras
humanas que pareciam direccionar todas as suas atenções para mim. Estava
nu, não sei como e as vozes sussurrantes pareciam como motosserras
estridentes nos meus sensíveis timpanos perturbados. O sol do primeiro de
Novembro estava frio e caia uma geada ao som dos funéreos sinos atonais que
anunciavam a matinal missa do solene Dia de Todos os Santos, aquilo era o
meu funeral. A baba seca parecia como um organismo vivo preso na minha
cara, só que ironicamente o nojo que tinha de mim dissipava-se cada vez mais.
Um barulho de uma sirene louca e excruciante aproximava-se ou estaria eu a
ouvir coisas e inventar argumentos para justificar aqueles sons alucinatórios?
Senti um vento a acaraciar-me a face gélida. Acho que me mijei por algum
motivo de causa desconhecida ou de um choque térmico, talvez não tenha sido
mau de todo, porque aquela urina tépida era agora a única coisa quente que
me aquecia a quase corpórea lividez .
A multidão de sombras desviou-se para deixar passar mais outras sombras,
eram tudo sombras. Já não via caras ou expressões, tudo preto. Nem sei se
isso tem lógica, mas também não é suposto, tendo em conta o meu
degenerado estado mental. Agarraram-me e colocaram-me numa urna,
segundo me recordo, é possível que tenha sido isso. Levaram-me para um
suposto carro funerário, não estariam eles a ver que eu ainda respirava e
apesar da palidez e da tarefa difícil de articular palavras não poderiam registar
um óbito, sem fazerem uma autópsia que confirmasse verdadeiramente o meu
falecimento. O pensamento de ser enterrado vivo asombrou-me assim
derepente,preferia que aquilo tudo acabasse sem que eu soubesse. Deixei-me
de tretas e também estava demasiado estourado para formular um coerente
raciocínio...Traidores! , foi a última palavra que se me ocorreu antes de entrar
na macabra carroça motorizada...
- Diabos me mordam que quando acordei novamente, depois de ter dormido
sobre aquele absurdo, uma luz forte estava apontada para mim, de uma
claridade imensa só que artificial. Queres ver que estou na morgue?! e devido
aos meus lábios parecerem cosidos um ao outro por causa do frio e do estado
de hipotermia em que me encontrava, não poderia de alguma forma defender-
me, nem com os membros que pareciam também paralisados e sem uso para
a minha salvação.
São de uma aterradora origem os pensamentos intrusivos que podem emergir
e tomarem a nossa mente quando esta se encontra num repelente estado de
fraqueza e indignação perante situações às quais somos confrotados de uma
forma asimétrica à nossa própria lógica e busca pela razão com o objectivo de
acalmar os espíritos inquietos.
Outra mancha preta pareceu chegar próximo da minha mísera figura e abriu a
boca, desta sairam uns sons, se fossem palavras eu não estava a entender
coisissíma nenhuma.
Estava preparado para o que viesse, nada mais me assustava agora, somente
o facto de eu não saber onde me levaria esse distorcido e colérico rumo das
coisas. – Seja o que for.
- Boa tarde, o meu nome é António Lima, tratarei de si enquanto aqui estiver,
não estarei cá o tempo todo, mas nunca ficará só, terá sempre o apoio das
enfermeiras quando precisar. Não sei se me consegue ouvir?
- ...
Pois bem, serei o seu médico durante o tempo que cá ficar, alguma coisa não
hesite em chamar. Você foi encontrado num estado deplorável e por pouco
sobreviveu. Tivemos que lhe ligar ao soro , vária doses e também injectar-lhe
uma anestesia geral, para entorpecer a sua dor e também para você dormir
descansado, sem ser incomodado.
Vou indo agora, outros pacientes aguardam. Já sabe se necessitar de alguma
coisa aperte aqui nesse botão vermelho, ok?
- ...
Voltaremos a vermo-nos em breve, agora descanse que bem precisa, com
licença.
O que foi aquilo?!
Quem era aquele vulto maldito com a mania que me engana?!
Sou o Doutor Lima, vou tratar de si, blá blá blá...estafermo!
Tenho de sair daqui, isto não é um hospital, mas sim um hospício!
Pensam que me usam como cobaia nas sua experiências bizarras, lobotomias
e tráfico de orgãos!
Foda-se, tenho de parar com isso, tenho mesmo de parar com isso, tenho mes-
moo...
...Salta a pulga da balança,
Os cavalos a correr
Qual será a mais bonita?
Que se irá esconder?
Follow the flow
Let me go, let me gooo!

Boa noite, Sou a enfermeira Marla e esta é a minha colega Elvina, está na hora
de acordar para comer. Você dormiu durante dois dias e quase três noites,
vamos lá levantar para provar esta sopinha de legumes ralada que trouxemos.
- ...
- Se me consegue ouvir, diga qualquer coisa ou mexa com os dedos das mãos
ou pés conforme quiser, está bem?
- ...
-Elvina, o que achas que devemos fazer, ele não diz nada, não dá sinal de si.
- tenta mais uma vez, se não te responder deixamos a comida aí e quando lhe
der apetite ele há-de comer, sabes que a fome é negra e ninguém consegue
estar muito tempo sem nada no estômago.
- Pois é, temos de ir com calma, mas ele tem de se alimentar para se ir
recompondo aos poucos.
- Tu conheces-lo ou alguém da família dele?
- Não estou mesmo a ver quem seja. Segundo sei por causa dos registos, ele
vivia com os avós e estes agora estão num lar, aqui na cidade. Penso que ia
ser encaminhado para um centro de apoio ou orfanato, qualquer coisa assim.
- Triste , não sabia disso, nós às vezes não damos valor ao facto de termos
alguém que se preocupa com a nossa saúde e bem estar.
- É verdade sim Marla, o mais importante é termos saúde e alguém para nos
acolher, mas vamos ficar por aqui que eu ja te conheço.
- Tu és uma corisca, não posso ver essas coisas, são uma dor d’alma.
- Sim, espero que ele recupere depressa, ainda é novo e tem muito para
viver...(sairam entretanto).
- O que é que se passou aqui?!
- Que diálogo mais estapafúrdio foi esse, é mesmo como se eu não estivesse a
ouvi-las, agradeço por essas duas figuras terem-me provocado um enorme riso
mental, com maiúsculas “AHAHAHAHAH”, sinceramente, já não sei onde estou
e a quantas ando, devem ter-me drogado e agora deliro feito um tolo, talvez
seja eu o palhaço desse grotesco circo, ou uma marioneta sustentada por
cabos invisíveis perante uma plateia indiferente. Irra tenho de sair daqui
imediatamente!
...
00:11 - O meu estado psicomotor não se encontra em condições e as minhas
pernas estão dormentes, parece-me que os lábios ainda se recusam a abrir,
estou seco, tenho sede, as narinas servem para alguma coisa, refrescar os
pulmões via nasal se não der pela oral. Vou esperar mais um pouco.
A preguiça é como um ignóbil verme ou parasita que se aloja no nosso corpo e
nos torna vegetais, o ócio é ainda pior, é como se fosse a metástase num
estado desenvolvido que nos torna escravos de nós mesmos, da nossa
vontade, nos suga a energia e transforma numa espécie de vítimas da
Síndrome de Estocolmo. Quanto menos se faz mais se faz.
Preciso de parar com isso, de evitar esses devaneios, mas gosto, sabe-me
bem, esse monólogo é como a comida que não posso ingerir, ao menos
mantém-me acordado e alerta. Isso é tudo muito sensato, só que chegou a
hora de escapulir-me desse manicómio infernal, disfarçado de clínica ou
observatório de comportamentos humanos sobre o efeito de substâncias
elícitas e experiências truculentas , tendo como objecto de estudo a mutação
de vidas inocentes!
...Levantei-me e sentei-me na cama, aquele quarto não tinha nada mais do que
uma mesa-de-cabeceira, um móvel branco usado, à frente da cama com um
televisor apagado em cima e uma janela que dava para um pátio. Essa seria a
única hipótese de fuga.
Conseguia ouvir o murmurar do vento por entre as encanações, parecia um
aglomerado de vozes a interferir naquela tranquilidade do quarto.
De onde veio trouxe consigo uma rasto de outros lugares sem nunca ser visto,
trouxe histórias e canções que se perderam nos lábios que sucumbiram…traria
algo a mim, ou somente tiraria ou arrancaria a alma presa à medula espinal.
Podia querer dizer-me alguma coisa a respeito dos antepassados que ele
carregava, nunca amei-odiando tanto o vento, que vai desde a mais suave
carícia primaveril, até às furiosas tempestades invernais, atravessando o
deserto austero onde todos nós acabamos…
Ergui-me, abri a janela, saltei, agarrei-me a um desses tubos, estava escuro, a
altura do meu quarto para o chão era aproximadamente de uns cinco metros,
verifiquei a firmeza dos canos com o meu peso, depois de descer um pouco,
poderia saltar para uma árvore que estava ali perto, sentia-me meio tonto
daqueles malditos analgésicos e soro, mas isso não me impediu de continuar.
Consegui saltar para a árvore e vigiar do cimo de um tronco se a área estava
fazia, desci e já estando no pátio tentei arranjar uma forma de sair dali, saltar
um muro ou procurar uma outra saída. Ao longe vi um parque de carros e
estava a entrar um, o segurança, levantou a cancela e lá proseguiu. Faltava
pouco para eu sair dali e ir de encontro à minha liberdade, para relatar todos
esses insanos e inacreditáveis episódios de que eu tinha presenciado, poderia
escrever um livro ou publicar num jornal, queria ver os meus avós, faltava
pouco...
Aproximei-me da cabine onde estava o segurança e agarrei-lhe no cacetete,
dei-lhe duas pancadas fortes e certeiras na nuca, faltava pouco, muito pouco...
Não fui apanhado pelas câmeras de vigilância, mas o alarme foi activado.
Faltava mesmo muito pouco.
...Agora estou aqui no Egipto, onde nunca esperaria algum dia estar, no meio
dessas múmias vivas e senis, desses malvados rituais negros, nessa
conspiração milenar que jaz à luz do dia sobre um manto de crueldade e
injustiça perante a minha pessoa ou a simulada ideia que concebo de mim.
Resigno-me a isso tudo...
Estou lúcido por enquanto, mas não tenho para onde ir...Isto não termina ainda.
Não sei se felizmente ou infelizmente consegui escapar porque nos dias que
correm e depois das pesquisas que fiz NINGUÉM ACREDITA EM MIM!!!
Pobres daqueles que pensam que estou demente, por detrás dessas grades
que me privam de ambientes exteriores, da pureza do ar matinal e do cheiro a
maresia, lançando-me assim ao amargo, nauseabundo e inexorável
abandono…
E isto ocorre-me “ A minha alma é caos, como pode ser de todo? Há tudo em
mim: Procura e encontrarás. Sou um fóssil que data do início do mundo: Os
seus elementos ainda não se cristalizaram por completo, e um caos inicial
ainda transparece. Sou uma absoluta contradição, clímax de antinomias, o
último limite de tensão, em mim tudo é possível, porque eu sou aquele que no
momento supremo, de fronte com o absoluto nada, irei rir...”

As vozes fazem-se ouvir...

Enquanto alimentarem o inconsciente com a sua inexistência, elas continuarão


silenciosamente a alimentar-se de nós.

“No tree, it is said, can


grow to heaven unless its
roots reach down to hell.”
C.G JUNG

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