1 - Simondon Tecno-Estética

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Sobre a tecno-estética: Carta a Jacques Derrida Gilbert Simondon Caro amigo, Recebi ontem a circular de 18 de maio. Estou inteiramente de acordo em relagio a0 projeto de criagio de um Colégio Internacional de Filosofia. Ele poderia set uum legitimo herdeiro do saldo de créditos do Instituto Internacional de Filosofia (Gaston Berger, e depois Martial Guéroult). Consul- tado com um dos iltimos membros desse instituto, determinei o bloqueio dos ativos, ha seis No fundo, se se trata de regenerat a filosofia contempori- nea, é preciso levar em conta de modo especial as interfaces, e, antes de tudo, nio excluir nada a priart nfo vejo, particularmente, nenhuma mengao a0 pensamento ¢ a pritica religiosa. Por qué? “Também é necessirio recorrer ao pensamento ¢ As realiza- ses, considerados reflexivamente ou nao, da estética. Por que nao pensar na fundacio e talvez na axiomatizagio proviséria de uma esteto-técnica ou tecno-estética? Valéry fazia Eupalinos di- zer: “Ali onde o passante s6 vé uma clegante Capela, eu reencon- to as proporgées exatas de uma jovem de Corinto que eu feliz- mente amei . O fucurismo de Marinecti deu lugar ao carro de corrida E Fernand Léger: © trator vermelho, os operirios. E 0 Centro ou sete anos. ‘Como se tata de uma carta, a teadugdo procurou manter 0 tom coloquial da autor (N-T) 253 Gasent Saonoon Pompidou. Le Corbusier, com seu sentido do inacabado: delica- deza em relagio a0 material: nio se reboca. Os tragos deixados pelas téboas de cimento armado na larcira do convento dominicano de Arbresle, préximo de Lyon, sio voluntariamente visiveis, so- bretudo de manba e & noite, luz razante, Para este mesmo con- vento, Xenakis calculou matematicamente as proporgées da vidra- saria do promenoir dos monges. Le Corbusier utilizow o reboco de cimento em cada uma das celas com loggia. Mas no se trata mais de uum reboco feito com a colher, que tem sua enteléquia numa super- ficie oticamente lisa, Trata-se de uma projesio feita com canhio de cimento, que recobre as paredes com um embogamento sobre 0 qual a luz pode jogar. Arve ¢ natureza podem interfe outa: em Firminy-le-Vert, préximo a Saint-Etienne, 0 prédio Le Corbusier € construido sobre colunas, 0 que deixa aparecer o hori zonte sob a edificagao opaca, que nao passa entio de uma muralha. Em Chandigar eu nao sei. Na cidade radiosa de Marseille também rio. A igreja Notre-Dame du Haut, em Ronchamp, nao é cons- trufda sobre colunas, mas o telhado em forma de asa ou de véu orna a paisagem e € ornado por ela: ele ¢ o simbolo da naturcza, Se vol- tarmos ao convento dominicano de Arbresle, descobrimos no perfilhamento dos corredores Ts invertidos que, no centro do eto, suportam tubulagdes ¢ cabos. Os longos perfilhamentos dos Ts in- vertidos, bem retilineos, explodem em cores dos eddigos industriais aplicadas as tubulagdes e cabos. O que outros se esmeram em es- conder atris de forros de madeira ou nos armérios das vassouras, nos cantos de sala com lambris falsos (anfiteatro da Sorbonne), Le Corbusier manifesta num arrebatamento fanerotécnico. A fanerorécnica ja é por si mesma estética: a Torre Eiffel (corre da exposigio) e 0 viaduto de Garabit sobre o rio Truyére tém uma inegivel forca estética. Na sua origem, aTorte Eiffel ndo tinha nenhuma fungio que justificasse sua elevagéo, era apenas um belvedere mais alto. Mas tornou-se logo a melhor antena de 254 Soore a trono-tsrenea: Canta a Jacaues Denna emissio da Franca. E ainda 0 é, ¢ até cada vez mais: as antenas de tclevisio ultrapassam seu tiltimo andar ea tornam ainda mais alta © Garabit, no rio Truyéte, €talvez ainda mais maravilho- so, por causa da forma de catenétia invertida de seu arco princi- pal, ¢ da chumbagem dos travessdes nas rochas. E também por- que ele se encontra em plena natureza. Ele atravessa a natureza e é atravessado por cla. E também, ¢ talvez mais ainda por causa das condigées da sua construsio: de inicio duas meias-pontes parale- Jase aplicadas contra as duas colinas, depois, no dia de sua jungi0, se tivesse tido vento, poderia ter sido uma catastrofe. “Mas néo haverd vento”, tinha dito Eiffel. E com efeito no houve vento. As dduas meias-pontes giraram lentamente ¢ simultaneamente 90 graus, sob a tragio dos cabos. Elas acabaram se adaptando, nas suas ex- tremidades, uma & outta ¢ foram aferrolhadas. E desde entio 0 viaduto existe na sua unidade, em sua total perfeigao. ‘Trata-se propriamente de uma obra tecno-estética, perfeitamente funcio- nal, inteiramente bem sucedida e bela, simultaneamente técnica ¢ estética, estética porque técnica, técnica porque estética. Hi fusio intercategérica. Esta meditasio orientada para a descoberta de uma axio- logia intercategérica pode ser prolongada pelo exame ¢ manejo das ferramentas, Comparemos um alicate miltiplo Peugeot France com um esourio de corte duplo Facom, modelo conhecido como Bico de Mocho. Uma ¢ outra ferramenta sio vermelhas — nao exatamente 0 mesmo vermelho. Elas sao praticamente do mesmo tamanho e tém cabos ligeiramente arqueados na ponta para serem melhor empunhadas. No entanto 0 tesourio Facom tem algo mais que a simples funcionalidade. Ele resplandece e di, a cada vex. que € utilizado, uma impressio de facilidade que nio esté longe do prazer sens6rio-motor. Hi casos em que a tecno-estética pode partir de uma nor- ma, ou mais exatamente da analogia de um conflito de deveres: 255 Gunenr Soroow uum ciclista precisa de chaves escalonadas, aproximadamente, de 8 20 mm. Por causa do peso, ele nao pode carregar 8 chaves mo- delo chave-cachimbo ou chave chata, Mas existe precisamente um modelo de chave nica com 8 diémetros diferentes: ela € feita de duas cabecas perfuradas, cada uma com 4 buracos hexagonais; as duas cabecas sio ligadas por uma barra retilinea com nervuras longitudinais que aumentam a resisténcia & torgao. A ferramenta mede de 10 a 12 cm de comprimento: cabe perfeitamente numa sacola. © que é admiravel & que a existéncia de duas cabegas per- mite que ela seja facilmente empunhada. A cabeca que nio est em uso na porca é colocada na mio fechada; uma barra nica causaria dor: a cabega no usada € como um cabo contraido e resistente. E 0 conjunto é um belo objeto que pesa aproximada- mente cem gramas. Esta ferramenta atende bem as suas atribui- es. Executada em bronze, ela oferece uma fruigio estética ao ser contemplada, ‘Mas a tecno-estética no tem como categoria principal a contemplagao. E no uso, na agio, que ela se torna de certa forma orgismica, meio titil e motor de estimulo. Quando uma porca blo- queada se desbloqueia, sentimos um prazer motor, uma certa ale- ggria instrumentalizada, uma comunicagio, mediatiaada pela ferra- menta, com a coisa sobre a qual ela opera. Como na forja: a cada golpe do martelo sentimos 0 estado do metal forjado que se distende se deforma entre o martelo ea bigorna. © mesmo acontece com uma plaina, com um rabore. O operador sente a apara que se evan- tae se enrola. A mordida de uma lima, 0 enrugado do ralador de madeira com dentes bem nitidos sio uma alegria para as mos ¢ para os bragos, um prazer de agio. Também a foice ou a enxé pro- piciam esse contentamento muito particular de sensagao em regime dindmico. E um tipo de intuigio perceptivo-motora e sensorial. corpo do operador dé c recebe, Mesmo uma maquina como o tor- no ou a broca deixa experimentar esta sensacio particular. Existe 256 ‘Soane & TEcnoEsTEnca: Canta a Jacoues Dring toda uma gama sensorial das ferramentas de todo tipo. Uma ferra- _menta tio rara quanto o cepilho tem, cla mesma, sua gama sensorial propria. E se pudéssemos prosseguir assim, de modo quase ilimita- do, passando de maneira quase nao descontinua 3 sensagio prdpria que dao os instrumentos artisticos iquele que 0s utiliza: 0 dedilha- do do piano, a vibragéo ea tensio das cordas da harpa — beliscar -, a mordida écida das cordas da sanfona sobre o cilindro revestido de colofénia, ¢ todo um registro quase inesgotivel. Aarte nao € apenas objeto de contemplagio, mas de uma certa forma de ago, que é um pouco como a pritica de um espor- te para aquele que o utiliza. O artista pintor sente a viscosidade da tinta que cle mistura na sua paleta ou estende sobre a tela; esta tinta é mais ou menos untuosa e a sensibi entra em jogo para o ator que € 0 artista, particularmente quando © pincel, a broxa ou a faca entram em contato com a tela, esticada no quadro ¢ elistica. Com a aquarela ¢ uma outra sensagio, a de um apoio mais ou menos resistente do pincel que dispde as trans- paréncias, fundindo os tons. Com a miisica, 0 peso da surdina de um piano, a energia cinética do jogo que comanda, em desloca- mento horizontal, o pedal “piano” e 0 outro deslocamento dos abafadores de feltzo, cuja distancia deixa vibrar as cordas ¢ mistu- ra os sons pela vibracio livre, lentamente decrescente, das cordas tocadas, ‘A estética no € tinica nem primeiramente a sensagio do “consumidor” da obra de arte. E também, mais original- mente ainda, o feixe sensorial mais ou menos rico, do préprio artista: wm certo contato com a matéria enquanto trabalhada. Sentimos uma afecgio estética a0 fazer uma solda, ou a0 enfiar um parafuso. E. um espectro continuo que liga a estética & técnica. Um simples parafuso cadmiado apresenta irisagées e nuances que fa- zem pensar nas cores das objetivas fluorescentes: cores de peito de ide evil vibratéria 287

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