Le Goff. O Nascimento Do Purgatório PDF

You might also like

Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 31
Jacques Le Goff O NASCIMENTO DO PURGATORIO 28 edigao EDITORIAL ESTAMPA VII - A LOGICA DO PURGATORIO Qs mortos nao existem sendo pelos ¢ para os vivos. Inocéncio II disse-0: 08 vivos ocupam-se dos mortos porque sio cles préprios futuros mortos. E numa sociedade cristd, sobretudo na Idade Média, o futuro nio tem apenas um sentido cronolégico, mas primeiro ¢ principalmente um sentido escatolégico. Natureza e sobrenatureza, no mundo e no além, ontem, hoje, amanhi ¢ sempre, a eternidade, sio unos, feitos de uma mesma trama, nio sem acontecimentos (o nascimento, a morte, a ressur- reigdo), no sem saltos qualitativos (conversio) e momentos inesperados (0 milagre). A Igreja est por toda a parte, no seu papel ambiguo: con- trolar e salvar, justificar e contestar a ordem estabelecida. Desde o fim do século IV até meados do século X11, de Agostinho a Otdo de Freising (0 prelado tio de Frederico Barba Ruiva), a sociedade viyeu — mais mal do que bem ~ sobre um modelo ideal, a Cidade de Deus. O essencial era que a cidade terrena, apesar das suas imperfeigées, ndio tombasse para o lado do Diabo, para o lado do mal. © modelo continua vilido para além do stculo x1 ¢ Satanis investirk mesmo em ofensivas violentas, angustiantes, enquanto durar o mundo feudal dos fortes e dos fracos, dos bons ¢ dos maus, dos brancos e dos negros. Mas na explosio da cristandade, entre o fim do século X1e meados do século XIII, digamos, encontrar referéncias intelectuais, de Anselmo a Tomas de Aquino, ja ndo é assim tio simples. HA estados intermédios, etapas, transigées, as comunicacdes sio mais sofisticadas entre os ho- mens, entre Deus e os homens; o espaco eo tempo fragmentam-ce e reor- ganizamsse de outra maneira, as fronteiras entre a vida e a morte, entre 0 mundo ea eternidade, entre a terra ¢ céu, deslocam-se. Os instrumentos de medigio ja nao sio os mesmos, quer se trate da ferramenta intelectual, dos valores, ou das técnicas materiais. A reforma gregoriana entre o meio do século XI ¢ 0 meio do século XII, resposta da Igreja ao desafio das novas estruturas da cristandade, liquidou uma retérica que ainda faltara durante algum tempo d boca de cena mas que, cada vez, menos, esconde 251 as realidades novas do teatro cristo. Retdrica do dualismo: as duas ci dades, os dois poderes, as duas espadas, 0 clero ¢ 0s laicos, o Papa ¢ 0 imperador; ha também dois exércitos, 0 do Cristo ¢ o de Satanas, Inocén- cio II & aqui uma testemunha ¢ um actor irrefutavel, E um grande Papa do por ter feito triunfar entre a cristandade (como pretendia uma histo- riografia arcaica) um suposto modelo de feudalismo juridico que nunca existiu, mas porque, apesar de alguns erros (quem poderia pensar, cerca de 1200, que os cistercienses seriam incapazes de combater Viloriosamente os hereges?), restabeleceu 0 poder da Igreja sobre a nova sociedade, no opondo-se-Ihe mas adaptando-se a ela, Inocéncio IIT designa dai em dian- te trés igrejas: entre o exército de Deus e 0 exército de Zabulio hi «0 exército que esta no Purgatorion!. O além e 0s progressos da justica ‘A que responde este aparecimento de uma terecira sociedade no além? Seri a uma evolugio da ideia de salvagdo 4 qual se ligam geralmente as concepgdes humanas do outro mundo? ‘A Teflexdo dos vivos sobre 0 além parece-me todavia animada mais pela necessidade de justiga do que pela aspiragdo a salvagdo — excepto, talvez, durante breves periodos de efervescéncia escatolégica. O além de- ve corrigir as desigualdades e as injustigas ca de baixo, deste mundo. Mas esta fungdio do além de correcgio e de compensagao no é independente das realidades judiciais terrenas. Sendo no cristianismo o destino eterno dos homens fixado no Julgamento Final, a imagem do julgamento ganha uma importancia singular. E certo que 0 Novo Testamento descreveu a cena em que a cortina cai sobre o mundo e se abre sobre a eternidade. E a grande separa¢o das ovelhas e dos lobos, dos eleitos a direita e dos con- denados a esquerda (Mateus, XXV, 31-46). E a vinda do Paracleto. Ele, logo que venha, estabelecerd a culpabilidade do manda em matéria de pecado em matéria de justiga em matéria de julgamento: de pecado, porque eles néo eréem em mim: de justipa, porque eu vou para 0 Pai « ¥6s no me vereis mais; de julgamento, porque 0 Principe deste mundo é julgado. Goio, XVI, 8-11). 252

You might also like