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RELACAO COM O SABER E COM A ESCOLA ENTRE ESTUDANTES DE PERIFERIA* Bernard Charlot Education, Socialisation et Collectivités Locales (ESCOL) Université Paris Vill Tradugao: Neide Luzia de Rezende RESUMO Neste artigo comparo uma pesquisa feita numa escola secun dria de porforia com outa reaizada com bons alunos de uma escola de cientela “mais favorecida™. Como pensar, a0 mesmo tempo, a singuiardade das hisiérias escolares © @ correlacio estatisica entre fracasso escolar e origem social? A pesquisa 59 concentra no significado que a escola tem para os alunos © no préptio fato de aprender. Tenta identificar os processos que estruturam a histéria escolar dos jovens: mobiizagao na escola © em relacéo A escola, processos ~ epistémicos". Mostra que uma histéria escolar nunca 6 vivida por antecipacio, quo os |o vens dos meios populares pensam a escola em termes de futuro mais do que de Saber © que aprender nfo apresenta um sentido univoce. RELAGAO COM O SABER — RELAGAO COM A ESCOLA — ESTUDANTES CARENTES ABSTRACT THE RELATIONSHIP TO KNOWLEDGE AND SCHOOLING AMONG STUDENTS IN THE PERIPHERY. This artide ‘compares @ study done in a secondary school in the urban periphery with another realized among good students in a school {or “more favored” clients. How to simultaneously conceptualize the singularity of schooling histories and the statistical correlation between schoo failure and social origin? The study concentrates fon the meaning of school for students and the fact of teaming itso It ties to identity the processes which structure the schooling history of the youngsters: mobilization in the school in lation to school, and leaming processes. it shows that schooling history Is naver lived in advance, that youngsters from poorer environments think of school more in terms of the future than in relatioship to knowledge, and that learning represents no single meaning * Este texto fol publeado pola primeira vez pelo Institut de Recherche sur les Sociétés Contemporaines, n.11-2, L'Harmattan, 1982, com 0 titulo “Rapport au savoir el rapport 2 Técole dans deux collages de banlieue" Cad. Pesq., Sao Paulo, 1.97, p.47-63, maio 1996 47 Que significado os adolescentes dos meios populares: atribuem ao fato de ir a escola e aprender coisas? Qual é sua relago com 0 saber e com a escola? Esta 6 uma questo central na pesquisa realizada durante tr@s anos em duas escolas secundérias’ da regiao pa- risiense (Charlot, Bautier, Khon, Rochex, 1992), cujos resultados apresentamos aqui?. A sociologia da educagao na Franca dedica um grande espaco a questéo do fracasso escolar de jo- vens de origem popular, mas tem se interessado pou- co pela relagdo desses jovens com a escola e com © saber. J. Beillerot, fazendo um levantamento dos trabalhos a partir da’ nogdo de relagéo com 0 saber, retira tal nogao dos escritos de psicanalistas da escola lacaniana, de psicossocislogos e de “sociofomadore B. Charlot e M. Lesne — de inspiragdo marxista (Bell- lerot et al., 1989). Esses socioformadores pertencem ‘20 campo’ das ciéncias da educago mais do que quele da sociologia no sentido estrito do termo, uti- lizam a nogao de relagao (social) com o saber numa perspectiva mais heuristica que demonstrativa. Quer dizer, uma pesquisa sobre a relacéo com o saber deve hoje decifrar um terreno pouco explorado e, por- tanto, construir seus instrumentos conceituais em vez do recolher dados. A pesquisa aqui relatada no po- dia, portanto, confrontar um corpus sociolégico coe~ rente com dados de campo. Assim, procede-se, na- quilo que 6 essencial, a construgao’ ou, pelo menos, ‘a0 esbogo de uma teoria “enraizada” nos dados, no sentido de Glaser e Strauss (grounded theory) (Glaser @ Strauss, 1967). Uma teoria enraizada 6 “uma teoria que 6 descoberta e construida progressivamente, em relagdo estreita com uma analise intensiva dos dados’ (Gtrauss, 1987). Ela constr6i categorias de inteligibili- dade que permitem integrar os primeiros dados © que parecem ter um poder explicativo; recolhe novos da- dos para validar as categorias assim construidas; es- tabiliza-se quando parece ter atingido um ponto de sa- turagdo: novos dados nao trazem mais nenhuma con- tribuigdo & teoria. Nossa pesquisa se insere nesse processo @, por tanto, deve ser entendida em relagdo as questdes co locadas e aos dados recolhidos mais do que em re- lag&o as teorias ja existentes sobre 0 fracasso esco- lar. Esse processo, por sua vez, ndo se insere numa categoria empirica. Por um lado, essa pesquisa pre- tende conceituar ¢ teorizar, por outro, tenta repensar © préprio modo como se trata a questo do fracasso escolar. E preciso, portanto, situar as questées © 0 proceso utiizado' com relagao as grandes orienta- ges da sociologia do fracasso escolar, mesmo se — epetimos — nossa pesquisa nao vise aplicar concei- tos sociolégicos existentes a um terreno de pesquisa, QUESTAO E PROBLEMATICA Os socidlogos mostram claramente que existiu, nos anos 60 e 70, uma correlagao estatistica entre a ori- gem social dos alunos e seu sucesso ou fracasso es- colar. Parece que nada mudou apés a abertura do en- 48 sino secundétio © que a “reprodugao" perdura: a di- ferenciagdo social simplesmente se deslocou do aces- 's0 a0 ensino secundario para a entrada em determi- nada area, seo, oppo desse ensino (Althusser, 1970; Bourdieu Passeron, 1970; Baudelot © Est blet, 1971; Bowles Gintis, 1976). Essas teorias da reprodugo tomaram formas di- versas, muito conhecidas, e nao é 0 caso de resumi- fas aqui. Quaisquer que sejam essas formas, elas so problematicas em varios pontos. Elas no permitem conhecer bem os casos marginais: criangas de fami- lias “desfavorecidas” que, apesar de tudo, ainda ob- tém sucesso na escola (e, reciprocamente, criangas de familias “favorecidas” que fracassaram, mas tem possibilidades de recuperacao ou vias de salvagao se- ‘cundarias). Se, afinal, 6 facil mostrar porque nao é to surpreendente que as criangas de meios populares fracassem, ficamos sem explicagao diante daquelas que obtém sucesso. De uma maneira mais geral, essas teorias deixam fora de sou campo a histéria singular dos alunos no sistema escolar (encontros, acontecimentos etc.). Ora, parece-nos essential levar em consideragao essa sit gularidade, ndo apenas para compreender as possi- bilidades de casos marginais mas também para dar fa conhecer formas moderas de desigualdade social no terreno escolar. ‘A questo da singularidade néo é tratada por L. Althusser, C. Baudelot e R. Establet, S. Bowles © H. Gintis. Entretanto, P. Bourdieu considera-a funda- ‘mental quando escreve sua teoria do habitus (Bour- dieu, 1972). Como praticas aparentemente individuais, livres, néo-sistematizadas, nao-coordenadas, podem produzir esses efeitos de estrutura que os trabalhos estatisticos registram? P. Bourdieu responde a essa questo propondo o conceito de habitus: as préticas individuais trazem a marca da origem social & medida {que so organizadas por um habitus que & ele préprio estruturado pelas condigdes sociais da existéncia, Mas falta compreender como esse habitus se constr6i, qual a sua génese. O habitus & “explicativ” mas sob 1. No sistoma de ensing francés, 0 curso primavio tem 5 anos f abrange 0 timo ano do que equivale & nossa pré-oscola © as 4 séries seguintes do 1® grau. O curso secundério tem 8 anos e 6 divdido em 2 etapas: 0 “coldgio", com 4 série, {que correspondem as nossas 5 — 6" séries, © 0 “icau’ ‘com 3 sérles, equivalentes as respectvas séries do 2° rau ro Brasil. Para facitar a compreensio, nos reportaremos & rnomenclatura brasisia. (Nota da ediggo.) 2 Este artigo se fundamenta numa pesquisa levada a cabo pela equipe Education, Socialisation et Colectivtés Locales {ESCOL), Departamenio de Ciencias da Educacto, Univer sidade Paris Vill, sob a degdo de B. Chariot. A pesquisa foi financiada polo Fundo de Agdo Social para os trabalha- {ores migrantas e pela Direction de la Population et des Mi- ‘ations. Sera apresentado aqui apenas 0 aspecio da pes- {quisa relacionado as escolas secundarias: a pesquisa tem ainda uma oulra vertente, volada para a escola priméria © para es préticas de ensino, além de um estudo exploratsrio Sobre a moblizagao escolar das familias, Rolagéo com o saber. condigao de que ele préprio seja “explicado” (Barthez, 1980). Por outro lado, as teorias da reprodugao nao dao muita importancia &s praticas de ensino nas salas de aula e as polticas especiticas dos estabelecimentos escolares. Ora, nao importa qual soja a correlagéo en- tre origem escolar e aprendizagem, 6 dificil pensar que as poliicas © as préticas pedagdgicas nao pro- duzam nenhum efeito sobre 0 sucesso ou 0 fracasso dos jovens. Pesquisas recentes, as quais nos reme- teremos, como a avaliagéo padronizada na 2° @ na 5? série, realizada pelo Ministério da Educagao nacio- nal, mostram, ao contrério, o efeito diferenciador des- sas politicas 'e dessas praticas. Enfim, essas teorias reduzem a insttuigéo escolar ‘a.um espago de diferenciacao social, esquecendo que cela 6 também um espago onde os jovens se formam, onde 0 saber se transmite. A escola néo € pura simplesmente uma maquina de selecionar, que se pode analisar sem dar importancia as atividades que ali se desenvolvem. Ela 6 uma instituicdo que preen- che fungées especiticas de formagao ¢ que seleciona jovens através dessas atividades especiicas. Dessa forma, a andlise socioldgica da escola deve integrar 2 questo do saber e de sua transmissdo — 0 que 6 raramente 0 caso na tradigao sociolégica francesa. Nossa problematica 6 muito diferente daquela das teorias da reproducao, embora, 6 claro, compartihe- mos a idéia de que a relagdo entre origem social ¢ sucesso ou fracasso escolar continue sendo um fato essoncial de que toda a teoria do tracasso escolar deva ser levada em consideragao. Mas inclusive esse fato deve ser explicado: de onde vem tal correlagao, J que as historias escolares aparecem como singu: lares? 0 fracasso escolar, portanto, se constréi numa hist6ria singular e 6 mais frequente entre as criangas de familias populares: 0 que 6 preciso compreender 6, portanto, 0 fracasso individual de individuos que pertencem macigamente as mesmas categorias so- Ciais. Tal compreensao nao 6 possivel se ndo se levar em conta a singularidade das histérias © se se pro- jetar no individuo caracteristicas estabelecides através de andiise de uma categoria socioprofissional, de uma classe social, de um grupo ou através de referéncia 20 “ambiente” ou “meio”. Embora o individuo se cons- trua no social, ele se constréi como sujeito, através de uma histéria, no sendo, assim, a simples encar- rnago do grupo’ social ao qual pertence. Assim como ele no & 0 simples resultado das “influéncias” do “ambiente”: um elemento da situagéo que a crianca Vive (uma pessoa, um simbolo, um acontecimento...) 6 ird influencié-la se fizer sentido para ela, de modo que “a influéncia” © 0 “ambiente” sao relagdes @ ndo causas (Rochex, 1992). Consideramos também que 6 preciso colocar a questo do significado antes da questéo da compe- tncia. Quanto primeira, nao se trata de: “que ca- Pacidades especifica, social e culturalmente constr das caracterizam as criangas das familias favorecidas € aquelas das familias destavorecidas?”, € menos ain- Cad. Pesq., 0.97, maio 1996 da de “o que falta as criangas das familias populares para que obtenham sucesso na escola, quais séo seus handicaps socioculturais?”. A questéo 6: que sentido tem para a crianga 0 fato de ir & escola © de aprender coisas, 0 que a mobiliza no campo escolar, © que a incita a estudar? Nao que a questo das Ccompeténcias nao seja importante: a escola, como dissemos, tem por fungao especitica formar a crianga, permiti-ine se apropriar dos saberes. Mas a crianga 86 pode se formar, adquitir esses saberes, obter su- cess0, se estudar. E ela s6 estudard se a escola © © fato de aprender fizerem sentido para ela. A ques: to do sentido deve portanto preceder a da compe- tancia (que sentido 0 fato de ir @ escola tem para a crianga?) © permanecer presente durante a aquisicao de competéncias (para uma ctianga, 0 que significa aprender’, ‘estudar"?) Enfim, acreditamos que uma andlise do sucesso @ do fracasso escolar ndo pode considerar como in- significantes nem o fato de que a instituigéio escolar tem como fungao especitica transmitir saber aos jo- vens, que ela se pensa como tal e se organiza para esse efeito, nem 0 fato.de que a historia escolar dos jovens se desenvolve em estabelecimentos escolares @ através de praticas pedagégicas cujas politicas e Ié- gicas devem ser interrogadas. A relacao com a escola do 6 apenas relacdo com uma instituigao abstrata mas também relagao com um estabelecimento, uma classe, professores... que objetivam transmitir saber ‘aos alunos. © conjunto de nossas questées é sintetizado na nogao de relagao com o saber. Em 1982, definiamos ‘a relagéio com 0 saber como “o conjunto de imagens, ‘expectativas e julgamentos que se referem ao mesmo tempo ao sentido e & funcalo social do saber e da escola, a disciplina ensinada, a situagdo de aprendi- zagem e a relagéo em si mesma’ (Charlot, 1982). Hoje, definimos a relagao com 0 saber como “uma re- lagdo de sentido, e portanto de valor, entre um indi- viduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber” (Charlot et al. 1992). Pensamos que seja tt istinguir @ articular as relagdes de identidade e epis- témicas com 0 saber. A relacao com o saber se en- raiza na prépria identidade do individuo: questiona seus modelos, suas expectativas em face da vida, do futuro, do oficio futuro, da imagem de si mesmo e das suas relagdes com as figuras parentais... Falamos en- to de relagao de identidade com o saber. Mas 0 que esta em jogo na relacdo com o saber é também a propria natureza do ato de aprender: aprender é se apropriar do saber, construir um sentido, saber como se conduzir em qualquer circunstancia, cumprir suas obrigagdes profissionais de escolar...? Ai, entéo, fala- mos de relacao epistémica com o saber. ‘A questo da singularidade das histérias escola- res, a questao do significado, dos processos que pro- duzem efeitos diferenciados no espago da sala de aula ou do estabelecimento, e — mais raramente na Franga — a questo dos saberes foram objeto de pesquisas anteriores, mas raramente elas foram tra- tadas em conjunto. 49

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