Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 4
Gestos Rememorativos Runobisboa PAR ‘Nib se pode diver nada sire um filme: face ap seri, 2 imobilidade e o stléncio ‘caracterizam 4 experténcia hermética do espectador sujeito 206 efeitos de me- méria do dispositive cinematngrifico, Falarou escrevere prtr de um filme int- plica antes de tudo dar conta de uma experiéneia de meméria, necessariamente diferida, 0 carieter problematico dessa tarefa ¢ materializado nas Fotografias felts por Sugimoto ne terior de salas de cinema, onele tena fixar mura Hnica Imagem a duracio deur filme, da primeiro ao altimo fotograrma. Na forogra- fia, 6 ecr3 emite apenas uma luz branca, enquadrada na anquitectara da sala, apareatemence: deserta, como as primelras foiografis de Daguerre deserifi- cram as ruas de Paris, Demastado permesvel, exposta i duracio, 0 suporte sderarn unas is outras, A ein vazio, ovogrifico sabrepde as imagens que no filme se sv acumulagio resulta na #8casser, 0 excesso converte No dmbito das capscidades particulates do cinema para dar a ver as imagens poradoxais da meméria, pretende-se aqui, ¢purtirde alguns filmes, observar brevemiente ts formas de coloear em cena a propria experiéncta di rememo~ racio, através do gesto eda palavra filmados, Na linearidade da descrigio, xerh nacessdrio, por um lado, analisar 0s gestos concretos de corpes que agem no presente face 4 cimara, no confronto fisico com © espape eo tempo da-mems- Fae, por outro, observar of préprias gestas da cimara eo modo camo face aos acontceimentos que produz. Os filmes de Clare Lanzmann, Sheth {1985}; de Werner Herzog, Litle Dieter News to Fy (1997); de Rithy Pan, $21 ~La Machine de Mort Rhméte Hoage (2003) - no sia apenas filmes sir acomtecinventos passados recordicos peas seus protagonists, Quando as situagbes em causa se referem PAR, Gestos Rememoratives a experiéncias “face ao extreino” —a restnténcla humana face a radicalidade da morte, o genocidio organizado, © quotidiana da erime ~ das quais: “mio po demos encontrar uma forma de apresentagio senisivel adequada 4 sua ideia ou, Inversamente, um esquema de inteligibilidade cortespondente 4 sua poténcis sensivel”, 0 excesso de presenca da imagem cinematogrifica pode trait sin gularidae do acontecimento, sebelde a toda a apresentagdo sensivel integral ‘Cada urn destes projectos, aa colocarern em cena a expentéacia do testermnho auravés da recomposiin dos geitas de outrora, provocam 0 teeneontro com uma situago desprovida, &época, da mediagi di Linguagem. A temporalidade particular do testemunho nio pode portanto ser a recordac30, porque esta st- pbc uma narrativa organizada por um sujeito, quando, precisaments, 0 “sujeio!” cestiva atsetife ne) momento do acontectmento, o-qual nin pode, neste sentido, pré-existir i palavra quco cnuncia, Ele Ge seu contempordneo € néo ostu refe- rente, Nav hi anierioridade do aconteciniento sobre testemnmbo.! No ile de Werner Herzing —LillleDiter nee tally—tata-se ainda da recordagion ‘Um heri da guerta do Vietname rogressa ao territério muitos anos depois para visitar os logares da prisio:e da tornura, Tace 4 cimara, reconstitut os gestos dd sua captura, deinanido que Ihe atem as rales por tris das costas, Agachado, ‘enquanto olha directamente para a lente ¢, consequenternente, part 6 especta- dat, confidencia: "This is getting 100 real for mie". Ao prosseguirem pela velva, a.cimara segue a marcha apressada dos novos guardas fardados que levam © sen prisioneiro pelos caminhos ji trilhados. Vemo-lov afastando-se de costa voltadas para o aparelho ¢, consequentemente, pare nés, enguanto ouvimos 4 ihartagio ett of “Woo@s vo ai atris de mim e no podem saber a velocidade & que bate omeu coragio". Ji cle frente, face & cimara, « protagonista prossegue a arragio no palco di meinéria voluntiria, De um 46 folego, conta uma listeria que parece ter repetidomuias vezes: um anel que Ihe foi roubadla por urn dos quardas sob a ameaga de amputagio do dedo, a dentineia feita por s préprio aos ‘outros militares; @ castigo tigoraso do ladrio a quem afinal cortain © dec & evolugio definitiva da reliquia. No presente, 20 lado do figurante irmpassivel que faz 0 papel do antigo guar, o narradorilustrao discurso efusivo cara os estos expressives do-scu proprio papel, mimande os brages que no passada se ppuxatam um ao outro, sndicando.a marca do anel, pegando-na mio do figuran te, lustrando com as mnios 6 sangue projectado no ar pela amputagder maging ra, Ne final, © protagonista desfaz.o sinnulacro do passado e retorna a0 presente, sorri e abraga o-seu guards, eomsolando-o numa lingua que ele mio entende: “Don't worry, this is‘anly a film...and yoo still have your finger!” Na cmpatia dis pilavras com a expressividade dos gestos, observa-se o trabalho da meméria afectiva: nio apenas a memria fotogrifics dos factos, dos gestos fedas acgSes, mas uma experiéncia imeriar que, indusida pelo retorno ad lugar, permite a reminiscéneia des sentimentos do passado. “O testemunhin guardoa a recordacio co que mais © impressionon, desembaragon-se das recordagies dos elementos mais comuns. © que resta ¢ entio mais puro, mals condensado, ‘mais consistente ¢ maisexacio que o propria acamtectmentn.™ Na manifestayio voluntéria da meméria, a voz ~ ine oll — projecta.o passado ausente no presente visivel. Neste regime de representagio da memoria, “s palavra far-ver segundo dduas operagdes: uma operacio de substiruigio (que eolaca “sob os olhos” 0 que stl dstante ne espago ott ne tempo) « uma operagio de maaifestagio (que faz vero que ¢ intrinsecamente retirado 4 vista, as motlvagdes intirmas que fazem _maver os personagens ¢ os acontecimentis),”* Nesta operagdo dupa, 0 discursa disciplina 2 meméria, podendo alternar agilmente entre as posigGes do marra- dor, do protagonistae dos figurantes, masdistinguindo claramente-cada um dos lugates, o presente « o passado,a presenca ea auséncis. a realidade € 2 figio. Pelo contriie, o palcoda menériashomtado por Ritky Pan eta S21 — Ls machine de met Khor rouge no estd consteeng io As Fronteieas da memiitia voluntsela. A reconstituicio dos gestos em S21 parece evoluir na “zona de penumbra” entre a aviomatismo ea hcidez que carasteriza o comportamento maquinal, fora da algada da conscigneia, J no se trata aqun de recondar um acontecimento excep- ‘ional, mas antes, como.em Shaob, de dar a yer uma cadeia de actos quotidia- ‘nos, Em $21, no antigo campo de concentragio com o mesmo nom regress ao higar do crime: volta a reuntr os earrascos.¢ as vitlmas num teen contro inédita entre os vivos € 0s mortos. Nas corredores abandonados do edi- ficio, reinicia-seo vaivém das guardas que recomstituern os gestos de traballo da “maquina de morte”, Face a0 genocidio no Cambodia, o cineasta sublinha ‘que “é preciso encontrar umn métode de trabalho que se adapté ao tema, Para ‘ste, traballuiios sobre a reperigfo, reconstiulndo ap cenas nummerosas.veres. A rmeméria regressava,afinande-se.em cad nova filmagesn. Num longo plano-sequéncia, num mavimente queatravessa otempo, a cimart segue un deses funciondrios que voha a abrir e a fechar as portas rombas da prisio, gritanrlo as mesmas ardens que agora ecoam no espace aparenvemente vation, 4 medida que agride e insults um ¢ outeo prisianeito, apontando 0 pul- inho na direce3o do Fantasma que no conseguimcs ver. Quando, as ordens do colega, entra nuina das celas enlectivas, dirige-se directamente ao lugar onde PAL 2 ‘Nuno Lisboa PAR, Gestos Rememorativos cestaria 0 detido que vai algemar e recolher. Quando o guarda entra na cela, a ‘camara que seguia 0s seus movimentos no corredor estanca no limiar, rece- ando caminhar sobre os fantasmas dos prisioneiros, observando da ombretra da porta a agitagio stibita dos gestos do torcionério, “Incapaz de descrever cla- ramente por palavras o seu trabalho a época, Poewv acelta mostrar o que fazia quando era guarda. Dentro da grande cela, ele mima, Executa os seus gestos de outrora com miniicia, que regressam simplesmente, mecanicamente, O seu corpo conservot a memoria dos movimentos que fazia na prisio. Cada aticude 6 acompanhada de ordens que Pouev grita como se, subitamente, nesta divisio vazia, cinquenta prisioneios estivessem novamente sob a sua responsabilidad: = Quando estou de guard, verifico os cueados quatro vez or dia. Sacudoocadea ¢ «bara de feo, veri, Fst tudo em, Passo di our il, Saeudo ocadedoeverifco «nga bare de fro, tsté tudo bem. You para 0 meio. No meio, ali sta fl, dep! Comego ¢remexer. Apa agu Cali. Yjo ns bls. Tenho medo que tnham uma caneta e que abram as vias com ela, Tenbo ‘medo que econdam paafuss equ os engulam para sé matore. Volto ao mo, Sentads! Nao se mevam! Passo « eta fila, Levantem-se! De pt Leantem as macs! Como a remexet, Ve), pao os boss, oamanbo.Apalpo, veo se tém uma canta para aries vias, ou panfisos ue puessem engolir para morrerer. Veo pare 0 meio. Sentades! Nao se mexam Volto-m.. Tu! Quem te dise pata trates «comisa? Sem autoriago do quardo, tu ousus dsp a cuisa? (Queresenfrcr-tecom a ta comisa? Dé-me toa camisa! Tiree a camist¢levo-o poe fo. Hle para, o seu rosto nio exprime nada, Pouco a pouco, regressa i realidade de hoje” Face “experiéncia inexperienciada” do antigo carrasco, a “cronologia dos ges- tos” desenvolvida por Rithy Panh visa produzir um efeito de reflexio: 05 gestos ‘quotidianos do crime, “ao serem reconstituidos no seu territério original, vol- tam a mergulhar o carrasco na realidade de entio, permitindo abrir uma fenda ‘na memoria encerrada dentro da defesa universal daquele que apenas responde is ordens, sob ameaga de morte, Durante quase trés anos, encontrivamo-nos de trés em trés meses, No inicio, eles rejeitavam-me, mentiam-me. Por vezes, de uma filmagem para a outra, 0 tempo tinha feito 0 seu trabalho, Aquele que tinha mentido na filmagem precedente queria rectificar a sua versio."® Porém, ao contracenar com fantasmas, na "zona cinzenta, de contornos mal definidos, {que separa e liga simultaneamente senhores e escravos”, o guarda niio repete ‘come fazia antes, mostra como fart hoje. © arquivo dos gestos inscrito no cor- po, em confronto com a meméria latente do lugar, aproxima este guarda dos “modelos” bressonianos, num movimento de fora para dentro, sem expressio, como uma marioneta inconsciente dos seus gestos irreflectidos. No método cinematogrifico de Robert Bresson, as intengBes devem ser radicalmentesupri ‘midas dos modelos, al como “s omada de consciéncia ea permanncia de ves- tigios ma memiria sio inconcliiveis no mesmo sistema”. £ no automatismo io quotidiano, nas camadas profundas do habito, quando 0 modelo aida ou jé io pensa o que faz eo que diz, sobre que faz e sobre 0 que diz, que a ciara pode captar, com a indiferenca escrupulosa da miquina, a expressvidade invo- Tantéria doe gestor humane” Para dar a ver quotidiano da morte industrializada, a estratégia de Claude Lanzmann em Shou implica a recusa de quaisquer imagens que circunscrevam ‘© acontecimento a uma data e a um lugar. Interdito o arquivo ~ que apenas rnos daria acesso is imagens da destruigio ~, € apenas a partir da actualidade do testemunho do sobrevivente, aqui e agora, que podemos aceder & imagem necessiria da destruigio dos tragos da destruigao. Dentro de um espelho, observamos os barbeiros que prosseguem o seu traba- tho em siléncio. A cimara recua lentamente, descobrindo as miltiplas camadas do largo ecra que duplica ao infinito cada elemento do espaco em volta, Entre (5 reffexos, enquanto nos distanciamos do fundo do espelho, aproximamo- ‘nos do espago real entre as duas paredes espelhadas da barbearia, simultane- amente representado, contestado ¢ invertido pela sua replicagio rigorosa. Os Que esperam a sua vez aguardam em silencio, igurantes do filme e duplos dos espectadores que assistem ao filme, © mutismo € amplificado pelo sussurro das tesouras pelo rumor do transito que atravessa as janelas de vidro, tam- ‘bém reflectidas, revelando do interior do espelho 0 movimento exterior da ria. Esti montado o dispositivo de ressonancia para a palavra do testemunbo. Fora de campo, uma vor que nio vers questiona o barbeiro, enquanto 0 seu “cliente” permanece & escuta e a mercé das suas mndos: “Bu obedecia a ordens: cortar 0 cabelo, como o teria feito um barbeiro que faz um corte normal mas {que tem 20 mesmo tempo que tirar 6 maximo de cabelo. Porque eles precisa- ‘yam do cabelo das mulheres, que expediam para a Alemantha, Néo Ihes rapave 0 {abela? No, cortavamos simplesmente: era preciso que acreditassem num corte nnortnal, Tinham tsura? Sim, tesouras ¢ um pente, sem miquina. Procediamos como se fosse um corte masculino, Nao a maquina zero, para deixar a ilusio de ‘um corte normal. Haviaesplhos? Nao, sem espelhos, com bancos, sem cadeiras, apenas bancos e dezasseis ou dezassete barbeiros.. Mas elas eram tantas! Cada corte durava cerca de dois minutos, ndo mais, ¢ havia tantas& espera da sua vez. Pode imitar? Como fario? Bem... Faziamos o mais depressa possivel porque éramos PAR a ‘Nuno Lisboa

You might also like