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14 Religiao e Sociedade 16/1-2 1992 um Paradoxo do Relativismo: Discurso Racional da Antropologia Frente ao Sagrado Rita Laura Segato A caitica que aqui esbogo aponta para 0 paradoxo que se constitui quando afirmamos que a operago que relativiza tem por finalidade compreender de dentro e em seus proprios termos uma crenga nativa que nos é estranha, enquanto que aqueles que aderem a essa crenga o fazem de maneira absoluta € nao vistumbram a possibilidade de colocé-la em termos relativos. Este tipo de contradigio, segundo argumentarei, emana do recorte clissico com que a Antro- pologia Social tem se aproximado da tematica religiosa e da adaptagio um tanto reducionista da teoria da interpretagio que prevaleceu nos estudos antropokigicos. Essa pritica interpretativa conduz.a que sactifi- ‘quemos uma parte da verdade dos seres humanos retratadas em nossos relatos etnognificos, perdendo de ‘vista ou mesmo censurando as evidéncias que falam de um horizonte intimo em que ocomre a experiéncia humana do transcendente. Mais do que dos limites disciplinares propriamente ditos, os quais sio e devem, ser permanentemente refeitos, essa censura parece-me decorrer das convengSes até agora accitas para & constnugio do nosso discurso teérico-etnogrifico, As mais das vezes, esse tipo de discurso trai, por sua inadequagio, a experiéncia que deveria revelar. Pretendo elaborar futuramente uma andlise critica mais detalhada das formas em que a Antropologia da Religio adapta a seu campo as descobertas da teoria da linguagem, incluindo a aborda- N.do A. Agmidego a Luiz Eduardo Soares pela rigorosa leitua critica deste trabalho e pelas recomendagSes de cautela face as rminhas instisfagGes atuais com a disciplina antropoldgica. Retive aqui o tom de desabafo que o texto tinhainicialmente, a0 tempo que tentei amenizar alguns dos seus termes. Agradego a José Jorge de Carvalho pelos seus comentiios, asim como pot {nimeras conversas que inspiraram paticularmente as recomendagces do tiltimo ponto do artigo. 116 Religiao © Sociedade 16/1-2 1992 ‘gem performativa de autores como Tambiah e as atuais tendéncias interpretativas que recomendam 0 deslocamento do foco da anilise dos aspectos referencias para os indéxicos na comunicaglo. Por enquan- to, sem despreza-los, é suficiente advertir que eles tendem a se constituir uma vez mais em formas de decodificagiio do universo semantico observado, embora num patamar de maior sofisticagio. Face & temitica religiosa, é o proprio discurso etnognifico que deveria sofrer transformagdes radicais (como jé foi sugerido por varios autores, como Stoller, 1984 ¢ Velho, 1986, entre outros) visando, sim, & possibili- dade da intelecgao, mas também buscando recriar no leitor a experiéncia da alteridade, ao tempo de fazer nele ressoar como possivel o absoluto do outro. UM OBSTACULO NO CAMINHO ‘Durante os meses de feverciro a abril de 1987 fiz uma pesquisa de campo sobre o crescimento dos cultos evangélicos ¢ 0 abandono do catolicismo popular em povoados da regiio de Quebrada ¢ Puna, na provincia de Jujuy, no noroeste argentino (Segato, 1991). Ia com o projeto clissico de achar as articulagGes entre os componentes ideol6gicos e interacionais da sociedade que me permitissem fazer sentido das articulagdes do seu cosmos, ¢ de tal maneira que a trama do discurso racional pudesse capti- las. Um recorte parcial do cosmos, correlato do recorte social da experiéncia humana. Dois planos horizontais iluminando-se um ao outro, até tomarem-se-me inteligiveis. Fui preparada desta mancira ao campo, disposta a ver em qual dirego apontava o vetor significante da nova opgo religiosa pelo protestantismo, num meio onde o culto andino a Pachamama € 0 catolicismo deram origem a um culto popular sinerético de antiga raiz. Perguntava-me se a nova opgio religiosa estaria afirmando algo da ordem da ctnicidade, no sentido de que poderia conter uma proposico negativa em relagio A identidade nacional, ou se seu significado poderia ser achado dentro da ordem da micropolitica local, ou ainda se se tratava, mais precisamente, da expresso, em linguagem religiosa, de ‘uma opgo contriria i economia tradicional e pela modemizagio. Para dizer a verdade, dentro do meu projeto, a mera eleigio de uma nova modalidade de crenga e culto era ininteligivel por si essiria completar-se quando fosse identificado o campo semiintico 20 qual, cifadamente, se estaria referindo. Foi entiio quando, devido a obsticules imprevistes, vishumbrei a medida em que a perspectiva nativa em iredutivel a minha pergunia pelo sentido, refratiria i rede conceptual por mim langada. De fato, nessa rede, uma adesio religiosa, uma crenga, uma experiéncia vivida, sempre é entendida como um significante cujo referencial se encontra numa érea pensada como mais concreta, mais assimilivel e com parimetros mais universalmente companiveis da experiéncia humana Na Antropologia, é bom lembrar, é freqiientemente algum tipo de dificuldade operacional durante o trabalho de campo que tem obtigado o antropélogo a repensar a abordagem das questées relativas a crenga ¢ a religiio. Bons exemplos sio 0 caso de feitigo sofrido pelo proprio ctndgrafo, relatado autobiograficamente por Stoller (1984), ow a turbagio de Sperber (1982) frente ao pavor de um dos seus informantes que dizia ter se encontrado com um dragio, entre muitos outros. O caso a que vou me referir é menos espetacular que os dois anteriormente mencionados ¢ simplesmente consiste em trés respastas que me foram dadas por trés informantes em ocasides diversas, quando confrontadas com meu projeto de relativizar a verdade que eles me apresentavam como absoluta. O primeiro informante, no curso de uma entrevista na qual eu Ihe perguntava acerca de sua hist6ria de vida, interrompeu-me com aparente docilidade, para me dizer: “Vooé esti em busca de raziies humanas, enquanto nés acreditamos em razées divinas.” O segundo informante, a0 expor-the brevemnente

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