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Capitulo 6 Centros, reis e carisma: reflexdes sobre 0 simbolismo do poder Introdugao Como tantas outras idéias-chave na sociologia webe- riana, verstehen, legitimidade, ascetismo do mundo inter- no, racionalizacdo, 0 conceito de earisma nao é explicito com relagao ao seu referente: 0 que denota, afinal? um fenémeno cultural ou um fendmeno psicolégico? Como o carisma ora € definido como “uma certa qualidade” que destaca um individuo, colocando-o em uma relagio privi- legiada com as origens do ser, ¢ ora considerado um poder hipnotico que “certas personalidades” parecem possuir € que Ihes torna capazes de provocar paixdes ¢ dominar mentes, nao é possivel saber ao certo se ele é um status, um estimulo ou uma fusdo ambigua dos dois. A tentativa de escrever uma sociologia da cultura ¢ uma psicologia social em um tinico conjunto de frases € 0 que dé a obra de Weber sua complexidade orquestral ¢ sua profun- didade harménica. Mas é, também, o que dé origem a sua intan- gibilidade crénica, sobretudo para ouvidos pouco acostumados A polifonia. Em Weber, um exemplo classico de sua propria catego- ria, a complexidade é bem administrada, € a indefini contrabalangada por sua habilidade extraordinaria em man- ter unidas idéias conflitantes. Em tempos mais recentes € menos heréicos, no entanto, a tendéncia tem sido ade aliviar © peso que seu pensamento carrega, reduzindo-o a apenas uma de suas dimensées, mais comumente a psicoldgica. Em nenhum outro caso isso é tao verdadeiro como no conceito 182 de carisma.’ Desde John Lindsay até Mick. Jagger, muita gente ia foi chamada de carismatica, devido a sua capacidade de atrair um determinado namero de pessoas com o brilho de sua personalidade; ¢ a interpretagao mais comum que se da a0 aparecimento — este um pouco mais genuino — de lideres carismaticos nos Estados Novos, € que esses seriam um produto da psicopatologia que a desordem social alimenta.? No psicologismo generalizado desta era, tao bem observado Por Phillip Rieff, 0 estudo da autoridade pessoal se estreita Para transformar-se em uma investigacéo do exibicionismo ¢ da neurose coletiva; seu aspecto espiritual desaparece de vista? Alguns estudiosos, ¢ entre estes Edward Shils é um dos mais proeminentes, procuraram evitar essa reducdo da va- liosa complexidade weberiana a clichés neofreudianos, ao admitir que existem temas miltiplos no conceito weberiano de carisma, que quase todos eles foram afirmados mas nao desenvolvidos, ¢ que, para preservar a forca do conceito é preciso elabora-los ¢ descobrir qual é, precisamente, a dina- mica de sua interagao. Entre a falta de clareza que resulta quando se tenta dizer muita coisa ao mesmo tempo, ¢ a banalidade que € fruto de um repiidio do desconhecido, existe a possibilidade de tentar definie a razio pela qual uma excelente revisio geral dessa questio, veja a introdu renstadt para sua coletinea dos trabalhos de Weber sobre carisma, Max Weber Pr charisma and institution building, Chicago, 1968, p. ixlvi. Sobre a “psico. Joeizacio” da lepitimidade, veja H, Pitkin, Wittgenstein and justice, Berkeley ¢ Ips Angeles, 1972; sobre “ascettsmo do mundo interno”, veja D. MeClelland, The achieving society, Princeton, 1961; sobre “racionalizacio", A. Mitzaman, The iron cage, Nova lorque, 1970. Toda essa ambigiidade ¢ até confusio, nas Imterpretagoes, cabe-nos dizer, no deixam de ter alguma justificativa, devide a0s préprios erros de Weber. 2 Tara alguns exemplos, veja “Philosophers and kings: studies in leadership", Daedalus, verdo, 1968, 3. B Riefi, The triumph of the therapeutic, Nova torque, 1966. 183 alguns seres humanos véem transcendéncia em outros, € exatamente o que significa esta transcendéncia. No caso de Shils, as dimensées do carisma previamente negligenciadas s4o retomadas quando ele focaliza a conexao entre o valor simbélico de individuos € a relagao que estes mantém com os centros ativos da ordem social.’ Tais cen- tros, que “nao tém qualquer relagao com geometria ¢ muito pouco com geografia”, séo, em esséncia, locais onde se concentram atividades importantes; consistem em um pon- to ou pontos de uma sociedade, onde as idéias dominantes fandem-se com as instituigdes dominantes para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade de uma maneira funda- mental. £ o envolvimento— mesmo quando este envolvimen- to é resultado de uma oposicao ~ com tais arenas ¢ com os eventos ocasionais que nelas ocorrem, que confere 0 caris- ma. O carismitico nao € necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas esta bem préximo ao centro das coisas. Esta proposi¢ao de que a origem do carisma relaciona-se aum ponto central privilegiado tem uma série de implicag6es. A primeira delas é que figuras carismaticas podem surgir em qualquer parte da vida social — tanto na ciéncia ou na arte, como na religiao ou na politica -, desde que esta area esteja suficientemente em evidéncia, e, por esta razio, parega imprescindivel 4 sociedade. A segunda é que 0 carisma nao aparece apenas sob formas extravagantes ou em momentos passageiros, mas, ao contrario, é, ainda que inflamavel, um aspecto permanente da vida social, que, ocasionalmente, explode em chamas. Assim como nao existe um tinico sen- 4, B. Shils, “Charisma, Order, and Status”, American Sociological Review, abril, 1965; idem, “The Dispersion and Concentration of Charisma”, in Independent Black Africa, org, Wi). Hanna, Nova lorque, 1964; idem, “Centre and Periphery”, in The Logic of Personal Knowledge: Essays Presented to Michael Polanyt, London, 1961. 184

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