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‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 169-182, 1.sem. 1989. EXPERIENCIAS DE MULHERES. DESTINOS DE GENERO* Este texto é para Dona Luzia “que nunca conheceu a porta de um colégio porque néo teve ‘direito’ " Elisabeth Souza Lobo** RESUMO: O objetivé deste texto é refletir sobre a construgdo da experiéncia de operdrias de uma indfstria de auto-pecas de So Paulo, a partir de suas narrativas de vida. A anflise de como as trabalhadoras pensam € representam as circunstancias de sua vida e de seu trabalho se faz a partir da descrigdo do trabalho na fabrica, de suas trajet6rias de vida e das trajet6rias profissionais: 0 trabalho doméstico ¢ 0 trabalho assalariado, as prati- cas familiares ¢ a carteira, as relagdes familiares ¢ de trabalho, a migracdo ¢ os projetos para 0 futuro. O fio condutor desta reflexdo € a interrogaco sobre as condigées de for- macdo de uma experiéncia coletiva das operdrias ¢ sobre as formas de representacao desta experiéncia. Como conclusio, busca estabelecer relagées entre estas experiéncias ¢ a idéia de destino, entre as préticas desenvolvidas na vida quotidiana ¢ as representacdes que tém as operdrias sobre si mesmas, sobre suas vidas ¢ sobre as mulheres. UNITERMOS: Mulheres operérias: experiéncias ¢ representagoes, hist6rias de vida. Introdugao 0 objetivo desta comunicagéo é de refletir sobre a experiéncia de tés operirias, a partir de suas histérias de vida. Este texto € o resultado de uma pesquisa realizada entre margo ¢ julho de 1986 em So Paulo, juntamente com Robert Cabanes (ORSTOM) e Marie Agnés Chauvel. Foi apresentado na me- Sa-redonda internacional sobre “Rapports sociaux de sexe: problématiques, méthodologiques, Champs 'analyse” orvanizado pelo Atelier Production-Reproduction (APRE)/IRESCO/CSRS em Paris, novembro de 1987. ‘Agradeeo. a Fundacdo Ford e a Fapesp que apoiaram distintos momentos deste trabalho © aos diretores e funcionarios desta empresa que se dispuseram a colaborar na pesquisa. + Professora do Departamento de Sociologia ~ FFLCH-USP. 170 LOBO, Elisabeth Souza. Experiéncias de mulheres. Destinos de gtnero. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 169-182, 1.sem. 1989. Utilizei aqui o conceito de experiéncia tal qual foi definido por E. P. Thompson: “resposta mental e emocional seja de um individuo ou de um grupo social a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetigGes do mesmo tipo de aconteci- mento” '. O conceito parece-me adequado na medida em que permite articular trajet6- rias ¢ representagées das operérias, quebrando a dicotomia objetividade/subjetividade, que me parece levar sempre a um impasse, tanto nas pesquisas que trabalham com hist6- rias de vida, quanto naquelas que se pretendem “objetivas” e por consegiiinte capazes de separar a experiéncia real do imaginério vivido, a objetividade dos acontecimentos da subjetividade em que sio vividos. Refletindo sobre como trabalhadores ¢ trabalhadoras “‘consideram ¢ explicam as circunstancias da sua vida” e do seu trabalho , procurei seguir as mesmas trilhas de Barrington Moore, colocando como questao articuladora da pesquisa a problemética da dominagdo, E se toda a pesquisa, como toda narrativa é um agenciamento *, a constru- cdo de um olhar, coloquei-me no angulo da experiéncia da dominagao, através da fala de trés operérias. Voluntariamente renunciei a qualquer preocupacio de representativi- dade quantitativa ou a uma escolha de casos tipicos. Estudei trés experiéncias, trés res- postas a0 quotidiano do trabalho, & divisio sexual do trabalho, trés itinerérios indivi- duais diferentes, reorganizados em torno a dois eixos: 1) o trabalho; 2) a experiéncia do destino. Como concluséo procurei estabelecer uma relagdo entre experiéncias ¢ destino, entre as respostas dadas aos acontecimentos vividos e as representagées de Luzia, Nair ¢ Belisa sobre si mesmas, suas vidas ¢ sobre as mulheres. O Trabalho As trés operirias cujas hist6rias de vida estéo na origem desta reflexdo: Luzia, 1 Ver THOMPSON, E.P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 15. 2 Ver BARRINGTON MOORE JR. Injustica. So Paulo, Brasiliense, 1987, p. 9. 3 Ver BARTHES, Roland. Introduction & I'analyse structurale des récits. Communications, Pax ris, n. 8, p. 1-27, 1966. LOBO, Elisabeth Souza. Experiéncias de mulheres. Destinos de género. Tempo Social; Rev. Sociol. 171 USP, S. Paulo, 1(1): 169-182, L.sem. 1989. Nair e Belisa, trabalham numa indiistria de autopecas “, na seco de usinagem, operan- do tommos, furadeiras e fresas. A partir de suas narrativas, coloquei uma primeira questéo: o lugar do trabalho nas suas experiéncias. Luzia, Nair e Belisa trabalharam desde muito jovens, ajudando aos pais na agri- cultura, ou como assalariadas. Continuaram a trabalhar para poderem educar seus fi- Ihos, 0 que fizeram e fazem praticamente sozinhas 5, A relaco ao trabalho € no apenas permanente, mas determinante na organizacio de sua vida. A andlise destas prdticas su- gere a distingao de dois tempos: o tempo de trabalho ligado & sobrevivéncia, no campo ‘ou em casa, no quotidiano, e, o tempo de trabalho assalariado, que remete a um empre- go e que produz a separagio entre trabalho doméstico e 0 emprego em termos de espa- os € relagées. Por outro lado, as diferentes priticas de trabalho se articulam, se super- poem e se impdem na vida destas mulheres sem lugar para qualquer escolha. O trabalho doméstico faz parte da condigao de mulher, 0 emprego faz parte da condigao de mulher pobre. O trabalho doméstico nao € dividido com o marido ou os filhos, mas entre as mu- Iheres da famflia ou a ela agregadas, estando na origem de migracdo das mais jovens que chegam a S40 Paulo para “‘ajudar”’ irmas ou primas e por seu lado chamam as mées, irmas e primas para ajudé-las quando nascem seus filhos. trabalho assalariado tampouco € fruto de uma escolha: as mulheres néo apren- dem uma profissao, procuram emprego através da rede familiar, dos amigos, ou sim- plesmente percorrendo as ruas dos bairros industriais em busca de antincios de empre- g0, de informagées ou eventualmente da boa vontade de algum vigia que lhes apresente a “um chefe”. A carreira, as mudangas de uma fabrica para outra, de um ramo indus- trial para outro, so determinados pelas oportunidades do mercado de trabalho. Neste sentido, as trajetérias ocupacionais das trés operérias séo significativas: 4 A f&brica B. situada num bairro industrial de Sao Paulo é uma empresa de | »rte médio, perten- cendo a duas famflias de origem italiana. No momento da pesquisa a fAbrica empregava aproxi- madamente 700 empregados dos quais 20% eram mulheres. A empresa familiar se desenvolvera com 0 milagre econédmico dos anos 70, atravessara uma crise no inicio dos anos 80 ¢ se beneficia- va naquele momento de uma nova expans0. Os locais da fabrica eram bastante precérios ¢ anti- gos: um grande galpao abrigava varias secOes, pequenos galpGes agregados completavam 0 espa~ 0 original. No andar superior que contomnava parte do local de trabalho com um corredor aberto, Cstavam pequenas salas para a administragao ¢ a parte do refeit6rio e banheiros, num bloco fe- chado com vidros. Os escritérios dos técnicos estavam instalados no meio ¢ ao final do galpao principal. A produgdo da fabrica se centrava em auto-pecas destinadas a algumas das principais montadoras da inddstria automobilfstica. 5 Ver os retratos em anexo.

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