José Custódio Vieira Da Silva - Os Túmulos de D. Pedro e de D. Inês em Alcobaça PDF

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PORTVGALIR ‘Nova Sie, Vols, XVIEXVI, 1996/1997 OS TUMULOS DE D. PEDRO E DE D. INES, EM ALCOBAGA José Custédio VIEIRA DA SILVA AS arcas tumulares de D. Pedro | (1320-1367) e de D. Inés de Castro (2-1355), colocadas nos bragos direito e esquerdo, respectivamente, do transepto da igreja do Mosteiro de Alcobaca*, assumem, sob varios aspectos, uma importancia decisiva no contexto da arte funeraria medieval tanto portuguesa como europeia. Muitos dos pro- blemas que a sua anélise suscita, apesar da pertinéncia com que alguns historiado- res da arte os trataram”, continuam em aberto; por essa razao, nao se revelara excessivo tentar 0 seu enquadramento no contexto de uma reflexo mais alargada Que privilegie, de modo particular, o alcance dois) significado(s) da colocagao primitiva das arcas, 0 entendimento comparativo da leitura da decoracao escult6rica e 0 seu enquadramento evolutivo, 0 alcance extraordinario dos temas representados e 0 res- Pectivo tratamento plastico. Deixar-se-a de lado, voluntariamente, a leitura sistemética da iconografia e os problemas complexos que ela suscita, por se entender nao ser este o momento adequado para uma reflexao desse género’, 1A colocaio destas ares tumulaes nos bragas do transept da Igeja de Alcbogaelacuouse em 1967, equando de vista Portugal reine fabe! de gata. Tera, pe isso, de Sr cosocadas do S38 dos Rl, onde hava sido Gspostas eve 1782 ¢ 786, apos a conluséo dessa depencéca,eiiada expossamerse par ecalertdos os tomuls regs eistertes em Acaboa. Ct Eido Mavmiano Feria, A rte Tumuiar MedealPoruguese (sdculs Xl aX), Oss, ce Mestad (pl), Lisboa acldade Ge Carian Socials Humanas, 1986, 112, * Consutese, pare este tema, M. Viva Natividad, lgne de Casto e Peco 0 Cru prate a cnografa ds seus tiles, Usboe, ‘yp. A Editor, 1910; Renaldo dos Sans, «A onogatia dos Tiros de Aleabagan, Luton, wl I. 1924, pp. 830: Anni de Vasconcelos, Inés do Cat. Estudos para uma sé de lies no Curso de Histna ae Portugal, 2" ed, Barcelo, Potucalense Etre 1933: Eniso Maximiano Fre, ob. ci; Caos Abero Ferre de Neda A Roda da Fertuna/Rode de Vida do Timuso de. Peo, er ‘Neabags, Revita da Faculte de Lets, Histria, Pro, vt. Vil 1991, pp 255263, atime letua ieoogratica dos timubos de Aleabaradevese Caos Aerio Fea de Aeeld, no ago ciado ne nota antect © ue prvegou, sobre, o entedmerto da Roda ds Fortune do imu dD. Peto 0 recente e tagco desapsredrnerto dest ste professor unversitrio © pofind conbecodar do Ane Pocuguesa,paticularmente medial no sb debau un az ceca mato df fe preencer como dewcu constemados os celegase os mltos amigos. E porque ene estes me corto, é ‘ambi hameragen ¢ lem branga o que se pretend com estas cansiderares Sobre umn tema que he apartament cao. Sed tabem,além do mol, a cor versa ou, poucos das antes dose desaparecnento,enve 16s havi sito aprezad equ ado howe tempo de coneetie, 269 PORTAL, O lugar escolhido por D. Pedro para a deposigao da arca tumular de D. Inés mereceu de Fernao Lopes uma referéncia concreta e muito explicita: «... e este mui- mento mandou poer no moesteiro Dalcobaca, nom aa entrada hu jazem os Reis, mas demtro na egreja ha maao dereita, acerca da capella moors*. Da mesma forma pro- cedeu 0 monarca em rela¢éo a sua propria arca funeraria: «Semelhavelmente» - diz, em continuaeao, 0 mesmo Fernao Lopes - «mandou fazer el Rei outro tal muimento e tam bem obrado pera si, e fezeo poer acerca do seu della, pera quamdo se aquee: gesse de morrer o deitarem em elle»°. Por consequéncia, no braco direito do tran- septo da lgreja de Alcobaga, frente a capela de S. Bento®, foram dispostos a par os dois tGmulos: mais perto do cruzeiro, certamente, 0 do rei e, a sua direita, o de D. Ings. ‘A referida observagao de Ferndo Lopes, chamando a atengao para o facto de as arcas tumulares nao terem sido colocadas na galilé do templo, prende-se exclusiva: mente com 0 facto de, em Alcobaga, ser a primeira vez que tal sucedia. Na verdade, desde 0 rei D. Dinis (m. 1325) que os reis de Portugal haviam deixado de usar, como espago de tumulaeao, as galilés (concretamente as de Santa Cruz de Coimbra e da prOpria igreja de Alcobaca) para penetrarem no interior dos templos, segundo um pro- cesso de apropriagao do espaco sagrado pelos leigos que caracteriza 0 final da Idade Média’. Ao contrério, porém, do citado D. Dinis, que se fez tumular em arca disposta frente capela-mor da igreja do Mosteiro (por si construido) de Odivelas, ou de seu proprio pai, 0 rei D. Afonso IV (m. 1357), sepultado na capelamor da Sé de Lisboa ‘Que entretanto havia igualmente feito remodelar, D. Pedro ndo ousou colocarse nem frente & capelamor nem muito menos no seu interior. Talvez uma manifestacao do respeito que, apesar de tudo, suscitava o principal e mais importante mosteiro cister- ciense de Portugal, cuja Ordem os monarcas especialmente protegiam: com efeito, era vedado a qualquer membro da nobreza exercer neles 0 direito de aposentadoria ou de padroado, a nao ser o rei®. Por isso mesmo, @ apesar de, como se acaba de dizer, os reis haverem ja comegado a ocupar o interior dos templos como local de deposigdo dos seus timulos, a ocupacao de um espaco idéntico na igreja de Alcobaca continuava a ser uma excep¢éo, confirmada pelo reparo de Fernao Lopes. Se os mon- ges a isso foram obrigados ou se voluntariamente terao acedido ao desejo de D. Pedro, € uma questao para a qual nao se encontrou ainda resposta; de qualquer modo, talvez deva ser entendida, como agradecimento expresso por essa eventual autorizagaio, a presenca de S. Bernardo ou, mais presumivelmente, de S. Bento no ‘timulo do monarca, em pequena escultura colocada entre as duas cenas que histo- riam a morte do rei. E, com efeito, a Gnica representagao que nos conjuntos iconogré- ficos inscritos nas duas arcas apela, de algum modo, para a ordem mondstica em cuja igreja elas foram depositadas, sugerindo, sem davida, um reconhecido agradeci mento a0 fundador da Ordem a cujos monges o rei encomendava 0 seu corpo e 0 da sua amada: A disposicao dos dois timulos, com os pés voltados para a referida capela de S. Bento - de acordo com as normas eclesiasticas -, e com D. Inés colocada a mao direita de D. Pedro — em conformidade com 0 cédigo cavalheiresco -, permite uma adequada leitura interpretativa dos quadros narrativos esculpidos nas suas faces. Esclareca-se, porém, que 0 acesso e a visao dos timulos apenas era permitido aos * Fema Lopes, Crnica de, Pet, Lisboa. Lara Cilio, 1986, * a de, p. 201 * Amina de Vescarets, 0. ct, 9.64) designa esta cael de S. Peto quando, na vet ela dedicate aS. Bento. " Tivemos a ocaside de desenvoher mals alagacarente esta ematca em ut out ago pare que se remete let: Da gallé3 ‘agelomer: peters do espayo ferro na argutetra gee aoruguesa, 0 Fascn ao Fi, Usbes, Los Hoont, 1997, pp. 4S 58. UN, p. 200, * of, Jost Cust ie da Siva, Pagos Meleas Portuguese, Lisboa, PPAR, 1985.98 270 (OS TEMULOS DE D. PEDRO E DE D. INES, EM ALCOBAGA monges, uma vez que 0 local onde se situavam estava vedado quer aos conversos do proprio mosteiro quer, por maioria de razdo, a quaisquer outras pessoas estranhas a vivencia monastica. Por isso mesmo, a complexidade narrativa e simbdlica das hist6- rias e dos personagens inscritos nas faces das duas arcas era dirigida, de modo parti- cular, aos monges alcobacenses. Atendendo, entao, a forma como estavam dispostos os dois timulos, vejamos como se poderao equacionar as correspondéncias entre as figuragdes representadas nas respectivas faces testeiras. No lado dos pés, e colocando-se 0 observador de frente para as arcas, tem-se @ direita, no timulo de D. Pedro, a representacao, em dois tempos, da Boa Morte do Rei; a esquerda, no tamulo de D. Inés, 0 Juizo Final. No lado das cabeceiras, a correspondéncia respectiva fazse entre a cena do Calvario, no tUmulo de D. Inés, @ direita e a Roda da Vida/Roda da Fortuna na arca de D. Pedro, esquerda. Nao se deveré a mero acaso @ dupla combinagao destas representagdes. De algum modo, as suas fungées representativas e simbélicas completam-se, segundo um proceso de reenvio mituo da mensagem profunda que ambas transmitem. Na verdade, @ representagao do Juizo Final, a cena mais terrivel e dramatica do cristia nismo, em que aos justos sera, definitivamente, entregue o galardao da vida eterna em beatitude no paraiso e aos pecadores 0 castigo das penas eternas no inferno, cor- respondem as duas cenas em que o proprio monarca se retrata cumprindo os precei tos definidores da boa morte (a Extrema-Ungao e 0 Viatico). Com tal atitude, mani- festase nao s6 a aceitacdo, pelo rei, desses preceitos cristaos como, sobretudo, se torna exemplarmente, aos olhos de todos, participante da propria morte de Cristo. Redime-se, assim, dos desvarios e erros cometidos em vida e, pela sua santa morte (abalizada pela presenga de S. Bento, colocado, como ja se disse, entre estas duas cenas), acede ao lugar reservado aos eleitos no paraiso, como 0 quadro do Juizo Final da arca de D. Inés confirma e para que remete. Alias, aceitando que nesta altima cena os personagens representados na janela de uma das torres da Jerusalém Celeste e contemplando ja a face de Deus, se tratam de D. Pedro e de D. Inés’, maior forca @ consisténcia adquire esta interpretacao: com ela pretende-se afirmar que os revezes a auténtica tragédia de que 0 seu amor se revestiu foram recompensados ela unio definitiva e de amor eterno no paraiso. E assim também se confirma a pro- funda vertente autobiografica de que se reveste a iconografia de cada uma das arcas funerarias, lida quer isoladamente quer em conjunto?®. As cabeceiras dos dois timulos autorizam e propdem leitura semelhante, isto é, original representagao da Roda da Vida/Roda da Fortuna da arca de D. Pedro, esquerda, corresponde a cena do Calvario na arca de D. Inés, a direita. Na verdade. contemplagao filoséfica dos altos e baixos da vida humana, expressa na extraordiné: ria e excepcional representagao autobiografica do drama dos dois apaixonados que a Roda da Vida representa, a essa decidida afirmagao «da precariedade do bem estar e © da fragilidade da vida»** que culmina tragicamente no jacente amortalhado, corres- ponde a cena do Calvario que, para 0 oristianismo, € 0 acto final que dé consisténcia definitiva & redencao da humanidade. E se a morte violenta de Inés assume contornos de martirio, 0 dramatico jacente amortalhado mimetiza-se com o proprio Cristo, com pletando-se, de alguma forma, a cena do Calvario na arca de Inés. A legenda que acompanha esse extraordinario jacente — xaté ao fim do mundo - é, de igual modo, uma afirmagao convicta na verdade mais fundamental da religiao crista: a da ressur- reigao do mortos, no dia do Juizo Final. E assim, finalmente, se completa o ciclo da or a 2M, Via Navidad, ob. ct, p 1. * Este prooesso oe incvdualizagzo do imu € da umanzaeo dos janes 6, al, um ds facts mais motives assinalar ng arte tumulr portuguesa do siculo XV. Cr. Eide Maxnano Fea, 0. ep 344. Cats Aborto Fela de Ameo, 0. ct, 9. 263, 274 PORTVGAL, representagao, reenviando-se 0 observador para esse quadro disposto na arca tumu- lar de D. Inés de Castro. Confirma-se, afinal, que as representagdes apostas em cada uma das faces da cabeceira e dos pés dos dois tumulos encerram, para além do seu entendimento individualizado, uma leitura conjunta e complementar. Alias, nao 6 por acaso que os enquadramentos em que essas cenas esto inscritas apresentam idén- tico paralelismo: ao grande circulo da Roda da Vida/Roda da Fortuna corresponde a definigao essencialmente circular do Juizo Final, naquilo que constitui uma das afirma- des mais originais, a nivel europeu, desta conhecida tematica; ao grande rectangulo que serve de moldura ao Calvario corresponde 0 tratamento, em duas cenas, da boa morte de D. Pedro que respeitam, na esséncia, a defini¢ao rectangular da face tumu- lar em que se inscrevem. Coincidéncias formais demasiadas para se tratar de mero capricho ou acaso devidos a inspiragao do(s) artistas). A sequéncia da leitura dos quadros representados nos lados maiores das duas arcas tumulares no é, curiosamente, coincidente. A narracdo das cenas da vida de S. Bartolomeu, 0 santo protector de D. Pedro", fazse, da infancia ao martirio, de uma forma continuada: a leitura inicia-se pelo lado direito da Roda da Vida, tendo-se de rodear sucessivamente 0 timulo até se chegar de novo, pelo lado esquerdo, 20 local de partida, Nesta situacao, apenas as cenas da boa morte do rei interrompem esta sequén- cla narrativa, por necessidade, sem divida, de fazerem a devida correspondéncia com a cena do Juizo Final do tamulo de D. Inés. No caso da arca tumular desta altima, a leitura de cada um dos lados faz-se sempre partindo da cena do Juizo Final: do lado direito representa-se a infancia de Cristo, da Anunciagéo* até @ Apresentacéio no Templo; do lado esquerdo, a narragao reporta'se ao culminar da sua vida adulta, ini- ciando-se com a Ultima Ceia e terminando na cena de Cristo a caminho do Calvario — servindo de remate, a ambas as sequéncias, a cena grandiosa e magnifica de Cristo Crucificado no Gélgota, que ocupa todo 0 espaco da face da cabeceira. Esta discre- pancia na sequéncia das leituras teré a ver, eventualmente, com a necessidade de, no ‘tumulo de D. Inés, a cena maior do Calvario ter de obrigatoriamente servir de remate aos dois momentos da vida de Cristo e também a jé referida necessidade de se arti- cular com a leitura correspondente das cenas da morte de D. Pedro no seu tamulo. Na verdade, o entendimento da narratividade expressa nestes dois monumentos fune- rérlos tem de ser entendida como uma unidade, dentro da modificagao operada a par- tir do final dos anos 40 do século XIV, quando surgem os primeiros tamulos em situa 40 conjugal: «nao € ainda o timulo duplo do século XV, mas a utlizagao de grama cas estilisticas comuns € a sua colocacao em espagos unitérios» que confirma uma vez mais a consciencializagéo do individualismo no caminhar para o final da Idade Média™. A autoria destes dois timulos continua mergulhada no mais completo desconheci mento. Estamos em crer, porém, que podera ter sido uma dupla de escultores even- tualmente portuguesa, como sucedeu com o contrato celebrado entre obispo de Braga D. Gongalo Pereira e os mestres Péro e Telo Garcia, em 1334"°, A analise do trabalho escultérico dos dois timulos, face a desigualdade de tratamento entre os 2 Of, Cares Aero Fea de med, ob. ct . 258, nota 10 Infelzmente este quack est pratcarente dest rattled, 0 que Impede reconhecento rgrose de rac p> sta. De qualaue modo, sequinca de enisiios aelequase aoessarierte pare presen de Anuncio nesse prime moments {irra oe Cristo. ° Enigio Matimiao Fre, ob. . 122 ° Segumos, neste cas, 2 ono eapendida por Padio Dias, ebora ese stra da ate aia tab coo posse sero asta (ou 0s aris de prveniecia estrangera et. Pesto Dias, «0 Goo, Histia da Ae em Portugal oN, Lisboa, Pub. fo, 1988, . 138) st ta opi, ue. Rau Rai defence, & cloaca por Michael Cail, qu aleraserem artistes espana inspire sem mada rnceses os aves dos timuls de Aeshaca (Michael Cail, Le monde gotave, Pais, Ranmaren, 19,0. 3), 272 (08 TENULOS DE D, PEDRO E DE D INES, EM AICOBAGA jacentes e a decoracao das paredes das arcas, parece legitimar, desde logo, a ideia de se tratar de dois artistas diferentes. Quanto sua proveniéncia, apesar da riqueza espantosa e da variedade tematica destes timulos alcobacenses, a verdade é que eles se inserem na evolucao que ao longo do século XIV a escultura em Portugal vinha sofrendo, pelo que nao seria de estranhar que pudessem ter sido portugueses os artistas que os executaram. Coimbra, muito por acco de mestre Péro, tornara-se um foco importante de irra- diagao da escultura durante aquele século. 0 timulo da rainha Santa Isabel, concluido Por volta de 1330, inicia a série de monumentos desse género, caracterizados por Jacentes de grande porte e uma decoracao escultorica nas faces das arcas (definida Por personagens enquadrados em estruturas arquitecténicas) na qual mestre Péro salterou as imagens de vulto, tornando-se mais naturalists, mais esguias e com mais movimentor:®. Aprofunda, para além disso, 0 relevo destas Gitimas compost Goes, criando figuras que se tomiam, na pratica, estétuas exentas. Exemplo disso, € Porque bem documentado, € a decoragao parietal da arca do jé referido D. Gongalo Pereira, em que 08 personagens se destacam quase por completo do fundo, autono- mizando-se em relagao a parede a que se encostam. € verdade que falta um elo fun damental na evolugao desta tipologia tumular: referimonos a0 monumento funerdrio do rei D. Afonso IV, pai de D. Pedro, infelizmente desaparecido da Sé de Lisboa por causa de um terramoto. Eventualmente a sua existéncia permitiria langar luz sobre as arcas tumulares de seu filho D, Pedro e de D. Inés. Nao ha duvidas, no entanto, de que estes tamulos se integram perfeitamente, como acima referenciémos, na evolugao da escultura do século XIV, periodo que tal- vez represente, em relagao a Idade Média portuguesa, 0 auge desta disciplina artis- tica, pela insuspeita qualidade e variedade presente em varias das suas manifesta- goes*", Aquilo que sobretudo se destaca nos timulos de Alcobaca, mais do que o trata mento sofrido pelos jacentes, perfeitamente semelhante aos das esculturas funerd rias suas contemporaneas, € a variedade e riqueza quer iconografica quer plastica dada as faces das arcas tumulares. A liberdade criativa e a originalidade maxima (mesmo tendo em conta a encomenda explicita e 0 seu acompanhamento por parte do rei D. Pedro) verifica-se na composicao dos quadros narratives, feitos de cenas complexas € nao de personagens isolados como até ai sucedia na decoragao tumu- lar. Excepcional € também o tratamento de vulto (quase perfeito) de algumas compo- sigdes. A destruicéo implacével que muitas das pequenas esculturas ostentam per- mite, pelo menos, verificar a insuperdvel mestria do escultor. Analise-se, a titulo de exemplo, a cena da Adoragao dos Magos, no timulo de D. Inés de Castro: a Virgem, sentada no lado direito da composicao, falta a cabeca. No entanto, a parede por detrés esta totalmente trabalhada com um cortina que cai em dobras de belo efeito, sem que se tornem visiveis quaisquer cicatrizes da decapitacao que a figura da Virgem recebeu. Tal facto querera significar que a cabega era totalmente exenta do fundo e que, inclusivamente, poderia ter sido trabalhada parte e depois colada ao corpo. E, como esta, outras situagdes idénticas poderao ser encontradas em varias das restantes representacdes. Notavel € ainda 0 esboco de perspectiva tentada em alguns quadros, com os per- sonagens, sobrepostos, a Sugerir planos diferenciados: talvez que o exemplo maximo seja 0 da cena de Cristo a caminho do Calvario, em que a primeira das Santas 2 i. dom, . 139. "Oh, acest propsto, Adlalde Manda ¢ Jos Cust Vera ca Si, Historia de Ate Patuguese.Eooca Medieval, Lisbo, Uni Abert, 1995, po 163167 273 PORTE, Mulheres que 0 seguem nesse percurso salta para fora do quadro arquitect6nico, num arrojo de composi¢ao verdadeiramente assinalavel. Aliés, a0 contrério do quadro nar- rativo medieval que reunia numa Unica representagao momentos e espacos diferencia dos da mesma historia, nos tumulos de Alcobaca respeita-se, por norma, a unidade de tempo e de espaco. Apenas na cena do beijo de Judas se referenciam trés factos diferenciados, mesmo que cronologicamente sequentes: enquanto o traidor, & esquerda, belja a face de Cristo, Malco leva a mao @ orelha que Pedro acabou de cor- tar para, no lado direito, Judas ‘ser representado ja suspenso da arvore em que se enforcou, com o diabo (em representagao deveras excepcional) a retirarlhe, do ventre aberto, a alma em forma de crianga, Notavel &, igualmente, 0 minucioso e riquissimo enquadramento arquitecténico das cenas historiadas. A extraordinéria variedade e quantidade das rosaceas de dese- Aho caprichoso, a veracidade de gabletes, pinaculos e coruchéus, a utilizagao de cogulhos e de outra folhagem nervosa e de contrastes profundos de luz e de sombra, fazem destes timulos no apenas um manual ou um caderno de elementos arquitec- tonicos como os verdadeiros introdutores da linguagem do tardo-gotico europeu em Portugal. Apetece afirmar que eles sao a grande catedral gotica do Norte da Europa que em solo portugués nunca se chegou a erguer. Nao admira, por isso, que 0 proprio. Fernao Lopes, normalmente muito avaro em consideragdes de cardcter estético, se tenha deixado seduzir pela beleza destes monumentos funerérlos, os Gnicos capazes de Ihe arrancar palavras de admiragao: a arca de D. Inés 6 «huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente obrado»; a de D. Pedro é «outro tal muimento e tam bem obrado»'®, Os temas do Juizo Final e da Roda da Vida/Roda da Fortuna merecem, final- mente, uma dltima consideragao: se aquele € absolutamente Unico em termos de toda a escultura medieval portuguesa, assumindo sozinho essa tematica que, 20 con trario da Europa, quer @ arquitectura roménica quer a arquitectura gotica em Portugal Aunca souberam ou quiseram explorar, a Roda da Vida/Roda da Fortuna é ainda mais excepcional, porque, representada num tamulo, em forma de rosécea e com a dimen- So autobiogréfica da tragédia de D. Pedro e de D. Inés de Castro, ndo existe nenhum outro caso portugués ou europeu que se Ihe possa comparar. «Por tudo isto» - como afirma Carlos Alberto Ferreira de Almeida — «a rosacea do tamulo de D. Pedro é uma preciosa fonte monumental para a historia e cultura do seu tempo e, no seu género, uma realizado sem par em toda a Europas"® 2 Femio Lopes, ob. ct, pp. 200 203 * Cars Albena Fee de Amita 0. ct 263, 274 (08 TEMLLOS DE D, PEDRO E DE D. IES, EM ALCOBAGA Fig. 5 ~ Témulo de D. Inés: Bejo de Judas 276

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