BLANCHOT, M. A Comunidade Inconfessável PDF

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serd que isso quer dizer que cla ndo se confessa, ou entio que ela é tal que no hé confiss6es que a revelam, jd que, cada vex. que se falou de sua mancira de ser pressente-se que ‘no se apreendeu dela sendo aquilo que a fax existir por auséncia? Entio, melhor teria valido se calar? Melhor valeria, sem pér em valor seus tragns paradoxais, vivé-la naquilo que a corna contemporanca de um passado que jamais péde ter sido vivido? O preceito de ‘Winrgenstein célebre demais ¢ reiterado demais, “é preciso calar aquilo do qual néo se pode falar", indica justamente que, jé que ele néo péde, a0 enuncié-lo, se impor o siléncio a si mesmo, ¢ que, em definitivo, para se calar, € preciso falar. Mas com que espécie de palavras? Eis aqui uma das questées que este pequeno livro conta @ outros, menos para que cles respondam a ela do que para que eles queiram justamente porti-la e talvez. prolongé-la. Assim descobriremos que ela tem também um sentido politico compelente e que ela no nos permite nos desinreressar do tempo presente, 0 qual, abrindo espagos de liberdades desconhecidos, nos torna responsiveis por relagdes novas, sempre ameacadas, sempre esperadas, entre aquilo que chamamos de obra c aquilo que chamamos de desobramento. ISBN 978.85.030-1039.3 VM 0 88523 Eeltore UnB Equipe ediorial Coord. de predusio gifia | — Marcus Polo Rocha Duarce Revisio | Jupira Correa Supervisto grifca Flmano Rodrigues Pinheiro ¢ Luiz AR Ribeito Editora Lame Colaborarom were edigéo Francisco dos Santos (Edigio/projeo grifico/capa) Eleonora Redondo (Reviséo) ‘Amanda Mendes Casal e Daniel de Oliveira Gomes (Revisio técnica) © Lesion de Mite, 1985, (© Ein Cree de Bri, 2012. TTndos os ivcinas tesrvados. Nenhuma parte dese publicagio poder ser armazenida ou sprouca poe |qualquet mo sem aurrinsco por srt dos editors ‘Editors Universidade de Basa SCS, quadra2,bloca C, n° 78, Efcio OK, 2° andar, CEP 70302907, Brasilia, DF Telefonc: (61) 3035-4200, Fax: (61) 3035-4230 ‘womeditora.anb.br | conageditoriunb.be ont Faltora Lurame Rus Alves Sabra, 6-61, Cep 17060000, Bauns, SP ‘wowlummeedicor.com | info@lammecdicoreom MAURICE BLANCHOT Pye WA Aid A COMUNIDADE INCONFESSAVEL Viadugdo de Belair Antonio Almeida Filho it M4 UnB uulo original La Communauté inaonable Ficha catalogrifica claborada pela Biblioteca Canora da Universidade de Brain 642 Blanchos, Manic ‘A comunidade inconfessivel / Mauice Blanchot ; raducio de: Fulair Antnio Almeida Filho. _ Brasilia: Editora Universidade de Brasla Sao Paulo: Lamme Edicor, 2013, 84p.5155x22cm, “Tradugio de: La communaueé inavouable, Incl bibliog ISBN 978.85-230-1039-3 1, Comunidade. 2. Comunicagéo. 3. Desdobramenca. 4, Comanismo.5. Politica. 6. Amor. 7. Amizade. I. Blanchot, Maurice. 1. Tel, cpu 10144) Inpro no Brasil SUMARIO 1A COMUNIDADE NEGATIVA Comunisina, eomuridade nae 2 Aciggncia comunicvise Georges Batlle en B Porque “comunidads?. B (© prinipin de incomplenude Comunbia? Amorwede outrem © proximo do morrene. Comunidade edesobramento (Comunidade e xtita ‘A comunidade de Asiphale Stoica e abandon sow A experiéncia inctiot A parha do sepedo comunidad litera (© coragio ou ale A. COMUNIDADE DOS AMANTES Mitio de 68 ao Presenga do pov (© mando dos amances. Adoenga da morte. Erica eamor nee “istic loka... (Ocal moral Comunidade aici, comunidade elesva Adestrvigio da sociedade, pata. Osheolutamentefeminino A inconfessivel comunidade A COMUNIDADE NEGATIVA’ A comunidade dos que néo tem comunidade GB? A partir de um texto importante de Jean-Luc Nancy, gostaria de retomar uma reflexio jamais interrompida, mas que se expressa somente cada vez mais espagadamente, sobre a exigéncia comunista, sobre as relagbes dessa exigencia coma possibilidade ou a impossibilidade de uma comunidade, em um tempo que parece ter perdido até a compreensio disso (mas a comunidade nao esta fora do entendimento?), eafim, sobre a auséncia de linguagem que tais palavras, comunisma, comunidade, parecem incluir, se pressentimos que clas portam uma coisa totalmente outra que aquilo que pode set comum dueles que pretenderiam pertencer a um conjunto, a um grupo, a um conselho, a um coletivo, mesmo que fosse defendendo-se de fazer parte deles, sob qualquer forma que seja.? A COMUNIDAD INLUMEESSAVEE COMUNISMO, COMUNIDADE Comunismo, comunidade: taistermos sio justamente termos, na medida em que a histéria, as grandiosas esperancas frustradas da hist6ria nos fazem conhecé-los sob 0 fundo de desastre que vai bem além da ruina. Conceitos desonrados ou traidos isso nfo existe, mas conceitos que nao sfo “conveniences” sem seu prdprio-impréprio abandono (que nao é uma simples negagio), eis 0 que no nos permite recusé-los ou rejeiti-los tranguilamente. O que quer que queiramos, estamos ligados a cles precisamente por sua defecsio, Ao escrever iss0, leio essas linhas de Edgar Morin que muitos dentre nds poderiamos acolher: “O comunismo é a questio maior e a experiéncia principal da minha vida. Nao deixei de me reconhecer nas aspiracbes que ele expressa, e acredito sempre na possibilidade de uma outra sociedade e de uma outra humanidade” * Esta afirmagio simples pode parecer ingénua, mas em sua retidao ela nos diz aquilo a que nao podemos nos subtrair: por qué? © que se da cam esta possibilidade que ¢ cempre engajada ce uma maneia ou de outta em sua impossibilidade? © comunismo, se ele diz que a igualdade é seu fundamento, e que néo hé comunidade enquanto as neces dades de todos os homens no forem igualmente satisfeitas (exigencia em si mesma minima), supée nao uma sociedade perfeita, mas o principio de uma humanidade transparente, produzida essencialmente s6 por ela, “imanente” (diz Jean-Luc Nancy): imanéncia do homem ao homem, aquilo que designa também o homem como ser absolutamente imanente, porque ele € ou deve vir a ser tal que ele seja inteiramente obra, sua MAURICE BLANCHOT obra, ¢ finalmente a obra de sudo; nao ha nada que nio dleva ser esbogado por ele, diz Herder: da humanidade até a natureza (c até Deus). Nada resta, no limite. E a origem aparentemente si do toralitarismo mais insano. Ora, esta exigéncia de uma imanéncia absoluta tem por correspondente a dissolugio de tudo aquilo que impediria o homem (jé que ele é a sua propria igualdade e sua determi- nagao) de se por como pura realidade individual, tanto mais fechada quanto ela € aberta a todos. O individu afirma para si, com seus direitos inalicnaveis, sua recusa de ter outra origem que si, sua indiferenca a toda dependéncia teérica frente a um outro que nio seria um individuo como ele, quer dizer, ele mesmo, indefinidamente repetido, quer seja no passado ou no porvir~ assim mortal e imorcal: mortal em sua impossbilidade de se perpetuar sem se alienar. Imorcal, j4 que sua individua- lidade € a vida imanente, que no tem nela mesma termo (de ‘onde a irrefutabilidade de um Stimner e de um Sade, reduzidos a alguns de seus principios). AEXIGENCIA COMUNITARIA: GEORGES BATAILLE Essa reciprocidade do comunismo ¢ do individua- lismo, denunciada pelos defensores mais austeros da reflexio contra-revolucionaria (de Maistre, etc.), e também por Mars, nos conduz a por em causa a nogio mesma de reciprocidade, Mas se a relagio do homem com o homem cessa de ser relagao do Mesmo com 0 Mesmo, mas introduz 0 Outro como 4 COMUNIDADE INCONFESSAVEL iredutivel e, em sua igualdade, scmpre em dissimettia a respeito daquele que a considera, é uma espécie de relacio totalmente outra que se impée, e que impoe uma outra forma de sociedade que dificilmente se ousaré nomeat de “comuni- dade”, Ou se accitars chamé-la assim, perguntando-se 0 que esti em jogo no pensamento de uma comunidade, ¢ se esta, quer ela tenha existido ou nfo, néo pée sempre no fim a auséncia de cominidade. Aquila que precisamente aconteccn com Georges Bataille, que depois de ter durante mais de uma década tentado, em pensamento e em realidade, o cumpri- mento da exigéncia comunitéria, nao se reencontrou sé (66 de toda maneira, mas em uma solido compartilhada), mas exposto a uma comunidade de auséncia, sempre pronta 2 se mutar em auséncia de comunidade. “O perfeito desregra- mento (0 abandono & auséncia de limites) é a regra de uma causéncia de comunidade”. Ou ainda: “Nao é permitido a quem quer que seja nao pertencer’3 minha auséneia de comunidade’. (Citagées tomadas emprestadas da revista Contre toute attent). Retenhamos, pelo menos, o paradoxo que introduz aqui o pro- home possessiva “minha”: como a auséncia de comunidade poderia permanecer minha, a menos que ela seja “minha”, como insistitia em sé-lo a minha morte, que néo pode senio arruinar todo pertencimento a quem quer que scja, a0 mesmo tempo que a possibilidade de uma sempre minha apropriagio? Nao retomarei o estudo de Jean-Luc Nancy quando ele mostra em Bataille aquele “que sem dévida esteve o mais Jonge na experiéncia crucial do destino moderno da comuni- dade’: toda repetigdo enfraqueceria ~ simplificando-o — um caminhamento de pensamento que as citagdes de texto podem modifica, até mesmo subverter. Mas néo se deve, entretanto, MAURICE BLANCHOT perder de vista que ninguém saberia ser fiel a um tal pensa- mento se néo coma encargo de sua propria infidelidade ou de uma mutagio necessdria que o obrigou, a0 mesmo tempo que permaneceu ele mesmo, a néo cessar de ser outro, € desenvolver outras exigéncias que, respondendo seja as modi- ficagées da histéria, seja ao esgotamento de cais experiéncias que ndo querem se repetit, repugnavam a se unificar. E certo que (aproximadamemt), de 1930 1940, a palavra “comuni- dade” se impée & sua busca mais do que nos perfodes que seguirdo, mesmo que a publicacio de A Parte Maldiea e mais tarde de O Erotismo (que privilegia uma certa forma de comunicagéo) prolongue temas quase anslogos que nao se deixam subordinar (haveria outro, também: o texto inacabado sobre A Soberania, 0 texto inacabado sobre A Teoria da Religido). Pode-se dizer que a exigéncia politica jamais esteve ausente de seu pensamento, mas que ela toma formas diferen- tes segundo a urgéncia interior ou exterior. As primeiras linhas d'O Culpado (Le coupable) 0 dizem sem rodeios. Esctevet sob a presséo da guerra no é escrever sobre a guerra, mas em seu horizonte, won se els fuse 4 Uumpanheira com a qual alguém compartilha seu leto (admitindo que ela nos deixe um lugar, uma margem de liberdade). POR QUE “COMUNIDADE” Por que este apelo a “comunidade”? Enumero ao acaso 65 elementos daquilo que foi nossa histéria. Os grupos (dos quais 0 grupo surrealista € 0 protétipo amado ou execrado); A COMUMIDADE INCONFESSAVEL as miiltiplas assembleias em tomno de ideias que nao existem ainda ¢ em toro de pessoas dominantes que existem em ddemasia: antes de tudo, a lembranga dos sovietes, 0 pressenti- mento daquilo que é j4 0 fascismo, mas cujo sentido, assim como o devir, escapam aos conceites em uso, pondo 0 pensamento na obrigagio de reduzi-lo aquilo que ele tem de baixo ¢ de miserével, ou, a contririo, indicando que ha af algo de importante ¢ de surpiccudeite que, nao sendo bem pensado, corre o risco de ser mal combatido — enfitm (e isso poderia ter vindo em primeizo lugar), os trabalhos de socio- logia que fascinam Bataille e que the dio desde o inicio um conhecimento, ao mesmo tempo que uma nostalgia (rapida- mente reprimida), de modos de ser comunitarios dos quais nao se saberia negligenciar a impossibilidade de nao serem jamais reproduzidos na tentacio mesma que eles nos oferecem. © PRINCIPIO DE INCOMPLETUDE Repito, para Bataille, a interrogacéo: por que “comu- nidade”? A resposta é dada de modo bastante claro: “Na base de cada ser existe um principio de insuficiéncia...” (principio de incompletude). E um prinefpio, notemo-lo bem, isso que comanda e otdena a possibilidade de um set. Donde resulta que essa falta por prinefpio no anda ao lado de uma necessi- dade de completude, O ser, insuficiente, néo busca se associar um outro ser para formar uma substancia de integridade. A consciéncia da insuficiéncia vem de sua prépria colocagio em questo, a qual tem necessidade do outro ou de um MAURICE BLANCHOT. ‘outto para ser eferuada. Sozinho, o ser se fecha, adormece «se tranquiliza, Ou ele € sozinho, ou ele nao se sabe sozinho Auinio ser se cle nao o €. A substincia de cada ser & contestada por cada outro sem repouso, Mesmo o olhar que exprime © amor ea admiragéo se liga a mim como uma diivida que toca A realidade”. “O que eu penso, eu nao 0 pensei sozinho”. H4 af uma intricacio de motivos dissemelhantes que justi- ficaria uma andlise, mas que tem sua forga numa miswura confusa de diferencas associadas. E como se fossem pressionados na portinhola pensamentos que no podem ser pensados sero em conjunto, enquanto sua multitude lhes impede a pa wgem. O ser busca, nfo ser reconhecido, mas ser contestad cle vai, para existir, em direcéo 20 outro que o contesta € por vezes © nega, a fim de que ele no comece a ser sendo hnessa privagéo que o torna consciente (esté af a origem de sua conscincia) da impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir ‘como ipse, ou caso se queira, como individuo separado: assim, talvez, ele ex-istir-4, provando-se como exterioridade sempre prévia, ou como existéncia de parte 4 parte estilhagada, nao se compondo senio a0 se decompor constante, violenta ¢ silenciosamente. Assim, a existencia de cada ser chama o outro, ou uma pluralidade de outros (pois é como uma deflagracéo em cadeia ‘que tem necessidade de um certo mimero de elementos para se produair, mas que correria o risco, se esse niimero nao fosse dleterminado, de se perder no infinito, A maneira do universo, © qual cle mesmo s6 se compée ao se ilimitar numa infi- nidade de universos). Ele faz apclo, desse modo, a uma comunidade: comunidade finita, pois que ela tem, por sca turno, seu principio na finirude dos seres que a compéem, © A COMUNIDADE INCONFESSAVEL que nao suportariam que esta (a comunidade) se esquecesse de levar 20 mais elevado grau de tensio a finisude que os constitu. Aqui, nés nos encontramos as voltas com dificuldades pouco cOmodas de amestrar. A comunidade — quer seja numerosa ou nao (mas, cedrica e historicamente, s6 hd comu- nidade de um pequeno mimero ~ comunidade de monges, comunidade hassidica (e os kibutzim), comunidade de eruditos, comunidade com vistas 4 “comunidade”, ou entio, comunidade dos amantes) ~ parece se ofrecer como tendéncia a.uma comunhdo, acé mesmo a uma fusto, quer dizer, a uma cefervescéncia que apenas reuniria os elementos para dar lugar a uma unidade, uma supraindividualidade que se exporia as mesmas objegdes que a simples consideragio de um tinico individuo, enclausurado em sua imanéncia. COMUNHAO? Que a comunidade possa se abrir 4 sua comunhao (isto & com certeza, simbolizado por toda comunhio eucaristica), € 0 que indicam exemplos disparatados. Grupo sob fasci- nagio, atestado pelo sinistro suicidio coletivo da Guiana; grupo em fusio, assim nomeado por Sartre ¢ analisado na Critica da Razdo Dialética (haveria muito a dizer sobre esta oposigio simples demais de duas formas de socialidade a série (0 individuo como numero), a fusdo: consciéncia de liberdades que nao € tal a néo ser que ela se perca ou se exalte em um conjunto em movimento); grupo militar ou fascista MAURICE BLANCHOT em que cada membro do grupo transfere sua liberdade ow mesmo sua consciéncia a uma Cabeca que 0 encarna e nao se ‘expoe para ser cortada, porque ela esté por definigéo acima de qualquer aleano E chocante que Georges Bataille, cujo nome significa, para muitos de seus longinquos leitores, mistica do éxtase ‘ou busca laica de uma experiéncia extitica, exelua (postas & parte algumas frases ambiguas)? “o cumprimento fusional ‘em qualquer hipéstase coletiva” (Jean-Luc Nancy). Isso lhe repugna profundamente. E necessario jamais esquecer que conta menos para cle o estado de arrebatamento em que se esquece tudo (ca si mesmo) do que o caminhamento exigente que se afirma pela colocagio em jogo e pela colocagao fora dela da existéncia insuficiente e que nio pode renunciar a essa insuficiéncia, movimento que arrufna tanto a imanéncia quanto as formas habituais da transcendéncia (reenvio, sobre ‘esse assunto, aos textos publicados em A conversa infinita). Portanto (um “portanto” ripido demais, admito), a comunidade néo tem de se extasiar nem dissolver os clementos que a compéem em uma unidade supra-clevada que se suprimiria a si mesma, ao mesmo tempo que cla se anularis como comunidade. A comunidade nao é, no entanto, a sim- ples colocacéo em comum, nos limites que ela tracaria para si, de uma vontade partilhada de ser virios, mesmo que fosse para nada fazer, quer dizer, nada fazer além de manter a partilha de “alguma coisa” que precisamente parece sempre jd ter-se subtraido & possibilidade de ser considerada como parte a uma partilha: palavra, siléncio. Quando Georges Bataille evoca um principio de insuficiéncia, “base de todo set”, nés acreditamos compreender A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 20 sem dificuldade aquilo que ele diz. £, no entanto, dificil entender, Insuficiente em relagéo a qué? Insuficiente para subsistir? Nao é evidentemente isso. que esté em causa. A entreajuda egoista © generosa que se constata também nas sociedades animais néo ¢ suficiente mesmo para fundar a consideracdo de uma simples coexisténcia gregaria. A vida em tropa talvez seja hicrarquizada, mas, nessa submisséo 4 um ou ao outro, permanece a uniformidade que jamais sc singularizou, A insuficiéncia nio se conclui a partir de um modelo de suficiéncia. Ela nfo busca aquilo que poria um fim a isso, mas, antes, o excesso de uma falta que se aprofunda A medida que ele vi se preenchendo. Sem diivida, a insufl- ciéncia chama a contestagéo que, mesmo que viesse s6 de mim, € sempre a exposigfo a um outro (ou a0 outro), tinico capaz, por sua posizéo mesma, de me colocar em jogo. Se a existéncia humana é a existéncia que se coloca radical ¢ constantemente em questio, cla no pode manter por si s6 essa possibilidade que a ultrapassa; caso contrétio faltaria sempre uma questio & questo (a autocritica ¢ evidentemente apenas arecusa & critica do outro, uma mancira de scr autossuficicute no reservat-se 0 direito & insuficiéncia, 0 rebaixamento diante de si que assim se supra-cleva).® AMORTE DE OUTREM © que é pois, que me coloca o mais radicalmente fem causa? Nao minha relagSo comigo mesmo como finito ‘ou como consciéncia de ser na morte ou para a morte, mas MAURICE BLANCHOT a minha prescnga para outrem enquanto este se ausenta morrendo. Mancer-me presente na proximidade de outrem que se distancia definitivamente morrendo, tomar sobre mim 1 morte de outrem como a tinica morte que me concerne, eis que me pée para fora de mim e é a tinica separagao que pode ime abrir, em sua impossibilidade, a0 Aberto de uma comuni- lade. Georges Bataille: “Se ele vé seu semelhante morrer, um pode tnais subsistis sensu fora ele sf. A conversa muda que, segurando a méo “de outrem que morse”, “eu” prossigo com ele, eu nao a prossigo simplesmente para ajudé-lo a mor- rer, mas para compartilhar a solidéo do evento que parece sua possibilidade mais prépria e sua possessio incompartilhavel, nna medida em que ela o despossui radicalmente. “Sim, & verdadeiro (por qual verdade?), tu morres. Sé que, morrendo, tu nio te distancias somente, tu estés ainda presente, pois cis que tu me concedes esse morter como 0 acordo que passa além de toda pena, e onde eu me arrepio docemente naquilo que dilacera, perdendo a palavra contigo, morrendo contigo sem ti, me deixando morrer em teu lugar, recebendo esse dom para aléus de Ge de min”, Au qué hé essa resposta: “Na iluséo que te faz viver enquanto eu morro”. Ao qué hd esta resposta: “Na ilusio que te faz morrer enquanto tu morres”. (Le pas au-dela). O PROXIMO DO MORRENTE, Eis o que funda a comunidade. Nao seria possivel haver comunidade se nao fosse comum o evento primeiro € liltimo que em cada um cessa de poder sé-lo (nascimento, A COMUNIDADE INCONFESSAVEL morte). A que pretende a comunidade em sua obstinagio a nfo guardar “de tie de mim” senio relagbes de assimetria que suspendem 0 tracamento pessoal informal? Por que a relagio de transcendéncia que se introduz com ela desloca a autoridade, a unidade, a interioridade, confrontando-as com a exigéncia do fora que é sua regio nao dirigente? O que diz cla se ela se deixa ir falar a partir de seus limiees, repetindo o seu discursn sohre « marrer: “Nio se motre sozinho ese ¢ tio humanamence necessétio ser 0 préximo daquele que morre — 6 ainda que de maneira derris6ria, para compartlhar os papéis e reter sob scu pendor, pela mais doce das interdi¢bes, aquele que morrendo se choca com a impossibilidade de morrer no presence. Nao morras agora; que nao haja agora para motte. “Nao”, (iltima palavra, a proibic4o que se torna lamento, 0 nnegativo balbuciando: no ~ cu morrerés” (Le pas au-delA). © que nao quer dizer que a comunidade assegure uma espécie de néo-mortalidade, Como se tivesse sido dito ingenuamente: nfo morro, jé que a comunidade de qual faco parte (ou a patria, ou 0 universo, ou a humanidade, ou a familia) continna F, antes, quase exacamente 0 conteirio, Jean-Luc Nancy: “A comunidade nao tece 0 lago de uma vida superior, imorcal ou transmortal, entre sujeitos... Ela € constitutivamente... ordenada & morte daqueles que se chama, talyez de maneira errénea, de seus membros". De fato, “membro” remete a uma unidade suficiemte (0 individuo) que se associaria segundo um contrato, ou entéo, pela necessidade das caréncias, ou ainda, pelo reconhecimento de um paren- tesco de sangue ou de raca, até mesmo de etnia, MAURICE BLANCHOT COMUNIDADE E DESOBRAMENTO Ordenada morte, a comunidade “nio é na morte ordenada assim como & sua obra’. Ela “ndo opera a trans- figuragao de scus mortos em qualquer substincia ou qualquer sueito que seja— patria, solo natal, nacfo... falanstério absoluto ‘ou corpo mistico...”, Passo algumas frases no entanto essen- cialis, € chego a esta afirmagao que é para mim a mais decisiva: a comunidade € revelada pela morte de outrem, € porque a morte € ela mesma a verdadeira comunidade dos seres mortais: sua comunhao impossivel. A comunidade ocupa, portanto, esse lugar singular: ela assume a impossibilidade de sua prépria imanéncia, 2 impossibilidade de um ser comu- nititio como sujeito. A comunidade assume ¢ inscreve de alguma maneita a impossibilidade da comunidade... Uma comunidade é a apresentacio a seus “membros” de sua verdade mortal (é 6 mesmo que dizer que nao hé comunidade formada de seres imortais...). Ela é a apresentagao da finitude ¢ do ‘excesso sem retorno a qual funda o ser-finito”. Hi dois tragos essenciais neste momento da reflexao: 1) A comunidade nio é uma forma restrita da sociedade, tanto quanto ela nao tende a fusdo comunial; 2) A diferenga de uma célula social, ela se interdita de fazer obra ¢ no tem por fim nenhum valor de produgéo. Para que ela serve? Para nada, sendo para tornar presente o servigo a outrem até na morte, para que outrem nao se perca solitariamente, mas nela se encontre suplenciado, ao mesmo tempo que traga a um outro esta supléncia que Ihe é fornecida. A substituicao mortal é aquilo que toma o lugar da comunhao. Quando Georges A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 4 Bataille escreve: “E necessitio & vida comum manter-se 4 altura da morte. A sina de um grande ntimero de vidas priva- das é a pequenez. Mas uma comunidade 56 pode durar no nivel de intensidade da morte, ela se decompée desde que falte & grandeza particular do perigo”; podemos desejar por a parte alguns desses termos em sua conotagio (grandeza, aleura), pois a comunidade que nao € comunidade de deuses nao 0 € avs de herdis, nem de soberanos (como acontece em Sade, em que a busca do gozo excessivo nao tem 4 morte por limite, j4 que a morte dada ou recebida perf 0 g070, do mesmo modo que ela cumpre a soberania, fechando sobre Sade mesmo o Sujeito que nela se exalta soberanamente). COMUNIDADE E ESCRITURA ‘A comunidade ndo &0 lugar da Soberania. Ela éaquilo que expée ao se expor. Ela inclui a exterioridade de ser que acxclui, Eatcrivridade que o pensamento no amestra, mes- mo que the desse nomes variados: a morte, a relagio com ‘outtem, ou ainda, a palavra, quando esta nao ¢ redobrada em ‘maneiras falantes e assim néo permite nenhuma relacéo (de identidade nem de alteridade) consigo mesma. A comunidade, enquanto rege para cada um, para mim e para cla um fora- de-si (sua auséncia) que é seu destino, di lugar a uma palavra sem partilha ¢, no entanto, necessariamente miilkipla, de tal sorte que ela ndo possa se desenvolver em palavras: sempre jé perdidla, sem uso e sem obra e nao se magnificando nessa perda mesma. Assim, dom de palavra, dom em “pura’ perda que nao MAURICE BLANCHOT Fly assegurar a certeza de ser jamais acolhide pelo outro, que outrem rorne s6 possivel, sendo a palavra, ao menos leaglo falar que carrega com ela o risco de ser rejeitada Wiada ou nao recebida, ‘Assim pressente-se que a comunidade, no sex fracasso weno, tem parce ligada com uma certa espécie de escritura, ‘ijuiela que nao tem nada além a buscar do que as palavras . vem, vinde, vés ou tu ao qual néo saberiam ‘eonvira injungio, a oracao, a suiplica, a espera”.” Se fosse permitido — isso nao 0 & quero dizer que os Ineios me faltam — seguir 0 encaminhamento de Georges Bataille nessa evocagéo da comunidade, nés reencontrariamos ‘sas tapas: 1) Busca de uma comunidade, ou seja, que el exisea como grupo (nesse caso sua aceitagao é ligada a uma recusa 104 rejeicéo igual): 0 grupo surtealista, do qual codas as indivi- ualidades “desagradam”, permanece sendo uma tentativa ouivel em sua insuficiéncia: pertencer a ele é quase imediata- nente, formando um contra-grupo, renunciar a ele violenta- mente; 2) “Contre-Attaque” é um outro grupo, do qual seria preciso estuda dinuciosamente aquilo que torava sua lurgéncia tal que ele no podia subsistir sendo na luta, mais do {que por sua existéncia inativa. Ele nao é de alguma maneira senio na rua (prefiguragio de maio de 68), quer dizer, no fora. File se afirma por panfletos que voam e no deixam rastro. Ele dvixa se afixar “programas” politicos enquanto aquilo que 6 funda é antes, uma insurreigio de pensamento, resposta Licita e implicita 8 supra-filosofia que conduz Heidegger a nto ‘ge recusar (momentaneamente) ao Nacional-Socialismo, a ver hicle a confirmacdo da esperanga de que a Alemanha saberé suceder & Grécia em seu destino filoséfico predominantes A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 3) “Acéphale’. F, creio, © tinico grupo que contow para Georges Bataille e do qual ele guardou, para além dos anos, a Iembranca como de uma possibilidade extrema. “O Colégio de Sociologia", por mais importante que tenha sido, nao foi de maneira algumna a manifestagio exotérica disto: este fazia apelo a um saber frigil, nao engajava seus membros, como seu auditério, sendo para um trabalho de reflexo e de conhe- cimento sobre temas que as insticuig6es oficiais parcialmente negligenciavam, mas que néo eram incompativeis com elas. Ainda mais porque os mestres dessas instivuigdes tinham sido, sob diversas formas, os iniciadores disso. ACOMUNIDADE DE ACEPHALE “Acéphale” permanece ligado a seu mistério. Aqueles que desse grupo participaram nao estio seguros de cerem tomado parte nele. Eles no falaram, ou os herdeitos de sua palavra so obrigados a uma reserva ainda firmemente mantida. Os textos que foram publicados sob esse titulo nao extraem dele o alcance, exceto algumas frases que muito tempo ‘mais tarde abalavam ainda aqueles que as tinham escrito, Cada membro da comunidade nao é somente toda a comunidade, ‘mas a encarnagéo violenta, dispar, estilhagada, impotente, do conjunto dos seres que, tendendo a existirintegealmente, tém por coroldtio o Nada onde eles ja de antemao cafram. ‘Cada membro forma grupo apenas pelo absoluto da separa- ‘cao que tem necessidade de se afirmar para se romper até vir a ser relagio, relagio paradoxal, até mesmo insensata, MAURICE BLANCHOT se hi telagdo absoluta com outros absolutos que excluem toda © “segredo”, enfim — que notifica essa separacio — no deve ser buscado diretamente na floresta onde deveria ter se cumprido 0 sactificio de uma vitima que consente, prestes a receber'a morte daquele que néo podia lhe dar essa morte ano ser morrendo. E facil demais evocar Os Passuédos e as peripécias dramticas a0 longo das quais, para cimentar 0 grupo dos conjurados, a saponsabilidade de um assassinate cometido por um sé era destinada a encadear uns aos outros aqueles que nantinham seu ego na perseguicio de um fim revolucionério comum a todos ¢ em que todos deveriam ter se fundido em um. Parédia de um sactificio posto em obra nao para destruir lima certa ordem opressora mas para reconduzir a destruigio 4. uma outta ordem de opresséo. ‘A comunidade de Ariphale, na medida em que cada membro portava néo mais a tinica responsabilidade do grupo, mas aexisténcia da humanidade integral, nfo podia se cumprir ‘em s6 dois de seus membros, ja que todos tinham nela uma parce igual c total, ese sentiam obrigados, como em Massada, a se precipivar uo Nala que a comunidad néo encamava menos, Isso era absurdo? Sim, mas no somente, pois era rom- per com a lei do grupo, aquela que o tinha constituido ‘expondo-o Aquilo que o transcendia sem que essa transcendéncia pudesse ser oura que aquela do grupo, o fora que era a inti- midade da singularidade do grupo. Dito de outra maneira, a comunidade, a0 cla mesma organizar e ao se dar por projeto a execugio de uma morte sacrificial, teria renunciado & sta remincia de fazer obnas mesmo que esta fosse obra de morte, até mesmo simulagéo da morte. A impossibilidade da morte ha sua possibilidade mais nua (a faca para cortar a garganta 4 COMUNIDADE INCONFESSAVEL 2% da vitima que cortava no mesmo movimento a cabeca do “carrasco”) suspendia até o fim dos tempos a acio ilicita em que se teria firmado a exaltagao da passividade mais passiva. SACRIFICIO E ABANDONO, Sactficio: nogdo obsessiva para Georges Bataille, mas ccujo sentido seria enganador se ndo deslizasse constantemente da interpretagio histérica ereligiosa & exigencia infinita & qual ele se expe naquilo que o abre aos outros ¢ o separa violenta- mente de si mesmo. © sacrificio atravessa Madame Edvwarda, mas néo se expressa nela. Na Teoria da Religido afirma-se: “Sacrificar ndo & matar, mas abandonar ¢ doar”. Ligar-se a Acéphale € abandonar-se e doar-se: Doar-se sem retorno ao abandono sem limites Bis o sactficio que funda a comunidade desfazendo-a, entregando-a ao tempo dispensador que nao autoriza nem a ela, nem Aqueles que se dio a ela, a nenhuma forma de presenga, e remetendo-os assim & solidao que, lumye de protegé-los, os dispersa ou se dissipa sem que cles se reen- ‘contrem a si mesmos ou em conjunto. Q dom ou 0 abandono é tal que no limie nao hé nada a doar nem nada a abandonar, € 0 tempo mesmo é somente uma das maneiras pelas quais esse nada a doar se oferece ¢ se retira como 0 capricho do absoluro que sai desi, dando lugar a outro que si, soba espécie de ‘uma auséncia, Auséncia que, de uma maneira resttita, se aplica A comunidade da qual ela seria o (inico segredo, evidentemente inapreensivel. A auséncia de comunidade nao ¢ 0 fracasso da comunidade: ela lhe pertence assim como a seu momento MAURICE BLANCHOT extremo ou assim como A prova que a expoe ao seu desapare- cimento necessitio, Acéphale foi a experiéncia comum daquilo que nao podia ser posto cm comum, nem guardado como proprio, nem reservado para um abandono ulterior. Os mon- {ges se despojam daquilo que tém, ¢ se despojam de si mesmos para assim fazer parte da comunidade a partir da qual eles voltam a ser posstidores de tudo, sob a garantia de Deus; do mesiny inode 0 Aibatz; do mesmo modo as formas reais ‘ou utépicas do comunismo. A comunidade de Acéphale nio podia existir como tal, mas somente como a iminéncia e «retirada: a iminéncia de uma morte mais préxima que toda proximidade; retirada prévia daquilo que nao permitia que hhinguém se retirasse dela. A privagio da Cabega nao excluia, portanto, somente o primado daquilo que a cabega simboli- zava, 0 chefe, a razio razoavel, célculo, a medida e o poder - inclusive o poder do simbélico -, mas a exclusio, ela mesma entendida como um ato deliberado e soberano, que teria restaurado a primazia sob a forma de sua decadéncia. A deca- pitagio que devia tornar possfvel “o desencadeamento sem fim [sein Ici] das paixécs”, s6 podia sc cumprir pelas paixdes ja desencadeadas, clas mesmas se afirmando na inconfessivel comunidade que sua propria dissolugio sancionava.? A EXPERIENCIA INTERIOR, Acéphale pertencia, assim, antes de ser € na impossi- bilidade de ser jamais, a um desastre que ndo somente 0 ultrapassava ¢ ultrapassava 0 universo que ele era destinado A COMUNIDADE INCONFESSAVEL » a representar, mas transcendia toda nomeagéo de uma transcendéncia. Certamente, pode parecer pueril apelar as “paixdes desencadeadas”, como se elas estivessem de antemio disponiveis ¢ dadas (de modo abstrato) a quem se oferecesse a clas. © tinico “elemento emocional”, capaz de ser compar- tilhado escapando & partilha, permanece sendo o valor obsessive da iminéncia mortal, quer dizer, do tempo que faz fulgurar cm estilhasos a existéucia ¢ a liber extaticumente de tudo aquilo que nela permaneceria de servil, A ilusio de Acéphale é, portanto, a do abandono vivido em comum, abandono dae & angistia tiltima que doa o éxtase, A motte, morte do outro, da mesma manera que a amizade e amor, liberam o espago da intimidade e da interioridade que nao é jamais (em Georges Bataille) aquela de um sujeito, mas 0 deslizamento para fora dos limites. “A experiéncia interior” diz assim 0 contricio do que parece dizer: movimento de contes- tagdo que, vindo do sujeito, o devasta, mas tem por mais profunda origem a relacio com o outro que ¢ a comunidade ‘mesma, a qual nio seria nada se néo abrisse aquele que se cexpéc a cla, & infinidade da alteridade, aw micsuio cempo que the determina sua inexoravel firfitude, A comunidade, comunidade de iguais, que os pde & prova de uma desigual- dade desconhecida, é tal que ela nfo os subordina uns aos outros, mas os torna acessiveis aquilo que ha de inacessivel nessa nova relagio de responsabilidade (de soberania?). Mesmo que @ comunidade exclua a imediatidade que afirmaria a perda de cada um no esvanecimento da comunhio, ela propbe ‘ou impée o conhecimento (a experiéncia, Exfabrung) daquilo que néo pode ser conhecido: esse “fora-de-si” (ou o fora) que €abismo e éxtase, sem cessar de ser uma relagéo singular. ‘MAURICE BLANCHOT Seria evidentemente tentador e falacioso buscar, N'A Experiéncia Interior, a supléncia © 0 prolongamento lo que ndo podia ter tido lugar, mesmo que fosse como tentativa, na comunidade de Acéphale. Mas o que estava la ‘em jogo exigiu se recomar sob a forma paradoxal de um livro. De una cerca maneira, a instabilidade da iluminacio tinha necessidade, antes mesmo de ser transmitida, de se expor a ‘outros, ndo para neles atingir uma certa realidade objetiva (o que a teria imediatamente desnaturado), mas para nela se vefletir ao se compartilhar nela e nela se deixar contestar (quer dizer, enunciada de outra forma, até mesmo denunciada de acordo com a recusa que ela porta em si). Assim, a exigéncia de uma comunidade continuava permanecendo. Em si s6, 6 éxtase nao seria nada se ele no se comunicasse e no inicio ino se desse como o fundo sem fundo da comunicagio. Georges Bataille sempre sustentou que A Experiéneia Interior néo podia ter lugar se ela se limicasse a um s6 que teria bastado para portar-the o evento, a desgraca ¢ a gloria: ela se cumpre, a0 mesmo tempo que persevera na incompletude, quando se compartlha e, nessa partilha, expée seus limites, se expe nos limites que ela se propée transgredir, como que para fazer surgit, por meio dessa transgressio, a ilusio ou a afirmagio do absoluto de uma lei que se esquiva a quem pretendesse trans- gredi-la sozinbo. Lei que pressupée, portanto, uma comuni- dade (um entendimento ou um acordo comum, mesmo que fosse aquele, momentaneo, de dois seres singulares, rompendo por poucas palavras a impossibilidade do Dizer que 0 taco \inico da experiéncia parece conters seu tinico contetido: ser intransmissivel, aquilo que se completa assim: sé vale a pena a transmissio do intransmissive) A COMUMIDADEINCONFESSAVEL 2 Dito de outra maneira, nao hd experiéncia simples: € preciso ainda dispor das condigbes sem as quais ela nao seria possivel (em sua impossibilidade mesma), ¢ é ai onde uma comunidade é necessiria (projeto de “Colégio Socritico” que 6 podia fracassar, ¢ que 56 era projetado como o tiltimo ‘espasmo de uma tentativa comunitaria, incapaz de se realizar). ‘Ou ainda, 0 “éxtase” & ele mesmo comunicagéo, negacio do ser isolado que, ao mesmo rempo que desaparcce nessa violenta rruptura, pretende se exaltar ou se “enriquecer” com aquilo que quebra seu isolamento até abri-lo 20 ilimitado ~ sendo todas afirmagées que, na verdade, parecem enunciadas apenas pata serem contestadas: o ser isolado ¢ 0 individuo, ¢ 0 individuo é apenas uma abstragao; a existencia tal como a concepcio débil do liberalismo ordindtio a representa para si. Talvez. nao seja necessirio recorrer a um fenémeno tio dificil de discernir quanto o “éxtase” para tirar os homens de uma prévica e de uma teoria que os mutila separando-os, Hd a acao politica, hhé uma tarefa que se pode dizer filosdfica, hé uma busca ética (@ exigéncia de uma moral ngo menos assombrou Bataille quanto ascombrou Sartre, com essa diferenga de que cra cm Bataille a exigéncia de uma prioridade, enquanto em Sartre sobre quem pesava a carga d’O Ser e o Nada, la sé podia ser seguidora, serva, e assim, de antemao, submissa). Permanece que quando nés lemos (em notas péstu- mas): “O objeto do éxtase éa negacio do ser isolado”, sabemos que a imperfeigao dessa resposta esti ligada a forma mesma da questo posta por um amigo (Jean Bruno). Ao contritio, € evidente, de uma evidéncia esmagadora, que o éxtase é sem objeto, como é sem porqué. Do mesmo modo que ele recusa toda certeza. Nao se pode escrever essa palavra (Extase) a nao MAURICE BLANCHOT ser colocando-a de mancira precavida entre aspas, porque hinguém pode saber de que se trata, e de inicio se cla jamais {eve lugar: ulerapassando o saber, implicando 0 nao-saber, cla se recusa a ser afirmada de ontra maneira que por palavras leatdrias que nao saberiam garanti-la. Seu trago decisivo é que aquele que o prova nao esta mais If quando 0 prova, nao esti portanto mais lé para prové-lo, © mesmo (mas ele no é mais ‘© mesmo) pode acreditar que ele se reapropria desce trac no passado, como se fosse uma lembranga: eu me recordo, eu Ine rememoro, eu falo ou escrevo no transporte que transborda c estiemece toda possibilidade de se lembrar, ‘Todos os mis- ticos, 05 mais rigorosos, os mais sébrios (em primeito lugar San Juan de la Cruz), souberam que a lembranga, considerada como pessoal, s6 poderia ser dibia, e pertencendo & meméria tomava lugar entre aquilo que exigia se esquivar a ela: memé- ria extratemporal ou meméria de um passado que jamais teria sido vivido no presente (portanto, estranho a toda Erlebnis) A PARTILHA DO SEGREDO E também nesse sentido que o mais pessoal néo podia se guardar como segredo priprio a um s6, ja que ele rompia 1s limites da pessoa e exigia ser compartithado, ou melhor, se afirmava como a partilha mesma. Essa partilha remete & comunidade, se expoe nela, pode nela se teorizar, é0 seu risco, vindo a set uma verdade ou um objeto que se poderia deter, enquanto a comunidade, como o diz Jean-Luc Nancy, 36 se mantém como o lugar ~ 0 nao-lugar — onde nao hé nada 4 COMUNIDADE INCONE M a deter, secreta por nao ter nenhum segredo, obrando apenas no desobramento que atravessa a escritura mesma ou que, em toda troca piiblica ou privada de palavra, faz ressoar 0 silencio final onde, entretanto, nao é jamais seguro que tudo enfim termina. Nao ha fim Id onde reina a finitude. Se tinhamos, no prinepio da comunidade, o inacaba- mento ou a incompletude da existéncia, temos agora como que @ marca daquilo que a cleva até o risco do seu desapa- recimento no “éxtase”, seu cumprimento naquilo que precisa- mente a limita, sua soberania naquilo que a torna ausente ula, seu prolongamento na tinica comunicacio que de ora em diante convém, ¢ que passa pela inconveniéncia literéria, quando esta nao se inscreve em obras sendo para se afirmar no desobramento que as assombra, mesmo que elas nao soubessem atingi-lo. A auséncia de comunidade pée fim & esperanga dos grupos; a austncia de obra que, a0 contritio, tem necessidade de obras ¢ supde as obras para deixé-las se escrever sob a atragio do desobramento, eis a virada que, correspondendo & devastacio da guerra, fecharé uma époce. Georges Basalle disé, por vores, excetuando, todavia, a Historia do Otho © O ensaio sobre a Despesa, que tudo que ele havia escrito anteriormente — talvez. parcialmente excluido de sua lembranga era apenas o prehidio abortado da exigéncia de escrever. E a comunicagio diurna — que vem acompanhada da comunicagio noturna (Madame Edwarda, Le Petit) ou das notas de um Didtio atormentado (que se escreve fora de todo designio de publicacio), a menos que a comunicagio noturna, aquela que néo se confessa, que se predata e 6 autoriza para si um autor inexiscente, abra uma outra forma de comunidade, quando um pequeno MAURICE BLANCHOT ‘nimero de amigos, cada um singular, sem relagéo obrigad: dde uns com os outros, a compe em segredo pela leitura silen- ciosa que eles compartilham ao tomar consciéncia do evento ‘excepcional ao qual sio confrontados ou vorados. Nada a dizer disso que estivesse & sua medida, Nenhum comentério que pudesse acompanbé-lo: no mais apenas uma senha (como ide resto as paginas de Laure sobre 0 Sagrado, publicadas tidus Uandestinamente) que, comunicadas a cada tum como se ele tivesse estado sozinho, nao reconstitui a “conjuragao sagrada” que tinha sido sonhada outrora, mas, sem romper 0 isolamento, 0 aprofunda numa solidao vivida em comum e ordenada a uma responsabilidade desconhecida (frente a frente com o desconhecido). ACOMUNIDADE LITERARIA Comunidade ideal da comunicagéo literéria. As circunstancias ajudatam para isso (a importéncia da alea, «lo.acaso, do capricho histérico ou do encontro; os surrealistas, André Breton antes de todos os outros, a tinham pressentido © mesmo teorizado prematuramente). Podiam-sc, a rigor, reunir em torno de uma mesa (isso evocava os participantes afobados da Piscoa judaica) as poucas testemunhas-leirores que nio tinham todas consciéncia da importincia do evento frigil que as reunia, em consideragéo da manobra formidével da guerra na qual elas estavam quase todas envolvidas, a titulos diversos, e que as expunha & certera de um pronto desa- parecimento. Eis que tivera lugar alguma coisa que permitia A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 35 36 por alguns instantes, por meio dos mal-entendidos préprios as existéncias singulares, reconhecer a possibilidade de uma comunidade previamente estabelecida 20 mesmo tempo que ji péstuma: nada subsistiia dela, isso apertava 0 coracio, € eta exaltante também, como a prova mesma do apagamento que a escritura exige. Georges Bataille enunciou com simplicidade (talvez com simplicidade demais, mas ele nao 0 Ignorava) os dois ‘momentos em que se impée, aos seus olhos ou ao seu espitito, a exigéncia de uma comunidade, com relagéo a experiéncia interior. Quando ele escreve: “Minha conduca com meus amigos é motivada: cada ser é, creio, incapaz de ir sozinho ao extremo do set”, essa afirmacao implica que a experiéncia nio poderia ter lugar para o tinico, jé que tem por traco romper a patticularidade do particular e de expor este a outrem: portanto, de ser essencialmente para outrems “Se quero que minha vida tenha sentido para mim, é preciso também que ela tenha sentido pant ourrem”. Ou entao: “Nao posso por um instante sequer deixar de me provocar a mim mesmo a0 extremo e nio posso fiver diferenca entre mim mesmo e aqueles dentre os outros com os quais desejo me comunicar”, ‘© que subentende uma certa confusio: as vezes € 20 mesmo ‘tempo, a experiéncia s6 pode ser tal (“ir ao extremo”) se ela permanece comunicivel, ¢ cla s6 € comunicével porque, em sua esséncla, ela € abertura para o fora ¢ abertura para outrem, movimento que provoca uma relagio de violenta dissimetria entre mim ¢ 0 outro: o rasgo e a comunicagao. Portanto, os dois movimentos podem ser analisados como distintos, enquanto se suportam um ao outro a0 se destruirem. Por exemplo, Baaaille diz: “A comunidade da MAURICE BLANCHOT qual falo & aquela que existiu vireualmente pelo fato da exis- Iéncia de Nietzsche (que é a exigéncia dela) ¢ que cada um dos leitores de Nietesche desfaz ao se esquivar ~ isto é, néo fesolvendo o enigma posto (néo o lendo, inclusive)”. Mas houve uma grande diferenca entre Bataille e Niewsche. Nietzsche reve um desejo ardence de ser entendido, mas tam- bém a certeza por vezes orgulhosa de carregar consigo uma verdade perigosia demais ¢ superior demais para poder ser scolhida. Para Baualle, a amizade fax parte da “operacio sobe- tana”; nao é por ligeireza que O culpado (Le coupable) porta em primeiro lugar esse subtitulo: A Amizade (L ‘Amitié)s amizade, na verdade, se define mal: amizade por si mesmo té-a dissolucao; amizade de um ao outto, como passagem ¢ como afirmagio de uma continuidade a partir da necessitia dlescontinuidade. Mas a leitura—o trabalho desobrado da obra < niio esté ausente disso, ainda que pertenga as vezes & vertigem da embriaguez, “Eu ja tinha sorvido muito vinho. Pedi a X para ler no livro que eu arrastava comigo uma passagem ¢ ele ‘Jeu em vor alta (ninguém de meu conhecimento Ié com mais dura simplicidude ou com maior grandeza apaixonada do que ele). Eu estava embriagado demais ¢ no me lembro exatamente da passagem. Ele mesmo havia bebido tanto quanto eu. E um erro pensar que uma tal leitura feita por homens embriagados seja apenas um paradoxo provocante Creio que nés estamos, um ¢ outro, unidos neste Faro de {que somos abertos, sem defesa — por tentagio — a forcas de dlestruigdo, mas no como audaciosos ¢ sim como criangas que uma covarde ingenuidade jamais abandona’. Eis aquilo que nao tetia provavelmente podido receber a caucio de Nietzsche: este s6 se abandona — 0 desmoronamento ~ {A COMUNIDADE INCONFESSAVEL ” 38 no momento da loucura, c esse abandono se prolonga traindo- se por movimentos de compensagio megalomanfacos. A cena que nos é descrita por Bataille, da qual conhecemos os participantes (mas isso néo importa) ¢ que nao era destinada 2 publicagdo (no encanto nela se mantém a reserva de um certo incégnito: o interlocutor nao é designado, mas é mostrado de tal modo que scus amigos possam reconhecé-lo, scm nomed- Jo; ele é a amizade, ranco quanto o amigo), ¢ seguida (datada de um outro dia) por esta afirmagao: “Um deus nao se ocupa’. Esse ndo-agir é um dos tragos do desobramento, ¢ a amizade, com a leitura da embriaguez, é a forma mesma da “comuni- dade desobrada” sobre a qual Jean-Luc Nancy nos chamou a refletir sem que nos scja permitido nos deter nela. Retomnarei a isso, entretanto (um dia ou outro). Mas, primeiramente, é preciso relembrar que o leitor ndo é um simples leitor, livre a respeito daquilo que cle lé. Ele é ansiado, amado e talvez intolerivel. Ele nao pode saber aquilo que sabe, ele sabe mais do que sabe. Companheiro que se abandona 20 abandono, que esta perdido ele mesmo e que ao mesmo tempo permanece & beira do caminho para melhor compreender aquilo que se passa e que assim lhe escapa. E aquilo que dizem talver. esses textos febris: “Meus semelhantest Meus amigos! Como casas sem ar, de vidracas poeirentas: olhos fechados, pilpebras abertas!”. E um pouco mais longe: “Aquele para quem escrevo (que eu trato amigavelmente), por compaixio para aquilo que ele acaba de ler ¢ preciso que ele chores em seguida ele tira, pois ele terd se reconhecido”, Mas, depois, isso: “Se cu pudesse conhecer ~ perccher ¢ descobrir ~ ‘aquele para quem escrevo’, imagino que morreria. Ele me desprezaria digno de mim, Mas ndo morrerei por seu desprezo: a sobrevivencia MAURICE BLANCHOT em necessidade do pesar”.!” Esses movimentos sfo apenas, aparentemente, contraditérios. “Aquele para quem escrevo” & aquele que ninguém pode conhecer, ele é 0 desconhecido, € arelagio com o desconhecido, mesmo que seja pela escritura, me expée & morte ow & finitude, essa morte que néo tem em si aquilo com que aplacar a morte. O que se pode entéo dizer dda amizade? Amizade: amizade pelo desconecido sem amigos. Ou ainda, se a amizade faz apelo 3 ou convoca a comnnidade por meio da escritura, ela s6 pode se excetuar dela mesma (aizade pela exigéncia de escrever que exclui toda amizade). Mas por que 0 “desprezo”? “Digno de mim’, este, admitindo que fosse uma singularidade vivente, deverd descer até a cexctema baixeza, isto é, & experiéncia da tinica indignidade que o tornard digno de mim: isso seria de alguma mancira a soberania do mal ou @ soberania descoroada que néo pode mais ser compartilhada e que, expressando-se pelo desprezo, atingiri a depreciacéo que deixa viver ou sobreviver. “Hipécrital Escrever set sincero e nu, ninguém 0 pode. Nao quero fazé-lo” (Le Coupable). E, a0 mesmo tempo, nas primeiras paginas do mesmo livro: “Eesas notas me ligam como um fio de Ariadne aos meus semelhantes, ¢ o resco me parece vio, Nao poderia entretanto fazer qualquer um de meus amigos lé-las”. Pois, entdo, leitura pessoal por meio de amigos pessoais. Donde © anonimato do livro, que nio se dirige a ninguém e que, pelas relagGes com o desconhecido, instaura aquilo que Georges Bataille (pelo menos uma vez) chamard de “A comunidade nnegativa: a comunidade dos que néo tém comunidade”. A COMUNIDAD INCONFESSAVEL O CORAGAO OU A LEI Pode-se dizer que, nessas notas aparentemente desorien- tadas, se designa ~ se denuncia — 0 limite de um pensamento sem limite que tem necessidade do “eu” para se romper sobe- ranamente € que tem necessidade da exclusio dessa soberania para se abrir a uma comunieagio que néo ae compartilha por- que passa pela supressio mesma da comunidade. Ha af um movimento desesperado para, soberano, desmentir a soberania (sempre maculada pela énfase dita e vivida por um s6 em que todos “se encarnam’) e para, mediante a impossivel comuni- dade (comunidade com o impossivel) alcanear a sorte de uma comunicagéo maior, “ligada & suspensio daquilo que nao é menos base da comunicagio”. Ora, “a base da comunicagio” nao é necessariamente a palavra, até mesmo o siléncio que € seu fundo e sua pontuacéo, mas a exposicéo 4 morte, nao mais de mim mesmo, mas de outrem, do qual mesmo a presenga vivente e a mais proxima é jd a everna e insuportivel auséneia, aquela que 0 trabalho de nenhum Iuto diminui E éna vida mesma que essa auséncia de outrem deve ser encon- tradas € com ela — sua presenga insélita, sempre sob a ameaca prévia de um desaparecimento — que a amizade entra em jogo a cada instante se perde, relagio sem relagio ou sem relacio outra que o incomensurével (para 0 qual nao hé lugar de se perguntar se é preciso ser sincera ou nao, veridico ou nao, fiel ‘ou nao, jé que ele representa de antemao a auséncia de lagos ou infinito do abandono). Assim é, assim seria a amizade que descobre © desconhecide que somos nds mesmos, € 0 encontro de nossa prépria solidio que precisamente nds no MAURICE BLANCHOT podemos ser sozinhos a provar (“incapaz, eu sozinho, de ir & ponta do extremo”). “0 infinito do abandone”, “a comunidade dos que ndo tém comunidade”. Talvez toquemos ai a forea diltima da experiéncia comunitéria, apés a qual nao haverd mais nada a dizer, porque cla deve se conhecer, ignorando-se a si mesma, Nao que se trate de se retirar para o inedgnito ¢ para o segredo. Sc € verlude que Georges Bataille teve © sentimento (sobre tudo antes da guerra) de ser abandonado por seus amigos, se, mais tarde, durante alguns meses (O Pequens), a doenga 0 obriga a sc manter & parte, s¢, de uma certa maneira, ele vive tanto mais a solidio quanto ¢ impotente em suporté-la, apenas sabe muito bem que a comunidade nao é destinada a curd-lo dessa solidéo ou a protegé-lo dela, mas que cla é a maneira pela qual cla 0 expée a essa solidéo, nao por acaso, ‘mas como o coracio da fraternidade: 0 coragéo ou a lei. A COMUNIDADE INCONFESSAVEL a 0 belo os amnances dese a rciedade COMUNIDADE DOS AMANTES A tinica lei do abandono, assim como a do amor, & de ser sem retorno e sem recurso. JL. Nancy leas aqui, de uma maneira que pode parecer arbitritia, paginas escricas sem outro pensamento que 0 de acompanhar a leitura de um relato quase recente (mas a data rio importa) de Marguerite Duras." Sem a ideia clara, em todo caso, de que esse relato (em si mesmo suficiente, 0 que quer dizer perfeito, 0 que quer dizer sem saida) me reconduziria a0 pensamento, prosseguido por outro lado, que interroga nosso mundo —o mundo que é nosso por nao ser de ninguém —a partir do esquecimento, nao das comunidades que nele subsistem (clas, antes, se multiplicam), mas da exigéncia «comunitériay que as assombra talver, mas se renuncia a clas quase seguramente. A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 43 ” MAIO DE 68 Maio de 68 mostrou que, sem projeto, sem conjura- ‘40, podia, na repentinidade de um encontro feliz, como uma festa que abalava as formas sociais admitidas ou esperadas, se afirmar (se afirmar para além das formas usuais da afirmagio) stead in, sen distingao de classe, idade, sexo ou de cultura, se unir, abrindo caminho, com 0 primeiro que viesse, como com um ser ja amado, precisamente porque ele era o Familiar-desconhecido. «Sem projeto»: estava af 0 traco, a0 mesmo tempo angustiante e afortunado, de uma forma de sociedade incom- parivel que nao se deixava convocar, que no era chamada a subsists, ase instalar, mesmo que fosse por meio dos miltiplos «comités pelos quais se simulava uma ordem-desordenada, uma especializagio imprecisa. Contrariamente 4s exevolugées tradicionais», no se tratava de somente tomar o poder para colocar outro no seu lugar, nem de comar a Bastilha, o Palicio de ina ‘a cunounicugi explosiva, a abeciura que pets © Bliseu uu a Asseiubleia Nacivual, objetivus seu importancia, € nem mesmo de derrubar um antigo mundo, mas de deixar se manifestar, fora de todo interesse utilitério, ‘uma possibilidade de serjunto que devolvia a todos o direito a igualdade na fraternidade pela lberdade de palavra que cexaltava cada um. Cada um tinha alguma coisa a dizes, as ‘vezes 2 escever (nos muros); © que entio? Isso pouco importava. O dizer primava sobre o dito. A poesia era cotidiana. A comu- nicagéo vespontineas, nesse sentido de que ela parecia sem recencio, nfo era nada além do que a comunicagio consigo mesma, transparente, imanente, apesar dos combates, deba- MAURICE BLANCHOT tes, controvérsias, em que a inteligéncia calculadora se expres- sava menos do que a efervescéncia quase pura (em todo caso, sem desprezo, sem altura nem baixeza) — é por isso ue se podia pressentir que, a autoridade derrubada ou, antes, negligenciada, se declarava uma maneira ainda jamais vivida de comunismo que nenhuma ideologia estava mesmo em con- digdes de recuperar ou reivindicar. Nenhuma tentativa séria de reformas, mas uma prescnga inocente (por causa disso supremamente insdlita) que, aos olhos dos homens de poder € escapando a suas andlises, s6 podia ser denegrida por expressGes sociologicamente tipicas, como balbrirda,!® quer dizer, 0 redo- bramento carnavalesco de seu préprio desvario, aquele de um ‘mandamento que néo mandava em mais nada, nem mesmo em si mesmo, contemplando, sem vé-la, sua inexplicavel ruina. Presenca inocente, «comam presenca» (René Char), ignorando seus limites, politica pela recusa de ndo excluir nada e pela consciéncia de ser, tal qual, o imediato-universal, com 0 impossivel como tinico desalio, mas sem vontades politicas determinadas e, assim, & mercé de ndo importa qual subicssalto das instituigées formais contra as quais cra proibido reagir, F essa auséncia de reagio (da qual Nietzsche podia passar por inspirador) que deixou se desenvolver a ‘manifestagéo adversa que teria sido ficil impedir ou combater, Tudo era aceito, A impossibilidade de reconhecer um inimigo, de inscrever em conta uma forma particular de adversidade, isso vivificava, mas precipitava para o desenlace, que, de resto, Go tinha necessidade de nada desenlagar, desde quando o evento tivera lugar. O evento? E serd que isso tivera lugar? A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 4 4 PRESENCA DO POVO Eraai, éainda ai a ambiguidade da presenga — enten- dida como utopia imediatamente realizada -, por conseguinte sem porvit, por conseguinte sem presente: em suspenséo como que para abrir o tempo 2 um além de suas determinagées Usuais. Presenga do pova? Havia jd abuso no recurso 2 essa palavra complacente. Ou entio, era preciso entendé-la, no como 0 conjunto das forcas sociais, prontas para decisses politicas particulares, mas em sua recusa instintiva de assumir ‘qualquer poder, em sua desconfianca absoluta em se confundit com um poder ao qual ela se delegaria, portanto em sua declaragéo de impoténcia, Dai o equivoco dos comités que se multiplicaram (e dos quais ja falei), que pretendiam organizar a desotganizagio, a0 mesmo tempo que respeitavam esta, € que no deviam se distinguir da «turba andnima ¢ sem ntimero, do povo em manifestacio espontancay (Georges Prili)." Dificuldade de ser (dos) comités de acio sem aco, ou (dos) cicculos de amigos que desconfessavam sua amizade anterior para apelar & amizade (a camaradagem sem acordo prévio) que veiculava a exigéncia de ser ai, ndo como pessoa ou sujeito, mas como os manifestantes do movimento fraternal- mente andnimo e impessoal. Presenica do «povo» em sua poténcia sem limite que, para nao se limitar, aceita mao fiezer nada: penso que na época sempre contemporanea no tenha havido um exemplo disso mais certo do que aquele que se afirmou em uma amplidio soberana, quando se encontrou reunida, para fazer cortejo aos mortos de Charonne, a imével, a silenciosa multido da qual MAURICE BLANCHOT nao havia lugar para contabilizar a importancia, pois nao se podia acrescentar nada a ela, nem lhe subtrair nada: ela estava 4 por inteiro, néo como cifrdvel, numerivel, nem mesmo como totalidade fechada, mas na integralidade que ultrapas- sava todo conjunto, impondo-se calmamente para além de si mesma. Poténcia suprema, porque ela inclufa, sem se sentir diminuida, sua virtual e absoluta impoténcia: o que simboli sava justamente o fato de que ela estava lé como o prolonga- ‘mento daqueles que nao podiam mais estar ld (os assassinados de Charonne): o infinito que respondia ao apelo da finitude ce que a cla fazia sequéncia opondo-se a cla. Creio que houve entéo uma forma de comunidade, diferente daquela cujo caréter acreditamos ter definido, um dos momentos em que comunismo ¢ comunidade reencontram um A outra eaceitam ignorar que eles se realizaram ao se perderem imediatamente. Nao se deve durar, néo se deve ter parte em qualquer duragio que seja. 1850 foi ouvido nesse dia excepcional: ninguém eve que dar uma ordem de disperséo. As pessoas se separaram pela mesma necessidade que tinha reunido inumerivel. Flas se separaram instantaneamente, sem que houvesse resto, sem que tivessem se formado essas sequelas nostilgicas pelas quais se altera a manifestagso verdadcira em se pretendendo perseverar em grupos de combate. O povo nio € assim. Fle esti ld, nao est mais ls cle ignora as estrucuras que poderiam estabilizé-lo, Presenga e auséncia, sendio con- fundidas, pelo menos se intercambiando virtualmente. Enisso {que o povo € temivel para os derentores de um poder que nao 6 reconhece: nio se deixando convocar, sendo assim tanto a dissolucdo do fato social quanto a rebelde obstinagio om reinventar este faro em uma soberania que a lei nao pode 4 COMUNIDADE INCONFESSAVEL —— tt ” circunscrever, uma vez que ela a recusa ao mesmo tempo gue sc mantém como seu fundamento. © MUNDO DOs AMANTES Ha seguramente um abismo que nenhum embuste de retérica pode suprimir entre a poténcia impotente daquilo ‘que 56 se pode nomear de outro modo senao pela palavra tio ficil de destespeitar: © povo (nao traduzi-la por Volk), © a estranheza dessa sociedad antissocial ou da associaglo sempre prestes a se dissociar que formam os amigos e os casais. No encanto, distinguem-nos certos tragos que os aproximam: 0 povo (sobrerudo quando se evita sacralizi-lo) nio é Estado, tanto quanto nao & sociedade em pessoa, com suas fungoes, suas leis, suas determinacées, suas exigéncias que constituem sua finalidade mais prépria. Inerte, imével, menos o agrupa~ mento do que a dispersio sempre iminente de uma presenca ‘ocupando momentaneamente todo 0 espago e, todavia, sem lugar (utopia), uma espécie de messianismo que nao anuncia nada além de sua autonomia e seu desobramento (com a con- digao de que a deixem para si mesma, senio ela se modifica imediatamente ¢ se torna um sistema de forga, pronta para se desencadcar): assim € 0 povo dos homens, que € permitido considerar como o sucedineo degradado do povo de Deas (bastante semelhante Aquilo que poderia ter sido o agrupa- mento dos filhos de Israel com vistas a0 Bxodo se ao mesmo tempo eles tivessem se reunido esquecendo-se de partir), Wt entio, tornando-o idéntico & «érida solidao das forcas MANIC MANCHOT, andnimas» (Régis Debray). Essa «rida solidao» é precisamente aquilo que justifica a aproximagio com 0 que Georges Bataille chamou de wo mundo verdadciro dos amantes», sensivel que ele eta a0 antagonismo entre a sociedade ordinaria co relaxamento dissimulado do laco social» que supe um tal mundo que precisamente é o esquecimento do mundo: afirmagio de uma relacéo to singular entre os seres que © amor mesmo ndo & necessitia nessa relago, jd que este, aque de resto nao é jamais seguro, pode impor sua exigincia num circulo onde sua obsessao vai até comar a forma da impossibilidade de amar: ou seja, 0 tormento nfo sentido, incerto, daqueles que, tendo perdido «a intcligencia do amor» (Dante), querem, entretanto, ainda tender em dire¢io aos iinicos seres dos quais eles nao saberiam se aproximar por nenhuma paixdo viva. A DOENGA DA MORTE F esse tormento que Marguerite Duras nomeou de ca doenga da mortes? Quando abordei a leitura de seu livro, atrafdo por esse titulo enigmético, eu nao o sabia, © posse dizer que, por sorte, nao o sci ainda, E o que me autoriza a retomar como que numa nova ver a Icitura ¢ seu comentario, ‘um e outra se clareando e se obscurecendo. O que se pode dizer de inicio desse titulo, A doenga da morte, que, talvez vindo de Kierkegaard, ele sozinho parega manter ou deter 0 seu segredo? A COMUNIDAD INCONFESSAVEL ” 7 ‘Uma vez pronunciado, tudo € dito, sem que se saiba aquilo que esta para se dizer, o saber néo estando & sua medida. Diagnéstico ou sentenca? Em sua sobriedade, hé um ‘exagero. Esse exagero é aquele do mal. O mal (moral ou fisico) é sempre excessivo. Ele € o insuportével que néo se deixa interrogar. O mal, no excesso, o mal como va doenga da motte», ndo saberia ser circunscrito a um «eu» conscience an inconsciente, ele concerne de inicio 0 outro, ¢ 0 outro — outrem — é 0 inocente, a crianga, 0 doente cujo lamento tessoa como 0 escindalo «inaudito», porque ultrapassa 0 entendimento, 20 mesmo tempo que me vota a responder a le sem que eu tenha o poder para isso, Bssas observagées nfo nos distanciam do texto que nos € proposto ou mais exatamente imposto — pois é um texto declarativo, e ngo um relato, mesmo que tenha a aparéncia de um. Tudo é decidido por um «Vés» inicial, que & mais do que autoritério, que interpela e determina aquilo que aconteceré ou poderia acontecer para aquele que caiu nas malhas de uma sina inexordvel. Por facilidade, dir-se-d que € 0 «és» do diretor dando indicagées a0 ator que deve fazcr surgir do Nada a figura passageira que ele encarnard. Pode ser, mas € preciso entendé-lo ent@o como o Diretor supremo: 0 Vés biblico que vem do alto e fixa profeticamente os grandes tragos da incriga na qual avangamos na ignorancia daquilo que nos é presctito. Vas deveis ndo conbect-la, t-la encontrado por toda parte 40 mesmo tempo, num hotel, nuima rua, num trem, num bat, num livre, num filme, em vés mesmo... A ela, jamais 0 . Entio, é um retorno 3 selvageria {que no transgride mesmo as interdigdes, jé que ela as ignoras ou entdo, revorno 20 «adrgico» (Hlderlin) que desarranja toda relacgdo de sociedade, justa ou injusta, ¢, refratério a cada dois onde reinaria a reciprocidade do «eu-vocé», mas evoca, antes, 0 fobu-bohu® inicial de antes da criagio, a noite sem termo, 0 fora, o abalo fundamental? (Entre os gregos, segundo Fedro, 0 Amor € quase tao antigo quanto 0 Caos) Hi aqui um comeco de resposta: Vis penguntais como 0 sentimento de amar poderia sobrevir. Ela vos responde: Talvez de uma falha sibita na ligica do universe. Ela diz: Por exemplo, de um erro, Ela diz: jamais de um querer. Contentemo-nos peu, nio saberia se contentar com uma sociedade a NT: tuo - da sbi aig tb eb paw que 1s los hebeaicos sige oto pint. Tb sig "sn fom enquanro Bb sta 0 "a ‘A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 8 com esse saber que nao «saberias, no encanto, ser um saber, O que ele anuncia? Que é preciso que, na homogeneidade —a afirmacio do Mesmo — que a compreensio exige, surja o hete- rogéneo, 0 Outro absoluro com quem roda relacio significa: nenhuma relasao, a impossbilidade de que o querer e talver até mesmo o desejo transponham o intransponivel, no encon- tro clandestino, repentino (Fora do tempo), que se anula com © sentimenty «ssolador, jamais assegurado de ser provado rnaqucle que esse movimento destina ao outro privando-o talver de «sv. Sentimento assolados, na verdade além de todo sentimento, ignorando 0 pathos, desbordando a consciéncia, rompendo com o cuidado de mim mesmo ¢ exigindo sem direito aquilo que se farta a toda exigéncia, porque, em meu pedido, nao hé somente o além daquilo que poderia satisfazé- Jo, mas também o além daquilo que é pedido. Oferta supe- riot; exagero de vida que nfo pode ser contido nela e, assim, interrompendo a pretensio de sempre perseverat no ser, expde A estranheza de um morrer interminével ou de um «erro» sem fim. Ev que sugere ainda 0 oréculo que, no texto, actes- centa as precedentes respostas (respostas & questéo sempre repetida, De onde poderia sobrevir 0 sentimento de amar’) essa tiltima réplica: «De tudo... da aproximacéo da morte. Assim retorna a duplicidade da palavra morte," dessa doenca da morte que designatia ora o amor impedido, ora 0 puro mo- vimento de amar, um e outro chamando 0 abismo, a noite negra que 0 vazio vertiginoso «das pernas afastadas» descobre (como nao imaginar aqui Madame Edward). MAURICE BLANCHOT ‘TRISTAO E ISOLDA Nenhuma possibilidade de fim, portanto, para um relato que diz também & sua maneira: mais nenhum relato, e, no entanto, um fim, talver uma remissio, calvez uma conde- nagio definitiva, Pois eis que a jovem mulher um dia nao est mais Ia, Desaparecimento que nao saberia assustar, ja que € apenas o esgotamento de um aparecer que sé se dava no sono. Ela nfo est{ mais li, mas tio discretamente, to absolutamente, que sua auséncia suprime sua auséncia, de sorte que procuré- Ia é-vao, do mesmo modo que reconhecé-la seria impossivel, € aleangi-la, mesmo que seja no iinico pensamento de que ela ‘existiu apenas pelo imaginério, nao pode interromper a solidao ‘em que se murmura indefinidamente a palavra testamentivia: doenca da morte, E eis aqui as dltimas palavras (sio elas litimas2): Muito nipido vés abandonais, vés nado a procurais ‘mais, nem na cidade, nem na noite, nem no dia. / Assim, entre- tanto, vis tendes podido viver ese amor da tinica mancira que pode se fazer para vos, perdendo-o antes que ele tenha advindo. Concluséo que em sua admirével densidade diz talver, nfo 0 fracasso do amor num caso singular, mas 0 cumprimento de todo amor verdadeizo que seria de s6 se realizar sobre o modo dda perda, se realizar sobre o tinico modo da perda, quer dizer, de se realizar perdendo nao aquilo que vos pertenceu, mas aquilo que jamais se teve, pois «eu» ¢ 0 «outro» nfo vivem no mesmo tempo, nao estio jamais juntos (em sincronia), nao saberiam, portanto, ser contemporineos, mas sim separados (mesmo unidos) por um «no ainda» que anda ao lado de um «ja mais», Néo era Lacan quem dizia (citagio talver inexata): A COMUNIDADE INCONFESSAVEL »” desejar & dar aquilo que néo se tem a alguém que néo o quer? © que nao significa que amar s6 se viva sobre 0 modo da espera ou da nostalgia, termos que se reduzem de modo ficil demais a um registro psicolégico, ao passo que a relacio que aqui esté em jogo nao & mundana, supondo mesmo o desa- parecimento, até mesmo o desmoronamento do mundo. Relembremo-nos da palavra de Isolda: ePerdemos 0 mundo, ¢ ‘© mundo, a nésr. E relembremo-nos ainda de que mesmo a reciprocidade da relagio de amor, tal como a representa a histéria de Ttistfo e Isolda, paradigma do amor compartilhado, cxclui tanto a simples murualidade quanto a unidade em que © Outro se fundiria no Mesmo. O que leva novamente a pres- sentir que a paixéo escapa & possibilidade, escapando, para aqueles que sio convocados por ela, a seus préprios poderes, & sua decisio e mesmo a seu adesejo», nisso a estranheza mesma, nio tendo relagio nem com aquilo que eles podem nem com aquilo que eles querem, mas os atraindo para o estranho onde cles se tornam estrangeizos para si mesmos, numa incimidade que os torna, também, estrangeiros um para o outro. Assim, portanto, cternamente separados, como se a morte estivesse neles, entre eles? Nao separados, nem divididos: inacessiveis e, no inacessivel, sob uma relagio infinica E 0 que leio nesse relato sem anedota onde o impossi- vel amor (qualquer que seja sua origem) pode se traduzir por uma analogia com as palavras primeiras da ética (tal como Levinas as descobriu. para nds}: atengfo infinita a Outrem, assim como Aquele cujo desnudamento pée acima de todo set, obrigacio urgente c ardente que toma dependente, «fem» ¢ ~ Platio jé o dizia ~ eseravo além de toda forma de servic dade admitida. Mas a moral € lei, € a paixto desafia coda lei? MAURICE BLANCHOT Precisamente, é aquilo que Levinas ndo diz, contrariamente a alguns de seus comentadores. Nao hi possibilidade da ética a ndo ser que — a ontologia, que redux sempre 0 Outro ao ‘Mesmo, cedendo-Ihe o passo ~ possa se afirmar uma relagéo anterior tal que o mim néo se contente de reconhecer 0 Outro, de se reconhecer nessa relagio, mas se sinta posto em questio por cle a0 ponto de poder Ihe responder apenas por uma responsabilidatle que nao sabcria se limitar © que se excede cem se esgotar. Responsabilidade ou obrigagéo para com Outrem que nao vern da Lei, mas de onde esta viria naquilo que a torna irredutivel a codas as formas de legalidade pelas quais necessa- riamente se busca regularizé-la a0 mesmo tempo pronun- ciando-a como a excecdo ou o extra-ordindrio que nao se enuncia em qualquer linguagem jé formulada.'* © SALTO MORTAL Obrigagau que usu € um engajamento em nome da Lei, mas como que anterior ao ser € liberdade, quando esta se confunde com a espontaneidade. «Eur nfo sou livre para com outrem se sou sempre livre para declinar a exigéncia que ‘me deporta de mim mesmo e me exclui 20 limice de mim. Mas nao é assim também com a paixéo? Esta nos engaja fatalmente, e como que apesar de nés, para um outro que nos atrai tanto ‘mais quanto ele nos parece fora da possibilidade de ser alcan- ado, tanto ele est além de eudo aquilo que nos importa. Esse salto que se afirma pelo amor ~ simbolizado pelo pulo prodigioso de Tristio até a cama de Isolda a fim de A COMUNIDADE INCONPESSAVEL 6 a que nao sejam deixados rastros terrestres da aproximacio deles — evoca o «salto mortal» que, segundo Kierkegaard, & necessrio para se clevar até o estigio ético ¢, sobretudo, religioso, Salto mortal que tomaré forma nessa questio: «Um homem tem o direito de se fazer levar & morte em nome da verdade?» Em nome da verdade? Isso constitui problema: mas para outrem, para a assisténcia a outtem? A resposta est jéem Platao, onde € dito, com a forga da simplicidade, pela vor de Fedro: «lsso néo é duvidoso, morrer por outrem é aquilo a que, sozinhos, consentem aqueles que se amam». E, citando o exemplo de Alceste, tomando por pura delicadeza lugar de seu marido (€ verdadciramente a «substituiggo», «um pelo outro») a fim de lhe poupar a condenagio morte. ‘Ao qué ~ ¢ verdade ~ Diotima (ela detém, como mulher € cestrangeira, o saber supremo do Amor) nao tardaré a replicar que Alceste de modo algum pediu para morrer por seu marido, mas para adquiris, por um ato sublime, o renome que, na morte mesma, a tornard imortal. Nao que cla néo amasse de modo algum, mas porque nao hé outro objeto de amor do que a imortalidade. © que nos poe na via obliqua que o amor abre como meio dialético para caminhar, de pulo em pulo, até a espiritualidade mais alea Qualquer que seja a importincia do amor platénico, filho do vazio dvido e do recurso retorcido, sence-se bem que aconcepcio de Fedro nao € refurada. © amor, mais forte que a morte. © amor que ndo suprime a morte, mas passa o limite que esta representa ¢, assim, torna-a sem poder em relagdo & assisténcia a outrem (esse movimento infinito que leva em diregio a ele e, nessa censio, nfo deixa o tempo de voltar 20 cuidado de «mim»). Nao para glorificar 2 morte ao glorificar MAURICE BLANCHOT amor, mas talvez, ao contrério, para dar & vida uma trans- cendéncia sem gldria que a pe, sem termo, a servigo do outro. Nao digo que, por af, ética ¢ paixio se reencontrem confundidas. A paixio testa em propriedade e em conta que seu movimento, pouco resistivel, nao desarranja a espontanei- dade, nem 0 conatus, mas é, a0 contritio, a oferta superior deles, que pode ir até a destrui¢éo. Nao cabe, pelo menos, acrescontar que amar é certamente fer em vista s6 0 outro, indo como tal, mas como 0 tinico que eclipsa os outros ¢ 0s anula? Dai por que a desmesura seja sua tinica medida, € a violéncia e a morte noturna nao possam ser excluldas da ‘exigencia de amar. Assim como o relembra Marguerite Duras: ‘A vontade de estar & beira de matar wn amante, de guardé-lo para wés, para vés 6, de tomd-to, de roubi-la conor todas as leis, contra todos os impérios da moral, ubs nio a conheces..2. Nio, ele nio a conhece. De onde o implacivel ¢ o desdenhoso vveredicto: E curioso wom morto. Ele nao responde. Vou me guardar de responder em, seu lugar, sendo, voltando ainda aos gregos, eu murmuraria: ‘Mas cu sei quem sois vés. Nao a Afrndire celesce ou uraniana aque 86 se satisfaz com o amor das almas (ou dos rapazes), nem a Afrodite terrestre ou popular que quer ainda os corpos earé mesmo as mulheres, a fim de que, por elas, © amor seja engendrado; nem somente uma, nem somente a outra; mas ‘yés sois ainda a terceira, a menos nomeada, a mais temida ¢, por causa disso, a mais amada, aquela que se esconde por trds das outras duas das quais ela nao € separivel: a Afrodite cténica ou subterrinea que pertence A morte” €a ela conduz aqueles que cla escolhe ou que se deixam escolher, unindo, como se vé aqui, o mar do qual ela nasce (¢ ndo cessa de nascer), @ noite A COMUNIDADE INCOM 6 cy ue designa o perpétuo sono ea injungio silenciosa dirigida & «comunidade dos amantes, a fim de que estes, respondendo 4 exigéncia impossivel, se exponham um para 0 outro 3 dispersio da moree, Uma morte, por definigéo, sem gléria, sem consolagéo, sem recurso, & qual nenhum ourro desapaceci- mento saberia se igualar, & excecéo talver daquele que se inscreve na escritura, quando a obra que € a sua deriva é, de ammo, rendncia a fazer obra, indicaude somente v espayo onde ressoa, para todos e para cada um, e, portanto, para ninguém, a palavra sempre por vir do desobramento. Pelo veneno da imortalidade Se acaba a paivao das mulheres (Marina Tiveraieva, Buridice a Orfeu) MAURICE BLANCHOT COMUNIDADE TRADICIONAL, COMUNIDADE ELETIVA ‘A comunidade dos amantes. Esse titulo romantico que dei a paginas em que nao hé nem relagéo compartilhada nem amantes certos, ndo seria paradoxal? Seguramente. Mas esse paradoxo confirma talver a extravaytuicia daquilo que se bbusea designar pelo nome de comunidade. Do mesmo modo que ha lugar para distinguir dificilmente entre comunidade tradicional ¢ comunidade eletiva (a primeira nos é imposta sem que nossa liberdade decida: a socialidade de fato, ou ainda a glorificagéo da terra, do sangue, até mesmo da raga; mas e a segunda? Chamamo-la de eleriva nesse sentido de que cla s6 existiria por uma deciséo que reiine seus membros em ‘orno de uma escolha sem a qual ela nfo poderia ter tido lugar; essa escolha 6 livre? Ou, pelo menos, essa liberdade ¢ suficiente para exprimir, pata afirmar a partilha que é a verdade dessa comunidade?), do mesmo modo podemos nos interrogar sobre aquilo que permitiria falar sem equfvoco da comunidade dos amantes. Georges Bataille escreveu: «Se esse mundo néo fosse incessantemente percorrido pelos movimentos convulsivos dos seres que se buscam um ao outro..., ele teria a aparéncia de uma detrisio oferecida aqueles que ele faz. nascet.» Mas o que se pode dizer desses movimentos «convulsivos» que so chamados a valorizar 0 mundo? Trata-se do amor (feliz ou infeli2) que forma sociedade na sociedade ¢ recebe desta seu direito 2 ser conhecido como sociedade legal ou conjugal? Ou entio, trata-se de um movimento que nao suporta nome algum — nem amor nem desejo ~ mas que atrai os seres para A COMUNE nccownEssAVEt 6 langé-los uns em diregdo aos outros (dois a dois ou mais cole- tivamente), segundo scus corpos ou segundo seus coragdes € seus pensamentos, arrancando-os & sociedade ordindria? No primeiro caso (definamo-lo de modo simples demais pelo amor conjugal), esté claro que a ecomunidade dos amantess atenua sua exigéncia prépria pelo compromisso que ela estabelece com a coletividade que Ihe permite durar fazendo- a renuneiar Squilo que a caracteriza. seu segicdu por Udy do qual se furtam wexeeraveis excessos»."* No segundo caso, a comunidade dos amantes nao se preocupa mais com as formas da tradi¢ao, nem com nenhuma aprovacio social, mesmo que fosse a mais permissiva, Desse ponco de vista, as casas ditas de colerincia ou seus sucedneos, tanto quanto 6s castelos de Sade, nfo constituem uma marginalidade, capaz de abalar a sociedade. Ao contritio: jé que tais lugares especializados permanecem sendo autorizados, e tanto mais quanto cles sao proibidos. Nao € porque Madame Edwarda uma moga que se exibe de uma maneira acima de tudo banal, exibindo seu sexo como a parte mais sagrada de seu set, que cla rompe com nosso mundy ou com todu wanda: & porque essa exibicio a furta entregando-a a uma singularidade inapreensivel (nao se pode mais apreendé-la, propriamente falando) e porque assim, com a cumplicidade do homem que a. ama momentaneamente com uma paixio infinita, ela se abandona — & nisso que ela simboliza 0 sacrificio ~ 20 primeiro que vem (0 chofer) que nio sabe, que nao saberd jamais que esti em selagéo com o que hé de mais divino ou com o absoluro que rejeita toda assimilagéo. MAURICE BLANCHOT A DESTRUICAO DA SOCIEDADE A APATIA ‘A comunidade dos amantes — quer estes a queiram ou nao, quer gozem dela ou nfo, quer estejam ligados pelo acaso, «0 amor louco», a paixio da morte (Kleist) — rem por fim essencial a destruigio da sociedade. L4 onde se forma uma comunidade episédica entre dois seres que sio feitos ou que info sio feitos um para o outro, se constitui uma maquina de guerra ou, para melhor dizer, uma possibilidade de desastre que porta em si, mesmo que seja em dose infinitesimal, a ameaga da aniquilagéo universal. E nesse nivel que € preciso considerar 0 eroteiro» que se impés a Marguerite Duras ¢ que inecessatiamente a implica a ela mesma desde 0 momento em que cla o imaginou. Os dois seres que nos sio mostrados representam, sem alegria, sem felicidade, e tio separados quanto paregam, a esperanca de singularidade que eles nao podem compartilhar com nenhum outro, nao somente por- que eles esto encerrados, mas porque, em sua indiferenga comum, estio cnecrrados com a morte que uma revela 20 outro como aquilo que cle encarna e como o golpe que ela ‘gostaria de receber dele, sinal da paixdo que cla espera em vao. De ume certa maneira, pondo em cena um homem que esté separado para sempre do feminino, mesmo quando ele se une a uma mulher casual a que ele proporciona um gozo que ele ‘nao compartilha, Marguerite Duras pressentiu que eta preciso ultrapassar o circulo imantado que figura, com complacéncia demais, a unio romantica dos amantes, ou seja, que estes fos- sem cegamente levados pela necessidade de se perder mais do que pela preocupagio em se encontrar, E, no entanto, ela A COMUNIDADE INCONPESSAVEL o reproduz uma das eventualidades que o imaginério de Sade {¢ sua vida mesma) nos ofereceu como 0 exemplo banal do jogo das paixées. A apatia, a impassibilidade, 0 nio-lugar dos sentimentos ¢ a impoténcia sob todas as suas formas, nao somente nao impedem as relagbes dos seres, mas conduzem essas relagées ao crime, que é a forma tilima e (se podemos dizer) incandescence da insensibilidade. Mas, justamente, no sclato que nds viramos e reviramies come que pata catur~ quir-lhe o segredo, a morte é chamada e, 20 mesmo tempo, desvalorizada, a impoténcia sendo tal que ela néo vai até li, quer ela paresa mesurada demais ou, ao contrério, quer cla atinja a uma desmesura que Sade mesmo ignora. Eis 0 quarto, o espaco enclausurado aberco & natureza, fechado aos outros homens, onde, durante um tempo indefi- nido calculado em noites — mas cada noite nfo saberia tomar fim — dois seres tentam se unir apenas para viver (e, de uma certa maneira, celebrar) o fracasso que éa verdade daquilo que seria sua unio perfeica, a mentina dessa unio que sempre se cumpre no se cumprindo. Eles formam, apesar disso, alguma coisa com uma comunidade? B, antes, por Causa disso yue eles formam uma comunidade. Eles estio um a0 lado do outro, e essa contiguidade que passa por todas as espécies de ‘uma intimidade vazia os preserva de encenar a comédia de um entendimento «fusional ou comunial», Comunidade de uma pristo, organizada por um, consentida pela outra, onde aquilo que est em jogo, € justamente a tentativa de amar, mas para Nada, tentativa que no tem enfim outro objeto além desse nada que os anima, sem que eles saibam, ¢ que nao os expde a nada além do que a se tocar em véo, Nem alegria, nem dio, um gozo solitério, lagrimas solitérias, a pressio de um MAURICE BLANCHOT Superego implacivel, ¢ finalmente uma s6 soberania, aquela da morte que rodeia, que se deixa evocar © nao partilhar, a morte da qual nao se morre, a morte sem poder, sem efeito, sem obra que, na derrisio que cla oferece, guarda a atragio da «vida inexprimivel, a tinica no final das contas & qual tu accitas te unir» (René Char). Como nao buscar nesse espago onde, durante um tempo que vai do crepisculo & aurora, dois seres nfo tém outra razéo de existir além de se expor inteira- ‘mente um ao outro, inteiramente, integralmente, absoluta- mente, a fim de que compareca, nao a seus olhos mas 2 nossos olhos, sua comum solidéo, sim, como néo buscar nesse espago € como néo reencontrar nele a comunidade negativa, a comunidade dos que nio tém comunidades? O ABSOLUTAMENTE FEMININO De uma certa maneira, nao deve escapar que eu ndo falo de modo mais exato, como setia necessirio, do texto de Marguerite Duras. Se me esforgo a menos traf-lo, reenconero a estranheza da jovem mulher que esté sempre li, e como que eternamente, cm sua fragilidade, pronta para acolher tudo aquilo que poderia lhe ser pedido, Mas, tio logo isso € escrito, me dou conta de que é preciso nuancar: ela é recusa também: por exemplo, ela se recusa a chamé-lo por seu nome, quer dizer, a fazé-lo existir nominalmente; do mesmo modo que cla nao lhe aceita as Kégrimas das quais ela 96 di uma interpre- tagio restritiva: cla as ignora, procegida que cla é dele, obstruindo 0 mundo por inteiro sem the deixar o menor lugar; A COMUNIDADE INCONFESSAVEL. do mesmo modo, enfim, que ela se recusa a ouvir a histéria da crianga, de sua infancia pela qual, sem diivida, ele gostaria de justificar, tendo amado demais a sua mic, néo poder amar esta de novo incestuosamente nela— hist6ria tinica para cle, banal para cla (ela omvin e leu também muitas vezes essa bistbria, por roda parte, em muitos livros). O que significa que ela nao saberia se limitar a ser mae, um substieuto da mic, ultrapassande toda especificidade que a caracterizaria como fulana ou sicrana, por af, 0 absolutamente feminino, e, no entanto, esta muller, viva a0 ponto de estar perto da morte se le Fosse capaz de dar a ela a morte, Ela acolhe, portanto, tudo dele, sem cessar de encerré-lo em sua clausura de homem que niio tem relagées sendo com outros homens, 0 que ela tende a designar como a «doengay dele ou como uma das formas dessa doenca, por ela mesma infinitamente mais vasta, (A homossexualidade, para assim vir a esse nome que jamais 6 pronunciado, néo é «a doenca da morte»: ela a faz somente aparecer, de uma maneira um pouco facticia, jd que é dificil contestar que todas as nuances do sentimento, do dlesejo 20 amor, sejam possiveis entre of seres, quer eles sejam semelhantes ou dissemelhances,) Sua doenca? A doenca da morte? Ela é mistetiosa; ela é repulsiva, ¢ atraente. E porque a jovem mulher pressentiu que ele era atingido por cla ou que cle era atingidlo por uma singularidade ainda dificil de nomear, que cla aceitou 0 contrato, quer dizer, encerrar-se com ele. Ela acrescenta que soube, desde quando ele falou, mas que ela soube sem saber, sem poder ainda nomear: Dunante os primeiros dias eu ndo soube nomear essa doenga, E, depois em seguida, pude fazé-lo. Mas as respostas que ela dé a0 assunto de uma tal doenga mortal, por mais precisas que sejam, ¢ que MAURICE BLANCHO? Jevam novamente a dizer: ele morre por nao ter vivido, morre sem que sua morte seja morte para qualquer vida (cle nao ‘motte, portanto, ou sua morte o priva de uma falta da qual cle néo tera jamais conhecimento}, tas respostas néo tém um valor definitivo, Ainda mais porque é ele, o homem sem vida, que organizou a tentativa de ir buscar a vida no conhecimento disso (0 corpo feminino: 1é esté a existéncia mesma), no conhecimentu dayuilo que cucatna a vida, dessa coincidéncia entre esa pele ea vida que ela recobre, ena abordagem artiscada de um corpo capaz de pér no mundo criangas (0 que quer justamente dizer que cla é também a mae para cle, mesmo que isso néo seja para ela de uma importincia particular). aquilo que ele quer tentar, ventar varios dias. talvez mesmo durante toda sua vida, Esté ai seu pedido, c ele o deixa claro em resposta a questio: Tentar 0 qué? Vés dizeis: Amar. Uma tal resposta pode parecer ingénua, tocante também, na medida de sua ignorincia, como se o amor pudesse nascer de um ‘queter-amar (ela responders, a gente se lembra disso: jamais de um querer) e como se 0 amor, sempre injustificivel, néo supusesse © encanta ft sua ingenuidade, ele calvex v4 mais longe do que aqueles que creem saber, Nessa mulher fortuita, com quem ele quer fentan tentar, € com todas as mulheres, com sua magni- ficéncia, seu mistério, sua realeza, ou mais simplesmente, com © desconhecido que elas representam, com sua «realidade derradeira», que ele sé pode se confrontar; néo hé uma mulher qualquer, nao é pela decisio arbitriria da escritora que esta mulher adquire pouco a pouco a verdade de seu corpo miticor isso Ihe é dado e é o dom que ela faz sem que possa ser recebido, nem por ele nem por pessoa alguma, talvez somente, .o, imprevisivel. E, entretanto, em A COMUNIDADE INCONFESSAVEL ¢ parcialmente, pelo leicor. A comunidade entre esses dois sctes, que nao se coloca jamais num nivel psicolégico, nem sociolégico, a mais assustadora que seja e, enttetanto, a mais evidente, ultrapassa o mitico ¢ 0 metafisico. Hi muitas relagdes entre eles: da parte dele, um certo desejo —desejo sem desejo, jf que cle pode se unir a ela, ¢ que é antes, ou que é, sobretudo, um desejo-saber, uma tentativa de nela se aproximar daquilo que se subtrai a toda abordagem, de vé-la tal como ela é, ¢, no entanto, ele nao a v¥; ele sente que nao a vé jamais (nesse sentido, é sua anti-Beatriz, Beatriz estando toda na visio que se tem dela, visio que supde a escala de todas as vis6es, da visio fisica fulminante & visibilidade absoluta onde ela nao se distingue mais do Absoluto mesmo: Deus, 0 1205, eoria, 0 tilkimo daquilo que é para ver) — e, a0 mesmo tempo, ela nao the inspira nenhuma tepugnincia, somente uma relagdo de aparente insensibilidade que nao & da indiferenca, se ele chama ligrimas e ainda mais ligrimas. E talver.a insensibilidade abra o homem que eré se deter nela 2 um prazer que nao se saberia nomear Talvez ods romeis dela um prucer desconbecido de vbs, ndo set (portanto, a instancia suprema no pode se pronunciar: o prazer é essencialmente aquilo que escapa); do mesmo modo, ela Ihe descobre a soli- dio, cle nao sabe se esse corpo novo que ele aleanga sem poder alcangé-lo 0 torna menos sozinho ou ao contritio o fz se tomar sozinho; anteriormente, ele nfo sabia que suas relagbes com os outros, seus semelhantes, eram calvez também relagoes de solidio, deixando de lado, por pudor, conveniéncia, submissio aos costumes, esse excess que vem com o femi- nino. Seguramente, 2 medida que o tempo passa, discernindo que com ela precisamente o tempo nao passa mais, e que assim MAURICE BLANCHOT cle & privado de suas pequenas propriedades, «seu quarto pessoal» que, sendo habitado por ela, é como que vazio — ¢ é esse vazio que ela estabelece que faz. com que ela seja de mais =, vem ao pensamento dele que ela deveria desaparecer e que tudo seria aliviado se ela se reencontrasse com 0 mar (de onde ele cré que cla vem), pensamento que nao ultrapassa a velei- dade de pensar. Entrecanto, quando ela verdadeiramente tiver se retirado, ele provari uma expécic de arrependimento ¢ tum desejo de revé-la, na nova solidio que a sibita auséncia dela cria. Sé que ele comete o erro de falar disso para os outros mesmo de rir disso, como se essa tentativa que ele empreendew com uma extrema seriedade, prestes a consagrar a cla toda sua vida, deixasse em sua meméria apenas a derrisio do ilus6rio. © que é justamente um dos tragos da comunidade, quando essa comunidade se dissolve, dando a impressio de jamais ter podido ser, mesmo tendo sido. AINCONFESSAVEL COMUNIDADE Mas ela mesma, essa jovem mulher, téo misteriosa, tao evidente, mas cuja evidéncia ~a realidade derradeira— nto é jamais melhor afirmada do que na imin€ncia de seu desapa- recimento, na ameaca em que, deisando-se ver por intcira, ela abandona seu corpo admiravel até a possibilidade de cessar de ser imediatamente, a qualquer instante, sobre seu tinico desejo (fragilidade do infinitamente belo, do infinitamente real, que, mesmo sob contrato, permanece sem garantia): quem é ela? Hé uma certa desenvoltura a se desembaragar dela A COMUNIDADE INCONPESSAVEL identificando-a, como fiz, com a Afrodite pagi ou com Eva ou com Lilith. Isso é um simbolismo Ficil demais. De toda maneira, durante as noites que cles passam juntos (€ bem verdade que cla ¢ essencialmente noturna), cla pertence & comunidade, nasce da comunidade, a0 mesmo tempo que faz sentir, por sua fragilidade, sua inacessibilidade ¢ por sua magnificéneia, que a cstranheza daquilo que nao saberia ser comum, é aquilo que funda essa comunidade, eternamente proviséria © sempre ja desertada. Nao ha felicidade aqui (mesmo que ela diga: Que Felicidade); a infelicidade cresce no quarto ao mesmo tempo gue se extende 0 sono dela. Mas, na medida em que o homem faz disso uma certa gléria para si, em que ele pensa ser 0 rei da infelicidade, cle Ihe descroi a verdade ou a autenticidade, enquanto, no encanto, essa inflicidade se torna sua propriedade, sua foreuna, seu privilégio, aquilo sobre o qual Ihe cabe choras. Entretanto, para ela também, ele néo esté sem uazer alguma coisa. Ele lhe diz © mundo, Ihe diz o mar, the diz. 0 tempo que se escorte e a alvorada que sitma embalando seu sono. Ele é também aquele que pée a questio, Ela é 0 oriculo, mas 0 oriculo s6 € resposta pela impossibilidade de questionar. Ela vos dis: Entdo ponde-me questées, pois por mim mesmo nao posso. Nao ha, na verdade, seno uma questio, ¢ a tinica questo possivel, posta em nome de todas por aquele que, em sua solidao, no sabe que interroga em nome de todos: Vés she perguntais se ela evé que alguém pode vos amar. Ela diz que em nenhum caso ninguém pode. Resposta tio categérica que ela nao pode vie de uma boca ordinaria, mas de muito alto ¢ de muito longe, instincia superior que ¢ também aquilo que se expressa nele em verdades parciais médicas. Vés dizeis MAURICE BLANCHOT que 0 amor sempre vos parecen deslocado, que vbs jamais compreendestes, que sempre evitastes amar... observacbes que invertem a primeira questo e a levam a uma simplificagio psicolégica (cle se manteve voluntariamente fora do cfrculo do amor: ninguém 0 ama porque ele sempre quis guardar sua liberdade de néo amar, cometendo assim 0 erro «cartesiano» segundo 0 qual é a liberdade do querer que, prolongando a liberdade de Deus, nao pode, nao deve ce deixar subverter pela violéncia das paixées). Todavia, o relato, to curto, mas tio denso, admite, ao mesmo tempo que essas afirmagées abrup- «2s, aflrmagées mais dificeis de fazer entrar em uma doutrina simples, £ cémodo dizer (isso é dito para cle e, por seu tumo, cle o admite) que ele nfo ama nada nem pessoa alguma; do mesmo modo que cle se deixa ira reconhecer que jamais amou ‘uma mulher, que jamais desejou uma mulher—e nem por uma sd vez, nem por um $6 instante, Ora, no relato, cle faz a prova do contrétio: ele esté ligado a esse ser que esté If por um de- sejo talvez pobre (mas como qualificé-lo?) que faz.com que ela se deixe abrir aquilo que ele pede sem o pedi. Vis sabeis que poderies dispor dela da maneina como quiserdes, a mais perigosa. (maté-la sem diivida, o que seria torné-la ainda mais real) Vas néo o fazeis. Ao contrério, vés acariciais 0 corpo com tanta dogura quanto se ele incorrese nesse perigo da feicidade... Relagéo surpreendente que revoga tudo aquilo que se pode dizer dela e que mostra 0 poder indefinivel do feminino mesmo sobre aquilo que quer ou cré permanecer estrangeiro rele, Nao «o eterno femninino» de Goethe, pilido decalque da Beatriz terrestre e celeste de Dante. Mas resta que, sem que haja rastro de uma profanacio, sua existéncia & parte tem algo de sagrado, particularmente quando no fim ela oferece seu A COMUNIDADE INCONFESSAVEL % corpo, assim como 0 corpo eucaristico foi oferecido por um dom absoluto, imemorial. Isso dito em trés linhas com uma solene simplicidade. Ela diz: Tomai-me para que isso seja _feito. Vis 0 faces, vis tomais. Iso esd feito. Ela adormece. Apés ‘0 qué, tudo tendo sido consumadb, ela nao estd mais ld. Tendo partido na noite, ela partiu com a noite. Ela jamais voltard. Podemos sonhar sobre esse desaparecimento. Ou entio, cle no soube guardi-lo, a comunidade tem fim de uma maneira tio aleatéria quanto comega; ou entao, ela fez sua obra, ela o mudou mais radicalmente do que ele cré, deixando- he a lembranga de um amor perdido, antes que este tenha podido advit. (Assim, para os discipulos de Ematis: eles s6 se persuadem da presenca divina quando esta os abandonou). Ou entio, ¢ ¢ 0 inconfessivel, unindo-se a ela segundo sua vontade, ele Ihe deu também essa morte que ela esperava, da qual ele néo era até entéo capaz, ¢ que dé 0 acabamento assim A sua sina terrestce — morte real, morte imagindtia, ndo importa, Ela consagra, de uma maneira evasiva, o fim sempre incerto que esté inscrito no destino da comunidade. A comunidade inconfessduel: ser que isso quer dizer que cla nao se confessa, ou entio que ela é tal que nao hé confissdes que a revelam, jé que, cada vez que se falou de sua mancita de set, pressente-se que nfo se apreendeu dela senao aquilo que a faz existir por auséncia? Entio, melhor teria valido se calar? Melhor valeria, sem por em valor seus cragos paradoxais, vivé-la naquilo que a torna contemporinea de um passado que jamais péde ter sido vivido? O preceito de ‘Wittgenstein célebre demais ¢ reiterado demais, «£ preciso MAURICE BLANCHOT calar aquilo do qual nao se pode falar», indica justamente que, jé que ele nao péde, a0 enuncié-lo, se impor o siléncio a si mesmo, é que, em definicivo, para se calar, é preciso falar ‘Mas com que espécie de palavras? Eis aqui uma das questes que este pequeno livro confia a outros, menos para que les respondam a ela do que para que eles queiram justa- mente porté-la eralvez prolongé-la. Assim descobriremos que cla tem também um sentido politico compelente e que ela nao nos permite nos desinteressar do tempo presente, o qual, abrindo espacos de liberdades desconhecidos, nos corna responsdveis por relagdes novas, sempre ameacadas, sempre esperadas, entre aquilo que chamamos de obra ¢ aquilo que chamamos de desobramento, A COMUNIDADE INCONFESSAVEL 7 - NOTAS: "NUT: Na edigio francesa o titulo dos subcapitulos esti em caixa alta, bem come, todas as cca com mats de ers inhas no so Blocadas. Por causa de sua csrita rents, Blanchot no estabele 20 flo iro ua lista de cds a efenclas rigsticas. Alem cio, roxas a palais composts so de inte responsabilidad ‘de Maurion Rlanchor 2 Georges Balle, 3 Jean-Lae Nancy, La Commune dsoewrée, em Alt, 4. 4 CE a revises Le canbe international, 3. 5 A ideia de “unidade comvnial” nio & estranha is paginas sobre 0 Sagrado publicadas nos Cahiers dare (ances dh guerra), talver cm acompanhamento a ‘certs expresses de Laure, Do mesmo mado, «O Sagrado é camunicapios fase que prestaa ma dup interpreragio. Ou ainda, «A comunbio, a fisso, 0 éxtase emandam rupoire ce hariiene rida in insert apresadamente nas CCademnets ao destinadas & publicagso, mas que no se pode entretanto omit, por causa da necesidade andente, sem precaugées, que nelas se expres, © Aquele que o principio de insuficiéncia ordens ¢ também vorado ao excess, (© homem: set insuiciente que tem, por horizonte, 0 excesvo. O excesso no €0 demastad-plono, 0 superabundance © excess da fala e por fale € a exigncia jamais sits da insula humana, 7 solore a palavra Vat [Vien], ose poderiadeisa de er presente no esptito ‘olivroinesquecvel de Jacques Deride, Diz tm apoceyptigue adopt maguire A COMUNIDADE INCONFESSAVEL on plileopbe (Call) particulamente esta fase que ester singular consondinca ‘com aula que se acaba de le, exteida de Le par andes Nese tom afrnutiv, Ven [Viens] no marca em si nom um dessa, nem uma ordem, ner uma. ‘ago, nem uma silica, nem um padi.» Oucra efleio que preciso 0 menos spresentar agus «© spocalipeen nio seria uma condicio uanscendentl de todo sliscutso, de toda experiéncia mesma, de toda marea, de todo resto’ Sera, cntio, na comunidade que se entendeca, anes de todo ertendimento € como sua condieto, oz apocalisics? Tales, Hd 0 dam pelo qual x obrign aqucle que o recebe 3 devolver um excedente de poder ox depresigio aquele que dos ~ asim, ninguém doa jamais. © dom que {abandone vora 0 ser absndonado 2 perder sem espsto de retomno, sem célculo sem slvaguanda até o su ser que dos: de onde a exigéncia de infinite que esti no sikncio do abandone, 0 romance de Dostoiéski, Or posuder ou Or denis, vem, sabe, de wm caso politica, sis akamentesignifcaiv. Sabe-se também, 2 refleaso de Freud sobre a origem da wciedade o fz penuisar cm um crime Sonhado ou cfeivado ~ sas, para Freud, aecesaiamente real, realizado) 2 passagem da horda 2 uma comunidade egulade ow ondensda. © stawina do chafe da hora comverce es cr pai, « honda em grupo e os membros da horda em filhoseirmins. «O crime preside to massimenco do grupo, da hist, da linguager (Eugéne Enriquen, De ta bode 2 P8at, Gallimard). N6s nos exganariamos ‘outro (pelo menos, me parece), se no wisemos aquilo que separa o devansio do de wm extreme ao de Freda exiginela de Acéphale: 1) Ceramente, a morte est presents em Acéphale, mas 6 asasinato se esquiva a ele, mesma sob a forma sacrificial. De inicio, a visa é sonsentidors, consentimento que no ésficente, que pode dar s morte agucle que, dando, morta a6 mesmo tempo, quer dizer sabera subtiir 2 vikima voluntéria por si mesmo: 2) A comunidade ado pode sé se fondar sobre o stricto sangrenco de dois dos seus membros, chamados a expiar MAURICE BLANCHOT por todos (spécies de bodes exptios), Cada um deveria morrer pr rds ¢& ra morte de todos que cads um decerminaria © destino da comunidade; 3) Ma, up, cia primeira cxiginciaé remuncar a Finer ot (mesmo que se obra de moet) eeu dar-se por projeto a exceugo de uma morte serial é ilar’ projeto essencial exh todo projeto; 4) Dal passagem a uma espécierorelmente cura de sacrificio, 0 quando seria mais asasinaro de um s5 ou asassinato de todos, mas dom ¢ abandono, infiito do abandon. A decsptacso, a prliagso da Cabega nko atings 6 chef 940 pa fo inscin os outros come ems, mas ope cm jogo entiegando-os a0 edesencadcamento sem fim das paixdes. E o que liga Acephale ao presentimento de wm desasre que wanscendesia toda forma de transcend °° uae compli, Galimard tome V, p47. Marguerite Duras, La mai de le mer, altons de Minuit. ° NT: no orginal Chen ° George Pel, La fice du deb, Encree, Editions Recherches. 40 iuilico€ de minha responsabildade modo, gstaria de ressalar 0 valor do carter de uma vor eujaorigem nos escape n todas a ctagdes deste livre. Desse "> simplificande muito, poderiamos rcomhecer ag a confirmagso do confito aque, conforme Freud (am Freud bastante caricatural), se decara, implicita ou cplicitemente,entte 08 homens, fizedores de grupo, gragas 3 sua condéncia hhomosscaual,sublimada ou nio (as S.A.~ Seogtes de Asso), ea mulher que sé pode dizer verdad do amos, qual é sempre sinvasor,exclusivo, excessive, eri Acantes. A mulhor sabe que © grupo, eepetigo da Meso ou do Semelhante, é na raldade © coeico do verdadelto amor que sé se alimenta de difrengss. A COMUNIDADE INCONPESSAVEL a e (© grupo homano ondinésio, aquele ue se confess e é por excecia evades, stende mais ou menos a izes prealecer@ homogénes, 0 repaticve,o consinu solie.0 betergéneo, © nove ea acctago daflhas. A mulher é,cntio, «vnuusse «que desaranja a tranquila continuidade do lago social eno reconhece ai «lsio, Fla tem parte ligada com o inconfessvel.De onde se reconhecen as das vertontes da more segundo Frauds a pulsio de morc eth em obea na civlizagio, ‘embora, no entanto, esta tenda, para se conserva desondem do hemogenco ofc (eentropla om cou minion), Mar ela nto ett menoc om obra quando, pela incisive com a cumplicidade das mulheres, © heceroginco, a alterdade cacusive, a vioncia sem Ii, unindo Eros ¢ Tanatos, se impem até o fim (E uagine Enriquer, Dela hone Ea "Nise pode to rapidamence evacuaratanscendénca ou a preexclénca da Leh quando esta, segundo visdes misticas ber conbecidas io ésomenteconsidcrada ‘como tnd sda cada dois mil anos anes da ctngfo do mundo, mas, em relagio com o name nfo nomeada de Deus, contribu parses crag, ac mesma rempa .queadeissinscabada, De onde esa reversio temire: a Let (a allangs) que € daca s0s homens para lberi-los da idolatia core risa de ear sab ogolpede wm culeo {dlatea se ext €adorada em si mesma, sem se cubmeter ao estudo infinivo, an envino ob macera que cua pritcaexge: Encino que por ces tiene; no depen por mais indispensivel que sea, remunciar & sua prima, quando a urgincia de Jevar scons a outsem desarranja todo estado ¢ se impée como aplieaeao da Lei que sempre precede Let 17 CE Sarah Kofinan, Comment sen sort? Gi 18 Banille excreve vislenramente: «© horror vasio da conjugsidade segular ‘os ences desde je MAURICE BLANCHOT

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