Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 184
PUBLICACGES DA ACADEMIA BRAZILEIRA IE — HISTORIA HANS STADEN VIAGEM AO BRASIL VERSLO DO TEXTO LE MARPURGO, DE 1557, FOR. ALBERTO LOFGREN Revista e anotada FOR THEODORO SAMPAIO aD MMOR- TAL TA TEM 130 OFFICIHA INDUSTRIAL GRAPHICA RUA DA MISERICORDLA, 74 R10 DB JANEIRO AD IMMOR- TEM. HANS 8TADEN VIAGEM AO BRASIL BIBLIOTECA DE CULTURA NACIONAL (Publicagdes da Academia Brazileira) CLASSICOS BRAZILETROS T — Lirerarvra Publicadas: 1 — Prozororta, de Bento Teixeira, 1923. 2 — Prmemas Lerras (Cantos de Anchicta, O Diatoao, de Joie de Lery, Trovas indijenas), 1923. 3 — Mvaca vo Parwasso. — A Inia pe Maré — de Ma- nuel Botelho de Oliveira, 1929. 4 — Onras, de Gregorio de Mattos: I — Sacra, 1929. IL — Lirica, 1923, Ill — Grecioza, 1930. IV — Satirica, 2 vols., 1930. A pwdlicar-se: 5 — Diatoco pas Granpezas po Brazit. 6 — Onnas, de Euzebio de Mattas. 7 — Opras, de Antonio de Si, 8 — O Peresrino pa America, de Nuno Marques Pereira, 2 vols. 9 — A Semana, de Machado de Assis (2* série). 10 — Ihscurses Pouiricos-morars, de Feliciano Joaquim de Sonza Nunes. ll — Eserrros, de Arthur de Oliveira. 12 — Cronicas © Versos, de Adelino Fontoura, TT — Hisrorta Publioadas: 1 — Trarapo pa Terra po Braz. — Historta pa Provi- cr Sawra Cruz — de Pero de Magalhies Gandavyo, 1924. 2— Haws Stapen — Viasem ao Brazm (revista e anotada por Theodoro Sampaio), 1930. A publicar-se: 3 — Pruetros Documentos (Cartas de Pero Vaz de Cami- nha, Mestre Joao, Americo Vespucio, ete.) . PURLICACOES DA ACADEM(A BRAZILEIRA Ll — HISTORIA HANS 5TADEN VERSAO DO TEXTO DE MARPURGO, DE 1557, POR ALBERTO LOFGREN Revista ¢ anolada PO? THEODORO SAMPAIO .c. 1 B4614 1930 OPFICINA INDUSTAIAL @RAPHICA 2UA DA MISERICORDIA, 74 KLO DB JANEIRO NOTA PRELIMINAR © livro de Hans Staten é wa dos classicos de nossa iteratura historica, Cumpria delle ter uma versio fiel ¢ completa, dotada de apperella critica. Nenkuma das tres edigées nossas — Araripe, Lifgren, Lobato — merece taes eneomios, Creio que a nossa, a presonte, é digna deste elagio. Com effeito, traduaido da texto da edigaa de Marpurge por americanista capaz, Alberta Léfgren, “trazida correcedo vernacula por Theadora Sampaio, a compeioncia deste sabio em assumptos nacionaes enri- quecen a texto com infinidade de notag interessantes ¢ indispensaveis. As gravuras nes vim da recente edigao feesimilar de Pronkforte, Temos assim um Hans Staden digno delie ¢ do seu assumpto @ que honra, partanta, as publicagdes da Academia Brasileira. © retrate com que se abre esta edigiio foi achado em 1664 © publicada por Winckelmann, sendo reproduside nessa edigao fac-similar de Frankforte. Se ndo certeza, tem probabilidades de verdadeira, pois é da tempo a te- chnica da gravura em madeira e foi achado em Cassel entre os desenhos originaes do livra. Alias, tambem nao ha certeza sobre a vida do aw- tor, desconhecidas as datas de sew naseimenta ¢ morte. 7 HANS 8TADEN Sabe-se apenas que era filho de um burguez de Hom- berg, ¢ que mais torde vivew em Wolfhagen, como elle mesmo declara, © methor, porém, sua abra, subsiste, e é um da- cumento réelevante da historta da Brasil, PREFACIO DO TRADUCTOR PRESENTE traduceio do interessante Livro de Hans Staden é a segunda em lingua portugueza. A primeira appareceu em 1892, na Revista do Instituto Historico ¢ Geographice Brasi- leire, volume 55, parte 1", e tem por antor o dr. Alencar Araripe, que adopton a orthographia phonetiea. O original de que esta se serviu foi da edic&o franceza da eolleceio Ternanx Compans, que, provavelmente, por sua vez, féra traduzida da versdo latina. Com- parando as duas, vé-se que a traduccRo é@ fidelissima, mas como nao foi o trabalho feito A vista do original allemao, mao é de es- tranhar que se afaste bastante deste, principalmente no estilo que, de todo, foi despresado com sacrificio daquelle cunho caraeteristico, eom qué lembra a sua época. Mas, além destas, ha varias outras traduecedes ¢ muitas edi- goes, tanto do original como das versdes; segundo o que conhece- mos sio ellas: 1*. © original primitivo, publicado em 1557 na cidade de Marburg, em Hessen, na Allemanha [1]. f1] “A obra appareeeu pri mente em 1556 em Frankfort sobre 0 Mena, “durch Weygeodt Han’. Nao ba data no liveo, mas o prefacio é de 1556 e éde suppor que sendo ja Frankfort grande centro bibliographieo, ¢ on- tras edigies fnturas tendo sahido dali, tambem o fisse esta. Como oa pro- vas foram revlatas pelo Dr. Dryander de Marpurgo (o livro tem illusteagtes em mideira quo mal pediam ter sido preparadaa ali}, & de crer que nig ge antisfazendo elle com as gravuraa que, fines como eram, Pouca idfa devam dag aventuras do sou herot, precurnsac fazer outta edigio em Marpurgo mes: mo, € com gravurog mais verdadeiras, 52 bem que nauito toseas, E assim o fez, em 1557," (J, C, Rodrigues, Bibliotheca Bragiliense, Rio, 1907, p. 590). — A. P. HANS STADEN 2°. Segunda edigio, impressa no mesmo anno, mas na e¢i- dade de lrancfort sobre o Meno. 3°. Traduecio flamenga, publieada em Antuerpia, em 1558. 4". Nova edicio allema, publieada em Franefort sobre o Meno, em 1067, ma terceira parte de um livro intitulado: Dieses Welthuch van Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke. ™, Outra edi¢io, ainda em 1567, ma mesma cidade, publica- da na colleeeio das viagens de De Bry. O*. A tradnegdo em latim, em 1567, da colleegio toda de De Bry. i*, Nova edigho latina publicada em 1560 (2). &*. Em 1630 ainda uma terceira. §*. Uma quarts edicio allemf do original, in folio, torna a apparecer em 1593. 10°, Nova traduceao flamenga, publicada em 1630, com o titulo de: Hang Staden van Homburys Beschryringhe van America. 11". Reimpressa em 1646, 12". Quinta edicio allemi, publicada em Franefort sobre o Meno, em 1631. 13". Mais uma sexta edicio, quarto, publicada em Olden- burg no aunoe de 1664. 14. Em 1686 houve outra edigto hollandeza, em quarto, ¢ il- Instrada com xilographiss, publicada em Amsterdam. 14". Mais uma em 1706, numa colleegio de viagens, publicada na cidade de Leyden por Pieter Vanden Aa. 16*. Em 1714 seguiu-se a quinta edigio hollandeza, publicada em Amsterdam, em parte. Esta edigzo é mencionada por Bouche de Richurderie na “Biblothéque Universelle de Voyages”. Tomo V, pag. 503, Paris, 1806. [2] Liifgres 1007, 4 © 08 numeros 5, 6 ¢ 7 da bibliographia do Sr. (J. ©. Rodrigues, Bibliotheca Brosiliense, Rio, --tnatinie dize 0 mera phantasi 1806 apparceca a primeira versio hollandesa (nia mencionada por Brunet ou Greessy) ¢ foi reproduzida (sem o prefacin) em 1627 e 1634 (Am- fterdam...) wenluma dellas sendo aceusida pelo Sr, Ligfren™ (J. CO. Ro= drigues, op. cit. p. HM1), — A, P. 16 VIAGEM AO BRASIL 1i*. Uma traduceio franeeza foi publicada na colleegio de wiagens de Ternaux Compans; Vol. TI, Paris, 1839, em oitavo. 1k*. A sexta edigio hollandeza, in folio, foi publicada em Ley- den em 1727, como nova edieio de Pieter Vanden Aa. 10", A ultima edigio allema que appareceu em Stuttgart em 1859, na “Bibliothek des Liberischen Vereins”, em Stuttgart. Vo- lume XLVI, 20". Em 1874 @ sociedade ingleza The Haklwyt publieou, em volume separado, wma traduccio magistral, feita pelo sr. Albert Tootal, com amnotacses do entao consul inglez em Santos, Sir Ri- ¢hard F, Burton, Esta traduccao foi feita sobre a segunda edigio allema de 1557 e @ até hoje a melhor, 21". Traduegao brasileira na Revista do Institute Mistorico ¢ Geogrephico Brasileira, pelo dr, Alencar Araripe. Tendo o illustrado dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um exemplar, original da primeira edigao de Marburg, de 1557, come- ¢imos a comparar este original com a traducgio portugueza e che- gamos 4 conclusio de que talvez houvesse vantagem em dar mma nova edigio deste livre tio interessante para a nossa historia, De- libcramos entéo cingir-nos estrietamente ao methodo ¢ linguagem do autor, conservande integralmente a orthographia dos nomes pro- prios dos logares, coisas e pessoas ¢, quanto possivel, 0 proprio es- tile simples e narrativo, com todas as suas imperfeigdes, ¢ quer-nos parecer que no nosso modesto trabalho nao haja a menor omissaic. Por absoluta falta de tempo ¢, por julgar mais competente, pe- dimos ao nosso distinecto amigo e consocio dr. Theodora Sampaio que s¢ enecarregasse das annotagoes e esclarecimentos relatives aos nomes e posig0es relatados pelo autor. Na traduceaio ingleza, o sr. Burton fez muitas annotacies ¢ deu varias explicagdes, porém, nado sendo todas sempre acertadas, nao as copiamos, julgando necessaria uma revisio completa de todas ellas. As palavras “pela segunda vez diligentemente augmentada ¢ melhorada”, que se acham no titulo, podiam fazer suppor que se tratasse aqui de uma segunda edigio ¢ nao da primeira ou origi- 11 HANS STADEN nal, mas estas palavras devem ser entendidas como “por duas vezes augmentada e melhorada” porque, o prefaciador dr. Dryander tinha, certamente, auxiliado ao autor por ser este pouco versado na arte de eserever ¢ compor. Aceresce que esta edigéo é impressa em Marburg na casa de André Colben, o que por si s6 prova eviden- temente ser a primeira edigio comhecida, visto a segunda edigao ter sido feita em Francfort sobre 0 Meno, ainda que no mesmo anno. Tendo o dr, Dryander revista o manuseripto para ser apresentado ao prineipe em 1556, é muito provavel que, para a impressio, qne 6 teve logar em 1557, o revisse pela segunda vez e nesta oceasifo talvez augmentasse alguma coisa, como diz o titulo. As gravuras sao reprodueGes photographicas, em tamanho igual, das estampas do original. Ignora-se, porém, si os desenhos sio do proprio autor ou de outrem por elle guiado, o que alida é mais provavel, Janeiro de 1900. Awgerro Lirarex, F. L. 8. NOTA — A nota bibliographica de Léfgren, com as modifiengdes cita- das por J, C. Redrigues, devemos necrescentar: I — Hans Just Wynkelmann: Ber Ameritenischen Neuer Welt Beschreib- ung — Oldenborg, 1644, (Tratase de uma curiosa deveripgio da America, e nella se inelue o texto da relagio de Staden, com ag gravuras dn.1* edigio). II — Reimpressiio, na Zeitschrift dex Doutechen Wissenschaftlichen Fe- reins, de Buenos-Aires, do texto da 3* ediglo do Frankfort sobre o Meno, de 1567, pelo Dr. R. Lehmann-Nitscho, Buenos-Aires, 1921, TIT — Hans Staden — edigio da série “Brasil Antigo, da Companhia Editora Nasional, texto ordonade literarinmente por Monteiro Lobato, Bio Paulo, 1925; 2" ed, 1926; 3" ed. 1927. A edigio de M. Lobuto eontém 9é- mente a 1* parte da obra de H. Staden. IV — Edigdo faesimilar da de Marpurg, de 1557, pelo Dr. Richard N. Wegner, Frankfurt 0. M., 1987. — A. FP. 12 DESCRIPCAO VERDADEIRA DE UM PAIZ DE SELVAGENS NUS, FEROZES E CANNIBAES, SITUADO NO NOVO MUNDO AMERICA, DESCONHECIDO NA TERRA DE HESSEN ANTES E DEPOIS DO NASCIMEN- TO DE CHRISTO, ATE QUE, HA DOIS AN- NOS, HANS STADEN DE HOMBERG, EM HESSEN, POR SUA PROPRIA EXPERIENCIA, 0 CONHECEU E AGORA A DA A LUZ PELA SEGUNDA VEZ, DILIGENTEMENTE AUGMENTADA E MELHORADA. Dedicada a sta serenissima alieza Principe H. Philipsen, Landt- graf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain ¢ Nid- da, seu Gracioso Senkor, Com um prefacio de Dr. Jah, Dryandri, denominade Eychman, Lente Cathedratico de Medicina em Marpurg. O conteido deste livrinko segue depois dos prefacios. impresso em Marpurg no anno de M.D.LVII, 13 Ao serenissimo ¢ nobilissima Principe ¢ Senkor, Senhor Phi- lipsen, Landigraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Zie- genkain ¢ Nidda, etc., men graciaso Principe ¢ Senhor, G RACA & paz em Christo Jesus nosso redemptor, Gracioso Prin- cipe ¢ Senhor. Diz o Santo Rei Propheta, David, no psal- mo cento e sete: “Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes aguas, “Esses véem as obras de Jehovah e suas maravilhas no pro- fundo. “A um aceno, Elle, faz soprar termentoso vento, que lhe ergue as ondas. “Sobem aos céos, descem aos abysmos: suas almas se aniqui- Jam de angustia. “Tropecam e titubeam como bebedos: ¢ toda a sua sabedoria se Ihes foi. “Clamam, porém, por Jehovah em suas afflicgdes; e Elle os tira dos apertos. “Faz cessar as tormentas, ¢ se aquietam as ondas. “Entio se alegram, porque tranquillizados, e Elle os conduz ao desejado porte, “Louvem, pois, o Senhor pela sua bondade e¢ pelas suas mara- vilhas, para com os fithos dos homens. “Eo exaltem no seio do povo, ¢ no conselho dos ancidos o glo- rifiquem.” Assim, agradeco ao Todo Poderoso, Creador do céo, da terra e do mar, ao seu filho Jesus Christo e ao Espirito Santo, pela grande graga e clemencia de que fui alvo durante a minha estada entre os 15 HANS STADEN selvagens da terra do Prasilien [Brasil], chamados Tuppin Imba (1) e@ que comem carne de gente, onde estive prisionciro nove mezes e corri muitos periges, dos quaes a Santa Trindade inesperada ¢ milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste e perigosa vida, tornasse a vér a minha muito querida patria, no prineipade de Vossa Graciosa Alteza, apés muitos anmos. Modes- tamente « com brevidade tenho narrado essa minha viagem & na- vegagdo para que Vossa Graciosa Alteza a queira ouvir, lida por outrem, de que modo eu, com auxilio de Deus, atravessei terras e mares ¢ como Deus milagrosamente se mostrou para commigo nos perigos. E para que Vossa Graciosa Alteza nao duvide de mim, como si eu estivesse a contar coisas mentirosas, queria offerecer a ‘Vossa Graciosa Alteza, em minha propria pesséa, uma garantia para este livro. A Deus sémente seja, em tudo, a Gloria. Recom- mendo-me humildemente 4 Vossa Graciosa Alteza. Datum Wolffhagen a vinte de Junho — Anno Domini. Mil quinhentos cineoenta ¢ seis. De V. A. subdito Hans Steden, de Homberg, em Hessen, agora cidadao em Wolffhagen. (1) Teppin Zmba 6 mais uma das muitas formas com que se nos depara © nome tupi do gentio brasilico, dominador na costa ao tempo da conquista. Entre os portuguezes dessa epoca esereviase Tupinambd, nome que se vul- garizou. Entre og eseriptores francezes comtemporaneos Mem-se, porém, To- pinombour, Tapinam}ds, Toupinambes, @ até Towoupinambaoult eseroveu Joo de Lery, graphia que, apetar de extranha, foi considerada por Ferdinand De- uis como a mais proximn da verdade. De tio grande diversidade de forma resulta n tio econtrovertida interpretagio do vecabulo que a ninguem aatis- fox. Tuppin ou Tupin quer dizer tio, irmio do pai; imba ou imbé = abd, homem, gente, geragio. Tambem Tu-upi, significa o pat primeiro, o proge- nitor, Tu-upt-abd, a geragio do progenitor. X 16 Ao nobilissimo Senhor H, Philipsen, conde de Nassau e Sar- priick, etc., mew graciosa Senhor, deseja D. Dryander muita feli- cidade, com o offerecimento de seus prestimos, H Ans STADEN, que acaba de publicar este livro e historia, pediu- me de rever, corrigir e, onde fosse necessario, melhorar o seu trabalho. A este pedido accedi, por muitos motives. Primeiro, por- que conhego o pae do Autor, ha mais de cincoenta annos (pois que nascemos no mesmo estado de Wetter, onde fomos edueados), como um homem que, tanto na terra natal, como em Homberg, é tido por franco, devoto e brave, e que estudou as béas artes, e (como diz o rifaio) porque a magi nfo cae longe da arvore, é de esperar que Hans Staden, como filho deste bom homem, deva ter herdado as virtudes ¢ a devogie do pac. Além disso, acceito o trabalho de rever este livro com tanto mais gosto e amor, quanto me interesso muito pelas noticias con- cernentes 4s mathematieas, como 4 Cosmographia, isto é, a deseri- pode e medigaio dos paizes, cidades e caminhos, taes como neste li- vro se deparam, mérmente quando vejo os suecessos narrados com franqueza e verdade, ¢ nao posso duvidar que este Hans Staden conte ¢ esereva com exactidio e verdade a sua narrativa e viagem, nao por tel-as colhido de outrem, mas de experiencia propria, sem falsidade, e que elle dabi nio quer tirar gloria nem fama para si, mas sim, unicamente, a gloria de Deus, com louvor e gratidzo por beneficios recebidos ¢ pela sna libertagio. O seu principal objective é tornar conhecida sua historia a todos, para que se possa ver com que favor ¢ como, contra toda a expectativa, Deus, o Senhor, sal- vou de tantos perigos a Hans Staden, quando elle o implorou, ti- rando-o do poder dos ferozes selvagens (onde durante move mezes, 17 HANS STADEN todos os dias ¢ horas, estava esperando ser impiedosamente truci- dado e devorado), para lhe permittir, a elle, tornar 4 sua querida patria, Hessen. Por essa ineffavyel clemencia divina e pelos beneficios rece- bidos, queria elle agradecer a Deus no limite de suas forgas, e em louvor de Deus communicar a todos o que lhe acontecou. Nesta grata tarefa, a ordem dos acontecimentos o levou a descrever toda a viagem com suas peripecias, durante os dois annos que esteve au- sente da patria. E como faz elle esta deseripgao sem palavras pomposas e flo- ridas, sem exaggerages, tenho plena confianga ma sua authentici- dade e verdade, até porque nenhum beneficio pdéde elle colher em mentir, em vez de contar a verdade. Além disso, fixou-se elle agora com os seus paes mesta terra e nao é dado a vagabundagem, como os mentirosos e ciganos, que s2 mudam de um paiz para outro, pelo que é facil esperar que alguem de volta daquellas ilhas [*] 0 possa acusar de mentiroso. Sou dé opinifio e considero para mim valiosa prova de ver- dade o fazer elle esta descripgio de um modo tao simples e indicar a época, o paiz ¢ o logar, em que Heliodorus, o filho do sabio e mui- to fameso Eoban de Hessen, o qual aqui foi tido por morto, es- teve com Hans Staden naquelle paiz ¢ vin como elle foi miseravel- mente preso e levado pelos selvagens. Esse Heliodorus, digo, péde, mais cedo ou mais tarde, voltar (como se espera que aconteca) ¢ entao envergonhal-o e denuncial-o, como um homem sem valor, caso sua historia seja falsa, on inventada. Para entao resalvar e defender a veracidade de Hams Sta- den, quero agora apontar os motives pelos quaes esta ¢ similhantes historias logram, em geral, pouco eredito e confianca. Em primeiro logar, viajantes houve que, com mentiras e nar- rativas de coisas falsas e inventadas fizeram com que homens ho- nestos ¢ veridicos, de volta de terras estranhas, niio sejam acredi- tados e, entio se diz geralmente: “quem quer mentir, que minta de [*] eja-sc adiante a nota 2. 18 VIAGEM AO BEASIL longe e de terras longinquas” porque nimguem vai 14 para verifi- car, ¢ antes de se dar a esse trabalho mais facil é acreditar. Nada, comtudo, se ganha em desacreditar a verdade por amor de mentiras. H tambem para motar que certas coisas contadas ¢ tidas pelo vulgo como impossiveis, para homens de entendimento niio o slo; e tomadas por veridicas, quando investigadas, mostram sel-o evidentemente. Isto péde-se observar em um ou dois exem- plos, tirades da astronomia. Nés, que vivemos aqui na Allemanha ou perto della, sabemos de longa experiencia a duragio do inverno e do vero e das outras duas estagies, a primavera e o outono. Tam- bem conhecemos a duragio do maior dia de verio e do menor dia do inverno, bem como a das noites. Si alguem entio disser que ha logares na terra onde o sol nao se poe durante meio anno, ¢ que ali o dia maior é de 6 mezes, isto é, meio anno, € que ao contrario a noite maior é de 6 mezes ou meio anno, assim como ha logares. no mundo onde as quatro estagdes sio duplas, o certo é que dois in- vernoes ¢ dois verdes li existem. EH tambem certo que o sol e outras estrellas, por pequenas que nos parécam, ¢ mesmo a menor dellas no firmamento, sio maiores que toda a terra e sdo innumeraveis. Quando entiio o vulgo ouve estas coisas, desconfia, nfo acre- dita e acha tudo impossivel. Entretanto, os astronomos o demons- traram de modo que os entendidos nas sciencias nao duvidam disto. Por isso nfo se deve concluir que assim nio seja, apezar de que o vulgo Ihe nao dé eredito, ¢ eomo nao estaria mal a seiencia astronomieca, si nfo pudesse demonstrar este corpera e determinar, por ealenlos, os eclipses, isto é, o escurecimento do sol e da lua, com indicar o dia e a hora em que elles se devem dar. Com seeulos de anteeedencia podem ser predites e a experiencia demonstra ser werdade. “Sim, dizem elles, quem esteve no céo para ver e medir isso?” Resposta: porque a experiencia diaria nestas eoisas com- bina com as demonstrationibus. B, pois, necessario eonsideral-as verdadeiras, como é verdadeiro sommar 3 e 2 sio 5. E de certas razées ¢ demonstragies da sciencia acontece que se péde medir e ealeular a distancia celeste até a Ima e dahi para todos os plane- tas e finalmente até o firmamento estrellado. Até o tamanho e den- i3 HANS STADEN sidade do sol, da lua e outros corpos celestes ¢ da sciencia do eéo ou astronomia, de combinacio com a geometria, esleulam-se a gran- deza, a redondeza, a largura e o comprimento da terra, coisas estas todas desconhecidas do vulgo ¢ por elle no acreditadas. Esta igno- rancia por parte do vulgo ainda é perdoavel por nao estudar elle a philosophia; mas que pesséas importantes e quasi sabias duvidem destas coisas tio verdadeiras, é vergonhoso e até perigoso, porque o vulgo tem confianga nellas e persiste no sen erro dizendo: si as- sim fosse, este ou aquelle eseriptor nio teria refutado. Ergo, ete. Que S. Agostinho e Lactancio Firmiano, dois santos sabios, nao simente em theologia, como tambem em outras boas artes ver- sados, duvidaram ¢ nao quizeram admittir que pudesse haver an- tipodas, isto é, que honvesse habitantes no outro lado da terra, que andem com seus pés voltados contra és e, portanto, a eabega e o corpo pendentes para o céo, isto sem cair, parece singular, apezar de que muitos outros sabios o admittam contra a opiniiio dos san- tos e grandes sabios, acima mencionados, que o negaram e¢ 0 tive- ram por inventado. Deve, porém, ser verdade que aquelles que habitam ex diametro per centrum terrae sio antipodas e vera pro- pasitio é que “Onme versus coelum vergens, ubiewmque locorum, sursum est.” EB nao é necessario ir até o novo Mundo a procurar os. antipedas, pois elles existem tambem aqui no hemispherio superior da terra. Pois si compararmos e confrontarmos o ultimo paiz do Oeeidente, como é¢ a Espanba no Finisterra, com o Oriente, onde esta a India, estas gentes extremas e habitamtes terrestres sic tam- bem quasi uma especie de antipodas. Pretendem alguns santos theologos com isso provar que se tornou verdade a supplica da mie dos filhos de Zebedeu, quando rogou a Christo, Senhor Nosso, que seus filhos fieassem, um ao lado direito e outro ao esquerdo delle. E isso de facto acontecen, pois. que 8, Tiago sepultou-se em Compostella, niio longe de Finisterra, geralmente denominado Finstern Stern (*) [Estrella eseura], onde é venerado, ¢ o outro apostolo na India, ou onde o sol levanta. Que, (*) Quer dizer estrellas eacuras, por uma especie de trocadilho, 34 pos- sivel nu lingua allemi, (O tradwetor), 20 VIAGEM AO BEASIL pois, os antipodas existiam ha muito sem serem notados, e que ao tempo de S. Agostinho, quande o novo mundo da America, na parte inferior do globo, ainda se nado descobrira, no deixaram de existir, G um facto. Alguns theologos, especialmente Nicolau Lyra (reputado, todavia, excellente homem), affirmam ser a parte fir- me do globo terraquco numa metade apenas fora d’agua, na qual fiuetiia e onde habitamos, a omtra parte occulta-se pelo mar e pela aguz, de modo que nella ninguem pode existir, Tudo isso, porém, é contrario 4 sciencia da Cosmographia, pois que hoje esta verifi- cado pelas muitas viagens maritimas dos portuguezes e dos espa- uhées que a terra é habitada por toda a parte. A propria zona tor- rida tambem o €, 0 que nossos antepassados e escriptores jamais ad- mittiram., A nossa experiencia de cada dia mostra-nos que 0 as- suear, as perolas e productos outros para ci vem daquelles paizes, ‘O paradoxo dos antipodas e a ji referida medigio do céo, mencio- nei-os aqui tao sémente a reforgarem 0 meu argumento, e podia ain- da me referir a muitas outras coisas mais, si nio temesse aborre. eer-Vos com o meu longo prefacio, Muites outros argumentos similhantes, porém, podem-se ler no livro do digno e sabio Magister Casparus Goldtworm, diligente su- perintendente e prégador de V. Alteza, em Weilburgk, livro em seis partes, tratando de muitos milagres, maravilhas e paradoxos dos tempos antigos e modernos, ¢ que sem demora se deve dar a im- primir. Para este livro ¢ muitos outros que deserevem ftaes coisas, como, p. ex., o sen Libri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus, ete., chamo a attengio do benevolo leitor desejoso de conhecer mais estas coisas. Com tudo isso se prova que nao @ necessariamente uma men- tira, o affirmar-se eoisa estranha e descommunal para o volgo como nesta historia se vera, na qual toda a gente da tha (2) anda nia e nao tem por alimento animaes domestieos, mem possue coisas para sua subsistencia das que nés usamos, ¢omo vestimentas, camas, cavallos, (2) Por case tempo, rinda se niio tinha identificnds o inteiro continen- te da America, Os noroa deseobrimentos, isolados, ou deafneados, considera- vam-se Wigs. O Brasil de Hans Staden 4 ainda uma isa. 21 HANS STADEN porees ou vaccas; mem vinho, cerveja, etc., ¢ tem que se arran- jar e viver a seu modo. Quero, porém, para fimalizar com este prefacio, mostrar em poueas palavras o que induzin a Hans Staden a imprimir as suas duas navegacdes e a viagem por terra. Certo, muitos hio de inter- pretar isso em seu desabono, como si quizesse elle ganhar gloria ou notoriedade. En, porém, penso de outra forma e acredito seria- mente que sua intencio & muito diversa, como se percebe em va- rios logares desta historia. Passou elle por tanta miseria e soffren tantes revézes, nos quaes a vida téo a miudo The esteve ameacada, que chegou a perder a esperanca de se livrar ou de jamais voltar ao lar paterno. Deus, porém, em quem sempre confiava ¢ invoca- va, nio simente o livrou das maos de seus inimigos, como tambem, por amor das suas fervorosas oragies, quiz mostrar 4 aquella gente impia que o verdadeiro ¢ legitimo Deus, justo e poderoso, ainda existia. Sabe-se perfeitamente que a oracio do erente niio deve marcar a Deus limite, medida ou tempo; aprouve, porém, a Elle, por intermedio de Hans Staden, 0 demonstrar os seus milagres a estes impios selvagens. E isto nao sei como contestar. Sabe-se tambem como as contrariedades, as tristezas, desgragas e doengas fazem geralmente com que as pessoas se dirijam a Deus e que, na adversidade, nelle acreditam mais do que antes, ou como alguns, segundo o costume catholico, fazem votos a este on Aquelle Santo de fazer romaria ou penitencia, para que elle os livre nos apures, cumprinds rigorosamente essas promessas, a nao serem aquelles que pretendem defraudar o Santo, como nos refere Eras- mus Roterodamus, nos Colloguits sobre o naufragio de um navio de nome 8. Christavam, enja imagem de dez covadoa de alto, como um grande Poliphemo, se acha num templo em Paris, navio em que vi- nha alguem que fizera a promessa a este Santo de offerecer-lhe uma véla de cera do tamanho do proprio Santo, si este o tirasse das suas aperturas. Im companheiro, que estava ao lado nesta oc- easifo, conhecendo-Jhe a pobreza, o reprehendeu por tal promessa; pois ainda que vendesse tudo quanto possuia mo mundo, nao seria eapaz de adquirir a cera de que havia de precisar para tamanha vela. 0 outro, porém, respondeu em voz baixa, que o Santo nfo ou- 22 VIAGEM AO BEASIL visse: “Quando o Santo me tiver salvo destes perigos, dar-lhe-ei uma vela de sebo, do valor de um vintem!” E a historia do ecavalleiro, que esiava arriscado a naufragio, é tambem outra: Esse eavalleiro, quando viu qué o navio ia se per- der, fez voto a S. Nicolau de que, si elle o salvasse, lhe sacrificarin o seu cavallo ou o seu pagem, © criado, porém, advertiu de que niio © fizesse, porque, em que havia de montar depois! O cavalleiro res- pondeu ao eriado, baixinho, para que o Santo nao o ouvisse: “Cala a boca, porque si o Santo me salvar, nfo lhe darei nem a canda do eavallo”. E assim pensava cada um dos dois enganar o Santo e esquecer o bemeficio. Para que, pois, Hans Staden nifio seja taxado assim de esque- eer a Deus que o salvou, assenton elle de o louvar e glorificar com © imprimir esta narrativa e, com espirito christio, divulgar a graga e obra reeebidas, sempre que tiver oceasido, E si esta nao fosse a sua intengio (aliis honesta e juste) podia elle poupar-se a esse tra- balho e economizar a despesa, no pequena que a impressio e_as gravnras lhe eustaram. Como esta historia foi pelo autor humildemente dedieada ao Serenissimo e de elevadissime nascimento, Principe e Senhor, Phi- lipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Diets, Zie- genhain e Nidda, seu Principe ¢ gracioso Senhor, « em mome de sna Alteza o fez publico, e tendo elle sido, muito antes disto, exa- mainado e interrogado por Vossa Alteza em minha presenga e na de muitas outras pessias sobre a sua viagem e prisio, que eu j& por diversas vezes tinha contado 4 Vossa Alteza ¢ a outros senhores, e eomo eu, ha muito, tinha visto e observado o grande amor que Vossa Alteza manifestou por estas e outras sciencias astronomicas e cos- mographicas, desejava humildemente escrever este prefacio ou in- troduceio para Vossa Alteza, e lhe pedir de aceeitar este mimo, até que possa eu publicar eoisa de maior importancia em nome de Vos- sa Alteza. Reeommendo-me submissamente 4 Vossa Alteza. Datum Marpurgk, Dia de 8. Thomé, anno MDLVI. 22 Primeira Parte CONTECDO DO LIVRO 1 — Dunas viagens de mar, effectuadas por Hans Staden, em oito annos ¢ meio. A primeira viagem foi de Portugal, e a segunda da Espanha ao Novo Mundo — America. 2 — Como elle, no paiz dos selvagens denominades Toppini- kin (subditos d’el-rei de Portugal), foi empregado como artilhei- ro contra os inimigos. Finalmente, feito prisioneiro pelos inimigos e levado por elles, permaneceen dez mezes ¢ meio em constante perigo de ser morto ¢ devorado por elles. 38 — Como Deus livron misericordiosa ¢ maravilhosamente a este prisioneiro, no anno j4 mencionado, e como elle tornou 4 sua querida patria. Tudo para honra e gloria da misericordia de Deus, dado 4 im- pressiio.. 25 ihoy. SSTIWTEDONIADSS YANITD at HONE) SANTOR “UNA LIMIHE Guntpal usu utagad PMs 48 WOLUEG Dlzgsbuumageg sue 23) (peudo:quq ayce /uagpang) saurnlag 42] pj aquny sul quaaualjsig asuoaug, tH agaiar Oo / usaf) J enduad na ¢| Bates ard lagaped pjiapiuye ui thay , 7 antes of fenB yung uapuaiad ig I Ag qu yg eS 1b Roc eth eh lt CAPITULO T Do que vale 4 cidade o guarda, E ao navio possunte nos mares, Si Deus 9 elles nio proteger? E Hans Stapen, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quizesse, visitar a India. Com esta intenefio, sai de Bre- men para Hollanda e achei em Campen [Campon] mavios que ten- cionavam tomar carga de sal, em Portugal. Embarquei-me em um delles e, no dia 29 de abril de 1547, chegémos & cidade de Sao Tu- val [Setubal] depois de uma travessia de quatro semanas. Dahi fui 4 Lissebona [Lisbéa], que dista cinco milhas de Sio Tuval. Em Lissebona alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era al- lemio e se chamava Leuhr, o Moco, onde fiquei algum tempo. Contei-lhe que tinha saido da minha patria e Ihe perguntei quando esperava que houvesse expedicio para a India. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os navios d'El-rei, que na- vegavam para a India, j4 tinham sahido. Pedi-lhe entéo que me auxiliasse no intente de encontrar outro navio, visto que perdéra estes, tanto mais que elle sabia a lingua, e que eu estava prompto a servil-o por minha vez. Levou-me para um navio, como artilheiro. O eapitéo desta nau chamava-se Pintiado [Penteado] e s¢ destinava ao Prasil, para trafiear e tinha ordens de atacar os navios que commerciavam com os mouros braneos da Barbaria. Tambem si achasse nayios fran- cezes em trafico com os selvagens do Prasil, devia aprisional-os, 27 HANS STADEN bem como transportar alguns criminosos (3) sujeitos a degredo, para povoarem as novas terras. © nosso navio estava bem apparelhado de tudo que & neces- sario para guerra no mar. Hramos tres allemfes, um chamado Hans von Bruehhausen, o outro Heinrich Brant, de Bremen, ¢ eu. (8) Era costume, mess Spoce, levarem-se criminosos em dagredo para aa terras recem-descobertas, afim de aprenderem a lingua dos naturaea @ s¢- rem uteis depois ao commercio « & mavegagho. 28 VIAGEM AO BEASIL CAPITULO II Deseripgio da minha primeira viagem de Lissebona para féra de Portugal aimos de Lissebona com mais um navio pequeno, que tambem pertencia ao nosso capitao, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada [ha de Madera, que pertence a El-rei de Portugal, e onde moram portuguezes. & grande productora de vinho e de assucar. Ali mesmo, numa cidade chamada Fontschal [Funchal], embarca- mos mantimentos. Depois disso, deixamos a ilha em demanda da Barbaria, para uma cidade chamada Cape de Gel (4), que pertence a um rei mouro, braneo, 2 quem chamam Shiriffi [Sherife]. Esta cidade pertencia, outr’ora, a El-Rei de Portugal; mas foi retomada pelo Shiriffi. Nella pensavamos encontrar os mencionados navies que negociam com os infiéis. Chegimos e achéimos, perto de terra, muitos pesea- dores castelhanos, que nog informaram de que alguns navios esta- vam para chegar, e ao afastarmo-nos, sain do porto um navio bem earregado. Perseguimol-o, aleancando-o; porém a tripolagao esca- pou nos botes. Divisamos ent&o em terra um bote vasio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos buseal-o, Os mouros brancos chegaram entio a eavallo, a protegerem 0 bareo; mas nio podiam aproximar-se por causa dos nossos canhies. Tomémos conta do navio ¢ partimoes com a nossa preza, que con- sistia em assucar, amendoas, tamaras, couros de cabra e gomma arabica, que levimos até a Ilha de Madera, e manddémos o mosso navio menor a Lissebona, a informar a El-Rei e reeeber instruc- goes a respeito da preza, pois que havia negociantes yalencianos ¢ eastelhanos entre os proprictarios. (4) Bo Gabo de Gels na costa de Marrocos, onde esti a cidade © praga de Arzilla, cerca de trinta milhas distants de Tanger, ¢ qua esteve em poder dos Portuguezes até que D. Joio IIE » abandonou. 29 HANS 8TADEN El-Rei nos respondeu que deixassemos a preza na Ilha e con- tinuasemos a viagem, emquanto Sua Majestade deliberava sobre Oo caso. «Assim o fizemos, e navegaimos de nove, até o Cape de Gel, a ver si encontravamos mais prezas. Porém foi em vio; fomos im- pedidos pelo vento, que, proximo da costa, nos era sempre contra- rio. A noite, vespera de Todos os Santos, uma tempestade mos le- vou da Barbaria para o lado do Prasil. Quando estavamos a 400 milhas da Barbaria grande, um cardume de peixes cereou o navio; apanhamos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Aibakores. Outros, Bonitas, evam menores, ¢ 30 VIAGEM AO BRABIL ainda a outros chamavam Duredos (5). Tambem havia muitos do tamanho do harenque, que tinham azas nos dois lados, como os morcegos, ¢ eram muito perseguides pelos grandes. Quando perce- biam isso, saiam da agua em grandes cardumes e yoayam, cerca de duas bracas acima da agua; muitos caiam perto e outros longe a perder de vista; depois, caiam outra vez ma agua. Nés os acha- vamos frequentemente, de manha cedo, dentro do bareo, caidos du- rante a noite, quando voavam, E sio denominados na lingua por- tuguezn — pisee bolader (6). Sao os douredos, nome de varias especies de peixes acanthopte- TYgi08- (8) Boo peive toador, como facilmente se deprehende da narrativa. $1 HANS STADEN Dahi chegamos até 4 linha equinoxial onde reinava imtenso ealor, porque, ao meio dis, o sol estava exactamente a pino sobre as nossas cabegas. Durante algum tempo, de dia, nfo soprava vento algum; mas de noite, se desencadeavam, muitas vezes, fortes tro- voadas, acompanhados de chuva e vento, que passavam rapido. En- tretanto tinhamos de velar constamtemente, para que mos nao sur- prehendessem, quando navegavamos a panno. Mas, quando de nove soprou o vento, que se tornou temporal, durante alguns dias, ¢ contrario a nés, julgimos-nos ameagados de fome, si continuasse. Oramos a Deus, pedindo bom vento. Acon- teceu entio, uma noite, por occasiaio de forte tempestade, que nos péz em grande perigo, apparecerem muitas luzes azues no navio, como nunca mais tenho visto. Onde as vagas batiam no costado, la estavam tambem as luzes. Os portuguezes diziam que essas luzes eram um signal de bom tempo que Deus nos mandava, para nos consolar no perigo., Agradeciamos entéo a Deus, depois que des- appareciam, Chamam-se Santelmo, ou Corpus Santon, estas luzes. Quando o dia raiou, 0 tempo se tornon bom, soprande vento favoravel, de modo que vimos claramente que taes luzes sao mila- gres de Deus. Continnimos a viagem através do oceano, com bom vento, A 28 de janeiro [1548] houvemos vista de terra, vizinha de um cabo chamade Sanct Augustin. A cito milhas dahi, chegémos a um porto, denominado Prannenbucke (7). Contavam-se oitenta e quatro dias que tinhamos estado no mar sem ter avistado a terra. Ali os por- tnuguezes tinham estabelecido uma colonia, chamada Marin (8). 0 governador desta colonia chamava-se Arto Kostio (9), a quem en- tregdmos 05 eriminosos; e ali descarregimos algumas mercadorias, que 14 fiearam, Termindmos 08 nossos negocios neste porto, com intuito de proseguir viagem, a tomar cargas. (7) © nome actual Pernambuco, de procedencia do tupi Paranom-buca, que aos ouvidos do narrador soon Pranenbueke, (Vide @ Tupi na Geographia Nacional, de Theodoro Sampaio) . (5) A colonia ahi fundada pelos Portuguotes era a villa de Olinda, a que o gentio comegon a chamar mairy, que quer dizer cidade ou povougio, camo @ coustruiam os curopeos. Dahi a curruptela Mary ou Marim, como Staden aol-a transmitte. (9) Boo nome eatropindo do primeiro donatario da Capitania de Par: 32 VIAGEM AQ BEASIL CAPITULO TIT Como os selvagens do logar Prannenbucke se revoltaram e quizeram destruir a colonia dos portuguezes Ree que os selvagens do logar se tinham revoltado con- tra os portuguezes, o que dantes nunca fizeram; mas agora o faziam por se sentirem escravizados, Por isso, 0 governador nos pediu, pelo amor de Deus, que oceupassemos o logar denominado Garast (10), a cineo milhas de distancia do porto de Marin, onde estavamos ancorados, ¢ de que os selvagens se queriam apoderar. Os habitantes da colonia de Marin nio podiam ir em auxilio delles, porque réeeiavam que os selvagens os viessem atacar. Fomos, pois, em auxilio da gente de Garasi, com quarenta ho- mens do nosso navio e para 14 nos dirigimos numa embareagio pe- quena. A colonia fica num brago do mar, que avanga duas leguas pela terra a dentro. Haveria ali uns noventa ehristfos para a de- fesa. Com elles se achavam mais uns trinta mouros e escravos bra- sileiros (11) pertemcentes aoa moradores. Os selvagens, que nos si- tiavam (12), orgavam por oito mil. Tinhamos ao redor da praca apenas uma estacada de ma- deira (13). nambnce. Staden, ignorande o portuguez, teria eacripto Arto Koelio, por Duarte Coelho. Os copistas fireram o resto, (10) 8 Igarased (igara-assf), cana grande, bareo, em vex de Iguaraa- ni, como erroncamente hoje se cacreve. (11) Bram africans ¢ indios cscravon. (22) Eram os Coctés, moradores das mattaa, inimigos doa Potyguaras, allindos dos Portuguezes. (13) Adoptaram os Portuguezes no Brasil o mesmo procesao de defeza usado pelo gentio nas suas aldeias, construindo estacadaa ou casparas em tor- no dos povoados mais expostos 4 injuria dee selvagens. 33 HANS 8STADEN CAPITULO IV De come eram suas fortificagées e como elles combatiam contra nds ac redor do logar onde estavamos sitiados havia uma matta, na qual tinham construido dois reductos de troncos gros- sos, onde se recolhiam d noite; ¢ quando nés os atacavamos, para li se refugiavam, Ao pé destes reductos abriam buracos no chio, onde se mettiam durante o dia e donde saiam para nos guerrilhar. Quan- do atiravamos sobre elles, caiam todos por terra pensando assim evitar o tiro, Tinkam-nos sitiado tio bem, que néo podiamos sair nem entrar, Aproximavam-se do povoado; atiravam flechas para o ar, visando na quéda nos aleangar; atiravam tambem flechas com algodio seguro com ¢céra a que deitavam fogo com o fim de ineen- diar os tectos das casas ¢ combinavam j4 de antemao o modo de nos devorar guando nos houvessem colhido. Restava-nos ainda algum mantimento, mas este logo se sca- bou. Neste paiz 6 uso trazer diariamente, ou de dois em dois dias, raizes freseas de mandioca para fazer farinha ou bolos; mas os nosses nao podiam se aproximar do logar em que se encontravam essa raizes. Como pereebessemos que nos havia de faltar mantimento, sai- mos em dois bareos por um logar chamado Tamaraka (14) a bus- eal-o. Os selvagens, porém, tinham atravessade grandes troneos de arvores no rio e se postaram muitos delles nas duas margens, eom © intuito de impedir a nossa viagem. Forgdmos, porém, a tran- queira ¢ ao meio dia, mais ou menos, estavamos de volta sfios ¢ salvos. Os selvagens nada nos puderam fazer nas embareagoes; ar- rumaram, porém, porgio de lenha entre a margem e oa bareos, a que deitaram fogo, a vér si os incendiavam, & queimavam uma ¢s- (14) 4 itha de Ttamaracé, que o gentio da terra chamava Ipanesu Ita- maracd, como Staden escreve no desenho junto, e se traduz — dha grande de dtamaracd, da Capitania de Pera Lopes de Souza, Na ilha estava a villa de Nossa Senhora da Conceigio, cabega da Capitania, situada ma parte meri- dional ¢ cerca de mein legua acima da for do rio Igaraasi. 4 VIAGEM AO BRASIL pecie de pimenta, que 14 cresee, com o fim de nos fazerem abandonar as embarcagées por causa da fumaga. Mas nao foram bem suc- cedidos e, emquanto isto, cresceu a maré e nés voltimos. Fomos a Tamaraké, onde os habitantes nos forneceram os mantimentos. Com estes voltimos, outra vez, para o logar sitiado. No mes- mo ponto em que d’antes haviam posto obstaculos tinham og sel- vagens de novo derribado arvores, como anteriormente; mas acima do nivel d’agua e, na margem, tinham cortado duas arvores de modo a ficarem ainda em pé. Nas ramagens amarraram-lhes uns. liames chamados sippo (15) que erescem como Iupulo, porém mais (15) EB o vocabulo cipd, do tupl qipé, que vale dizer — corda-vara —, 35 HANS STADEN grosses, As extremidades ficavam amarradas nas estacadas e, pu- xando por ellas, era seu intento fazer tombar as arvores caindo sobre as nossas embarcagdes. Avangimos para li; forgimos a pas- sagem, eaindo a primeira das arvores para o lado da estacada e a outra ma agua, um pouco para triz do nosso barco. E antes que comecassemos a forgar as tranqueiras, chamamos por nossos com- panheiros da povoagio para virem em nosso auxilio. Quando co- megimos a chamar, em voz alta, gritaram os selvagens tambem, para que os nossos companheiros nos nao ouvissem, visto que mio nos podiam ver por causa de uma pequena matta interposta; mas tio perto estavamos que nos teriam decerto ouvido, si os selvagens mio gritassem. Levémos as provisdes 4 povoagio, e como os selvagens viram que nada podiam fazer, pediram a paz e se retiraram. © eerco du- rava havia quasi um mez e varios dos selvagens morreram ; nenhum, porém, dos christios. Uma vez pacificados os selvagens voltimos ao navie grande em Mearim, ¢ ahi tomf4mos agua e tambem farinha de mandioca para servir de mantimento, e 0 governador da colonia de Mearim nos agradecen. CAPITULO V De como saimos de Prannenbucke para uma terra chamada Buttugaris; encontramos um navio frances e nos batemos com elle [foes quarenta milhas para diante, até um porte chama- do Buttugaris (16), onde pretendiamos earregar 0 uavio com péu-prasil e receber provisies em permuta com os selvagens. Ao chegarmos, ahi encontramos um navio de Franca, que car- isto 6 galho ou ramo em forma do cords, Os selvagens sabiam tirar partido dos om nig sues construccies ¢ mo fabrico de utensia domesticos. 16) Deve ser Potiguares, eomo diziam os Portuguezea, derivado de Poti-guara, papa camaries, appelido de uma magio dos tupis do Nordeste, 36 VIAGEM AO BRASIL veg -prasil, Atacamol-o para o aprisionar, mas eortaram- nos o mastro grande com um tire, ¢ s¢ eseaparam; alguns dos nog- sos morreram e outros ficaram feridos. a op Hepois disto, queriamos tornar para Portugal, visto que nao consegiiamos vento faveravel para entrar no porto, onde pensa- vamos obter mantimentos, O vento era-nos contrario, ¢ assim fomo- Outros untores cscrevem Pefiguorss, exsa em que o Vo- Petw-quera, entio significa mascador de fumo, porque gem deste nome, segundo A. Kuivet, walmente entre oa li bids cos dentes uma folka de fur Amado pelo mir rader — porto dos Buttugaris, nicas para o norte de Igaragt, deve ser 9 da Par: HANS STADEN nos embéra, com tio poneas provisies que tivemos de padecer muita fome; alguns comiam couro de eabritos, que tinhamos a berdo. Distribuiam-se a cada um de nés, por dia, um copinho de agua eum pouco de farinka de raiz brasileira [mandioca]. Esti- vemos assim 108 dias no mar, e no dia 12 de agosto aleangamos umas ilhas chamadas Lose Sores [Los Agores] que pertencem a ELRei de Portugal; ahi langamos ancora, descangémos e pescdmos, Ali mesmo vimes um navio ao mar, ao qual nos dirigimos para ver que navio era, Manifestou ser navio de piratas, que se puzeram em defesa; mas nés fieémos victorioses ¢ lhes tomamos 6 navio., Esca- param nos esealeres para as ilhas. O navio tinha muito vinho e pao, com que nos regalaémos, Depois encontramos umas cinco velas que pertenciam a El-Rei de Portugal e tinham de aguardar nas ilhas a vinda de outro navio das Indias para comboial-o até Por- tugal. Ahi fieimos e ajudimos a levar o navio das Indias, que veiu para uma ilha chamada Tercera [Tereeira], onde fic&mos. Nesta ilba, tinham-se reanido muitos navios, todes vindes do novo mundo; uns iam para a Espanha, outros para Portugal. Saimos da ilha Tercera em companhia de quasi cem navios, e chegimos 4 Lis- sebona [Lisboa], a 5 de outubro, mais ou menos, do anno 1548; tinhamos gasto dezeseis mezes em viagem. Depois, deseancei algum tempo em Lissebona e fiquei com von- tade de ir com os espanhées para as novas terras que elles possuem. Sai por isso de Lissebona, em navio inglez, para uma cidade cha- mada porto Senta Maria (17), na Castilia [Castella]. Ali que- riam carregar o navio de vinho; dahi fui para uma cidade denomi- nada Civilia (18), onde encontrei tres navios que se estavam ap- parelhando para irem a um paiz chamado Rie de Platte, situado na America. Esse paiz, a aurifera terra chamada de Piraw (19) que, ha pouces annos, foi descoberta, ec o Prasil sio tudo uma e mesma terra firme. Para conquistar aquelle territorio, mandaram, ha annos, na- (17) © porto @ cidade de Santa Masia em Espunkn, frontetrs a Cadix, pouco acima di: foz do Guadalete, (18) A eidade de Sevilla na Andis (19) 0 Port, deaceberte em 1524 e conquistudo por Pizarro. psia. 38 VIAGEM AO BRASIL vios dos quaes um valtava pedindo mais ausilio e contou eomo era rico em oure, O eommandante dos tres navios ehamava-se Don Die- go de Senabria e devia ser o governador, por parte d'El-Rei, da- quelle paiz. Fui a bordo de um desses navios que estavam muito bem equipados. Saimos de Civilia para Sanct Lweas (20), por onde a gente de Civilia sae para o mar, e¢ ahi fiedmos esperando bom venta, CAPITULO VI Narragéo da minha segunda viagem de Civilia, em Espanha, para a America N oanno de 1549, no quarto dia depois da Paschoa, fizemo-nos de vela de S. Lucas com vento contrario, pelo que apor- times a Lissebona. Quando o vento melhorou fomos até 4s ilhas Cannarias ¢ deitamos ancora numa ilha chamada Pallama [Palma], onde embareémos algum vinho pera a viagem. Os pilotos dos na- vios resolveram, caso desgarrassem no mar, encontrarem-se em qualquer terra que fosse, no gréo 28 ao sul da linha equinocial . De Pallama, fomes até Cape-Virde [Cabo Verde], isto ¢ a ponta verde, situada na terra dos mouros pretos. Ahi quasi nau- fragamos; mas continudmos a nossa derrota; o vento porém era-nos contrario e levou-nos algumas vezes até a terra de Gene [Guiné], onde tambem habitam mouros pretos. Depois, chegimos a uma ilha denominada 5. Thomé, que pertence a El-Rei de Portugal. & uma ilha rica em assucar, mas muito insalubre. Ahi habitam os portu- guezes com muitos mouros pretos, que lhes pertencem. Tomdmos agua fresca na ilha e continudmos a viagem; perdemos ahi de vista dois dos nosses navies que, por causa de uma tempestade, se afas- taram, de modo que ficimos sés. Os ventos eram-nos contrarios, porque naquelles mares tem elles a particularidade de soprarem do (20) © porto de San Guear de Barrameda, na for do Guadalquevir. 39 HANS STADEN sul, quando o sol esti ao norte da linha equinoeial, e quando o sol esta ao sul desta linha vém elles do norte, e costumam entao perma- necer na mesma direcgio durante cinco mezes, e por isso nao pu- démos seguir o nosso rumo durante quatro mezes. Quando, porém, entrou o mez de setembro, comegou o vento a ser do norte, e entao eontinnamos a nossa viagem de sul-sudoeste para a America. 40 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO VII De como chegamos 4 latitude de 28 graos na terra da America e nao pudemos reconhecer o porto para onde iamos, e uma grande tempestade se desencadeou em terra U wu dia, que era o 18 de novembro, o pilote tomou a altura do sol, que era de 28 grios, pelo que procurfmos terra a Oéste, No dia 24 do mesmo mez vimos terra. Tinhamos estado 6 mezes no mar; algumas vezes em grande perigo. Aproximando-nos de terra, néo reconhecemos o porto nem os signaes que o primeiro of- ficial nos tinha deseripio, Tambem nao podiamos nos arriscar a en- trar num porto deseonheeido, pelo que cruzimos em frente 4 terra, Comegou a ventar muito, de tal modo que temiamos ser atirados contra os rochedos, pelo que amarrimos alguns barris vasios, nos quaes puzemos polvera, bem jungidos, e nelles amarramos as nossas armas, de forma que, si naufragassemos e alguns escapassem, teriam com que se defender em terra, porque as ondas levariam os barris para a praia. Continuémos entéo a cruzar, mas debalde, porque o vento atirou-nes contra os rochedos ¢ pareéis com 4 bragas de agua, e i vista dos immensos vagalhées houvemos de apréar para terra, na persnasdo de que todos iamos perecer. Quiz Deus, porém, que ao chegarmos mais perto dos escolhos se nos deparasse porte, no qual entrimos. Ahi avistamos pequeno bareo que fugiu de nés e se eseonden por detréz de uma itha, onde nfo o podiamos ver, nem saber que bareo era; porém no o seguimos. Deitémos aqni ancora, agradecendo a Dens que nos salvou; deseancimos e enxugimos a nossa roupa. Eram mais ou menos duas horas da tarde, quando deit&mos ancora. De tarde, veiu uma grande embareagao com selvagens, que queriam falar comnoseo. Nenhum de nés, porém, entendia a lin- gua delles. Démos-lhes algumas faeas ¢ anzées, com que voltaram. Na mesma noite, veiu mais uma embarcagio cheia, na qual esta- vam dois portnguezes. Estes nos perguntaram de onde vinhamos. Respondemos que vinhames de Espanha. A isto replicaram que de- 41 HANS STADEN yiamos ter um bom piloto, que pudesse nos levar ao porto, porque, apezar de elles bem o conhecerem, com uma tempestade destas nao poderiam ter entrada. Contimos-lhes entio tudo e como o vento é as ondas quasi nos fizeram naufragar; e quando nos julgavamos perdides, ganhamos imesperadamente o porto. Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do naufragio; e nem sabia- mos onde estavamos. Ao ouvirem isso, admiraram-se muito e agradeceram a Deus ¢ nos disseram que o porto onde estavamos era Supraway (21), ¢ que (21) Hoje Superaguy, numa lingua de terra 4 parte do norte da barra do Poranagué. 42 VIAGEM AO BRASIL estavamos a 18 leguas de uma ilha, chamada 8. Vineente (22), que pertencia a El-Rei de Portugal, ¢ li moravam elles e aquelles ou- tros que tinhamos visto no barco pequeno a fugirem por pensarem que eramos francezes. Perguntimos tambem a que distancia ficava a ilha de Santa Catharina, para onde queriamos ir. Responderam que podia ser umas trinta milhas para o sul e que 14 havia uma tribu de selva- gens chamados Caries [Carijés] © que tivessemos cantela com elles. Os selvagens do porto onde estavamos, chamavam-se Tuppin Ikins [Tupiniquins] © eram seus amigos, de modo que néo corriamos pe- rigo. Perguntémos mais em que latitude estava o lugar, ¢ responde- Tam-nos que estava a 28 gréos, o que era verdade. Tambem nos en- sinaram como haviamos de conhecer o paiz. CAPITULO VIIL De como saimos outra vez do porto a procurar o logar para onde queriamos ir Ov o vento de es-suéste cessou, melhorou o tempo com o vento de nordéste. Levantimos entaio ferro ¢ rumaimos para a terra ja mencionada. Viajamos dois dias, 4 procura do porte, mas nio pudémos reeonhecel-o. Pereebemos, porém, pela terra que j4 tinhamos passado o porto, uma vez que, encoberto o sol, nao podiamos fazer observagdes, nem voltar com vento contrario. Mas Deus é salvador nas neeessidades, Ao fazermos a nossa oragae vespertina, implorando a proteccio de Dens, acontecen que muvens grossas se formassem ao sul para onde tinhamos avangado. Antes de terminada a reza, 0 Nordéste acalmou, de modo a niio ser (22) A ilha de 8. Vicente fica, verdade, mais distante de que nol-o diz o narrador, si as suas leguas forem das de vinte ao grio. Destas contam- ee 48 entre os dois pontos. 43 HANS STADEN mais perceptivel, e o vento sul, apezar de nao ser a época do anno em que elle reina, comegou a soprar, aecompanhado de tantos trovées e re- lampagos, que fiekmos amedrontados. O mar tornou-se tempestuo- so, porque 9 vento sul, de encontro ao do norte, levantava as ondas, e tio eseuro estava que se nio podia enxergar. Os grandes relam- pagos e os trovies atemorizavam a tripolagio, de modo que ja nin- guem sabia o que fazer, para colher as velas. Esperavamos todos perecer aquella noite. Deus, porém, fez com que o tempo mudasse ‘¢ melhorasse; e voltimes para o logar de onde tinkamos partido naquelle dia, proeurando de novo o porto, mas sem o conseguirmos, por causa das muitas ilhas proximas da terra firme. Como chegassemos ao gréo 28, disse o eapitiio ao pilote qne en- trasse por detriz de uma ilha e deitasse ancora, afim de ver em que terra estavamos, Entrémos, ento, entre duas terras, onde havia um porto exeellente, deixamos a ancora ir ao fundo e deli- beramos tomar o bete para melhor explorar o porto. CAPITULO IX De como alguns dos nossos sairam no bote para reconhecer © porto e acharam um crucifixo sobre uma rocha F or no dia de Santa Catharina, no anno de 1549, que deitimos ancora, ¢, no mesmo dia, alguns dos nossos, bem municia- dos, sairam no bote para explorar a bahia. Comec4mos a pensar que fosse um rio, que se chama Rio de S. Francisco, situado tam- bem na mesma provincia, pois que, quanto mais entravamos, mais cumprido parecia. Olthavamos de vez em quando, a ver se deseobriamos alguma fomaga, porém nada vimos. Finalmente, parecen-nos ver mas ca- banas e para li nos dirigimos. Eram jé velhas, sem pessoa alguma dentro, pelo que continudmos até de tarde. Entaéo vimos uma ilha pequena na frente, para a qual nos dirigimos, a passar a noite, jul- 44 VIAGEM AO BRASIL gando haver ali um abrigo. Chegdmos 4 ilha, jf noite; nito podia- mos, porém, arrisear-nos a irmos 4 terra, pelo que algans dos nos- sos foram rodeal-a a ver si por ali havia gente; mas no descobri- ram ninguem. Fizemos entao fogo ¢ cortamos uma palmeira, para comer o palmito, e ficimos ali durante a noite. De manha cedo, avangimos pela terra a dentro. Nossa opiniao era que havia ali gente, porque as cabanas eram disto um indicio. Adiantando-nos, vimes ao longe, sobre uma rocha, um madeiro, que mos pareceu uma eruz ¢ nfo comprehendiamos quem a teria posto ali. Chegémos a ella e achimos uma grande eruz de madeira, apoiada com pedras ¢ com um pedaco de fundo de barril amarrado e, neste fundo, gra- vadas umas letras que nio podiamos lér, nem adivinhar qual o na- vio que teria erigido esta cruz; ¢ mio sabiamos si este era o porto onde deviamos nos reanir. Continndmos entéo rio acima ¢ levamos © fundo do barril, Durante a viagem, um dos nossos examinou de nove a inscripgao ¢ comegou a comprehendel-a. Estava ali gravado em lingua espanhola: 81 VEHN POR VENTURA, ECKY LA ARMADA DE Sc Masester, 1EN UHN TIRE AY aVERAN RECADO (se viene por ventura aqui la armada de sn magestad, tiren un tiro y haran re- eado). Isto quer diver: Si por acase aqui vierem navios de sua ma- jestade, dém um tiro e¢ terao resposta. Voltimes entio sem demora para a eruz e disparimos um tiro de pega, eontinuando depois, rio acima, a nossa viagem. Poueo depois, vimos cinco candas com selvagens, que vieram sobre nés, pelo que apromptiimos as nossas armas. Chegando mais perto, vimos um homem vestido e barbado que vinha 4 préa de uma dias candes e nos parecia christio. Gritamos-lhe para fazer alto a3 ‘outras canéas ¢ vir com uma sé a conversar comnosco. Quando se nos aproximou, perguntimos-lhe em que terra estavamos; ao que nos responden que estavamos no porto de Schirmirein (23), assim (23) Jurumirim, noma dado pelo Carijés, habitantes da ilha de Santa Catharina, 4 boca do norte do canal que separa esta ilha do continente. No tupi, — jurd-mirim, we traduz boca pequena, barra, © navio de Senabria avia- tou primeiro e entrou a barra do sul do eansi entre o continente 6 a ilha, onda aneorou. Navegou no canal como ge féra um rio, caja corrente sublra em um ‘bote, © j4 proximo da barra do norte & que se encontrou, mo porto de Jurumi- vim ‘dos Carijés, com o eurcpen que Ihe aeudira ao signal. 45 HANS STADEN denominado pelos selvagens, e para melhor o entendermos, acere- scentou ¢hamar-se Santa Catharina, nome dado pelos descobridores. Alegrou-nos muito isto, porque este era o porto que procura- vamos, sem ¢conhecer que jf nelle estavamos, eoincidindo ser isso no mesmo dia de Santa Catharina. Véde, pois, como Deus soecorre aquelle que no perigo o implora com fervor. Entao nes perguntou elle de onde vinhamos, ao que respon- demos que pertenciamos 4 armada do Rei da Espanha, em eaminho para o Rio de la Platta, e que havia mais navios em viagem, que esperavamos, com Deus, ehegassem logo para nos unirmos a elles. 46 VIAGEM AO BRASIL A isto respondeu elle que estimava muito e agradecia a Deus, por- que havia tres annos que tinha sahido da provincia do Rio de la Platta, da cidade chamada la Soncion (24), pertencente aos espa- nhées, por ter sido mandado 4 costa, cidade distamte 300 milhas do logar onde estavamos, para fazer com os Cariis, que eram ami- gos dos espanhées, plantassem raizes que se chamam mandioca e supprissem as naus que disso precisassem. Kram essas as ordens do eapitio que levara as ultimas novas & Espamba e se chamava Sa- Jaser (25) e que agora voltava com outras naus. Acompanhados entio dos selvagens até 4s cabanas onde elle morava, ali fomos bem tratados . CAPITULO X Como me mandaram 4 nossa nau grande numa canéa cheia de selvagens EDIU entio © nosso capitio ao homem, que achdmos entre os selvagens, que mandasse vir uma canéa, com gente que le- vasse um de nés 4 nau, para que esta tambem pudesse vir. Ordenou-me que seguisse com os selvagens até 4 nau, ausentes della como estavamos ji tres noites, sem que a gente de bordo sou- besse que fim tinhamos levado. Quando chegnei 4 distancia de um tiro da nau, fez-se 14 om grande alarido, pondo-se em guarda a maruja ¢ nao econsentindo que mais perto chegassemos com a canda. Gritaram-me, indagande do que havia acontecido, onde fiearam os outros e como & que vinha ea sézinho naquella ecanéda cheia de selvagens. Calei-me; mio res- (24) A cidade de Assumpgiio, no Paraguay, entiio accessivel pelos por- tos de Santu Catharina, desde a primeira viagem de D. Alvaro Nufiex Ca- beza de Vaea, governador daquella terra. (25) Jogo de Salazar, um dos eompanheitos de D. Pedro de Mendoza, na fundagio da cidade du Buenos-Aires em 1534. 47 HANS BTADEN pondi, porque o Capitie me ordendra que fingisse estar triste e observasse o que se fazia a bordo. Como Ihes nfo respondi, diziam 14 entre si: “Aqui ha eoisa; os outros, de certo, estio mortos e estes agora vem com aquelle sé, para armar-nos uma cilada e tomar o navio”. Queriam entao atirar contra nos, porém chamaram-me ainda uma vez. Comecei entdo a me rir e Ihes disse que ficassem tranquillos, pois que lhes trazia boas movas, e com isso permiltiram que me aproximasse. Contei entdo o que se tinha passado, 0 que muito os alegrou, ¢ os selva- gens voltaram sézinhos. Seguimos logo com a nan até perto das eabanas, onde fundedmos, & espera das outras naus, que se tinham deagarrado por effeito da tempestade. A aldeia onde moravam os selvageus chamava-se Acuttia (26) eo homem que ld achimos chamava-se Jofio Fernandez Biscainho, da cidade de Bilbao. Os selvagens eram Carios [Carijés] e trou- xeram-nos muita eaga e peixe, dando-lhes nés anzdes em troca. CAPITULO XI Como chegou a outra nau da nossa companha, que se tinha desgarrado e onde vinha o primeiro piloto G~ cerea de tres semanas de espera, chegou-nos a nau em que vinha o primeiro piloto; mas a terceira nau era perdida de todo e mada mais soubemos della. Apparelhamos, entio, para sair e fizemos provisio para 6 mezes, pois havia ainda cerea de 300 leguas de viagem por mar. Quando tudo estava prestes, aconteceu-nos perder a nau grande no porto, o que impediu a nossa partida. (26) 2 do tupi Aguti, on dcoti, que hoje se diz Cutia, nome do conhe- sido reedor (Dasyprosta). O nome aguti cu a-cuti, no tupi, quer dizer — aguelle que come de pé, de refarencia ao habito do animal deate nome de tomar a abngato com as pattas dianteiras, o que Ibe dé, quando come, a attitude erecta. 48 VIAGEM AO BRASIL Ficimos ahi dois annos no meio de grandes perigos e soffrendo fome. Tinhamos que comer lagartos, ratos do campo e outros ani- mues exquisitos, que logravamos colher, assim como mariscos que vivem nas pedras e muitos bichos extravagantes. Os selvagens que nos davam mantimentos, 56 o fizeram emquanto recebiam presen- tes de nossa parte; fugiram depois para outros logares e como néo podiamos fiar-nos nelles, dissuadimo-nos de ahi eontinuar com pe- rigo de perecer. Deliberimos, pois, que a maior parte dos nossos devia ir por terra para a provincia de Sumplien (27), dahi distante cerca de 300 milhas. Os outros iriam no navio que restava. O capitio con- ‘servava alguns de nés, que iriam por agua eom elle. Os que iam por terra levavam mantimentos e alguns selvagens. Muitos delles, é certo, morreram de fome no sertio; mas os outros chegaram ao seu destino como depois soubemos; entretanto, para o resto dos nos- ‘sos homens 0 navio era pequeno demais para navegar no mar. CAPITULO XII ‘Como deliberamos ir a 8. Vincente, que era dos portuguezes, a arranjar com elles um navio para fretar, e terminar assim a nossa viagem; porém, naufragamos e ngjo sabiamos a que distancia estavamos de 8. Vincente O: portuguezes tém perto da terra firme uma ilha denominada 5. Vincente (Urbioneme [28], ma lingua dos selvagens). Esta ilha se acha a cerca de 70 milhas do logar onde estavamos. Era nossa intengio irmos até 14, a vermos si possivel era havermos (27) A provincin do Paraguay, cuja capital, Assumpeiio, era entio o mais prospero estabelecimento dos Espanhées mo Rio da Prats, depois do mallogre de Mendoza em Buenos-Aires. © caminho por terra. para Assumpgio continuon praticado desde a viagem que por elle fizera D, Alvaro Nufiez Ca- beza de Vaca em 1541. (28) Urbioneme, si proeedente do tupi, como o diz Staden, deve ser amui provavelmente Urpidneme que outros eserevem Morpion. 49 HANS STADEN dos portuguezes um barco de frete ¢ seguirmos até o Rio de la Plat- ta, pois que o que tinhamos era pequeno demais para nés todos. A este fim, alguns dos nossos partiram com o capitdo Salasar para a ilha de 8. Vincente; mas nenhum de nés tinha 14 estado, excepto um de nome Ramon que se obrigou a mostrar a ilha. Saimos, pois, do forte de Inbiassape (29) que se acha no gréu 28, ao sul do Equinoxio, ¢ chegamos cerca de dois dias depois da (29) E vocabulo tupi que signifies porto, logar na extremidade sul do eanal de Santa Catharina, onde ancorou a nan de Senabria. O forte do Jm- Biassape (mbeagd-pe) deve ter sido algume estacada para a defen dag pa- Ihogas em que, por dois annos, abi se abrigou a tripulagio. 50 WAGER A AQ BHAGL ta nossa partida a wma ilha chamada Alkatrases (30), mais ou menos a 40 milhas do logar de onde saimos. Ali o vento se tornou con- trario ¢ nos obrigou a ancorar. Na ilha havia muitos passaros ma- vitimos chamados lkutrases, que so faeeis de apanhar. Era tem- po da incubagio. Desembareimos, para procurar agua potavel ¢ encontrimos cabanas velhas ¢ cacos de panellas dos selvagens, que li tinham morado. Tambem achimos wmas pequenas fontes na ro- cha. Ali matimos muitos daquelles passaros e Ihes levamos 08 ovos para bordo, onde os cozinhimos. Acabada a refeigio, assaltou-nos grande tempestade do sul que nos fez receiar largassem as aneoras e fosse a man arremessada sobre os rochedos. Isto ja pela tarde, e pensavamos ainda aleangar o porto chamado Canines (31). Mas anoitecen antes de chegarmos, e néo pudémos entrar. Afastdmo- nos entio de terra com grande perigo, pensando a cada instante que aa vagas despedagassem o navio, pois que perto da terra slo ellas muito maiores do que ao longe no alto mar. Durante a noite tinhamos-nos afastado tanto, que de manha j4 néo enxergimos mais a terra. Simente muito depois, appareceu ella 4 vista, mas a tempestade era tamanha, que pensimos nao re- sistir. Entao aquelle dos nossos que j4 aqui tinha estado julgou re- econhecer S. Vincente, e aprodmos para li. Uma grande neblina, porém, nos nao deixou reeconhecer bem a terra e tivemos de alijar tudo que era pesado para aliviar o navio, Estavamos com muito medo, ainda assim avangimos com o intuito de encontrar o porto, onde moram portuguezes, mas nos engandmos. Quando emfim a nevoa se dissipon um pouco, deixando ver terra, disse Ramon que se lembrava de estar o porto ali & nossa (30) A ilha dos sleatrazes, a actoal, flea fronteira quasi 4 ilha de Sao Vieente, O autor, perim, refere-se aqui a outra ilha muito mais oo sul, dia- tante cerea de 40 milhos do porto donde partirs a nou, que fieavn a 25* lati- tude sul, e S. Vicente ihe ficava a 70. Guardada a devida proporgio para as milhes allomfs, eaaa ilha dog Alentrazes pode ser algum doa ilhéoa na altura ‘du barra de Paranagud. (31) Eo porto de Cananéa em §. Paulo, bastamte conhecido desde og primeiros tempos do descobrimento. Staden escreve Caninee, 0 que combina quasi com Canené da graphia de frei Vicente do Salvador na sua Historia do Brasil de 1627, 0 que faz suppor que essa nome era de primitiva procedencia indigenn, isto & Canines, Canand, equivalente a Canindé, nome de uma cope- tie de arara, 51 HANS STADEN frente e bastava dobrar o promontorio para o aleangarmos por de- traz, Seguimos entio; mas quando chegdémos sé vimos a morte, por- que nio era ali o porto, o que nos obrigou a embicar para a terra e naufragar. As ondas batiam medonhamente contra a terra, ¢ ro- gémos a Deus que nos salvasse a alma, fazendo o que os marinheiros costumam quando estio em perigo de naufragio. Ao chegarmos ao ponto onde as vagas arrebentavam, suspen- diam-nos ellas tio alto como si estivessemos sobre uma muralha. Logo ao primeiro baque em terra a nau se despedacou. Alguns sal- tavam no mar e nadavam para a costa, outros ali chegavam agar- rados aos destrocos do navio. Assim Deus nos ajudon a chegar vivos em terra, continuando o vento e a chuva, que quasi nos enrege- lavam. CAPITULO XTIT Como viemos a saber em que paiz de selvagens tinhamos naufragado Gre 4 terra, demos gragas a Deus que nos concedeu de aleancar vivos a costa, ainda que inquietos por niio saber- mos em que logar estavamos, visto que o Ramon niio conhecia aquella paragem, nem sabia si estavamos longe ou perto de §. Vincente, ou si ali havia selvagens que nos pudessem fazer mal. Um dos com- panheiros, de nome Claudio, que era franecez, comegou a correr pela praia para se aquecer, quando de repente reparon mumas casas que ficavam por detriz do matto e que se pareciam com casas de chris- tios. Dirigiu-se entao para 14 e den com um logar onde morayam portuguezes ¢ se chamava Itenge-Ehm (32), cerea de duas milhas (82) ® a barra de Itanknem, grapbado 0 nome como sonra aos ouvidos dc narrator — Itenge-Kim, — na. costa ao Sudoeste de §. Vicente, onde ja, nesse tempo, havia um nucleo de colonos portuguezes. O nome indigena pro- vede de ifd nisen, que significa — bacla de pedro, — muito conforme com o aspecto da localidade que 4 deveras ume bacia rodeada de pedras, daa quace. na inaia alta esti o igreja de N.* S.* da Conceicho. 52 VIAGEM AQ BRASIL distante de 8. Vincente. Contou-lhes entio o nosso naufragio ¢ 0 muito frio que soffriamos sem termos para onde ir. Quando isso ouviram viéram correndo ao nosso encontro ¢ nos levaram para suas easas, dando-nos roupas. Ahi permanecemos alguns dias, até ga- nharmos forgas. Deste logar, fomos por terra até 8, Vineente, onde og portu- guezes nos receberam bem e nos déram alimento por algum tempo. Uma vez verifieada a perda das nossas naus, mandou o Capitio um navio portuguez & busea dos outros companheiros nossos que ti- oham ficado em Byassape (33), 0 que se realizon. CAPITULO XIV Como esta situado S. Vincente S* Vexcente é uma ilha muito proxima da terra firme e onde ha dois logares, um denominado em portuguez 8. Vincente é na lingua dos selvagens — Orbioneme (34). O outro, que dista eerea de 2 leguas, chama-se Yiwawasupe (85), além de algumas casas na ilha que se chamam Jngenio (36), nas quaes se faz assu- ear. Os portuguezes, que ahi moram, tém por amiga uma nago brasiliea de nome Tuppin ikin (37), eujas terras se estendem pelo (33) o mesmo porto de Jm%iassmpe, donde saira a nau de Senabria para 8, Vicente. A graphin do autor & meito incerta nos nomes barbaros. Byesape aqui, Inbiassape no capitulo antecedonte. No tupl, como vimos, mbea- cé-pe, de que muis commumente se fee — peagd-pe, ‘e significa literalmente, no porta ou ao porto, (34) Orbidneme ou Urbidneme, como no Cap. XII. (35) Ywowosupe parece correspouder ao vocabulo tupi Iguaguassupe, isto & igud-guatei-pe, que vale dizer — no lagemar grande, querendo referir- ae provavelmente ao canal ou brago grande onde se crguen depois a eidade do Santos. (36) Ingenio por Engenho, fabrien de assucar de propriedade do do- natario que depois a atrendou a Jorge Erasmo Seheter, e se chamou, por isto, — fezenda de trate — de 8, Jorge dos Erasmos. (37) 0 gentio Tupiniquim dominava, com effeite, nessa epoca, o lites ral paulieta na mdr parte de sua extensio, partindo #0 norte com os Tupinam- bdg do Rio de Jancito, « a0 sul com os Corijés. Desconhecida era a extensio do sev dominio no sertio; 9 autor, porén, avalin isso um oltenta leguas apro- ximadamente, Nesse ambito se comprehendiam os Guayanazes, quer os do eampo, quer oa do matto, os quoca se ligavam por vezes aos Tupiniquins por 58 HANS BTADEN sertéo a dentro, cerca de 80 leguas ¢ ao longo do mar umas 40 Ie- guas, Esta nacdo tem inimigos para ambos os lados, para o Sule para o Norte. Seus inimiges para o lado do Sul chamam-se Carios (Carijés] e os do lado do Norte Tuppin-Inba. Apelidam-nos Toa- waijar (38) 08 seus eontrarios, o que quer dizer imtmigo. Soffrem- Ihes os portuguezes muitos damnos e ainda hoje delles se arreceiam. logos consanguineos, como nol-o tramsmitte Anchieta, Os Guayanazes nio oram, porém, tupia. (38) Towatjar, a significar — centrarie, ou fmimigo, se cacreverii no tupi Toboiguara, que vale diser — sronteiro, opposto, ou literalmente — in- dividua em face. Tawaijar, tomado eomo Tabayar ou Tabayara, quer dizer — atnhor de aldeiaa, aldeides, moradores de aideias. 54 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XV Como se chama o logar donde Ihes vem a maior perseguigio e como est4 situado A cinco milhas de S. Vineente ha um logar denominado Brt- Kioka (39), onde os inimigos selvagens primeiro chegam, para dahi seguirem por entre uma ilha chamada Santo Maro (40) e a terra firme. Para impedir este caminho aos indios, havia uns irmiios ma- melueos, oriundos de pae portugues e mae brasileira, todos chris- taos e tio versados na lingua dos ebristios, como na dos selvagens. © mais velho chamava-se Johan de Praga [do&o de Braga], o se- gundo Diego de Praga [Diogo de Braga], 0 terceiro Domingo de Praga [Domingos de Braga], o quarto Francisco de Praga [Fran- ciseo de Braga], o quinto Andréa de Praga [André de Braga] e o pae chamava-se Diego de Praga [Diogo de Braga]. Cerca de dois annos antes da minha vinda, os ¢inco irmiios ti- nham decidido, com alguns indios amigos, edificar ali uma case forte para deter os contrarios, o que j& tinham executado. A elles se ajuntaram mais alguns portuguezes, sens aggrega- dos, porque era a terra boa. Os inimigos Tuppin-Inbas, logo que isso descobriram se prepararam na sua terra, d’ali distante cerca de 25 milhas, e vieram uma noite com 70 candas e, como de seu ¢os- tume, ataearam de madrugada, Os mamelucos ¢ os portuguezes eorreram para uma essa, que tinham feito de piu a pique e ahi se (89) Brickioka & corruptella do nome tupi Piraty-oca, donde prorede o actual — Bertioga, nome do canal que separa a ilha de Santo Amaro do com- tinente. O autor teria escripto Briticka e o copista Brikioka, o que deu azo a interpretagées diversas. O canal & um excellente abrigo dos cardumes de tni- nhas (pirofy) © o indio quiz significar isso com o nome de Piretyooa que vale dizer — paredetro dag tainhas. © vocabulo tupi piraty evoluiu na dieedo por- tuguera para paraty, donde depois vieram party, barty, berty ow berti que 6 eomo ora se yé na composicho do nome Bertioga. (40) Santo Amaro 4 6 nome dado pelos Portuguezes 4 ilha, vizinha de B. Vicente, a que o gentio chamava Guaybe ou Guaimbé, ¢ que foi o nome da capitania doada a Pero Lopes de Souza na zona do Sul. 55 HANS STADEN defenderam. Os outros selvagens fugiram para suas casas e resis- tiram quanto pndéram. Assim morreram muitos inimigos, Mas por fim venceram estes e incendiaram o sitio de Brikioka; eaptu- raram todos os selvagens, mas aos christfios, que eram uns cito mais ou menos, ¢ a0$ mamelucos nada puderam fazer porque Deus quiz salval-os. Aos outros selvagens, porém, que tinham capturado, es- quartejaram-n'os e repartiram-n’os entre si, depois do que volta- Tam para sua terra. CAPITULO XVI Como os portuguezes reedificaram Brikioka e depois fizeram uma casa forte na ilha Santo Maro epois disto pensaram as autoridades e o povo que era bom nio abandonar este logar, mas que cumpria fortifical-o, pois que deste ponte tedo o paiz podia ser defendido. E assim o fizeram. Quando os inimigos perceberam que o logar lhes offerecia grande difficuldade de ataque, vieram de noite, mas por agua, @ aprisionaram a quantos encontraram em 8. Vincente. Os que mo- ravam mais longe pensavam nao ecorrer perigo, visto existir uma easa forte na vizinhanga, pelo que soffreram muito. Por causa disso, deliberaram os moradores edificar outra easa so pé da agua, e bem de fronte de Brikioka, e ahi collocar canhoes e gente para impedir os selvagens. Assim tinham comecado um forte ma iba; mas nado o tinham aeabado, 4 falta de artilheiro por- tuguez que se arriseasse a morar ali, Fui ver o logar., Quando os moradores souberam que eu era allemaio e que entendia de artilharia, pediram-me para ficar no forte ¢ ajudal-os a vigiar o inimigo. Promettiam dar-me compa- nheiros ¢ um bom soldo. Diziam tambem que si eu o fizesse, seria estimado pelo Rei, porque este costumava ver com bons olhos 56 VIAGEM AO BRASIL aquelles que, em terras assim mnovas, contribuiam com seu auxilio e seus conselhos. Contraetei com elles para servir 4 mezes na casa, depois do que um official devia vir por parte do Rei, trazendo navios, ¢ edi- ficar ali um forte de pedra, para maior seguranga; o que foi feito. A maior parte do tempo estive no forte com mais tres ¢ tinha al- gumas pceas commigo, mas estava sempre em perigo dos selvagens, porque a easa ndo estava bem segura. Era necessario estar alérta Para que os selvagens néo nos surprehendessem durante a noite, Oo que varias vezes tentaram; porém, Deus sempre nos ajudou, e sempre os pereebemos. Depois de alguns mezes, chegon um official por parte do Rei, pois que lhe tinham eseripto quio grande era o atrevimento dos gel- vagens ¢ o mal que os mesmos lhe faziam. Tambem tinham escri- pto quio bella era esta terra e nfo ser prudente abandonal-a. Para entéo melhorar essas condi¢des, ven o governador Tome de Susse [Thomé de Souza] para vér o paiz e o logar que queriam forti- fiear. Contaram-lhe tambem 08 servigos que eu tinha prestado; e que eu tinha ficado na casa forte onde alids nenhum portuguez queria permanceer, por estar muito mal defendida. Isso a agradou muito ¢ elle disse que ia falar ao Rei a meu res- peito, si Deus The permittisse voltar para Portugal, com o que eu havia de aproveitar. Acabou, porém, o tempo de meu servico, que era de quatro mezes, e pedi licenca. O governador, com todo o povo, pedin-me que ficasse por mais algum tempo. Respondi que sim e que ficava. ainda por dois annos; ¢ quando acabasse este tempo, tinham de dei- xar-me voltar no primeiro navio para Portugal, onde o Rei havia de recompensar os meus servicos. Para este fim, deu-me o gover- nador, por parte do Rei, as minhas privilegia [patentes], como 4 de costume dar-se aos artilheiros reaes, que as pedem. Fizeram a casa de pedras, puzeram dentro alguns canhies e ordenaram-me que zelasse bem da casa e¢ das armas, 57 HANS STADEN CAPITULO XVIL Como e por que motive tinhamos de observar os inimigos mais numa época do anno do que em outra Ra necessario estar mais alerta em duas épocas do anno do que no resto, quando os inimigos tratavam especialmente de invadir com forgas o paiz. E estas duas époeas cram: primeiro, no mez de novembro, quando umas fructas de nome Abbatt (41) amadureeiam, e das quaes preparavam uma bebida chamada Kaa wy (42). Além desta, ha tambem uma raiz denominada mandioka, que misturam com o abbati, quando maduro, para fazer a sua be- bida. Quando voltam de wma guerra, querem ter os abbatis para fabricarem essa bebida, que é para quando comem os inimigos, si tiverem capturado algum, e durante o anno inteiro esperam com impaciencia o tempo doa abbatis. Tambem em agosto deviamos esperalos, porque neste tempo viio 4 caga de uma especie de peixe, que entio stem do mar para agua doce, onde desovam. Estes peixes chamam elles em sua lin- gua Bratii (43) [parati] ¢ os espanhdes lhes dao o nome de Lysses, Neste tempo costumam sair para o combate, com o fim de ter tam- bem mais abundancia de comida. Os tacs peixes, elles apanham com pequenas redes ou matam-n’os com flechas, e levam-n'os frites com- sigo, em grande quantidade; tambem fazem delles uma farinha, a que chamam Pira-Kui (44). (41) Abbati ou avaty 6 0 milho na lingua do gentio tupi. (42) Kaa wy, 6 0 mesmo cauim, bebidi preparada com o milho masti- gado¢ fermentado. ) Fratti 6 9 mesmo poraty do gentio, que em portuguex se chama = toinka, (44) Pird-kud 6 0 vocabulo tup! — pird-ow!, que se traduz — farinha de peize, porque fabricada com o peixe secco e moquendo. 58 WLlAGE AM AU Bh AGL Ty CAPITULO XVIII Como fui aprisionado pelos selvagens ¢ como isso aconteceu I mila commigo um selvagem de uma tribu denominada Cariés, que era meu eseravo, Elle eagava para mim e com elle fui As vezes ua matto. HANS STADEN Aconteceu, porém, uma vez que um espanhé! da Ilha 8. Vin- eente veiu me visitar na ilha de Santo Maro, que fica a cerea de 5 milhas, ¢ mais um allemao de nome Heliodorus Hessus, filho de Eobanus, fallecido. Este morava na ilha de $. Vineente, num in- genio (45) onde se fabricava assucar. Este ingenio pertencia a um genovez que se chamava Josepe Ornio (46) [Giuseppe Adorno] & o Heliodorus era caixeiro e gerente do negociante, dono do inge- nio (ingénia sio casas onde se fabrica assucar). Jé conhecia este Heliodorus, porque quando naufraguei com os espanhdes, estava elle com a gente que encontrimos em 5. Vincente ¢ ficou desde entio meu amigo. Veio elle para ver-me, pois tinha sabido talvez que eu estava doente. No dia anterior tinha en mandado o meu escravo para o matto a procurar caga, ¢ queria ir buseal-a no dia seguinte para ter al- guma coisa que comer, pois naquelle paiz nio ha muita coisa mais, além do que ha no matte. Quando eu ia indo pelo matto, ouvi dos dois lades do caminho uma grande gritaria, como costumam fazer os selvagens, e avan- gando para o meu lado, Reconheci entio que me tinham cereado e apontavam as flechas sobre mim ¢ atiravam, Exelamei: Valha-me Deus! Mal tinha pronunciado estas palavras quando me estende- Tam por terra, atirande sobre mim e picando-me com as langas. Mas nao me feriram mais (gracas a Deus) do que em uma perna, despindo-me completamente. Um tirou-me a gravata, outro o cha- péu, o terceiro a ecamisa, ete., ¢ comecavam a disputar a minha pos- se, dizendo um que tinha sido o primeiro a chegar a mim, ¢ o outro, que me tinha aprisionado. Emquanto isto se dava, bateram-me og outros com os arcos. Finalmente, dois levantaram-me, ni como es- tava, pegando-me um em um brago ¢ o outro, no outro, com muitos atriz de mim e assim correram commigo pelo matto até o mar, onde tinham suas canéas. Chegando ao mar vi, 4 distancia de um tiro de pedra, uma ou duas candas suas, que tinham tirado para terra, (45) Leia-se engendo, fabriea de asaucar no Bragil. (46) Bo nome estropeado do gonover Giusseppe Doria, de que entre o8 portuguezes se fex — José Adorno, homem emprehendedor ¢ tronco de fami- dia notavel noa primeiros tempos da eolonia. 60 VIAGEM AO BRASIL por baixo de uma moita e com uma porgéo delles em roda, Quando me avistaram, trazido pelos outros, correram ao nosso encontra, enfeitados com plumas, como era costume, mordendo os bracos, fa- zendo-me com isso comprehender que me queriam devorar. Diante de mim, ia um rei com o bast&io que serve para matar os prisionei- ros, Fez um diseurso e contou como me tinham eapturado e feito seu eseravo o peret (47) (assim chamam aos portuguezes), queren- do vingar em mim a morte de seus amigos. E ao levarem-me ate as canéas, alguns me davam bofetadas. Apressaram-se entéo em arrastar as candas para a agua, de medo que em Brikioka jA esti- yessem alarmados, como de facto estavam. Antes, porém, de arrastarem as canéas para a agua, maniata- Tram-meé &, como niio eram todos do mesmo logar, cada aldeia ficou zangada por voltar sem nada e disputavam com aquelles que me detinham. Uns diziam que tinham estado tio perto de mim como os outros, e queriam tambem ter sua parte, propondo matar-me immediatamente. Eu orava ¢ esperava o golpe; porém, o rei, que me queria pos- suir, disse que desejava levar-me vivo para casa, para que as mu- Theres me vissem e se divertissem a minha custa, depois do que matar-me-ia e Kawewi pepicke (48), isto 6, queriam fabricar a sua bebida, reunir-se para uma festa ¢ me devorar conjunctamente. Assim meé deixaram ¢ m¢ amarraram quatro cordas ao pescogo, fa- zendo-me entrar numa canda emquanto ainda estavam em terra. As pontas das cordas amarraram ma canéa, que arrastaram para @ agua para voltar para a aldeia. (47) Perot, ou antes Perd, & como o gentio chamava ao portuguez, ¢ so frances chamava mofr. Perd querem alguns que seja uma corrupg3o do nome Pedro; querem outros, porém, que seja o meamo vovabulo tupi — pire — que vale dizer — rowpa de coure, porque os portuguezes se encouravam para as auas luctas no sertio. (48) Kawewi pepicke & phrase tupi, o mesmo que cauim pipig, que quer dizer — cauim ferve. O barbaro quiz dizer que mataria o prisioneiro com so- lennidade « o cauim havia de ferver. 61 HANS STADEN CAPITULO XIX Como queriam volar e os nosses chegaram para me reclamar, e como vollaram para elles e combateram Be pé da ilha, na qual fui aprisionado, ha uma outra ilha pe- quena, onde se aninham uns passaros maritimes de nome Twera (49), que tem pennas vermelhas. Perguntaram-me os indios £1 68 sens inimigos Tuppin Ikins tinham estado IA este anno, para apanharem os passaros e os filhotes. Disse-Thes que sim, mas qui- zeram yer elles mesmos, pois estimam muito as pennas daquelles pasgaros, porque todos os seus enfeites sio geralmente de pennas. A particularidade deste passaro é que suas primeiras pennas sio pardacentas, ficando pretas quando comegam a voar, tornando-se depois encarnadas, como tinta vermelha. Féram entio para a ilha, pensando encontrar ahi os passaros. Quando tinham chegado a cerca de dez tiros de espingarda do logar onde tinham deixado as eandas, voltaram-se e avistaram um bando de Tuppin Ikin e al- guns portuguezes entre elles, porque um escrave que me tinha acom- panhado, quando fui agarrado, escapara e dera alarma quando me prenderam. Pensavam vir livrar-me e gritaram para os que me capturaram que viessem combater, si tinham coragem. Voltaram entéo com a eanda para os que estavam em terra e estes atiraram eom sarahefanas (50) e fleehas, ¢ os da canéa responderam; desa- taram as minhas mos, mas as cordas do men pescoco continuavam fortemente atadas. (49) Twara 6 o veesbulo tupi ward ou guard, como o gentio chamava a ave de pennas rogudos, a Ibig rubra. (50) Por engano, Lifgren traduriu “Rore” por “sarabatana”, arma de arremesso de eetta hervada, por um tubo, no qual se sssoprava, desconhecida dos Indios da costa, Espingarda & 0 que &, que estes selvagens possuiam por troca com os Framcezes. Uma gravura de Staden, a de pagina 55, iste mos- tra elaramente. Esta advertemcia que nos fe, o ar. Professor Roquette-Pinto, @ que scceitamos, confirma-se pela mota que o Prof. Wegner pos, nesta altura do texto facsimilar de Frankforte: “Tore” — espingsrda em cuja pease, ao que parece, estavam oa Tupis da costa, em differentes casos igoladog, A sara- batana nie era usada pelos Tupis da costa do Brasil,” — A. P, 62 VIAGEM AQ BRASIL O rei (51), que estava commigo na eanda, tinha uma espin- garda ¢ um pouco de polvora, que um francez lhe dera em tréea de péu prasil. Ordenou-me que atirasse sobre os que estavam em terra. Depois de terem combatido um pouco, fiecaram com medo de que os outros tivessem canéas para os perseguir, pelo que fugiram. Tres delles tinham sido feridos, Passaram a cerea de um tiro de faleonete (52) de Brikioka, onde eu costumava estar, e quando pas- simos de fronte fizeram-me ficar em pé, para que meus compa- nheiros me vissem. Do forte dispararam dois grandes tiros, porém nos nio aleangaram. Emquanto isso, sairam algumas candas de Brikioka para nos aleangar, mas os selvagens fugiram de pressa, e vendo o3 amigos que nada podiam fazer, voltaram. CAPITULO XX © que se passou na viagem para a terra delles G» havia mais ou menos sete milhas de caminho de Brikioka 4 terra delles, seriam, conforme a posigio do sol, cerca de 4 horas da tarde deste mesmo dia qnando me capturaram . Féram 4 uma ilha ¢ puxaram as candas para terra, pretenden- do ficar ahi esta noite e me tiraram da canda. Uma vez em terra, nada podia enxergar porque me tinham ferido na cara, nem podia andar por eausa da ferida na perna, pelo que figuei deitado sobre a areia. Cerearam-me, com ameagas de me devorar. Estando nesta grande afflicgio, pensava no que nunca tinha (1) O marrador chama reé ao principal da tribu que o aprisionon. En- tre os tupia, esse principal erg o morubichaba on tuchaua. (2) Por esta phrase se v8 que o narrador féra, com effeite, eapturado ém um ponte da iha de Santo Amaro, para o lado de dentro dos canaes ¢ la- gamares, sendo entio conduzido peles indios através da barra de Bertioga, passando em frente do forte e ao aleance de um tiro de faleonete 63 HANS STADEN eogitade neste valle de lagrimas, onde vivemos. Com os olhos ba- nhados em pranto, comecei a cantar do fundo do meu coragéo o psalmo; “A ti implore meu Deus, no meu pezar, ete.” Os selva- gens diziem entao: “Véde como elle chora, ouvi como se lamenta’. Parecia-lhes, no entanto, que nao era prudente ficarem na ilha durante a noite, e se embarcaram de novo, para ir a terra firme, onde estavam umas cabanas que antes tinham levantado. Quando cheg4mos, era alta noite. Accenderam entao fogueiras e conduzi- ram-me para ld. Ahi tive de dormir numa réde, que na lingue delles se chamava Znmi e 6 a cama delles, que amarram a dois p4éus acima do chiio, ou, quando esto no matto, a duas arvores, As cordas que eu ftinha no pescogo, almarraram-n’as por cima numa 64 VIAGEM AO BRASIL arvore ¢ se deitaram em roda de mim, cagoando commigo e me cha- mando Schere inbau ende (53): “Tu é& meu bicho amarrado.” Antes de raiar 6 dia sairam de novo, remaram todo o dia e quando o sol deseambou no horizonte faltavam-lhes ainda duas mi- lhas para chegar ao logar onde queriam pousar, Levantou-se entiio, grande nuvem negra por detréz de nés, tao medonha, que os obri- (53) Schere inbow ende & phrase fupi alterade ¢@ que eorresponde 2 — he remimbab ndé, cuja traducgio ao pé da lettra é — mew dicho de criagSo #4 —, isto para signifiear ao prisioneire que elle dali em dinnte era bicho de etingiio ¢ thes pertencia. 65 HANS STADEN gou a remar com toda a pressa para alcangar a terra, por causa do vente e dos buledes. Quando viram qué j4 nio podiam escapar, disseram-me: Ne mungilta dec, Tuppan do Quabe, amanasu y an dee Imme Rannt me sisse (54), o que quer dizer: “Pede a teu Deus, que a grande chuva e vento niio nos facam mal.” Calei-me, fiz a minha oragio a Deus, eomo pediram, e disse: “O tu, Deus Omnipotente, que tens © poder na terra e no cén; tu que do comeco auxiliaste aquelles que imploram ¢ teu nome e que os eseutaste, mostra a tua clemencia a estes pagdos, para que eu saiba que tu ainda ests commigo e para que os selvagens, que te nio conhecem, possam vér que tu, meu Deus, ouviste a minha oragio.” Estava deitado na canda ¢ amarrade, de modo que nao podia ver o tempo, mas elles voltavam-se continuamente para iraz e co- mecavam a dizer: “0 qua moo amanassu™ (55), 0 que quer dizer: ' “A grande tempestade fica para triz.” Ergui-me entio um pou- eo, olhei para traz e vi que a grande nuvem se dissipava. Agradeci entaéo a Dens. Chegando em terra, fizeram commigo como d’antes; amarra- ram-mé a uma arvore ¢ deitaram-se ao redor de mim, dizendo que estavamos agora perto da terra delles, onde chegariamos no dia seguinte 4 tarde, o que muito pouco me alegrou. CAPITULO XXI Como me trataram de dia, quando me levaram 4s suas casas o mesmo dia, a julgar pelo sol, devia ser pela Ave-Maria, mais on menos, quando chegémos 4s suas casas; havia j& tres dias que estavamos viajando, E até o logar onde me levaram, (54) A phrase tupi 6 a seguinte: “Ne monghetd adé Tupan quaabe ama- nage yandé cima rana mocecy", cuja tradnucgie 6: “Pede a few Dews que aquella tempestade nao nos face mal”. (55) Corrigindo a phrase tupi, diga-se: “‘Oquare md amancpd", que quer dizer — a tempestade recolhe-se. VIAGEM AO BRASIL contavam-se trinta milhas de Brickiokhe (56), onde eu tinha sido aprisionado, Ao chegarmos perto das suas moradas, vimos que era uma aldeia com sete casas e se chamava Uwattibi (57), Entramos numa praia que vai abeirando o mar e ali perto estavam as suas mulhe- res numa plantagéo de raizes, a que chamam mandioca. Na mes- ma plantagdo havia muitas mulheres, que arrancavam destas raizes, e fui obrigado entao a gritar-Ihes na sua lingua; “A Junesche been ermi vromme (58), isto 6: “Eu, vossa comida, cheguei”. Dima vez em terra, correram todos das easas (que eatavam si- tuadas num morro), mogos e velhos, para me verem. Os homens iam com flechas ¢ arcos para as suas casas ¢ me recommendaram 4s mulheres qne me levassem comsigo, indo algumas adiante, ou- tras atriz de mim. Cantavam e dangavam unisonos og cantos que costumam, como canta sua gente quando esté para devorar alguem. Assim me levaram até a Yaeara (59), deante de suas casas, isto 6, A sua fortificagao, feita de grossas ¢ compridas achas de madeira, como uma cerca ao redor de um jardim. Isto serve contra os ini- migos. Quando entrei, correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua lin- gua: “Sche innamme pepite a e* (60), 0 que quer dizer: “Vingo em tio golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aquelles entre os quaes tu estiveste.” Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obri- gado a me deitar uma innit. Voltaram as mulheres e continua- ram a me bater e maltratar, ameagando de me devorar. (56) A graphin do nome Bertioga & varia nesta narragio. Brickioka, Brikioka, ete. (47) Uwattibi, ou melhor Dbatyhe, de que por corrupgio se fez Dha- tuba. (53) A phrase tupi restaurads 4: “Ay ichebe end remiurama”, que se ‘tradus — cheguet eu, vwosso regalo — ou, em outros termos: “nqui estou para rosea comida". (39) Ywora deve eer graphia erronea do tupi Fwird eu ybird, que si- gnifica — madeira, iranqueira, pous, — material com que o gentio coustruia @ eaigora, ou estueada om torno das suas aldeiss. (40) A phrase tupi deve eaereverse — che anama pipike af —e se tradaz: “meus parentos vingo em ti", que 6 como se dissessem ao prisioneiro — “agora me pagaris os meus’. 67 HANS STADEN Emquanto isto, ficavam os homens reunides em uma cabana @ bebiam 0 seu Kawi, tendo comsige og seus deuses, que se chamam Tammerka (61), em cuja honra cantavam, por terem prophetizado que me haviam de prender. fal canto onvi durante uma meia hora e nio appareceu um sé homem; sémente mulheres e eriangas estavam commigo. CAPITULO XXII Como os meus dois amos vieram a mim e me disseram que me tinham dado a um amigo que me devia guardar e matar quando me quizessem comer N« conhecia eu ainda seus costumes, tio bem como depois, e pensava agora que se preparavam para me matar. Logo de- pois vieram os dois que me eapturaram, um de nome Teppipo Wasw e seu irmao Alkindar Miri (62), ¢ me contaram como me tinham dado ao irmio de seu pae, Ipperu Wasu (63), por amizade. Este me devia conservar e matar quando me quizessem comer, ¢ assim ganhar um nome 4 minha custa. Como este mesmo Ipperu Wasu tinha capturado um eseravo, havia um anno, @ por amizade delle fizera presente a Alkindar Miri, este o matou e ganhou com isso um nome. Alkindar Miri tinha en- tio promettido a Ipperu Wasu de fazer presente a elle do primeiro que captnrasse. Este era eu. (61) Tammerka, ou antes, — tfamaracd — que quer dizer — sino ow chocalha de ferro, O narrador decerto confunde o maracd com itamaracd. Este nao era objecto de culto do gemtio, e sim aquelle, que erm tido como sugrado @ por isso o enfeitavam ¢ 9 guardavam em sitio reservado. (62) Jeppipo Wasu, Alkindar Miri, sio nomea um tanto alterados. Jep- pipo Wasu pode ser uma leve alteragio de Ye-pipo-uagt, traduzindo-se “es guicho grande", Alkindor Miri parees uma alteracko de dracundd Mirim, pa- pee pau Prine. ft eru Waesu & o mesmo do tupi, i - wane wl pind guassé pi, e significa — 68 VIAGEM AO BRASID Os dois que me capturaram disseram-me mais: “Agora, a3 mu- Iheres te levardo para féra, Aprasse” (64). N&o comprehendi entio esta palavra, que quer dizer dengor. Puxaram-me para féra, pelas cordas que ainda tinha ao peseogo, até a praga. Viéram todas as mu- Theres que havia nas sete cabanas ¢ me levaram, e os homens se foram embéra. Umas pegaram-me nos bragos, outras nas eordas que tinha ao peseogo, de forma que quasi nfo podia respirar. Assim me leva- ram; eu nao sabia o que queriam fazer de mim e me lembrava do (64) dprarse 6 alteragio do voeabulo tapi — Aperaeé — ov, simples: mente, poracé que quer dizer — ‘“reubifio para folguedo ou para ar”. 69 HANS STADEN soffrimento do nosso redemptor Jesus Christe, quando era maltra- tado innocentemente pelos infames judeus. Por isso, eonsolei-me ¢ mé tormei paciente. Conduziram-me até a cabana do rei, que se cha- mava Uratinge Wasu (65), que quer dizer na minha lingua “o gran- de passaro branco”. Deante da cabana do rei, havia um monte de terra fresea, e ali me assentaram, emquanto algumas mulheres me seguravam, Pensei entéo que queriam matar-me e procurava com os olhos o Jwera Pemme (66), instrumento com que matam gente, e perguntei si j4 me queriam matar. Ndo me responderam, mas veiu uma mulher que tinha um pedago de crystal em uma coisa que pa- recia um pau areado, ecortou-me com este crystal as pestanas dos olhos ¢ queria cortar-me tambem a barba. Mas isto nio quix suppor- tar e disse que me matassem com barba ¢ tudo. Disseram entao que me nao queriam matar ainda ¢ me deixaram a barba. Porém, alguns dias depois, m'a cortaram com uma tesoura que os franeezes lhes tinham dado. CAPITULO XXIII Comoe dangaram commigo deante das cabanas nas quaes guardam seus idolos “Tammerka” Erois conduziram-me de logar onde me cortaram as pestanas para as cabanas, onde guardavam os seus Tammerka, ou ido- los. Formaram um cireulo ao redor de mim, ficando eu no centro, com duas mulheres; amarraram-me numa perna umas coisas que cho- calhavam e na nueca collocaram-me uma outra coisa, feita de pennas de passaros, que excedia a cabeca ¢ que se chama na lingua delles (85) Uratinge Wosu & alteragio de Ciratinga ida que tambem s¢ ¢a- areve Guirofinga guogd ¢ ee traduz — a Gorca (66) Iwera Pemme 6 do tupi — ibiré-pema — que quor dizer — Pau aplainade, ou elava achatadn em forma de remo ou de capada. E o nome de um instrumento de guerra, 2 que o gentio chamava tambem tangapema ou, melhor, tocapema, para dizer — o tagape chato. TO VIAGEM AO BRASIL Arasoya (67), Depois comegaram as mulheres a cantar e, confor- me um som dado, tinha eu de bater no chée com o pé. em que esta- vam atados os chocalhos, para chocalhar em acompanhamento do canto. A perna ferida me doia tanto, que eu mal podia conservar- me de pé, pois a ferida ainda niio estava curada. (67) drasoya 6 0 vocabulo tupi — arageyd, on aregoyaba, especie de turbante feito de pennas multicéres. Era, em verdude, o chapéo do selvagem em oceasides solennes 71 HANS &STADEN CAPITULO XXIV Como depois da danca me entregaram a Ipperu Was, que me devia matar A cabapa a danga, fui entregue a Ipperu Wasu. Ali estava mni- to bem guardado, Tinha ainda algum tempo para viver. Trouxeram todos os idolos que havia nas cabanas e collocaram ao redor de mim, dizendo que elles tinham prophetizado a eaptura de um portuguez. Disse eu ent&o: “Estas coisas nfo tém poder, nem podem falar, e é falap que eu seja portuguez. Sou amigo ¢ parente dos franeezes e a terra de onde eu sou, chama-se Allemanha”. Res- ponderam-me que isso devia ser mentira, porque si eu fosse amigo dos franeezes, nada tinha que fazer entre os portuguezes; pois ga- biam bem que os framcezes eram {40 inimigos dos portuguezes, como elles mesmos. Os franeezes vinham todos os annos com embarcagies e lhes traziam facas, machados, espelhos, pentes e tesouras; e elles thes davam em troca pin-prasil, algodio e ontras mereadorias, como enfeites de pennas ¢ pimenta. Por isso, eram elles seus amigos; 08 portuguezes, assim nonea fizeram. Tinham vindo os portuguezes ha mitites annos a esta terra, ¢ tinham, no logar onde ainda moravam, eontrahido amizade com os seus inimigos. Depois, tinham-se diri- gido, elles tambem, aos portuguezes para negociar, ¢ de boa fé fo- ram 408 seus navies ¢ entraram nelles, tal como faziam ainda hoje eom os francezes; mas quando os portuguezes viram que havia bom numero mos navios, 03 atacaram, amarraram e entregaram aos seus inimigos, que os materam e devoraram, Alguns tinham sido tam- bem mortos a tires @ muitos soffreram outras erueldades mais. Di- ziam que os portuguezes tinham assim praticado, porque vieram guerreal-os, com seus inimigos. 72 VIAGEM AQ BEASIL CAPITULO XXV Como os que me capturaram estavam zangados ¢ se queixavam de que os portuguezes mataram a tiro seu pae, que elles queriam vingar em mim E piztaM mais que og portuguezes tinham atirado no brago do pae dos dois irmios que me capturaram, do que veiu elle a fallecer; e esta morte do pae queriam vingar em mim. Eu repliquei que no deyiam vingar-se em mim, porque eu néo era portuguez ¢ tinha yindo, havia poueo, com os castelhanos; que eu tinha naufra- gado ¢ por isso tinha l4 fieado. Entre os indios havia um mogo que tinha sido escravo dos por- tuguezes. Os selvagens, que moravam com os portuguezes, tinham ido guerrear os Tuoppin-Inba e tomado uma aldeia inteira. Os ve- thos foram comidos ¢ os mogos foram trocados por mercadorias com os portuguezes. Este moco era um dos que tinham sido vendidos e ficara perto de Brickioka com o seu senhor, que se chamava Anto- nio Agndin, um gallego. A este mesmo eseravo tinham eapturado, ums tres mezes antes da minha captura. Como era da mesma raga que elles, nio 9 mataram. Elle me conbecia. Perguntaram-lhe quem eu era. Elle entéo disse que era verdade; que um bareo tinha naufragado ¢ os homens que nelle ha- via chamavam-se castelhanos 6 eram amigos dos portuguezes. Com elles estava eu, e nada mais sabia elle de mim. Quvindo agora como tambem antes que havia francezes entre elles ¢ que costumavam vir embareados, insisti no que tinha dito e continuei: “que eu era amigo e parente dos francezes, que nao me matassem, até que os francezes Viessem @ me reconhecessem”. Guar- daram-me entZo muito bem, porque havia ali alguns franeezes que os navies tinham deixade para carregar pimenta. a3 HANS STADEN CAPITULO XXVI Como um francez, que os navios deixaram entre os selvagens, chegou para me yer e thes recommendou que me devorassem, porque eu era portuguez H Avia um frances a quatro milhas de distancia do logar das ca- banas, onde eu estava. Logo que soube da noticia, yeiu para uma das cabanas em frente daquella em que eu estava. Vieram en- tio os selvagens me chamar: “Est& aqui um france, queremos ver agora si és francez on ni”. Isto me alegrou, e disse commigo: “Bile é christio, elle falar4 para o bem”. Conduziram-me ni 4 sua presenca. Era mogo e os selvagens 0 chamavam Karwattuware (68). Felow-me em francez, mas eu nie podia entendel-o hem, Os selvagens estavam presentes € escutavam. Como eu lhe néo podia responder, disse elle aos selvagens, na lingua delles: “Matem-no © devorem-no, o seelerado é portugues legitimo, vosso € meu inimigo”, Comprehendi perfeitamente e pedi, por amor de Deus, que Ihes dissesse que me nao devorassem. Mas elle me disse: “Querem-te devorar". Lembrei-me entio de Jeremias, cap. 17, onde diz: “Maldito seja o homem que nos outros homens confia”. E com isso, sai dali com grande pezar no coragio. Nos hombros tinha um pedaco de panno de linho, que me tinham dado (onde o teriam ad- quirido?), tirei-o (o sol me tinha queimade muito) e o arremesse) aos pés do francez, dizendo a mim mesmo: “Si tenho de morrer, para que entéo cuidar em proveite des outros da minha carnet” ‘Con- duziram-me entdo outra vez 4 cabana, onde me guardaram. Deitei- me na rede ¢ Deus sabe quanto me considerava desgracado. Come- cei a me lamentar, cantando o psalmo: (68) Karwattuware 6 alterngio do tupi — kerauatawara (karawatd ward) que quer dizer — comeder de gravatds, isto 4, apreciador dos fructos desta bromelincos. 74 VIAGEM AQ BRASIL Roguem ao Espirito Santo (*) Que nos dé a verdadcira fé, Que nos guarde até ao fim, Quando sairmoa desta triste vida. Kyrioleya. Disseram, entao: “E legitimo portuguez, agora se lamenta e tem medo da morte”. © referido francez ficou dois dias nas cabanas ¢ no terceiro foi- se embora. Entao determinaram que se fizessem os preparativos para me matarem no primeiro dia, depois de tudo arranjado. Guar- daram-me muito bem ¢ escarneceram de mim, tanto os mogos como os velhos, CAPITULO XXVIL Como eu sentia fortes dores de dentes CONTECED que, emquanto eu estava reduzido a esta miseria (e eomo se costuma dizer — uma desgraga nunca vem 86) — um dente comecou a doer-me tanto, que quasi desanimei de todo, O meu senhor veiu a mim ¢ me perguntou porque comia tao pouco. Respondi que me doia um dente. Voltou entéo com um instrumento de madeira e me quiz extrahir o dente. Disse-lhe que nao me doia mais, mas elle queria extrahil-o por forga. Porém, oppuz-me tanto que elle me deixou; mas disse que si eu nig quizesse comer ¢ engor- dar, matar-me-iam antes do tempo. Deus sabe quantas vezes eu pedi de coraedo, que, si fosse de sua vontade, me deixasse morrer sém que os selvagens o soubessem, para que elles nao satisfizessem o seu de- sejo em mim. ay Sanctum precemur Spiritom ‘Vera beara nos fide Tt nos in hac In fine nempe vitae Hic quando ecommigramus Doloribus soluti a3 Kyrie Bleison. 15 HANS STADEN CAPITULO XEVUI Como me levaram ao seu rei supremo, chamado Konyan-bébe. eo que ali fizeram commigo A dias depois, levaram-me para uma outra aldeia que elles chamam Arirab (69), para um rei, de nome Konyan- Bébe (70}, que era o principal rei de todos. Ali se haviam reunido mais alguns em uma grande festa, a modo delles, ¢ queriam me ver, pelo que me mandaram busear naquelle dia. Chegando perto das cabanas, ouvi um grande rumor de can- to e de trombetas, ¢ deante das cabanas havia umas quinze cabe- cas espetadas; eram de gente sua inimiga, chamada Markayas (71), e que tinha sido devorada. Quando me levaram para 14, disseram- me que as cabegas eram de seus inimigos e que estes se chamam Markayas. Fiquei com medo e pensei: “Assim fario commigo tam- bem!” Ao entrarmos nas cabanas, um dos meus guardas avangou @ gritow com voz forte, para que todos o ouvissem: “Agut trage o escrave, 0 portuguez,” pensando qué era coisa muito béa ter o imi- migo em seu poder. E falou muitas coisas mais, como é de costume, eonduzindo-me até onde estava o rei sentado, bebendo com os ou- tros, e estando jA embriagados pela bebida que fazem, chamada Ke- wewy. Fitaram-me deseonfiados ¢ perguntaram: “Vieste como nos- so inimigot” Respondi: “Vim, mas nfo sou vosso inimigo.” De- ram-me entio a beber. Ja tinha ouvido falar muito do rei Konyan- Bébe, que devia ser um grande homem, um grande tyrano, para comer carne humana. Fui direito a um delles, que en pensava ser elle, e lhe falei tal como me vieram as palavras, na sua lingua, ¢ (09) Arirab, graphin errada de Anroba on drird, rome da aldeia de Cunbambebe, para og Indes de Angra dos Reis. No Estado do Bio de Janeiro, ha o rio 4riré e tambem uma gerra com este mesmo mome por aquelles lades. (70) Eonyan-Bebe 4 0 mesmo Cunhambebe, chefe tamoso dos Tamoyos, inimigo dos Portuguezes. (71) Markaya deve ser — Maracayd — nome de uma tribo inimiga dos Tamoyos, vocabulo tupi com que se designa — ¢ gato do matte. 76 VIAGEM AO BRASIL disse: “Es tu Konyan-Bébe, vives tu ainda?” “Sim,” disse elle, “eu vivo ainda.” Entao repliquei: “Tenho ouvido falar muito de ti e que és um valente homem.” Com isto, levantou-se ¢, cheio de si, comegon a passear. Trazia elle uma grande pedra verde atraves- sada nos labios (72), como é costume delles, Fazem tambem ro- sarios brancos de uma especie de conchas, que é 0 sen enfeite. Um destes, tinha-o rei ao peseogo, ¢ era de mais de 6 bragas de com- prido. Por este enfeite vi que elle era um dos mais nobres. (72) £ o omato de nephrite & que o gentio chamava — Tembctéd — isto , tembéitd, que vale dizer — pedra da beico. T7 HANS STADEN Tormou @ assentar-se ¢ comegou a me perguntar o que plane- javam seus inimigos, os Tuppin-Ikins e os portuguezes. E disse mais: “Porque queria en atirar sobre elle, em Brickioke t” Porque lhe econtaram que eu era artilheiro e atirava contra elles. Entio respondi que os portuguezes me tinham mandado e me obrigaram a isso. Disse elle ent&o que eu tambem era portuguez, porque o francez, que me havia visto e a quem elle chamava “seu filho", Ihe dissera que eu nao sabia a sua lingua por ser portuguez legitimo, Bu disse entéo: “Sim, é verdade; estive muito tempo féra daquella terra ¢ tinha esquecido a lingua.” Elle replicou que ja tinha aju- dado a capturar comer cinco portuguezes e que todos tinham men- .tido, 36 me restava entéo consolar-me e recommendar-me 4 von- tade de Deus, porque comprehendi que devia morrer. Tornou entio a mé perguntar o que os portuguezes diziam delle ¢ si tinham mui- to medo delle, Eu respondi: “Sim, elles falam muite de ti e das grandes guerras que tu Ihes costumas fazer; mas agora fortificeam melhor Brickicka,” “Sim, continuon elle, queria de vez em quan- do eaptural-os”, como me tinham capturade no matto. Ainda mais contei eu a elle; “Sim, teus verdadeiros inimigos so os Tuppin-Ikins que preparam 25 canéas para virem atacar o teu paiz”, como realmente tambem aconteceu. Emquanto elle me fazia perguntas, ficavam os outros em pé, escutando. Em summa, perguntou-me muito e falou muito. Rego- aijava-se dos muitos portuguezes e dos selvagens, seus inimigos, que tinha morto. Emquanto isto se passava commigo, os que estavam bebendo na cabana acabaram com a bebida que ali havia; passaram. entao todos a uma outra cabana na qual continuaram a beber ¢ por isso terminou a minha conferencia com o chefe. Nas outras cabanas, continuaram suas zombarias commigo eo filho do rei atou-me as pernas em tres logares, obrigando-me a pu- lar com os pés juntos. Riam-se disso e diziam: “AAi vem a nossa comida pulando.” Perguntei ao meu senhor que me levara até ahi, si era para me matar aqui. Respondeu-me que nao, mas que era costume tratar assim os escravos. Tiraram-me ent&o as cordas daa pernas e me beliscaram, rodeando-me e falando; um disse que o 78 VIAGEM AO BRasin eouro da cabeca era delle, outro que a barriga da perna Ibe per- tencia. Depeis obrigaram-me a cantar e cantei versos religiosos. Queriam elles que eu os traduzisse. Disse entéo que tinha cantado do meu Deus, Elles respondiam que meu Deus era excremento, isto 4, na lingua delles, — Tewire (73). Taes palavras me magua- ram e eu pensava: “O tu, Deus bondoso, como podes soffrer isto com pacienciat’” Quando, no dia seguinte, todos na aldeia ji me tinham visto ¢ desearregado todos os insultes sobre mim, Konyan- Bébe disse aos que me guardavam que tomassemm muito sentido com- migo. Levaram-me entao outra vez para féra, para voltar a Uwattibi, onde me deviam matar. Gritavam atriz de mim que logo viriam & eabana de men senhor para deliberarem sobre minha morte ¢ me devorarem, mas meu senhor me consolou dizendo-me que tao eedo eu nao seria morto. CAPITULO XXIX Como as 25 canéas dos Tuppin Ikins vieram, como eu tinha dito ao rei, para ataear as cabanas onde eu estava Beer isto, aconteceu que as 25 candas dos selvagems, que eram amigos dos portuguezes, como eu tinha dito, ¢ esta- vam promptos para ir 4 gnerra antes de eu ser preso, vieram uma manbi para atacarem as cabanas. Quando os Tuppin-Ikins investiram contra a8 eabanas e come- earam a atirar sobre ellas, encheram-se de medo os de dentro e as mulheres queriam fugir. Disse-lhes eu entio: “Vés me tendes por portuguez, vosso inimigo, dae-me um aro e flechas e deixae-me ir, quero ajudar-vos a defender as cabanas.” Deram-me um arco e * (73) No tupi, excremento — tipoty ou repoty. 8, pordm, de suppor que o vecabule tevtre seja alterngiio de twbira, que signifiea — vil, corrupte, infame, ruim. Possivel 6, tambem, que proceda de tedwira que vale dizer — o que 4 langado ou tirade do corpo”. 79 HANS STADEN flechas. Eu gritava e atirava ao modo delles o melhor que podia, e thes dizia que tivessem animo, nio havia perigo, Minha intengio era de atravessar a cerca ao redor das cabanas e correr para os ou- tros, pois elles me eonheciam e sabiam que eu estava na aldeia. Mas, vendo os Tuppin-[kins que mada podiam fazer, voltaram ou- tra vex para suas canjas e se foram embora. Quando bem longe ja estavam elles, prenderam-me de novo. 80 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXX Como os chefes se reuniram de noite, ao luar N A tarde do dia em que os outros se foram, reuniram-se ao luar, na praga que fica entre as cabanas ¢ conferenciaram a respeito da época em que me deviam matar ¢ me conduziram para % xB A ss - e a « + eo vA ron ri nit ™ VF Frits ri 3 aS Wahi 4 o meio delles, maltratando-me e fazendo zombaria de mim. Eu es- tava triste, olhei para a lua e pensei: “Oh, meu Deus e Senhor, aju- 81 HANS STADEN da-me nesta affliccio, para que me veja livre." Perguntaram-me Porque cu olhava para a lua. Entao Thes respondi: “Vejo que ella esti zangada”, porque a figura que esté ma lua parecia-me tio terrivel (Deus me perdée) que eu pensava que Deus ¢ todas as ereaturas deviam estar zangadas commigo. Perguntou-me entao o rei, que me queria matar, o chamado Jeppipo Wasu, um dos chefes das cabanas; “Com quem esté zangada a Ina?” Respondi-lhe: “Eula olhe para tua cabana”, Por causa destas palavras, comegou elle a falar aspero commigo. Para contradizer isso, disse eu: “De certo nao serd com a tua cabana, ella esti zangada com os eseravos Ca- riés”, (que tambem ha uma raca que assim se chama). “Sim, disse elle, sobre elles que venha a desgraca.” Fieou misso e nao pensei Tais sobre esta conversa. CAPITULO XXXI Como os Tuppin Ikins incendiaram uma outra aldeia, chamada Mambukabe N o dia seguinte chegou a noticia, de uma aldeia chamada Mam- - bukabe [Mambueaba], que os Tuppin Ikins tinham ata- eado, quando sairam do logar onde cu estava captivo; ¢ os mora- dores tinham fngido, excepto um mening que elles captivaram, e de- pois foram incendiadas as cabanas. Entio o Jeppipo Wasu (que tinha poder sobre mim ¢ que muito me maltratava) foi para 14, por- que cram seus amigos e parentes e queria ajudal-os a fazer novas eabanas. Por isso, levou comsige todos os amigos de sua aldeia e teve a lembranga de levar a farinha de raizes [mandioca], para fazer a festa, e li me devorarem. E quando se foi embora, ordenou Aquelle & quem me tinha entregue, chamado Ippern Wasu, que me guar- dasse bem. Ficaram entio [6ra mais de quinze dias e 14 prepararam tudo. 82 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXXII Como chegou um navio de Brickioka e perguntaram por mim. O que disseram a meu respeito Essx interim, chegon um navio dos portuguezes de Brickioka, deitou aneora n’o longe do logar em que eu estava captivo e disparou um tiro de pega (74), para que os selyagens ouvissem ¢ viessem falar com elles. Quando pereeberam isto, disseram-me: “Ahi vém os teus ami- gos, os portuguezes, e querem talvez saber si tu ainda vives ou te comprar.” Disse eu entiio: “De certo é mew irmao”, porque eu sup- punha que si o navio dos portuguezes passasse por ali, pergunta- riam por mim. Para que os selvagens nio pensassem que eu era por- tuguez, disse-lhes que tinha um irmio que tambem era francez ¢ ¢3- tava com os portuguezes. Mas nfo queriam acreditar que eu nao era portuguez, e foram tio perto do navio que puderam chegar & fala. Os portuguezes entio perguntaram como eu passava. E elles responderam que pao s¢ importavam commigo. Quendo eu vi o na- vio ir-se embora, sabe Deus o que fiquei pensando. Elles disseram entre si; “Temos mesmo o homem; ji mandam navios atréz delle.” (74) Era esse o costume naquelles tempos em que o trafico com o gen- tio era unico negocio possivel nesta parte da America, 08 navios dos contra- etadores do pau-brasil como as simples naua de reagate, portuguemus ou estran- geiras, empregavam todas 9 mesmo process. 83 HANS S8TADEN CAPITULO XXXUT Como o irméo de Jeppipo Wasu chegou de Mambukabe e queixou-se a mim de que seu irm4o, sua mie e todos os outros estavam doentes e pediu-me que eu fizesse com que meu Deus lhes désse outra vez a saude Bee eu todos os dias os outros que, como antes disse, es- tavam féra, preparando-se contra mim. Um dia depois ouvi alguem gritar na cabana do rei que estava ausente. Tive medo pen- sande que voltavam, porque é costume dos selvagems mio se ausen- tarem mais de quatro dias. Quando ent&o voltam, seus amigos gri- tam de alegria. Nao muito depois desta gritaria, veiu um delles ter commigo ¢ me disse: “O irmio do ten senhor ehegou e diz que os outros ficaram doentes.” Fiquei alegre e pensei: “Aqui Deus quer fazer alguma coisa.” Poneo tempo depois veiu o irmio do meu se- nhor 4 cabana onde eu estava, assentou-se ao pé de mim, comecou a se lamentar e a dizer que seu irmao, sua mie e os filhos de sen ir- mo tinham todos caido doentes, e stu irmdo o tinha mandado a mim para me dizer que cu devia fazer com que meu Dens lhes désse saude, e accreseentou: “Meu irmao est& pensando que teu Deus esta zan- gado.” Eu the disse que sim, que meu Deus estava zangado, por- que elles me queriam devorar e tinham ido a Mambnkabe a fazerem os preparativos. E lhe disse mais: “Vés dizeis que eu sou portu- quez, ¢ eu nao o sou." E accreseentei: “Vae ter com teu irméo, para que elle vole a sua cabana e eu falarei a meu Deus, para que elle fique bom.” Entio respondeu-me que o irmio estava muito doente, ¢ nao podia vir; que elle sabia e tinha reparado que si eu quizesse, elle ficaria bom 14 mesmo. En lhe respondi que ficaria tio bom que po- dia voltar para sua cabana, onde elle entio havia de sarar comple- tamente. Com isto, partiu elle com a resposta para Mambukabe, que fica a quatro leguas de Uwattibi, onde eu estava. 84 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXXIV Como o Jeppipo Wasu vollou doente D rrots de alguns dias, voltaram todos os doentes. Entéio man- dou o rei me conduzir para a sua cabana e me disse como tinham todos fieade deentes © que eu bem o sabia, porque elle ge lembrava ainda que eu tinha dito: “A lua estava sangada contra @ sua cabane", Quando ouvi estas palavras, pensei commigo: “Acon- teceu pela providencia de Deus que eu em a noite referida tivesse falado da lua.” Fiquei muito alegre e pensei: “Agora Deus esté commigo." HANS STADEN Entao lhe disse mais que era verdade, por elle querer-me comer @ eu nao ser sew inimigo, ¢ por isso lhe veiw a desgraga. Elle disse entio: que nada me fartem, si elle tornasse a levantarse. Nao sabia como melhor rogar a Deus. Disse ecommigo: “Si voltam outra vez 4 saude, matam-me assim mesmo; si morrem, ent&o dirfio os outros: “vamos matal-o antes que acontecam mais desgragas por causa delle”, como j4 comegavam a dizer. “Seja como Dens quizer.” Elle [o rei] pediu-me muito para que ficassem bons. Andei em roda delles e¢ lhes deitei a mao nas cabecas, como me pediram. Deus porém niio o quiz, ® comecaram a morrer. Morreu-lhes uma creancga, depois morreu & mae do rei, uma mulher velha, a qual queria fazer os potes nos quaes pretendiam fabricar a bebida quando tivessem de me devorar. Algune dias depois morreu um irmio do rei, depois mais uma ereanga, 6 mais um irmdo, que era aquelle que me tinha dado a no- ticia quando tinham fieado doentes, Vendo ent&o que seus filhos, sua mae ¢ irmios tinham morrido, ficou muito triste, ¢ temendo que elle ¢ mais as mulheres tambem Morressem me pediu rogasse a meu Dens que mao ficasse mais zan- gado e o deixasse viver. Eu o consolei como pude e disse que elle nada soffreria, e que nao devia pensar em me devorar quando fi- easse sio. Respondeu-me que nao e ordenou acs outros da sua ca- bana que nie fizessem mais zombaria de mim, nem ameacassem de me devorar. Assim mesmo continuon ainda deente algum tempo, po- rém fieou outra vez bom e tambem uma de suas mulheres, que es- tava doente. Mas, morreram mais ou menos oito de sua amizade, os quaes me tinham feito muito mal. Havia ainda dois outros reis em duas cabanas, um, Vratinge Wasu; outro, Kenrimakwi (75), ficou bom. Vratinge Wasn tinha sonhado que eu tinha vindo e lhe dis- sera que elle havia de morrer. De manha cedo veiu elle ter commi- go e se qneixou. Eu disse que nao, e que nfo havia perigo; mas que elle tambem no pensasse em me matar, nem que isto aconselhasse. Disse elle entéo que si aquelles que me tinham capturado nao me matassem, elle nio me faria mal, e ainda que me matassem, elle nao comeria de minha carne. (75) Kenrimaiut 6 olteragio de Corimd-cui, quo quer dizer — farinda de carima, ou pd de carima. 86 VIAGEM, AO BRASIL Por sua vez, o outro rei, Kenrimakni, tinha tambem sonhado commigo um sonho que muito o alarmou. Chamou-me 4 sua cabana, deu-me de comer e, depois, queixon-se a mim dizendo que tinha uma vez estado em guerra, onde ¢apturéra um portuguez que elle matou com suas mios e comeu delle tanto que seu peito ainda doia disso, e no queria comer mais ninguem. E tinha sonhado commigo so- nhos tho horriveis que pensava tambem ia morrer. Eu disse-lhe que nio havia perigo si ndo comesse mais carne de gente. ‘Tambem as mulheres velhas de algumas cabanas, as que muito me tinham maltratado com beliscdes, pancadas ¢ ameagas de me de- vorar, estas mesmas me chamaram entio Scheraeire (76), isto 6, “men filho, nao me deixes morrer”. “Si te trat&mos assim, diziam, foi porque pensimos que eras portuguez e este nés detestamos. Te- mos tambem tide alguns portuguezes, que comemos; mas 0 Deus del- les nao ficava tio zangado como 0 teu; por isso, vemos agora que ta nao podes ser portuguez.” Assim, deixaram-me por algum tempo, porque nao sabiam bem © que pensar de mim; si eu era portuguez, ou si era francez. Dis- Seram-me que si tinha barba vermelhe, como os francezes, tambem tinham visto portuguezes com igual barba, mas elles tinham geral- mente barbas pretas. Depois deste panico, quando um dos meus senhores fieou bom, ndo falaram mais em me devorar, porém guardaram-me tae bem como dantes e nfo queriam me deixar andar sézinho. (76) Soheraeire, diga-oe che raira, que quer dizer — meu fitho. 87 HANS STADEN CAPITULO XXXV Como voltou o francez que tinha recommendado aos selvagens que me devorassem e eu Ihe pedi que me levasse, mas os meus senhores nio queriam me deixar O va. franeez Karwattuware, do qual j4 falei, que se virou con- tra mim, come os selvagens que o acompanhavam ¢ eram ami- gos dos francezes, veiu para arranjar com os indios pimenta e uma especie de pennas (77). Quando entéo estava de volta para o logar onde os navios che- gam, chamado Mungu Wappe e Iterwenne (78), tinha elle de pas- sar por onde en estava, A saida do francez, nio duvidei que me iam devorar, como elle o tinha recommendado; e eomo esteve ausente al- gum tempo, nio podia pensar que en ainda estivesse vivo. Chegando outra vez 4s cabanas, onde eu estava, falou commigo na lingua dos selvagens; eu me agastei com elle porque me pergun- tou si eu ainda estava vivo. “Sim, respondi, gracas a Deus, que me conservou por tanto tempo.” Talvez tivesse elle ouvido dos selva- gens como isso aconteceu, ¢ o chamei para um logar onde podiamos falar a sés, para que os selvagens nfo ouvissem o que eu lhe dizia. Abi Lhe disse que bem podia elle ver que Deus me tinha poupado a vida; como tambem que eu niio era portuguez, mas allemao, e por eausa do naufragio dos espanhées tinha chegado 4 terra dos portu- guezes; e pedi que contasse aos selvagens o que eu tinha dito a elle, dissesse-lIhes que eu era amigo e parente delle, e que elle me levasse quando chegassem os navios. Porque en tinha medo de que, si elle (77) A pimenta (Minha), ehamada cumurf, valia entio como uma es- peciaria da terra. As pennas do guord, da avara, as pelles de tucano ¢ dos fe- Tinos eram entio muito procurados. O trowchement frances sdquiria cases ar- tigoa ¢ esperava o berce que oa vinha buscar o levar para a Europa. (78) Mungu Woppe e Iterwenne siio de dificil identifieagio, O pri- meiro parece ser alteragio de Mongaguape e o segundo de Iferuenne, ou tal- vez Iferonne, mais aproximado de Jteron, qua quer dizer — egua em seto, en- geada, Alids, na edigio “princwps”, Wse: — Iterroenne. V. nota 82. 88 VIAGEM AO BRASIL © nao fizesse, os selvagens haviam de pensar que havia charlatanis- mo da minha parte ¢, uma vez zangados, me matariam. Fiz-lhe ma admoestagdo, na lingua dos selvagens, e lhe per- guntei si nio tinha um coragao christio no peito e si ndo se lembra- va que depois desta vida havia uma outra, para elle ter recommen- dado que me matasiem. Comegou entio a se arrepender e me disse que tinba julgado que eu era portuguez, gente tio m4, que quando os indios apanhavam algum nas provincias do Prasil, enforeavam-no logo; 6 que é verdade, Tambem me disse que elles, os francezes, ti- nham de respeitar os costumes dos selvagens, e faziam causa com- mum com elles porque eram inimiges tradicionaes dos portuguezes. Conforme eu tinha pedido, contou elle aos selyagens que da pri- meira vez nfiio me conheeera bem, mas que en era da Allemanha e amigo delles, pelo que queria levar-me comsigo quando chegassem os navios. Mas, os meus senhores responderam-lhe que nfo, que nao meé dariam a ninguem, s6 si viesse meu pae ou meu immio, com um navio cheio de carga, como machados, espelhos, faeas, pentes e tesou- ras, acerescentando que elles me acharam na terra dos inimigos ¢ en Thes pertencia. Quande o francez ouviu isso, disse-me que estava convencida de que elles nio me largariam. Pedi-lhe entio, por amor de Deus, que me mandasse busear para me levar 4 Franca no primeiro navio que chegasse. Isso me prometten elle, ¢ disse aos selvagens que me guar- dassem bem e que nio me matassem, porque os meus amigos haviam de vir 4 minha procura; ¢ se foi embéra. Tendo partido o franeez, perguntou-me um dos meus senhores, ehamado Alkindar Miri (mao o que estava doente), o que o Karwat- tuwara (que era o nome do francez, na lingua dos selvagens) me tinha dado e si elle era meu patricio, respondi que sim. “Porque entao, dizia elle, ndo te deu wma faca para tu me dares?” e ficou zangado. Mais tarde, uma vez restabelecidos, comecaram de novo a murmurar a meu respeito e diziam que os frameezes no valiam mais qué os portuguezes. Comecei a ter medo de novo. 89 HANS STADEN CAPITULO XXXVI Como devoraram um prisioneiro e me conduziram a esse espectaculo CONTECEU que alguns dias depois quizeram devorar um pri- sioneiro, numa aldeia chamada Tickquarippe (79), cerca de seis milhas de distancia do logar onde me achava captive. Alguns dos das cabanas, onde eu estava, foram para l4 e me levaram tam- bem. © escravo que elles iam comer era de uma nagio chamada Mar- ckaya, Fomos para la em uma canéa. Quando chega o momento de se embriagarem, como @ seu costu- me, quando devoram alguma victima, fazem de uma raiz uma be- bida que chamam Kawi; bebem-na toda ¢ matam o prisioneiro. Em a noite seguinte, ao beberem 4 morte do homem, cheguei-me para a victima e lhe perguntei: “Estas prompto para morrer?” Riu-se e me respondeu: “Sim”. A corda com que amarram os prisioneiros, mussurana, é de algodio ¢ mais grossa do que um dedo, “Sim, disse elle, estow prompte para tudo”. Sémente a mussurana nao era bem eomprida (faltavam-lhe cerca de seis bragas). “Sim, nis temos me- Thores cardas”, disse elle, assim como quem vai a uma feira, Eu tivha commigo um livro, em lingua portugueza, que os sel- vagens tiraram de um navio que aprisionaram com o auxilio dos franeezes ; fizeram-me presente desse livro. Deixei o prisioneiro e li o livro, e tive muito dé delle, Voltei a ter com elle (porque os portuguezes tém estes markayas por amigos) e lhe disse: “Eu tambem sou prisioneiro como tu ¢ nao vim aqui para devorar a tua carne, foram os outros que me trouxeram”. Entio respondeu que sabia bem que a nossa gente nado come earne bu- mana. Disse-lhe mais que néo se affligisse porque, si lhe comiam a carne, sua alma ia para um outro logar, aonde vio tambem as almas (79) Tiskquarippe & do tupi Tyquarype, composto de Tyquaray-pe, que ae traduz — n'agua do pogo. 90 VIAGEM AQ BERASIL da nossa gente, ¢ ali ha muita alegria, Entéo perguntow-me si isso era verdade. Eu respondi que sim, e elle me disse que nunca vira a Deus. Respondi que na outra vida havia de vél-o; e quando aca- bei de the falar, deixei-o. Na mesma noite em que com elle falei, levantou-se um forte vento, soprando tao horrorosamente que tirava pedagos das cober- tas das casas. Os selvagens zangaram-se entio commigo, e disse- ram na sua lingua: “Apomeiren geuppawy witth was Immou (80), isto 6, “o maldito, o santo, fez agora vir o vento, porque olhou hoje no coure da treveade", que era o livro que en tinha, E ew alegrei- meé com isso, porque o eseravo era amigo dos portuguezes e en pen- Sava que o m&u tempo impedisse a festa, Orei, entéo, a Deus e Se- nhor, dizendo: “Si tu me preservaste até agora, contintia ainda porque estio zangados tommigo”. CAPITULO XXXVII O que aconteceu na volta, depois de terem comido o prisioneiro A cCaBApA a festa, voltfimos outra vez para as nossas casas @ 08 meus senhores trouxeram comsigo um pouco da carne as- sada. Gastamos tres dias ma volta, viagem que ordinariamente péde ser feita em um; mas ventava ¢ chovia muito. No primeiro dia, & noite, ao fazermos ranchos no matto onde pousamos, disseram-me que cu fizesse acabar a chuva, Comnosco vinha um menino, que trazia uma canella do prisioneiro, e¢ nella havia ainda carne que elle comia. Eu disse ao menino que deitasse fora o osso. Zanga- ram-se entio todos commigo e me disseram que isto é que era a sua verdadeira comida. Levamos tres dias em caminho. (80) A phrase tupi é como se segue: Apomirim jurupery ghyty wagt omé, que se traduz — “aquelle diabinka ¢ que trouze o furaedo”. O diabi- nho, para of barbares, era o livre que elles chamavam — couro da tromoada. 41 HANS STADEN Ji & distancia de um quarto de milha das nossas casas, nao pudemos mais avangar, porque as ondas cresceram muito. Arras- tamos as candas para terra, pensando que no dia seguinte faria bom tempo e poderiamos levar a canda para a casa; mas a tempes- tade continuava, Pensimos entao em ir por terra e voltar a busear a cana quando fizesse bom tempo. Antes, porém, de sairmos, elles eo menino comeram a carne do osso e depois o deitaram fora. Fo- mos por terra ¢, com pouco, o tempo ficou bom. “Ora muito bem”, disse eu, “nio me querieis acreditar quando eu disse que o meu Deus estava zangado, porque 0 menino estava a comer a carne do osso.” — “Sim”, responderam-me; mas “si elle a tivesse eomido sém eu ver, o tempo teria continuade bom." E nisto ficamos De regresso outra vez fis cabanas, um dos que tinham parte em mim, chamado Alkindar, perguntou-me si eu agora tinha visto como tratavam aos seus inimigos; respondi que me parecia horro- roso que elles os devorassem; o facto de os matarem nao era tao horrivel. “Sim, disse elle, é o nosso costume, e assim fazemos com cs portuguezes tambem”. Esse Alkindar me era muito adverso e estimaria bem que me tivesse morto aquelle a quem me tinha dado, porque, como ja de- veis ter lide, Ipperu Wasu lhe tinha dado um escravo para matar com o fim de elle ganhar mais um nome. Entao Alkindar lhe pro- mettéra, por sua vez, fazer-lhe presente do primeiro inimigo que elle capturasse. Mas, como isso nao se dera commigo, elle de bom grado © teria feito; porém o irm&o lho impedia, por medo de que lhe acontecesse alguma desgraga. Por isso, este mesmo Alkindar, antes que os outros me tives- sem levado ao logar onde tinham devorado aquelle outro, me tinha ameagado de morte. Mas, voltando agora, e na minha auseneia, ti- nha elle fieado com dor de olhos, que o obrigou a ficar em repouso @ néo enxergar por algum tempo; e-me que eu falasse a meu Deus para que os seus olhos sarassem. Eu disse que sim, mas que elle depois n&o fosse mdu para commigo. Disse-me elle que nao. Alguns dias depois, estava restabelecido. Quando o dia nasceu, tornou-se bonito o tempo, e elles bebe- 92 VIAGEM AQ BRASIL ram e alegraram-se muito. Entao fui ter com o prisioneiro e disse- The: “QO vento forte era o proprio Deus”. No dia seguinte, come- ram-no, O que se seguin, vereis no capitulo seguinte. CAPITULO XXXVIIE Come outra vez um navio foi mandado pelos portuguezes 4 minha procura Ano quinte mez da minha estada entre elles, chegou outra vez um navio da ilha de S. Wineente. Os portuguezes tém o costume de ir 4 terra dos seus inimigos, porém bem armados, a ne- gociarem com elles. Dio-lhes facas e anzées, por farinha de man- dioca que os selvagens ttm em muitos logares, e de que os portu- guezes, com muitos eserayos para as suas plantagdes de canna, pre- cisam para o sustento dos mesmos (81). Chegado o navio, vio os selvagens, reunidos ou a dois, nas canéas e entregam a mereadoria na maior distancia possivel. Depois, dizem o prego que querem por ella, o que os portuguezes Ihes dao; mas, emquanto os dois ficam a0 pé do navio, estiio 4 espera, ao longe, canoas cheias de gente, ¢, ‘uma ver acabados os negocios, investem muitas vezes e eombatem eom os portugueses, arremessando-lhes flechas, e¢ retirando-se em seguida. Disparou o bareo referido um tiro de pega, para que os sel- yagens soubessem que elle ali estava. Aproximaram delle. De bor- do perguntaram por mim e si eu ainda estava vivo, Responderam (81) Esta referencia do warrader explicn bem uma phase originalissi- ma da ¢olonia portuguesa de S, Vicente nessa epocn. A cultura naz ilhas, ja 4 esse tempo, fozia-se com earacter exclusivista. Plamtavao-se 2 canna para as- guear @ aguardente @ se deseurava o mais, ou pelo menos, as terras ali mio se prestavam gufficientemente para as outras culturas de mantimento. Dahi vi- nha que, mio obstante o estado de guerra entre portuguezes ¢ tamoyes, 6 eon- gurgo destes nilo podin ser phidlerey is por aquelles, Armavase bem um navio para poder afrontar a samba do gentio adverso, entrava-se-lhe pelos portos, propondo-lke negocios on simples troca de productos de que reeiprocamente una ¢ outres careciam, e a vida na colonia se equilibrava. 93 HANS &TADEN que sim. Entio pediram os portuguezes para me ver, porque ti- nham um ¢aixio cheio de mercadorias, que meu irmao, tambem francez, tinha mandado ¢ estava com elles no barca. No navio, com os portuguezes, estava um franeez, de nome Claudio Mirando, que antes tinha sido meu camarada; a este cha- mei-lhe “meu irmao”, pois que suppunha estivesse a bordo e per-_ guntase por mim, visto ja ter feito essa viagem. Voltaram do navio para a terra ¢ me disseram que meu irmio ti- nha vindo, mais uma vez, com um caixao cheio de mereadorias, e que- ria muito me ver, Eu lhes disse ent&o: “Levae-me para 14, mas de lon- 94 VIAGEM AO BRASIL ge, pois quero falar com meu irméo; os portugnezes néo nos entendem ; quero lhe pedir que conte ao nesso pai, quando chegar a casa, e lhe pega que yenha com muitas mercadorias para me buscar.” Acha- ram que era bom assim, mas tinham medo de que os portuguezes nos entendessem, pois que estavam preparando uma grande guerra que queriam declarar para o mez de agosto, na vizinhanga de Bri- ekioka, onde fui eapturado. Eu sabia bem de todos os seus planos ¢ por isso tinham medo de que eu falasse sézinho com elles [os por- tuguezes|. Mas eu disse que nao havia perigo, porque os pertugue- zes nio comprehendiam a lingua de meu irmio e a minha. Leva- ram-me entag até cerca de um tiro de funda do navio e todo nu, como eu sempre andava entre elles. Chamei entao os de horde e Thes disse: “Deus ¢ Senhor seja comvosco, queridos irmaos. Que um 56 fale commigo e nao deixe pereeber que eu nfo sou francez.” Entéo wm chamado Johann Senehez, Boschkeyer [Biscayo], que eu bem conhecia, me disse: “Meu querido irmio, é por vossa causa que cd viemos com o barco, nio sabendo si estaveis vivo ou morto, pois que o primeire bareo n&éo nos deu noticias vossas. Agora o Ca- pitao Braseupas [Braz Cubas] em Sanctus [Santos] ordenou que deligenciassemos por saber si ainda estaveis vivo, e, quando o sou- hessemos, que procurassemos ver si elles vos queriam vender; sindo, que tentassemos capturar alguns para trocar por vés.” Respondi entio: “Que Deus vos recompense eternamente, pois estou com muito receio, sem saber quaes as intengdes desta gente; j& me teriam devorado, si Deus nao o tivesse impedido milagrosa- mente”, Continuei, dizendo que elles nio me venderiam; que niio deixasse pereeber que eu no era francez e, por amor de Deus me désse algumas mereadorias, facas ¢ anzdes. Fezse isto e um indio foi entio ao barco, em ecanéa, buscal-os. : Visto que os selvagens no me queriam deixar conversar por mais tempo, disse eu aos portuguezes que se aeautelassem bem, pois que ci se aprestavam para os atacar de nove na Brickioka, Res- ponderam-me que os indios seus alliades tambem se preparavam e queriam atacar a aldeia, exactamente aquella onde en estava, e que eu tivesse eoragem porque Deus havia de levar tudo pelo melhor, pois, do eontrario, como en via, elles nfo podiam me auxiliar. “Sim, 95 EANS STADEN disse eu;.porque é melhor que Deus me castigue nesta vida do que na outra e rogae a Deus que me ajude a sair desta miseria.” Com isso me recommendei a Deus, o Senhor. Queriam falar ainda commigo; mas os selvagens nio me consentiram ter mais con- versa com elles ¢ tornaram a levar-me para as cabanas. Tomei entio as facas ¢ os anzGes e os distribui entre elles ¢ Thes disse: “Tudo isto, meu irm&o, o francez, me deu”. Perguntaram- me o que tinha meu irm&o conversado commigo. Respondi “que tinha aconselhado a meu irmio de procurar eseapar dos portugue- zes e voltar para a nossa terra, e que de 14 trouxesse embarea- edes com muitas mercadorias para mim, pois que sois bons ¢ me tratais bem; o que desejo recompensar quando voltar o bareo,” Assim, tinha eu sempre o que pretextar, o que muito lhes agradou. Depois disso, comegaram a dizer entre siz “Hlle, de certo, é francez; vamos, pois, tratal-o agora melhor”. En continuei a dizer- lhes sempre: “Nao ha de demorar a vinda de um navio a buscar- me”, Isto para que elles me tratassem bem. Dahi em diante, le- vavam-me, 4s vezes, ao matto, onde havia o que fazer e me obri- gavam a ajudal-os. CAPITULO XEXIX Como elles tinham um prisioneiro que sempre me calumniava e que estimaria que me matassem, ¢ como o mesmo foi morto e devoradoe na minha presenga H Avra entre elles um prisioneiro da nagio que se chama Cariés, inimigos dos selvagens, mas amigos dos portuguezes. 0 mesmo tinha pertencido aos portuguezes, de quem tinha fugido. Aos que assim vém a elles, nfo os matam, sindo quando comettem algum crime grave; conservam-n’os como propriedade sua e os obri- gam a servir. Este Carié tinha estado tres annos entre os Tuppin Inba e 96 VIAGEM AO BRASIL contou que me tinha visto entre o3 portuguezes e que eu tinha ati- rado por vezes contra os Tuppin Inbés, quando iam & guerra. Havia j& annos que os portuguezes lhes tinham morto a tiro um dos maijoraes e esse maioral, dizia o Carié, tinha sido eu que o atirara. E os imstigava sempre, para que me Tatassem, porque eu era o inimigo verdadeiro; elle o tinha visto. Mentia, porém, em tudo isso, porquanto havia ja tres annos que estava entre elles e havia apenas um anno que eu tinha echegado a 8, Vincente, de onde elle tinha fugido. Orei a Deus para que me guardasse contra essas mentiras. Acontecen entio, no anno 1554, mais ou menos, no sexto mez depois que fiquei prisioneiro, eair doente o Carié, ¢ o senhor delle me pediu entio que eu o tratasse para que ficasse bom ¢ pu- desse cagar, para termos o que comer, pois que ea hem sabia qne quando elle trazia alguma coisa tambem me dava a mim. 'Como, porém, me pareceu que elle niio mais se curaria, desejava elle [o senhor] dal-o a um amigo para que o matasse e ganhasse mais nome, Assim, estava elle doente, havia ji uns move ou dex dias. Guar- dam estes selvagens os dentes de um animal a que chamam Bocke [pacea]; amolam estes dentes, e, onde quer que o sangue estanque, fazem com um destes dentes uma incisiio na pelle, ¢ o sangue corre em tanta quantidade como quando aqui se corta a cabega a alguem. Tomei entio um destes dentes a ver si ao paciente lhe abria uma veia mediana. Maz nada consegui porque o dente estava muito cepo. Rodeavam-me todos. Como, porém, me retirel vendo que nada valia, perguntaram-me si o doente ficava bom outra vezt Disse-lhes que nada tinha conseguido, pois 0 sangue nao corria, como podiam ter visto. “Sim, replicaram; elle quer morrer, vamos pois matal-o, antes que morra.” Disse-lhes eu entao: “Nao, nio o matem; talvez possa sarat ainda.” Mas de nada valeu o dizer. Levaram-no para frente da eabana do maioral Vratinge [@iratinga] eom dois a sustental-o, pois que jA estava tio desacordado que nao percebia mais o que faziam com elle. Aproximou-se-lhe entio aquelle a quem tinha sido dado para matal-o e lhe den tio grande golpe na cabega que os aT HANS STADEN miolos Ihe saltaram. Deixaram-no assim diante da cabana e iam eomel-o, Disse-lhes en entdo que nao o fizessem, porque era um homem doente ¢ podiam elles adoecer tambem. Ficaram sem saber o que fazer, Saiu entio um delles da cabana onde eu morava, cha- mou as mulheres para que fizessem um fogo ao pé do morto e lhe eortou a cabeca, porque tinha um sé olho e parecia tao feio da doen- ga, que elle deitou féra a cabega e¢ esfolou o corpo sobre o foga. Depais 6 esquartejou e dividiu com os outros, como é de sen cos- tume, e o devoraram, excepto a cabega e os intestinos, que Lhes re- pugnavam, porque elle tinha estado doente, 98 VIAGEM AO BRASIL Fui de uma para outra cabana, Em uma assaram os pés, em outra, as miios; e na terceira, pedacos do corpo. Disse-lhes entéo como o Carié, que elles estavam assando e queriam devorar, me tinha sempre calumniado e dito que eu é que tina morto alguns dos seus amigos, quando estive entre os portuguezes; 0 que era mentira, pois que elle nunca 14 me tinha’ viste. “Sabeis que elle esteve entre vs alguns annos ¢ nunca esteve doente; agora, porém, quando deu de mentir a meu respeito, meu Deus se irritou ¢ o fez adoccer & metten em vossas cabegas que 0 matasseis e o devorasseis. Assim é que meu Deus hade fazer com quantes malvados me tém feito mal, ou me fazem”. Atemorisaram-se com estas palavras é isso agradeco a Deus todo poderoso, que, em tudo, se mostrow tao forte e@ misericordioso para commigo. Peco, por isso, no leitor, que preste attengiio ao meu eseripto, no que tome eu este trabalho pelo vao desejo de escrever novida- des; mas tao sémente para mostrar o beneficio de Deus. Aproximou-se 0 tempo da guerra que durante 3 mezes elles vi- nham preparando. Sempre esperei que, quando saissem, me dei- xassem em casa com as mulheres, pois queria ver si, emquanto es- tivessem ausentes, podia eu fugir. CAPITULO XL Como um navio francez chegou para negociar com os selvagens algoddo e piu prasil, para o qual navio eu queria ir, mas Deus naio permittiu geca de oito dias antes da partida para a guerra, um navio franeez tinha surgido a oito milhas dali, em um porto que 6s portuguezes chamam Rio de Jenero e, na lingua dos selvagens, Iteronne (82) [Niteroy], Ali eostumam os francezes carregar pu (82) Verifica-se por aqui que o nome Ztertienae da pag. 83 6 simples alteragto do Iteron, ou Iferd, que, como j& vimos, quer dizer — bahia, en- s = 99 HANS STADEN prasil. Chegaram tambem 4 aldeia, onde eu estave, com o sen bote, € trocaram com os selvagens pimenta, macacos e papagaios (83). Um dos que estavam no bote saltou em terra. Sabia a lingua dos selvagens e se chamava Jacob. Negociou com elles e eu lhe pedi que me levasse para bordo, Mas meu senhor disse que no, pois nao me deixaria ir astim, sem Ihe darem mercadorias por mim. Pedi-lhes entio que me levassem elles mesmos a bordo; meus ami- gos 14 lhes dariam ent#o0 mercadorias bastantes, Replicaram que estes néio eram os meus verdadeiros amigos. (83) Vase dahi que o trafico com o gentio se reduzia a bem pouco, além do pou-brasil, isto ¢, pimenta, macacoa © *papagaios. Os europeus tra- siam-lbe em troca instrumentos de ferro, pentes, guizos, anzées, panno ordi- nario, eapelhos, 100 VIAGEM AO BRASIL “Porque é entéo que estes ehegados no bote nao te déram uma eamisa, apesar de tu andares nif EB que niio fazem caso de ti" (como de facto era). Mas respondi: “Si eu fosse ao bared grande, elles me vestiriam.” Disseram-me entée que o navio no sairia tio eedo, primeiro tinham de ir 4 guerra, ¢ quando voltassem é que laviam de me levar ao navio. O bote queria pois voltar, visto ja estar ausente do navio uma noite. Quando entio vi que o bote se ia embora outra vez, pensei: “G Deus bondoso, si o navio sair agora e nio me levar comsigo, tenho de perecer entre esta gente, porque nao sic de confianga.” Com este pensamento, sai da cabana e me dirigi para a agua; quando isto viram, correram atréz de mim. Eu eorri na frente e elles queriam-me agarrar, Ao primeiro que se ehegou a mim bati até me largar ¢ toda o aldeia estava atria de mim; assim mesmo eseapei delles e nadei para o bote. Quando ja estava a entrar no bote, os francezes ndo me consentiram e me dis- seram que si me levassem contra a vontade dos selvagens, estes se leyantariam tambem contra elles e se tornariam seus inimigos. Vol- tei entiio triste, nadando para a terra, e disse commigo: “Vejo que éda vontade de Deus continue eu ainda na desgraga. Mas si en nao tivesse procurado eseapar, teria Rensado depois que era isso por minha culpa.” Quando tornei 4 terra, fiearam alegres e disseram: ‘Nao, elle volta.” Fiquei entio zangado e lhes disse: “Pensaveis que eu que- ria fugir? Bu fui ao bote dizer aos meus patricios que se preparas- sem para, quando voltardes da guerra, ¢ me levardes para li, vos déem, em troca, muitas mercadorias.” Isto Thes agradou e ficaram outra vez contentes. 101 HANS STADEN CAPITULO XLI Como os selvagena foram para a guerra e me levaram eo que aconteceu nesta viagem Q-= dias depois reuniram-se algumas candas que queriam ir para a guerra, na aldeia onde eu estava. Ahi chegou o chefe Konyan Bébe, com os seus. Disse-me entio o meu senhor que me queria levar. Pedi-lhe que me deixasse em casa, E elle talvez 0 tivesse feito; mas Konvan Bebe disse que me levassem. Nao dei- xei transparecer que ia contrariado, para que pensassem que ia de bom grado ¢ que eu nao desejava fugir uma vez na terra do ini- migo e tivessem assim menos eautella commigo. Era, com effeito, minha intengio, si me tivessem deixado em easa, fugir para o na- vio franeez. Mas levaram-me. Tinham uma forga de 38 canéas e cada ca- néa tripolada com 18 [homens] mais ou menos (84), e alguns delles tinham tirado bons augurios da guerra, consultando os seus idolos em sonhos e outras supersticées, como é seu costume, de modo que estavam bem dispostos, Sua intensio era dirigirem-se 4 vizi- nhanga de Brickioka, onde me eapturaram, e, escondendo-se mas mattas dos arredores, aprisionar todos que lhes caissem nas miios. Ao partirmos para a guerra, era o anno de 1554, cerea de 14 de agosto. Neste mez (como j& foi referide aqui) uma especie de peixe, chamado em portugnez doynges [tainha], em espanhol, lies- ses, ¢ ne lingua dos selvagens braffi [parati], sae do mar- para as aguas doces, a desovar. Os selvagens chamam a isso Zeitpirakaen (85). Neste tempo costumam todos ir 4 guerra, tanto seus inimi- gos como elles proprios, a apanharem peixes na viagem e comerem. (84) Eram, na verdade, enormes a3 candas dos Tamoyos feitas de um tromea enteirign. A forga da epquadra de guerra, como agui se vé, era rea- peitavel, subin a 684 homens, gindo mais. (85) Diffieil 6 aqui restaurar a graphia deste vocabulo. Admittindo- ae que seja uma alteraglo de godpiracaen, o sentido do vecabule seria: — “‘pei- xe seceo de sustento ou de mantimento’’. 102 VIAGEM AO BRASIL Na ida, vio muito de vagar; mas na volta, com a maior pressa que pdédem. Eu esperava sempre que os alliados dos portuguezes tambem estivessem em Viagem, pois que estavam tambem promptos para invadirem a terra des outros, como antes me tinham dito no hareo os portuguezes. Durante a viagem perguntaram-me sempre o meu palpite, si haviam de aprisionar alguem. Para os nfo zangar, disse que sim; tambem disse que os inimigos nos haviam de encontrar. Uma noite, quando estavamos num logar da costa chamado Uwattibi, apanha- mos muitos dos peixes bratti, que sio do tamamho de um Iucio; ven- tava muito de noite. Conversavam muito commigo querendo saber 103 HANS STADEN de muita coisa. Disse-lhes eu ent#o que este vento estava passando sobre muitos mortos. Uma porgad de selvagens encontravam-se tambem no mar, tendo entrado num rio chamado Parathe (86). “Sim, disseram, estes atasaram os inimigos em terra e muitos delles morreram” (como mais tarde se soube que tinha acontecido) . Quando chegimos 4 distancia de um dia de viagem do logar onde queriam executar o seu plano, arrancharam-se na matta, numa ilha que og portuguezes chamam de 8. Sebastian, mas que os sel- vagens denominam Meyenbipe (87). (86) E' o rio Parnhyba do Sul. (87) E Maembipe, que signifies — no estreito —, mais de referencia ao canal, que separa a ilba do continente, do que. esta. 104 VIAGEM AQ BEASIL A noite, o chefe Konyan Bébe, a chamado, passou pelo acam- pamento na matta, e disse que eram chegados agora perto da terra dos imimigos, e todos se lembrassem do sonho que acaso tivessem durante a noite, e que procurassem ter sonhos felizes. Acabada a arenga, comegaram a dangar em honra de seus idolos até alta noite e foram depois dormir. O meu senhor ao deitar-se recommendou-me qué procurasse ter um bom sonho, Respondi-lhe que niio me importava com sonhos, que sio sempre falsos. “Entio, insistiu elle, roga assim mesmo a teu Deus, para que aprisionemos inimigos.” Ao raiar do dia reuniram-se os chefes ao redor de uma panella de peixe frito, que comeram, contando os sonhos que mais lhes agra- daram. Algans dancaram em homenagem aos seus idolos, ¢ qui- * geram neste mesmo dia ir 4 terra dos seus inimigos, a um logar chamado Boywwassukange [Boisucanga], esperando ahi até que anoitecesse, Ao deixarmos 9 logar onde tinhamos pernoitado, chamado Meyenbipe, perguntaram-me de nove o que eu pensava, Disse en- tio, ao aecaso, que em Boywassukange haviamos de encontrar os ini- migos, e que tivessem coragem, E era minha intengao fugir delles no mesmo logar Boywassukange, logo que chegassemos, porque de la até onde me tinham eapturado havia sémente 6 leguas. Quando perlongavamos a terra, avistdmos, por detraz de uma ilha, umas eanéas que se dirigiam a nés. Gritaram entao: “Ahi vém os nossos inimigos, os Tuppin Tkins”. Quizeram ainda assim esconder-se com as suas candas por detraz de um rochedo, para que 0s outros passasem sem os ver. Mas foi debalde, viram-nos e fu- giram para a sua terra, Remémos eom toda a forga atréz delles, talvez umas quatro horas, e os aleangémos. Eram cinco candas eheias, todas de Briekioka, Conheci-os a todos. Vinham seis ma- melucos em uma dessas canéas e dois eram irméos. Chamava-ce um Diego de Praga [Braga], e 0 outro Domingos de Praga [Braga]. Defenderam-se estes valentemente, um, com um tubo [espingarda], eo outro com um arco, Resistiram na sua canda, durante duas ho- ras, a trinta e tantas caméas mossns. Acabadas as suas flechas, os Tup- 105 HANS STADEN pin Inba os atacaram e os aprisionaram, ¢ alguns foram logo mor- tos a tiro. Os dois irmiios nfo sairam feridos, mas dois dos seis ma- melucos ficaram muito maltratados, bem como alguns dos Tuppin Ikin, entre os quaes havia uma mulher. CAPITULO XLIL Como, na volta, trataram os prisioneiros F- no mar, a duas boas leguas distante de terra, que foram capturados. Voltaram o mais de pressa possivel para terra A pernoitarem outra vez no mesmo logar, onde ja tinham estado. Chegamos a Meyenbipe 4 tarde, quando o sol estava entrando. Le- varam entio os prisioneiros, cada um, para sua cabana; mas a mui- tos feridos desembarcaram e o& mataram Jogo, cortaram-n'os em pedagos ¢ assaram a carne. Entre os que foram assados de noite, havia dois mamelueos que eram ehristios. Um era portugues, filho de um eapitio e se chamava George Ferrero [Jorge Ferreira] enja mae era india. QO outro chamava-se Hieronymus; este ficou prisioneiro de um selvagem morador na mesma cabana em que eu estava e cujo nome era Parwoa (88). Assou a Hieronymus de noite, mais ou menos 4i distancia de um passo do logar onde eu estava deitado. Esse Hie- ronymus (Deus tenha a sua alma!) era parente consanguineo de Diego Praga [Diogo Braga]. Nesia mesma noite, quando jé acampados, fui 4 cabana em que guardavam os dois irmios, para conversar com elles, pois tinham sido bons amigos meus em Brickioka, onde fui preso. Entao per- guntaram-me se teriam de ser devorados; respondi que isso entre- gassem & vontade do Pae Celeste e de seu amado filho Jesus Chris- to, o erucifieado por noses peceados, em cujo nome erames bapti- gados até a nossa morte. “Nelle, disse en, tenham fé, pois Elle é (88) Parwaa 6 certamente — Paravd — quo signifiea papagaio. 106 VIAGEM AO BRASIL que me tem conservado tanto tempo entre os selvagens e 0 que Deus todo poderoso fizer comnosco, com isso devemos nos conformar.” Perguntaram-me entio os dois irmios como ia o primo delles, Hieronymus; disse-lhes que fora elle assado ao fogo e que eu tinha visto ji comerem um pedaco do filho de Ferrero. Choraram en- tdo. Consolei-os e disse que, de certo, sabiam que eu aqui estava havia j4 cerea de 8 mezes e que Deus me tinha conservado. “Fara elle 0 mesmo comyoseo tambem; confiem nelle, disse eu. Sinto isso mais do que vés, porque sou de uma terra extranha e nao estou acostumado aos horrores desta gente; mas vés nascestes aqui e aqui fostes criados”. — Responderam que eu tinha o coragéo endu- 107 HANS STADEN recido por causa da minha propria desgraga e por isso os mio ex- tranhava mais. Estando assim a falar-lhes, chamaram-me og selvagens para minha cabana e me perguntaram que conversa cumprida tinha eu tido com elles. Senti muito ter de os deixar e Lhes disse que se entregassem 4 vontade de Dens, ¢ fossem vendo que miserias havia neste valle de lagrimas, Responderam-me que nunca tinham experimentado isso tanto como agora, é que se sentiam mais animados por eu estar em companhia delles. Saf entiio da sua cabana e atravessei todo o acampamento, a ver os prisionciros. Andei assim sézinho e nin- guem me guardava, de modo que, desta vez, podia bem ter fugido, pois que estavamos numa ilha, Meyenbipe chamada, cerea de 10 le- guas de caminho de Brikioka; mas deixei de o fazer por causa dos hristios presos, dos quaes ainda havia quatro vivos. Assim, refle- eti en: “Si eu fugir, ficeam zangados e¢ os matam logo; talvez até Deus nos preserve a todos.” E assentei de ficar com elles para con- solal-os, como realmente fiz. Ademais, os selvagens estavam muito eontentes commigo, porque eu antes lhes annunciara, por acaso, que os inimigos viriam ao nosso encontro. BE porque eu tinha adivinha- -do isso, disseram que eu era melhor propheta do que o maraka (89) edelles. (89) Dagui so deprehende que os idolos dos Tupinambis de Cunkam- bebe, n que, por mais de uma vex, Studen se refere, eram os maracds, cho- ealhos feitos de una eabages eontendo seixos ou sementes, e que o gentio costu- mava de ornar com as penuas multicores de maior prego. ah ‘maracds, ti. uham-n’oa elles em cabana & parte, & guisa de santuario. 108 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XLIIE Como dancavam com os seus inimigos, quando pernoitamos, no dia seguinte N: dia sceguinte, estavamos nao longe da sua terra, ao pé de uma grande montanha, denominada Occarasu (90). Abi acamparam para passar a noite. Fui entio 4 eabana do chefe prin- cipal (Konian Bebe chamado) e lhe perguntei o que tencionava fa- ger dos mammelueos, Disse-me que seriam devorados e me prohi- bin de thes falar, pois que estava muito zangado com elles; deviam ter fieado em casa © nao irem com seus inimigos em guerra con- tra elle, Pedi-lhe que os deixasse viver e os vendesse aos seus ami- gos, outra vez. Tornow a dizer-me que seriam’ devorados. E esse mesmo Konia Bebe tinha uma grande cesta cheia de carne humana diante de si e estava a comer uma perna, que elle fez chegar perto da minha bocca, perguntando si eu tambem que- ria comer. Respondi que sémente um animal irracional devora a outro, come podia entéo um homem devorar a outro homem? Cra- vou entéo os dentes na carne e disse: “Jaw ware sche (91)”" que quer dizer: “Sou uma onga”, esté gostoso!” Com isto, retirei-me de sua presenga. Esta mesma noite, ordenou elle que cada um levasse os seus prisioneiros para adiante do matto, ao pé da agua, num logar lim- po. Isto feito, reuniram-se, formando um grande circulo ¢ dentro ficaram os prisioneiros. Obrigaram a todos estes a cantarem e cho- calharem os idolos Tammaraka. Mal os prisioneiros acabaram 6 canto, comecaram, um apdés outro, a falar com arrogancia: “Sim, saimos como costuma sair gente brava, para aprender a comer os (80) Ainda hoje 4 eas2 montanha chamada Ovarugd — formando azsi- gnalade promontorio, 4 parte de sudecste da grande bahia de Paraty. O nome tupi —= Ocarugid — quer dizer —= ferreira on praga grande — @ a aldeia de Conhambebe ficava-lhe para a interior, no reconcavo dessa bahia. (91) A phrase tupi é emphatica © esti mal escripta. O narrador quiz dizer — Fouora iché! — que se traduz — sou onga! 109 HANS STADEN nossos inimigos. Agora vés vencestes e nos aprisionastes, mas nio fazemos caso disso! Os yalentes morrem ua terra dos inimigos; a nossa é ainda grande; os nossos nos hao de vingar em vés". — “Sim, responderam os outros, vés ji acabastes a muitos dos nossos, por isso queremos nes vingar de vos." Aeabada esta disputa, levou cada um seu prisioneiro, outra vez, para o alojamento. Tres dias depois, partimes novamente para a terra delles; cada qual levou o seu prisioneiro para a sua caso. Os que eram de Dwat- tibi, onde eu estava, tinham capturado oito selvagens vivos e tres 110 VIAGEM AO BRASIL mammelneos que eram christaos, a saber: Diego e seu irmio, e mais um christio chamado Antonio; este tinha sido aprisionado pelo filho do meu senhor. Dois mammelucos mais que eram christios, levaram-n’os assados pata a casa, para 14 os deyorar. Tinhamos le- yado onze dias na viagem, ida e volta. CAPITULO XLIV Como o navio franeez ainda 1a estava, para o qual me tinham promettido levar quando voltassem da guerra, etc., como ficou referido G HEGADOS outra vez a casa, pedi-lhes que me levassem para o navio francez, pois ja tinha estado na guerra com elles e os tinha ajudado a capturar os seus inimigos, acs quaes j4 deviam ter ouvido que eu nfo era nenhum portuguez. Disseram-me que sim, que iam levar-me; mas queriam primei- ro deseangar ¢ comer o mokaen [moquem], isto 4, a carne assada dos dois christéos. CAPITULO XLV Como foi que comeram assado o primeiro dos dois christios, a saber: Jorge Ferrero, o filho do capitéo portuguez H ava um principal numa das cabanas, em frente da em qué eu estava, Chamava-se elle Tatamiri (92), e foi quem for- necen o assado e mandou fazer as bebidas, como era o eostume del- les. Reuniram-se entéo muitos para beber, eantar e folgar. No dia (92) Tatamirl, on Taté-mirim, que quer disor — foguinha — ou Tw 111 HANS STADEN seguinte, depois de muito beberem, aqueceram outra vez a carne assada e a comeram. Mas a carne de Hieronymus estava ainda den- tro de uma cesta, pendurada ao fumeiro, na cabana onde eu esta- va, havia mais de tres semanas; estava tio secca como um pau por ter estado tanto tempo ao fumeiro sem que a comessem. 0 selva- gem, que a possuia, chamava-se Parwaa, Tinha ido algures buscar raizes para fazer a bebida que havia de servir por oceasiio de se comer a carne de Hieronymus. Assim se passava o tempo e niio queriam levar-me para 0 navio antes de passada a festa de Hiero- nymus e de acabarem de comer-lhe a carne. Emquanto isso, foi-se embéra cutra vez 0 navio francez, sem que en o soubesse, pois ha- via mais ou menos oito milhas de distancia do logar onde eu estava. Ao ter esta noticia fiquei muito triste; mas os selvagens me diziam que era costume geralmente voltar o navio todos os annos (93), com o que tive de me contentar. CAPITULO XLVI Como Deus Todo Poderoso me deu uma prova Inna eu feito uma eruz de um pau Geo e a tinha levantado em frente da cabana, onde morava. Muitas vezes ahi fiz a minha oracio ao Senhor e tinha recommendade aos selvagens de a no arrancar, porque havia de acontecer alguma desgraga; despre- zaram, porém, as minhas palavras. Certa vez, em que eu estava com elles a pescar, uma mulher arrancou a cruz e a den a seu marido para, na madeira que era roliga, polir uma especie de collar que fazem de eonchas marinhas. Isto me contrariou. Logo depois eo- mecou a chover muito e a chuva duron alguns dias, Vieram ent3o & minha cabana e me pediram que implorasse a men Deus para (93) Por onde s¢ vi que o commercio doa francezes com o gentio da costa do Brasil era entde regular e frequente, 0 que, naquelles primeiros annos da conquista, a influencia franeern entre og selvagens ern incontestavel. 112 VIAGEM AO BRASIL que cessasse a chuva, pois que, se nio cessasse, impediria a planta- cao, visto ser ja tempo de plantarem. Disse-lhes que a culpa era delles, pois tinham offendide a meu Deus, arrancande o madeiro; e era ao pé deste que eu costumava falar com elle, Como acreditas- sem ser esta a causa da chuva, ajudou-me o filho do meu senhor a Jevantar, de novo, a cruz. Era mais ou menos uma hora da tarde, ealeulada pelo sol. Tanto qne a cruz se erguey, ficou immediata- mente bom o tempo, que tinha estado muito tempestuoso até ali. Admiraram-se todos, aereditando que o meu Deus fazia tudo o que éu queria. HANS STADEN CAPITULO XLVIL Como uma noite fui pescar com dois selvagens e Deus fez um milagre por causa de uma chuva e tempeslade B= eu com um dos mais nobres dentre elles, chamado Par- waa, © mesmo qué tinha assado a Hieronymus. Elle, eu ¢ mais outro pescavamos. Ao eseurecer levantou-se uma chuva com troveada, nfo longe de nés ¢ o vento tangia a chuva para o nosso lado. Pediram-me entao os dois selvagens, que eu rogasse a mew 114 VIAGEM AO BRASIL Deus que impedisse a chuva, porque assim talvez apanhassemos mais peixe, Hu sabia que nas cabanas nada mais tinhamos para comer. ‘As snas palavras me commoveram ¢ pedi a Deus, do fundo do meu coragio, que quivesse Mostrar @ seu poder, nio 86 por terem 08 selvagens pedide como para que vissem que tu, ch! meu Deus, es- tavas sempre commigo, Tanto que aeabei de ovar, soprou o vento com violencia, trazendo a chuva, até mais ou menos uns sels pas- sos de nés ¢ nem démos por isso. Disse entho o selvagem Parwaa: * Agora estou certo de que falaste com o teu Deus.” E apanhimos alguns peixes. Quando tornimos 4s cabanas, contaram os dois selvagens aos outros que en havia falado com o meu Deus e que coisas tinham acontecida. Foi admiragao para todos. CAPITULO XLVITL Como foi que comeram assado o outro christio chamado Hieronymus ooo que o selvagem Parwaa teve tudo prompto, como ja dis- ae, mandou fazer as bebidas para quando comessem a Hie- ronymus. Acabado isto, foram busear os dois irmfos e mais um, que o filho do meu senhor tinha capturade, chamado Antonius. Quando nés quatro christios nos ajuntémos, obrigaram-nos a beber com elles; antes porém de bebermos, fizemos a nossa oragao a Deus para que salvasse as nostas almas ¢ a nds tambem quando chegasse a nossa hora, Os indios conversavam comnoste ¢ se mostravam ale- pres; nés, porém, sb viamos desgragas! No dia seguinte de manhi, aqueceram de novo a ¢arme, comeram e acabaram logo com ella. esse mesmo dia, levaram-me para fazer presente de mim. Ao se- parar-me dos dois irmfos, pediram-me elles que orasse 4 Deus por elles; e eu lhes ensinei o meio de fugirem, o logar para onde de- viam dirigir-se na serra sem serem perseguidos, pois que eu j& ti- nha explorado a serra. Isto fizeram, ficaram livres e se escaparam, como soube depois; mas ignore si foram apanhados outra ves. 115 HANS STADEN CAPITULO XLIX Como foi que me levaram para fazer presente de mim EVARAM-ME para o logar onde me queriam dar de presente; a caminho, num ponto chamado Teckwera sutibi (94), quando ja estavamos a eerta distancia, voltei-me para as cabanas de onde tinhamos sahido e vi que havia uma nuver negra sobre ellas. Apontei para a nuvem e disse que o meu Deus estava irri- tado com a aldeia porque tinham comide carne de gente, E, uma vez chegados, entregaram-me a um principal de nome Abbati Bos- sage (95). A este disseram que me nao fizesse mal, nem o deixas- se fazer, porque o meu Deus era terrivel quando me maltratavam. E elles o tinham experimentado quando ainda estava eu entre elles; por minha vez, tambem o exhortei e Ihe disse que nao demoraria, haviam de vir meu irmio e meus parentes com um navio carregado de mercadorias ¢, si me tratassem bem, en havia de lhe dar muitos presentes, pois eu sabia que Deus faria chegar sem demora o navio do meu irmao. Isto muito o alegrou. O principal chamou-me “seu filho” e fui 4 caga com os delle, CAPITULO L Como os selvagens daquelle logar contaram que o nayio francez tinha-se feito 4 vela de novo ONTARAM-ME como o navio anterior, Maria Bellete chamado, de Depen [Dieppe], com o qual eu tanto queria partir, ali recebera carga completa, a saber: pau prasil, pimenta, algodio, pen- nas, macacos, papagaios ¢ muitas outras coisas, que nao tinham en- (94) Tackawara sutidi € aqui o mesmo que Taquarugutybe, o sigaifiea — w#itio dos taquarucie. (95) Abbati Bossonge 6 alterngio do tupi — Abati-possanga, e quer dizer — caldo de mifha, ou remedio feito de milho. 116 VIAGEM AO BRASIL eontrado em outra parte. No porto do Rio de Jenero (96) tinham aprisionado um navio portuguez e dado um portuguez a um prin- cipal dos selvagens, chamado Ifawu, que o tinha devorado. Tam- bem aquelle frances que, quando cai prisioneiro, tinha recommen- dado que me comessem, estava a bordo do navio ¢ queria voltar para sua terra. O navio dos francezea, como j& contei, daquelles mes- mos que nao me quizeram recolher quando fugi para o bote delles, tinha naufragado na volta (97), ¢ quando voltei para a Franga em outro navio, ninguem sabia ainda onde elle parava, como direi mais tarde. CAPITULO LI Como, logo depois de terem feito presente de mim, um outro navio chegou de Franea, chamado “Katharina de Vattauilla”, o qual, por providencia de Deus, me comprou e como isso aconteceu D srois de mais ou menos quatorze dias de permanencia no logar Tackwara sulibi [Taquarugutyba], em casa de Abba- ti Bossange, aconteceu virem a mim uns selvagens a me dizerem que tinham envido tires, para os lados de Iteronne, cujo porto tam- bem chamam Rio de Jennero, Como julgnei que, de facto, um na- vio li estava, pedithes que me levassem para 14, porque era, de cer- to, 0 meu irmao. Disseram-me que sim, porém me detiveram ainda por alguns dias. Foi o tempo que os framcezes recem-chegados souberam que eu estava entre os selvagens. O capitao mandou dois homens de bordo, em companhia de seis dos selvagens, seus amigos no logar, os quaes (96) A bahia do Rio de Janeiro, 2 esse tempo, estavya virtualmente em poder dos francezes. No anno seguimie (1555) ao desta narragio, Villegagnon fortifieuva-ee num iIhéo dentro des: formosa bahia. (07) Frequentes eram entio os naufragios em nguas do Brasil; ente agora de qua nos fala o narrador era ji o saxto dos occorridos para o sul do Cabo Frio, e mencionadoa pelo resignado prisioneiro dos Tamoyos. 117 HaNS STADEN chegaram 4 cabana do principal chamado Sowerasu (98), perto daquellas onde eu estava. Os selvagens me vieram dizer que duas pessoas desembarcadas do navio ali estavam. Fiquei contente e fui ter com ellas e ihes dei as boas vindas, na lingua dos selvagens. Vendo-me em tio misero estado, tiveram pena de mim e reparti- ram as suas roupas ecommigo. Perguntei-lhes a que tinham vindo. Responderam que por minha causa; tinham recebido ordem de me levar para bordo ¢ estavam dispostos a usar de todos os meios para isso. Emtao meu coragio se alegrou reconheeendo a clemencia de Deus. E eu disse a um dos dois, que se chamava Perot e sabia a lin- gua dos selvagens, que elle devia deelarar que era meu irmio e ti- nha trazido para mim uns eaixdes, cheios de mereadorias, e que elles me levassem a bordo para busear os caixdes; ¢ que accrescentasse que en desejava fiear ainda com elles para eolher pimentas e ou- tras coisas mais, até que o navio voltasse no anno seguinte. Depois desta conversa, levaram-me para o navio, ¢ meu senhor tambem foi ecommigo. A borde todos tiveram pena de mim e me trataram mui- to bem. Depois de estarmos uns cineo dias a bordo, perguntou-me o principal dos selvagens, Abbati Bossange, a quem eu tinmha sido dado, onde estavam os caixdes, para me darem e podermos logo vol- tar para terra, Contei isso meamo ao commandante do navio. Este me ordenou que eu os fosse entretendo até que o navio estivesse com toda a carga, para que se naéo zangassem on fizessem algum mal ao verificarem que me retinbam no navio, ou néo tramassem qual- quer traigio; tanto mais quanto tal gente nio é de confiancga. Meu senhor, perém, insistiu em levar-me comsigo para a terra. Eu, po- rém, o entretive com a minha prosa e lhe disse que nio tivesse tanta pressa; que elle bem sabia que, quando bons amigos se retinem, nilo podem separar-se tao cedo; mas logo que o navio tivesse de partir, haviames de voltar para a sua casa; e assim o detive. Finalmente, quando o navio esteve prestes de partir, reuniram-se os francezes todos do navio; eu estava com elles ¢ © meu senhor, o principal, com os que tinha levado, tambem 14 estava. © eapitio do bareo mandou entio o seu interprete dizer aos selvagens que elle estava (98) feuaraa, on antes, codguara-agi, — o “grande comedor de caga”, ou o “comilio”. 115 VIAGEM AQ BRASIL satisfeito de me nfo terem morto, depois de me terem tirado do poder de seus inimigos. Mandou dizer mais (para com mais faci- lidade me livrar delles) que tinha mandado chamar-me a bordo, porque queria lhes dar alguns presentes por me terem tratado bem. Igualmente era da sua intengao persuadir-ame que eu devia ficar entre elles por estar jf familiarizade, e para colher pimenta € on- tras mercadorias, para quando o navio voltasse. Timhamos entio combinado que uns dez homens da tripolagdo, que de algum modo se pareciam commigo, 5¢ reunissem e declarassem que eram meus irméos ¢ que desejavam levar-me comsigo, Communicou-se-lhes isso ¢ mais que os mesmos meus irmios nio queriam que eu tornasse com os selvagens para a terra; ¢ sim que voltasse para 0 nosso paiz, pois que o nosso pai desejava ver-me ainda uma vez antes de morrer. O capitio mandon dizer que era elle ali o superior no navio ¢ desejava muito que eu fosse com os selvagens de novo para terra; mas que elle estava s6 e os meus irmios eram muitos, pelo que nade podia contra elles. Hstes pretextos todos foram dados para que nio houvesse desharmonia com os selvagens. E disse eu tambem ao meu senhor, o principal, que desejava muito voltar com elle; porém po- dia elle bem ver, que os meus irmios nio me deixavam. Comegou entaéo o principal a dizer em voz alta a bordo que eu voltasse no primeiro navio, que elle me considerava seu filho e estava muito jrritade com a gente de Uwattibi, que me queria devorar. E uma das mulheres do principal que tinha vindo a bordo, foi por elle excitada a me gritar mos onvidos como é¢ costume delles, e eu gritei tambem, segundo o mesmo costume. Apds isso, 0 capitao deu a todos slgumas mereadorias, que podiam valer uns cinco du- cados, em facas, machados, espelhos e pentes. Com isso partiram para as suas casas, em terra. ‘Assim me livrou o Senhor Todo Poderoso, 0 Deus de Abrio, Isaac ¢ Jacob, do poder dos barbaros. A Elle sejam dados louver, honra e gloria, por intermedio de Jesus Christo, seu amado filho, nosso Salvador. Amen. 119 HANS §STADEN CAPITULO LIT Como se chamavam os commandantes do navio; de onde era o navio; o que ainda acenteceu antes de partirmos do porte, e que tempo levamos em viagem para Franca O caprrio do navio chamava-se Wilhelm de Moner e o piloto Frangoy de Schantz. O navio tinha o nome de “Catharina de Wattauilla”, ete. Aprestaram-no para voltar a Franga, ¢, um dia de manhi, emquanto ainda estavamos no porto (Rio de Jen- VIAGEM AQ BRASIL nero chamado), aconteceu chegar um pequeno bareo portugney, pretendendo deixar o porto depois de ter traficado com uma saite: de selvagens, de amizade, chamados Los Markayas [os Mara- cays}, enjo paiz limita direetamente com o dos Tuppin Ikins [Tu- pinambés], amigos dos franeezes (99). As duas nagées so gran- des inimigas. « (89) Og Markoyas, on melhor, os Maracagds, ao fundo da bahia do Rio de Janeiro, eram vizinhog e inimigos dos Tupinambds (Tuppin Inbas) 6 nio Tupiniking (Tuppin Jting), como esti oa nareagie. No desenko (p. 120}, po- rém, onde vém figuradas as tribus do reconcavo dessa bable, a incorreegio dea- apparoce. La estio representadas aa aldeias doz Moarocayds @ dos Tuppin Inbas como vizinhos, o que basta para deafazer o engano do narrador. 121 HANS STADEN Era pequeno o navio (como j4 contei); tinka vindo para me comprar aos selvagens e pertencia a um factor [feitor], chamado Peter Roesel. Qs francezes metteram-se no seu bote com algumas armas de fogo ¢ partiram para aprisional-o, Tinham-me levado comsigo, para que eu lhe falasse de se render, Mas, ao atacarmos o barquinho, fomos repellidos ¢ alguns francezes sairam atirados e outros fe- ridos. Eu tambem fui gravemente ferido de um tiro e muito mais que qualquer dos outros feridos, sobreviventes. Invoquei entao mes- ta angustia o Senhor, porque j& sentia a agonia da morte; e pedi ao bondogo Pai que, uma vez que me livrara do poder dos barba- res, me conservasse a vida para que ainda pudesse chegar a terra ehristi ¢ contar a outros os beneficios que elle me tinha dispensado, E fiquei ontra vez completamente bom, louvado seja Deus por toda a eternidade. No anno Domini de 1554, ultimo dia de outubro, partimos 4 vela do porto Rio de Jennero ¢ fomos de volta para Franga. Tive- mos no mgr sempre bom vento, de que os marinheiros estavam ad- mirados ¢ acreditavam que fosse uma graca de Dens um tal tempo {como na verdade o foi). Na vespera do Natal, depararam-se muitos peixes em torno do navio, dos que se chamam Meerschwein, Apanhimos tantos que nos deram para alguns dias. O mesmo aconteceu de tarde no dia de Reis. Deus nos mandon grande fartura de peixes, pois que no ti- nhames que comer senao o que Deus nos dava do mar. Mais ou menos a 20 de fevereiro do anno LY [1555], chegimos a Franga, 4 eidade chamada Honfior [Honfleur], na Normandia. Durante toda a viagem de volta, nao vimos terra alguma, durante cerca de quatro mezes. Quando foi da descarga do navio, tomei parte. Aca- hbado isso, agradeei a todos os beneficios recebidos e pedi entao um, passaporte a0 capitio, Elle, porém, preferia que eu fizesse mais uma viagem em sua companhia; vendo, porém, que eu nao desejava fiear, arranjou-me um passaporte do Moensoral Miranth [Mon- sieur l’amiral], Governador da Normandia. E 0 capitio deu-me di- nheiro para a viagem. Despedi-me e parti de Honflor para Habel- noeff [Havre Neuf] e de Habelnoeff para Depen. 122 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO LIT Como em Depen eu fui levado para a casa do capitao do navio Bellete [Bel’ Eté], que tinha deixado o Prasil antes de nés, e ainda nao tinha voltado F d’aqui que havia partido o primeiro navio, Maria Bel- lete, de que era interprete aquelle individuo (que tinha re- commendado sos selvagens que me devorassem), navio em que elle pretendia voltav para a Franca. No mesmo é que tambem estavam aquelles que nao me quizeram recolher no bote, quando fugi dos sel- vagens; tambem o seu eapitio era aquelle que, segundo me conta- ram os selvagens, lhes tinha entregue, para elles devorarem, um portuguez, aprisionado num navio como antes narrei. Essa gente da Hellete nfo tinha ainda chegade eom o seu bar- eo, quando ali aportei, apezar de que, segundo o ecaleulo do navio de Wettauilla, chegado [ao Brasil] depois daquelle, e que foi quem me comprou, ja devia ter cd chegado tres mezes antes de nds. As mulheres e os amigos dessa gente vieram me procurar € me per- guntaram si eu nada sabia delles. Respondi: “Sim, sei; ha uma parte mA dessa gente no navio, estejam 14 onde estiverem”. FE con- tei entio como um delles, que esteve na terra dos selvagems e se achava a bordo, tinha aconselhado aos selvagens que me devoras- sem, mas que Deus, tedo poderoso, tinha-me preservado; e contei como tinham vindo no bote até as cabanas, onde eu estava, a fa- zerem permutas com os selvagens de pimenta e matacos; e¢ que eu tinha fngido dos selvagens e nadado até o seu bote; mas que nao quizeram receber-me e como fui obrigado a voltar de novo a terra para o poder dos selvagens, que me tinham maltratado tanto, Ti- nham tambem entregue um portuguez aos selvagens para o devo- rarem, disse-lhes eu, do mesmo modo que nfo tinham tido compai- xfio de mim. Por tudo isso, via agora como Deus tinha sido tao bom para commigo, pois, louvado seja Elle, tinha eu ehegado primeiro para vos dar noticias. Hao de echegar decerto quando fér possivel; mas quero prophetizar que Deus nao deixard sem castigo, por mais ou menos tempo, tamanha inclemencia e dureza como tinham mos- 123 HANS STADEN trado para commigo. Deus lhes perdée; pois estava claro que Deus, no céo, tinha ouvido os meus lamentos e se tinha compadecido de mim. E lhes contei mais como, para os que me tinham resgatado do poder dos selvagens, tudo tinha corride bem durante toda a via- gem, como de facto se deu. Deus nos concedera bom tempo, bom vento, ¢ nos dera peixes do fando do mar. Ficaram tristes ¢ me perguntaram si en julgava que elles ainda existiam; para os néo desconsolar, disse-lhes entio que ainda po- diam voltar, apezar de que todos ¢ eu tambem nao podiamos pre-° ‘sumir sindo que tivessem perecido, Depois de toda essa conversa, despedi-me e disse que, si vol- tassem, contassem a elles que Deus me tinha ajudado ¢ que eu ti- nha estado aqui. De Depen parti em um bareo para Lunden [Londres], em En- gellandt [Inglaterra], onde fiquei alguns dias. Dali parti para ‘Seelandt e de Seelandt para Andorff [Antuerpia]., Assim 6 que Deus todo poderoso, para o qual tudo é possivel, ajudou-me a vol- tar para a patria. Louvado seja Hille eternamente. Amen. Minha oragda a Deus, o Senhar, emquanta eu estive no poder das sélvagens, ptra ser devorado Oh, tu, Deus Todo Poderoso, que fizeste 0 céo e a terra; tn, Dens dos nossos antepassados, Abrao, Isaac ¢ Jacob; tu, que tao poderosamente conduziste 0 teu povo de Israel da mio de sews ini- migos através do Mar Vermelho. A ti, que eterno poder tens, pego que me livres das mios destes barbaros, que nio te conhecem, em uiome de Jesus Christo, teu amado filho, que livron os peccadores da prisdo eterna. Porém, Senhor, si ¢ tua vontade que eu soffra, que hei de soffrer morte tio cruel das mios destes poves que nia te conhecem e que dizem, quando Ihes falo de ti, que tu nao tens poder de me tirar de suas mos; entio fortalece-me no ultimo mo- mento, quando realizarem os seus designios sobre mim, para que ew naio duvide da tua clemencia. Si tenho de soffrer tanto nesta des- graca, dé-me ao depois repouso e me preserva do mal que horrori- zou a todos os nossos antepassados. Mas, Senhor, tu podes bem 1i- vrar-me do seu poder; livra-me, eu sei que tu me podes auxiliar e, 124 VIAGEM AO BRASIL quando tu me tiveres livrado, nio o quero attribuir 4 felicidade, sinfo unicamente 4 mio poderosa que me auxiliou, porque agora néenhum poder de homem pode me valer. E quando me tiveres li- vrado de seu poder, quero louvar a tua Graga e dal-a a eonhecer a todas as nagées onde eu chegar. Amen. ‘Nio posso crer que alguem possa orar de coragdo Sem que esteja em grande perigo ou perseguicao, Porque emquanto o corpo vive conforme quer, Esté sempre contra o seu Creador. Por isso, Deus, quando manda alguma desgraga, & prova que elle nos quer ainda bem, E ninguem deve ter disso duvida, Porque isso é uma dadiva de Dens. Nenhuma consolagic, nem arma, existe melhor Que a simples f7é em Deus. Por isso, cada homem de devogao Nada melhor pode ensinar a seus filhos Do que a comprehensio da palavra Deus, Na qual sempre podem ter confianga. Para que tu, leitor, néo julgues Que eu tive todo este trabalho para ter fama e honra, Digo que é para o louvor e honra de Deus, Que conhece todos os pensamentos do homem. A Elle, caro leitor, te recommenda, E pego que Elle continue a me ajudar. Amen. FIM DO PRIMEIRO LIVRINITO my ‘hy 3] DOMINI MA} i i OE WNET INAET)) Segunda Parte VERDADEIRA E CURTA NARRACAO DO COMMERCIO E COSTUMES DOS TUPIN INBAS, CUJO PRISIONEIRO EU FUI. MORAM NA AMERICA. O SEU PAIZ ESTA SITUADO NO 24° GRADUS, NO LADO DO SUL. DA LINHA EQUINOXIAL. A SUA TERRA CONFINA COM UM DISTRICTO, CHA- MADO RIO DE JENERO 129 CAPITULO I Como se faz a navegacio de Portugal para o Rio de Jennero, situado na America, mais ou menos no 24° gradus do Tropici Capricorni Lys é uma cidade de Portugal, situada a 39 graus ao norte da linha equinoxial. Quando se parte de Lissebona para a provincia de Rio de Jenero, situada no paiz do Prasil [Bra- sil], que tambem se chama America, yai-se primeiro a umas ilhas chamadas Cannariz, que pertencem ao rei de Espanha. Seis dellas mencionarei aqui: A primeira, Gran Canaria; a segunda, Lanse- rutta; a terceira, Forte Ventura; a quarta, Il Ferro; a quinta, La Palma; a sexta Tineriffe. Dahi se vai ds ilhas que se chamam Los insules de Cape virde. O que quer dizer: as ilhas do Cabo Verde (100), enjo Cabo Verde se acha na terra dos mouros pretos, que se chama tambem Gene (101). As supra mencionadas ilhas estéo debaixo do Tropico de Cancri (102) ¢ pertencem ao rei de Portu- gal. Das ilhas navega-se Su-sudoeste para o paiz do Prasil em um grande c vasto mar, muitas vezes tres mezes € mais antes de sé che- gar ao paix, Primeiro navega-se passando o Tropieum Caneri que fica para traz, Depois passa-se a lineam equinoxialem. Quando entio, neste mavegar, se observa o Norte, ndo se enxerga mais a es- trella polar (chamada tambem Polum Articum). Depois chega-se 4 altura do Tropiei Capricorni; navega-se por baixo do eol e quan- do se tem chegado i altura do Tropici Capricorni, na hora do meio (100) As ilhas de Cabo Verde, do nome do enbo que se acha na costa africana, habitada por mouros negros. (101) O narrador aqui se refera & Geind. (102) 0 Tropico de Cancer. 131 HANS STADEN dia, vé-se o sol para o lado do Norte, e faz sempre muito calor en- tre os dois Tropicis. © referido paiz Prasil esta, em parte, dentro dos dois Tropicis. CAPITULO II Como esté situado o paiz America, ou Prasil, conforme em parte tenho visto AmERica é uma grande terra com muitas nagdes selvagens, e muita differenga nas suas linguas (103). Ha nella mui- tos animaes estranhos ¢ é bella de ver-se. As arvores estio sempre verdes e nenhuma madeira desta terra se assemelha ds outras. A gente anda nia, e em nenhuma parte da terra, que esta entre os Tropicis, em tempo algum do anno, faz tanto frio como aqui em Michalis; mas a parte dessa terra, que esta ao sul do Tropieus Ca- pricorni, € um pouco mais fria. Ali habita a nagdio de selvagens que se chamam Carios [Carijés], que usam pelles de animaes fero- zes, as quaes elles preparam bem para com ellas se cobrirem. As mulheres destes mesmos selyagens fazem, de fios de algodio, uma especie de saeco, aberte em cima e em baixo, que ellas vestem e que, na lingua delles, se chama Typpoy (104). Ha neste paiz fructas da terra e das arvores, de que a gente ¢ os animaes se nutrem. A gen- te tem a pelle de eér vermelha parda, por causa do sol que a re- queima. E povo bem parecido, muito ladino no praticar o mal ¢ propenso a perseguir ¢ devorar os seus inimigos. A sua terra America (105) tem muitas centenas de milhas para (108) Innumeras eram as primitivas nagdes selragens do Beasil ¢ as suas Iingnas muite differentes umay das outras, A mais eapalhada era a lingua tupi, falada no litteral. (104) Especie de camisa sem mangas ¢ sem tale, verdadeiro suceo com os furos precises para passar a cabega e os bragos, Chamava-gse tipey no tupi, depois lugitanisado em tipoia. (105) Até a epoca do captiveiro de Hans Staden entre of Tupinambés, o nome — America — sé ern usado para designar a parte do continemte que 6 heje o Brasil. 132 VIAGEM AO BEASIL o Norte ¢ para o Sul no comprimento, das quaes naveguei talvez umas quinhentas, tendo tocado em muitos logares do paiz. CAPITULO III ! Sobre uma grande serra que ha no paiz H 4 uma grande serra, que s¢ estende a 3 milhas do mar, em alguns logares mais longe, em outros talvez mais perto e que chega mais on menos até a altura de Boiga de Todolos Sanctus (106), um logar assim chamado, onde os portuguezes edificaram e moram, Esta serra estende-se ao longo do mar exactamente 204 milhas, até a altura do 29° gradus do lado do Sul da linha equino- xial, onde termina, Em alguns logares, tem ella oito milhas de Jar- gura. Por detraz da serra ha um planalto. Descem bonitos rios dessa serra e ha nella muita caga. Na serra habita uma casta de selvagens que se chama Weyganna (107). Estes nao tém babita- goes fixas como os outros, que moram deante ¢ por detraz da serra. Os mesmos Wayganna estio em guerra com todas as outras nagtea e quando apanhem algum inimigo o devoram; os outros tambem fazem o mesmo com elles. Vio 4 procura da cata na serra; sio pe- ritos no atirar com o arco ¢ habeis em outras coisas, como em fazer lacos e armadilhas, com que apanham caga. Ha tambem muito mel silvestre, ma serra, servindo de ali- mento. Sabem tambem imitar a voz dos animacs ¢ o canto dos pasaa- ros, para melhor apanhal-os ¢ matal-os. Fazem fogo com dois péos, (108) E a Bahin de Todos os Santos, onde jA os Portuguezes, em 1549, uke edificade a cidade do Salvador para cabega da sua colonia no Nove mode . (107) Wayganna — quer o narrador dizer — Guoyand — nome de uma nagio selvagem que habitnva as mattas da serra, entremettida entre Tamoyos ou Tupinambés, Topinikins ¢ Carijés, Anchiets susignala — Guayanis do matto ¢ Guayanda do campo; mas nio os tem ua conta de ferocidade em que os descreve aqui o narrador. O jesuita e o autor do Roteiro do Brawl! divergem de Hana Staden no deacreverem a indole ¢ caracter deases indios. 1338 HANS STADENW como os outros selvagens tambem o fazem, Geralmente assam a8 carnes que comem. Viajam com as mulheres e filhos. Quando se acampam junto 4 terra de seus inimigos, fazem cercas de arbustes ao redor das suas cabanas, para que os unio possam surprehender, c tambem por causa dos tigres, e pSem espinhos (HMéraga cibe Je ehamados) ao redor das cabanas, do mesmo modo como aqui se fa- zem as armadilhas. Praticam isto de medo de seus inimigos, Toda a noite, conservam o fogo aceeso. Quando raia o dia apagem-no, para que se nio veja a fumaga que os denuneia, Deixam crescer 0 eabello na cabega, e tambem conservam unhas compridas. Usam tambem de um chocalho, chamado Maraka, como os ovtros selva- gens e tem-no em conta de um Dens. Gostam igualmente de beber e dangar. Tambem se servem de dentes de animaes para cortar, ¢ de machados de pedra, como as outras nagdes selvagens tambem usaram antes de estarem em contacto com os navios extrangeiros. Partem tambem muitas veres em busca de seus inimigos. Quan- do querem aprisional-os, escondem-se por detraz das tranqueiras que ficam em frente das cabanas destes. Fazem isso para colherem alguem que acaso sia das cabanas a buscar lenha. So tambem mais crueis com seus inimigos do que os inimigos com elles. Por exemplo: cortam-lhes os bragos @ as pernas, em- quanto ainda vives, pela grande gula que os distingue, Os outros, porém, matam primeiro antes de os despedagar para os comer. CAPITULO IV Como os selvagens Tuppin Inba, dos quaes fui prisioneiro, tém suas moradas fa elles as snas habitagdes em frente da serra grande, ja men- eionada, junto do mar. Tarbem por detr4z da mesma serra estende-se 0 sen dominio, cerca de 60 milhas. Um grande rio deseo da-serra ¢ corre para o mar; em um logar deste rio moram elles ¢ 134 VIAGEM AQ BRASIL chamam Paracibe (108). A extensio do terreno que elles ahi oc- eupam pode ser de 28 milhas, e estio ahi rodeados de inimigos. Do lado do Norte confinam com uma easta de selyagens, que se cha- mam Woeitieka (109), ¢ sio seus inimigos; do lade do Sul chamam- se seus inimigos Tuppin Ikin, e do lado da terra a dentro os seus inimigos sio chamades Karaya (110). Depois vém os Wayganna, que moram na serra perto delles, ¢ mais uma nagao que se chama Markaya [Maracayé] que habita entre estes, ¢ sio seus grandes perseguidores. Os outros jd mencionados guerream-se entre si e tanto que um delles apanha algum dos outros o devora. Gostam muito de collocar as suas cabanas onde a agua ¢ a le- nha nio fiquem longe. © mesmo quanto 4 caga ¢ ao peixe, ¢ quando tém devastade um logar mudam as moradas para outra parte. Para construir as suas habitagdes, um dos chefes dentre elles retime para jsso uns 40 homens e mulheres, quantos pode encontrar, geralmente seus amigos € parentes. Levantam estes a cabana, que tem mais ou menos 14 pés de largura e uns 150 pés de comprimento, e, si forem muitos, duas bra- eas de aliura; o teeto ¢ redondo, como uma abobada. Cobrem de- pois com uma grossa camada de ramas de palmeira, de modo a nfo chover dentro. Ninguem tem quarto separado; cada casal de ho- mem e mulher tem um espago na cabana, de um dos lados, de 12 pés; do outro lado, um outro casal, o mesmo espago- Assim se en- chem as cabanas e cada casal tem o seu fogo. O chefe tem o seu aposento no centro da cabana. Estas tém geralmente tres porti- nhas, uma em cada extremidade e¢ outra no centro; siio baixas de modo a ser necessario a gente curvat-se para sair e entrar. Poucas das suas aldeias tém mais de sete cabanas. No meio, entrée as ca- banas, deixam um espago, onde matam os prisioneiros. Sao tambem (108) Esse grande rio Paraeibe 6 mui provavelmente 0 nosso Parshyba, eujaa cabeceiraa confrontam com o trecho do litoral occupade pelea Tupianm bis (Tuppin Inba), de que nos fala o narrador. (109) Referewe aqui o marrador ao gentio Guaytaed, que dominava o baixo Purahyba. O nome tupi & contracgio de Goafeeara que quer dizer — 9 andejo, o nomeda, errante, (110) Karaya 6, decerto, Carayd, gentio do sertio ¢ de raga niio tupi de que hoje 56 temos noticia no valle do Araguaya. 185 HANS STADEN inelinados a fazer fortificagées ao redor das suas cabanas; e 0 fa- vem assim: erguem, ao redor das cabanas, uma cerca de troncos rachades de palmeiras. A cerca costuma ter braga e meia de altura, e fazem-na tio jnuta que nenhuma flecha possa atravessal-a. Dei- xam umas aberturas pelas quaes atiram. Ao redor da cerea fazem outra cerca de varas grossas ¢ compridas, porém nao as eollocam muito perto uma da outra, apenas tanto a nfo deixar passar um homem. Alguns delles tém o costume de espetar em postes, em frente « entrada das palhogas, as cabegas dos que foram devorados. I ay TANT Ya Es ay /tiii rT es ML 136 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO V Como fazem fogo T far elles uma especie de madeira, chamada Vrakueiba (111), que seecam e da qual cortam dois paosinhos da grossura de um dedo que esfregam um no outro, Com isto produz-se um po, que o calor da friegio aceende, ¢ assim fazem fogo, como o mostra esta gravura. : CAPITULO VI Onde dormem De em camas a que chamam Jnni (112) na sua lingua, as quaes siio feitas de fios de algodao. Amarram-nas em dois esteios, acima do chao, ¢ a0 lado conservam fogo aeceso du- QU) Frakweiba, mui provavelmente co topi — Braeuyba, ou melhor — ybyrd-cod-yba, que se tradue — “arvore de madeira quente”, into é, que a4 fogo. (112) Inné 6 a réde de dormir, @ maca. 137 HANS STADEN rante a noite. Niéo”gostam tambem de sair das cabanas 4 noite, para satisfazerem as SUBS neeessidades, por medo do diabo, a que ehamam Ingange (113), e ao qual véem muitas vezes. CAPITULO VII Como siio destros em cacar animaes € peixes com flechas on onde andam, quer na mata quer na agua, levam sempre eomsigo o seu arco ¢ as Suas flechas. Andando na matta, caminham de cabeca erguida, a examinarem as arvores para des- cobrirem algum passaro grande, maeaco ou outro animal, que vive sobre as arvores, para o matar, @ 0 perseguem até que o matam. Haras veres acontece ir alguem & caga ¢ voltar sém trazer coisa alguma. Do mesmo modo perseguem os peixes 4 beira-mar e tém uma vista muito penetrante. Mal apparece um peixe atiram e poucos tiros erram. Si acaso ferem algum, atiram-se na agua ¢ nadam (119) Ingange & do tap — inhang ou anhange, que outros eserevem anhan, ¢ significa propriamente — “‘o genie on capirite vagabundo, o ger errante”. 138 VIAGEM AO BRASIL atréz delle, Certos peixes grandes, quando feridos, vio para o fun- do, mas elles seguem atraz, mergulham até seis bragas, e os colhem. Usam tambem de pequenas redes, feitas de fibras, que tiram de umes folhas agudas e compridas Tockaun [tocum|; ¢ quando querem pescar com redes, retinem-se alguns e cada qual oceupa O set logar na agua, Quando esta nao é funda, entram uns poucos, for- mando cireulo, e batem na agua para o peixe afundar e eair entio na rede (114), Quem mais apanha divide com os outros. Pa ee — z= = = (114) Esse modo de pescar do geatio ainda boje é usado pela popula- gho do interior, 139 HANS STADEN Muitas vezes vém 4 pescaria aquelles que moram longe do mar. Apanham muito peixe, seceam-no ao fogo ¢ o méem num pile, fazende uma farinha, que se conserva por muito tempo. Levam-na -comsigo e a comem ¢om farinha de raiz, pois que, si levassem 0 peixe apenas frito, nio durava nada, por nio o salgarem ; ademais a farinha di para maior porgdo de gente do que um peixe inteiro assado. CAPITULO VIII Que feicio apresenta esta gente E uma gente bonita de corpo e de feigio, tanto os homens eomo as mulheres, iguaes 4 gente daqui; sémente sio quei- randos do sol, pois andam todos mis, moges e velhos, ¢ nada tém que eneubra as partes vergonhosas. Desfeiam-se a si mesmos com pin- turas ¢ nao tém barbas, porque as arrancam pela raiz, logo que lhea nascem. Fazem furos na boca e nas orelhas ¢ nelles introduzem pedras, que sio seus ornamentos, @ se enfeitam ¢om pennas. CAPITULO IX Com que elles cortam, visto néo poderem adquirir ferra- mentas christis, como machados, facas e tesouras T INHAM antigamente, antes de ci virem navies, ¢ ainda o tim em muitos logares do paia, onde navio algam chegou, uma especie de pedra preta azulada, a que davam a forma de uma eunha, euja parte mais larga é mal cortante, com mais ou menos um palmo de eumprimento, dois dedos de grossura e a largura de uma mio. Umas sao maiores, outras menores. Tomam depois um pén fino -que vergam ao redor da pedra e amarram com fibras de embira, 140 VIAGEM AO BEASIL Servem-se tambem de dentes de poreo do matto, que amolam até ficarem cortantes, e os amarram depois entre dois pausinhos. Com isto raspam suas flechas e arcos até que fiquem f&o rolicos como si foram torneadas. Empregam tambem o dente de um animal chamado Pacea; agu- gam-lhe a ponta e, si sentem alguma doenga no corpo que provém do sangue, arranham a parte até sair sangue; e este é 0 sen modo de sangrar. CAPITULO X Qual é o seu pio. Como se chamam os seus fructos, como elles os plantam e¢ como os preparam para comer e deixam-nas secear de um a trez mezes. Deitam-lhes fogo, ao depois queimam-nas e¢ entio 4 que plantam entre os troncos As rafzes de que precisam, a que chamam mandioka. BH arbusto de uma braca de altura, que d& umas tres raizes. Quando as querem comer, arraneam o pé, quebram-lhe as raizes e depois os galhos. A estes collocam-n'os outra vez na terra, onde criam raizes de novo, e@ com seis mezes erescem tanto que dao jé o que comer. A raiz preparam-na de trez modos. . Primeiro ralam as raizes numa pedra, até que fiquem em grios mindos; tiram-lhe depois o suceo com um apparelho feito da folha- gem da palmeira, ao qual chamam fippiti, que elles estieam; pas- sam depois tudo numa peneira e fazem da farinba uns bolinhos achatados. ‘A vasilha, em que seecam e torram a farinha, é de barro co- ido e tem a forma de uma grande bacia chata. Tambem tomam as raizes fresecas e as deitam n’agua, até apodrecerem, que é quando entiio as retiram, e péem-nas ao fumeiro, onde seccam. A essas rai- ges seccas chamam Keinrima (115) e conservam-se por muito tem- N os logares onde querem plantar, cortam primeiro ag arvores (115) Keinrima é do tupi corimd, ainda hoje eonbecido e empragado pelo vulgo para designar a massa da mandiora puba- 141 HANS STADEN po, e quando preeizam dellas, socam-nas em um piléo de madeira, onde ficam alvas como a farinha de trigo., Disto fazem elles boli- nhos a que chamam byyw (116). TMT NAS. A WE gece | < i nt AOU it ne Tambem tomam a mandioka apodrecida, antes de secea, e a misturam com a seeca ¢ com a fresca, com @ que preparam ¢ tor- ram uma farinha que pode conservar-se um anno, sempre bia para eomer, Esta farinha chamam-na V. y. than (117). (116) Byyw é do tupi — mbeyd, que vale dizer o enroscado, o enrolede. Hoje valgarmente — bei ji. (117) Foy than, diga-se uyf@ — que significa — forinka dura, 142 VIAGEM AO BRASIL Fazem farinha tambem de peixe e de carne. Assam a carne ou o peixe ao fogo, ou ao fumo, ¢ deixam ficar bem duro; rasgam-no com a min em pequeninos pedagos, poem-no mais uma vez ao fogo, em uma vasilha de barro cozide a que chamam Yneppawn (118), Depois soecam-no em pilio de madeira até fiear reduzido 4 farinha, © passam em uma peneira, Esta farinha conservase por muito tem- po. Nio tém o costume de salgar o peixe ou a earne, Comem entio a tal farinha com a de ralzes, e tem gosto bem regular. CAPITULO XI Como cozinham a comida H A muitas ragas de povos que nio comem sal. Aquelles entre os quaes estive prisioneiro comem, 4s vezes, sal porque vi- ram usar delle os francezes, com os quaes negociam. Mas contaram- me de uma nacao, cuja terra se limita com a delles, nagio Karaya, moradora no interior, longe do mar, que faz sal das palmeiras e 0 come, sendo que os que se servem muito delle mio vivem muito tempo. Preparam-no da seguinte maneira, que eu vi e ajudei a preparar: derrubam um grosso troneco de palmeira e racham-no em pequenas achas; fazem depois uma armagio de madeira seeca e lhe poem as achas em cima, queimando-as juntamente com a madeira secea até ficarem reduzidas 4 cinza. Das cinzas fazem entio de- coada, que fervem, ¢ assim obtém sal. Eu julgava que era salitre ¢ © experimentei ao fogo; mas nio era, Tinha gosto de sal e era de cér parda. A maior parte da gente, porém, nao come sal. Quando cozinham alguma coisa, seja peixe ou carne, poem-lhe em geral pimenta verde, e, quando esté mais ou menos bem cozida, tiram-na do caldo ¢ a reduzem a uma sopa rala a que chamam min- gdéw e que bebem ei caseas de purungas (119), que servem de va- (118) Freppaun 6 do tupi — nkaen-pyna, on wapune, que significa forno, ainds usade para cozer a farinha de mandicea. (119) Sdo os nossas cwias, feitas doa cascos daa cabagas ou cuités, 143 10 HANS STADEN silhas. E quando querem guarder alguma comida por mais tempo, carne ou peixe, penduram-na uns quatro palmos acima do fogo, em varas, ¢ fazem bastante fogo por baixo. Deixam-na entio seecar & enfumagar, até ficar bem secea. Quando querem comel-a, aferven- tam-na outra vez e se servem. A carne assim preparada chamam-na Mockaein (120). CAPITULO XIT Que regimen e que ordem seguem em relacio 4s autoridades e 4 justica N io tém regimen especial, nem justiga, Cada cabana tem um chefe, que 6 0 seu principal. Todos os seus chefes sito de uma e mesma raga, com mando e regimen, ¢ podem fazer tude o que quizerem. Péde por ventura um delles ter-se distinguido mais na guerra do que o outro; este entio é sempre mais ouvide, quando aa trata de novas guerras, como o jd referido Konian-Bebe. No mais, niio vi direito algum especial entre elles, siniio que os mais mogos prestam obediencia aos mais velhos, como & dos seus costumes. Quando salguem mata ou fere a outrem, os amigos deste se dis- poem logo a matar, por sua vez, o offensor, o que, porém, raras yeres acontece. Prestam obediencia tambem aos chefes das caba- nas, @ o que estes mandarem fazer, exceutam sem eonstrangimento nem medo, e sémente por boa vontade. (120) Mocksein do tupi — mbocaen, que quer dizer — fostar, secoar ao fogo, Chamavam os selvagens mooaen ao apparelho foite de varas que servia de grelha, A carne agsada no mecaen tomavalhe assim o nome. Hoje 6 vulgar @ Tome moguem com o mesmo sentide, 144 VIAGEM AQ BEASIL CAPITULO XIII Como fabricam os potes e as vasilhas de que usam BR: mulheres é que fazem as vasilhas de que precisam. Tiram o barro e o amassam; delle fazem todas as vasilhas que querem; deixam-nas seecar por algum tempo, ¢ sabem pintal-as bem. Quando querem queimal-as, emborcam-nas sobre pedras e amontoam ao redor grande porcio de caseas de arvores, que accen- dem, ¢, com isto, ficam queimadas, pois que se tornam em brazas, eomo ferro quente. CAPITULO XIV Como fabricam as bebidas com que se embriagam e como celebram essas bebedeiras FR: mulheres 6 que fazom tambem as bebidas. Tomam as rai- zes da mandioka, que deitam a ferver em grandes potes, ¢ quando bem fervidas, tiram-nas e¢ passam para outras vasilhas ou potes, onde deixam esfriar um pouco. Entaio as mogas assentam-se ao pé a mastigarem as rafzes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha Aparte. Uma vez mastigadas todas essas raizes fervidas, tormam a pér @ massa mascada nos potes, que entio enchem d'agua ¢ misturam muito bem, deixando tudo ferver de novo. Ha ent&o umas vasilhas especiaes, que estao enterradas até o meio e que elles empregam, como nés os toneis para o vinho ou a cerveja. Ahi despejam tudo e tampam bem; comeca a bebida a fer- mentar e torna-se forte. Assim fica durante dois dias, depois do que, bebem e fieam bebedos. E densa e deve ser nutritiva. Cada cabana faz sua propria bebida. E quando uma aldeia inteira quer fazer festas, 0 que de ordinario acontece uma vez por 145 HANS STADEN mez, retinem-se todos primeiro em uma cabana, e ahi bebem até aeabar com a bebida toda; passam depois para outra cabana, ¢ as- sim por diante até que tenham bebido tudo em todas ellas. Quando bebem assentam-se ao redor dos potes, alguns sobre achas de lenha e outros no chio. As mulheres dao-lhes a bebida por ordem. Alguns ficam de pé, cantam e dancam ao redor dos potes. E no logar onde estio bebendo, vertem tambem a sua agua. © beber dura a noite inteira; 4s vezes, tambem dangam por entre fogueiras e, quando ficam bebedos, gritam, tocam trombetas 146 VIAGEM AO BRASIL e fazem um barulho formidavel. Raro ficam zangados uns com os outros, Séo tambem muito liberaes, e o que Ihes sobra em comida repartem com outros. CAPITULO XV Qual o enfeite dos homens, como se pintam, € quaes siio os seus nomes R APAM uma parte da eabeca e deixam ao redor uma coréa de eabellos, como os frades., Muitas vezes Ihes perguntei aon- de tinham aprendido esta moda de eabelleira. Responderam-me que seus antepassades a tinham visto num homem que se chamava Metre Flumane (121), e que tinha feito muites milagres entre elles; ¢ en- tendiam que tivesse sido um propheta ou apostolo. Perguntei-lhes mais com que cortavam os cabellos antes dos na- vios Ihes trazerem tesouras, Respondiam que para isso tomavam {121} Meire Humane, mui provavavelmente Mair Zumane, nome de mys- teriosn personagem, que & tradigio ter apparecida entre os selvagens ¢ lhes scr- vin de legislador e mestra. O gentio do Brasil chamarao Sumé ou Zumé, No Paraguay, Pay Zomé. 147 HANS 8STADEN uma cunha de pedra, ¢ pondo uma outra por baixo dos cabellos, batiam até cortal-os. A eorda no meio da cabeca faziam-na com uma raspadeira, fabricada de uma pedra erystal de que usam muito para cortar. Tém mais um ornato feito de pennas vermelhas, a que chamam Kanittare (122) e que amarram em roda da eabeca. Usam tambem trazer no labio inferior um grande orificio, que fazem logo na infancia. Furam o beigo com um pedago de osso de veado agugado e no orificio introduzem depois uma pedrinha ou pedacinho de pdo e untam isso com os seus unguentos; 0 orificio continiia aberto. Quando ficam homens e aptos para as armas, fa- zem esse orificio maior e enfiam nelle uma pedra verde, que tem esta forma: a ponta superior e mais fina, fiea para dentro dos la- bios @ a grossa para fora, deixande o labio sempre pendido pelo pézo da pedra. Nas faces tém elles ainda, de cada lado da boca, uma pe- quena pedra. Alguns tém-nas de pedra de erystal, estreitas sim, mas compri- das. Usam ainda um enfeite que fazem de grandes bizios mari- chos, a que chamam Mofile pue (123), da forma de uma meia lua. Penduram-no ao pescoco, é brancoa como a neve, e o chamam Bo- gessy (124). Fazem tambem collares braneos, de caracGes marinhos, que tra- zem ao pestoco, da espessura de uma palma e que dio muito tra- balho para se fazerem. Amarram tambem feixes de pennas nos braces; pintam-se de preto e tambem com pennas vermelhas ¢ braneas, misturadas sem ordem; estas, porém, grudadas no corpo com substancias que ti- ram das arvores e que passam nas partes onde querem pér as pen- nas; applicando entao estas de modo a fiearem adherentes, Pintam (122) Kanittare 6 do tupi — acanitara, on acangutara, que quer dizer — ornate da cabeca, (123) Marte pue, do tupi — Uatapd, nome com que o gentio designara um bdzio grande e de grande bea, que forado pelo fundo dava para ge tan- ger com elle @ que goava muito mais do que uma buzing. Da easea desse bézio fabricava o selvagem um ornate em forma de meia lea, (124) Bogeasy 6 provavelmente do tupi — mbojacy, que quer dizer — feite lua, ou d imagem da lua. 148 VIAGEM AO BRASIL tambem um brago de preto e outro de vermelho, ¢ do mesmo modo a3 pernas € 6 corpo. Usam elles mais um enfeite de pennas de avestruz, enfeite grande e redondo, que amarram ma parte de tréz, quando vio 4 guer- ra contra os seus inimi- gos, ou fazem alguma festa. Chama-sé Enduap. Tiram seus nomes de animaes ferozes e tomam i ea muitos nomes, mas com (i pt en Na ub certas particularidades. » : ve eS Logo que mascem dé-se- 2" é i, ‘ Ihes um nome. Conser- iy vam-no sémente até fica- rem aptos para maneja- rem armas e matarem inimigos. A quantos depois matam, outros tantos nomes tomam. CAPITULO XVI Quaes sio os enfeites das mulheres RA: mulheres pintam-se por baixo dos olhos ¢ por todo o corpo, do mesmo modo como dissemos que os homens o fazem. Deixam, porém, erescer os cabellos, como todas ellas, e nfo tém en- feites especiaes. Abrem orificios nas orelhas, nos quaes penduram uns objectos do comprimento de um palmo, mais ow menos, roligos e da grossura de um dedo pollegar, a que echamam na sua lingua Nombibeyo. Fazem-nos tambem de conchas do mar, a que chamam Matte pue. Seus nomes ado de passaros, peixes e fructas das arvores, ¢ tém “149 HANS BTADEN um 86 nome desde criangas; porém quantos eseravos os seus mari- dos matam, tantos nomes dio elles 4s suas mulheres. Ao eatarem os piolhos uma da outra, vao os comendo, Pergun- tei-lhes muitas vezes porque assim faziam, e me responderam: “Sao nossos inimigos que mos comem a eabeca, e por isso nos vingamos delles”’, Tambem nao ha parteiras; quando uma mulher est4 para dar 4 luz, o primeiro que estiver perto, homem ou mulher, a aeéde logo. Vi algumas que se levantavam, commummente, no quarto dia de- pois do parto. Carregam os seus filhos 4s costas envolvidos em pannos de algodao, ¢ assim com elles trabalham, As criangas ahi dormem e andam contentes, por mais que ellas se abaixem ou se movam, CAPITULO XVIE Como dao o primeiro nome 4s criancas B MULHER de um selvagem, dos que ajudaram a me capturar, tinha dado 4 luz um filho. Alguns dias depois, convidou o marido os seus vizinhos das cabanas proximas e com elles eonferen- ciou a respeito do nome que havia de dar 4 crianga, para que esta fésse valente e temivel. Deram-lhe muites nomes, que nfo lhe agra- daram. Deliberou entio dar-lhe o nome de um dos seus quatro an- tepassados, e disse que criangas que tém tres nomes vingam bem e fieam dextros em fazer prisioneiros, Os seus quatro antepassados se chamavam: o primeiro, Krimen; o segundo, Hermittan; o ter- eeiro Koem (125); o quarto nome nao retive na memoria, Pensei ao ouvil-o falar de Koem, que podia ser Cham; mas Koem quer dizer na lingua delles mankd, Disse-lhe que désse este nome 4 crian- (125) Krimen, Hermitian, Koem, vio tres nomes de procedencia_tupi; mna nltersdos, £ possivel que se identifiquem reapectivamente com Kirimd, scones Cooma, que ge traduzem na meama ordem: Corajoso, Abelha menina, ‘anha.. 150 VIAGEM AO BEREASIL ga, porque tinha sido o de um dos seus antepassados. A crianga fi- eou com um destes nomes. E assim que dio nomes aos seus filhos, sem baptismo, nem circumeisao. CAPITULO XVIII ‘Quantas mulheres cada um tem, e como vive com ellas A aaion parte delles tem uma sé mulher; outros tém mais. Mas alguns dos seus principaes tem 13 ou 14 mulheres. O principal a quem me deram da ultima vez, e de quem os francezes me compraram, chamedo Abbati Bossange, tinha muitas mulheres ea que f6ra a primeira era a superiora entre ellas. Cada uma ti- nha o seu aposento na cabana, seu proprio fogo e sua propria plan- tacio de rafzes; e aquella com quem elle vivia, e em eujo aposento fieava, @ que lhe servia o comer; & assim passava de uma para ou- ira. As eriangas que lhes nascem, emquanto meninos e pequenos, educam-nas para a caga; ¢ 0 que os meninos trazem, cada qual dé a sua mae. Ellas ent&o cozinham e¢ partilham com os outros; € as mulheres se dio bem entre si. Tambem tém o costume de fazer presentes de suas mulheres, quando aborreeidos dellas. Fazem do mesmo modo presentes de uma filha ou irmé. CAPITULO XIX Como elles contractam os casamentos ( 5 ONTRACTAM o3 casamentos de suas filhas, ainda criangas, ¢ logo que ellas se fazem mulheres, cortam-lhes o cabello da cabega; riscam-lhes mas costas marcas especiaes é lhes penduram ao pescogo uns dentes de animaes ferozes. Uma vez erescido o ¢a- 151 HANS STADEN bello de novo, as incisdes cicatrizam-se, deixando ver ainda o signal desses riscos, pois que misturam certas tintas com 0 sangue, para ficar preto quando saram, coisa que é lida como uma bonra. Quando terminadas estas ceremonias, entregam as filhas a quem as deve possuir ¢ nfo celebram nenhuma outra ceremonia e8- pecial. Homem e mulher proeedem decentemente ¢ fazem os seus ajuntamentos as oceultas. Item, consegui ver que um dos seus ehe- fes em eerta oecasifio, cedo pela manha, ao visitar todas as suas ca- banas, riseava as pernas das eriangas eom um dente afiado de pei- xe; isto s6 para Ihes fazer medo, de modo que, quando choravam com manha, os paes as ameagavam; “Ahi vem elle!” ¢ ellas se ca- lavam. CAPITULO XX Quaes sfio as suas riquezas N io ha divisio de bens entre elles. Nada sabem de dinheiro. Suas riquezas sio pennas de passaros; ¢ quem tem muitas é que é rico, Quem traz pedras nos labios, entre elles, é um dos mais ricos. Cada casal, homem e mulher, tem sua plantagio de raizes, das quaes se alimentam. CAPITULO XXT Qual é a sua maior honra AB suA maior honra é prender e matar muitos inimigos. Cos- tume entre elles é que, quantos inimigos cada qual tiver morto, tantos nomes pode tomar. E o mais nobre entre elles, & aquelle que conta mais nomes desta especie. 152 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXII Em que créem T iM a sua crenea em um fructo que eresece como uma abobora edo tamanho de um meio péte. Oca, como é, atravessam- The um piu, Fazem-lhe depois um orificio 4 guisa de boquinha e Ihe deitam umas pedrinhas dentro, para que ehoealhe. Com isto tangem quando cantam ¢ dangam, e lhe chamam Tammeraka, cuja forma é como segue: 7 —~ . ‘ weieentiy| A FP pee, Este instrumento é s6 dos homens e cada um tem o seu. Ha entre elles alguns individuos a que chamam Paygi (126) e que sio tidos por adivinhos, Estes percorrem uma vez por anno o paiz tedo, de cabana em cabana, asseverando que tém comsigo um es- pirito que vem de longe, de logares extrauhos, e que Ihes deu a vir- tude de fazer falar todos os Tammarakas que elles queiram e o poder de aleangar tudo que se Ihes pede. Cada qual quer ent&io que este (126) Faygi, do tupi — peyé ou pagé, que & como o gentio chamava oa seus feiti¢eiros ou adivinhos. 153 HANS STADEN poder venha para o seu chocalho; fas-se uma grande festa, com be- bidas, cantos ¢ adivinhagdes, ¢ praticam muitas ceremonias singu- lares. Depois maream os adivinhos um dia para uma cabana, que mandam evacuar, ¢ nenhuma mulher nem crianga pode ficar 1a den- tro. Ordenam em seguida que eada um pinte o seu Tammaraka de vermelho, enfeitado com pennas, e o mande para elles the darem o poder de falar. Dirigem-se entio para a cabana. © adivinho toma assento, em logar elevado, ¢ tem junto de si o Tammaraka fineado no chao. Os outros entdo fincam os seus. DA cada qual os seus pre- sentes ao adivinho, como sejam flechas, pennas e penduriealhos para as orelhas, afim de que o seu Tammaraka nfo fique esquecido. Uma vez todos reunidos, toma o adivinho cada Tammaraka de per si, e o defuma com uma berva, a que chamam Bitiin (127). Leva de- pois o Tammaraka & boca; chocalha-o e lhe diz: “Nee kera [mheen coire], fala agora, e deixa-te ouvir; estés ahi dentro?” Depois diz baixo e muito junto uma palavra, que é difficil de se saber si é do ehocalho, on si 4 delle, e todos acreditam que é do choealho. Na verdade, porém, é do proprio adivinho, ¢ assim faz elle com todos os ¢hoealhos, um apés o outro, Cada qual pensa entio que o seu ehocalho tem grande poder. Os adivinhos exortam-n'os depois a que vaio para a guerra e apanhem inimigos, porque os espiritos que estio nos Tammaraka tém gana de comer carne de prisioneiros; é com isto, se decidem a ir A guerra. Mal o adivinho. Paygi tem transformado em idolos todos os chocalhos, toma cada qual o seu; chama-o. seu querido filho e lhe Jevanta uma pequena cabana, na qual deve fiear. Di-lhe comida ¢ lhe pede tudo o que precisa, tal como nés fazemos com o verdadeiro Deus, Sao estes os seus Denses. Com o Deus verdadeiro, que ereou o eéo e a terra, elles nao se importam ¢ acham que 6 uma coisa muito natural que o efo e a terra existam. Tambem mada sabem de especial do comego do mundo, Dizem que honve, uma vez, uma grande enchente em que s¢ afogaram todos os seus antepassades ¢ que alguns se salvaram em (127) Bittin 6 do tupi — petym, que quer diver — tabaco, fumo. 154 VIAGEM AO BRASIL uma canda, outros em srvores altas, o que eu penso deve ter sido o diluvie, Quando me achei pela primeira vez entre elles ¢ me contaram eskas coisas, pensei que se tratava talvez de algum phantasma do diabo, pois que me contaram diversas vezes como esses idolos fala- vam. Penetrando nas cabanas, onde estavam os adivinhos que de- viam fazel-os falar, notei que todos se assentavam. Mas, logo que vi a experteza, sai da cabana e disse commigo: “Que pobre povo- iludido 1" CAPITULO XXIII Como elles tornam as mulheres adivinhas E wrram primeiro em uma cabana e pegam todas as mullieres, uma apés outra, ¢ as defumam. Depois, tem cada uma de gritar, pular e correr em roda, até que fique tao cansada, que cdia no chiio, como desfallecida, 0 adivinho diz entio: “Vejam, agora esti morta; mas eu quero fazel-a viver de novo.” Logo que ella volta a si, diz elle: “Agora esti apta pora falar do futuro”. Assim, quando partem para a guerra, obrigam essas mulheres a adivinhar o que ha de acontecer na lucta. Uma vez a mulher de meu senhor (aquelle a quem en tinha sido entregue para me matar) comegou de noite a vaticinar e disse ao marido que um espirito de terra extranha se tinha dirigido a ella e¢ lhe perguntara, quando era que eu devia ser morto e onde estava o pin com que me deviam matar. Elle respondeu: “Nao de- morara, tudo esté prompto; porém desconfio de que nfo é elle por- tuguez, mas franeez”. Quando a mulher acabou a sua adivinhacao perguntei-lhe por que desejava tanto a minha morte, visto que eu nio era inimigo, & si ella nado temia que o meu Deus lhe mandasse algum castigo. “Eu nao devia incommodar-me com isso, disse ella, mas eram os espiri- tos extranhos que queriam saber”. Taes ceremonias celebram elles. mouitas. 155 HANS STADEN CAPITULO XXIV Como navegam nas aguas © paiz ha uma especie de arvores a que chamam Yga Ywere (128), cvja casca os selvagens destacam de cima @ baixe, fazendo wma armacSo especial ao redor da arvore para tiral-a in- teira, Depois, tomam a casca e a transportam da serra até o mar; aquecem-na ao fogo, dobram-na por deante e por detriz e Ihe amar- ram dois pius atravessados no centro para que se nao achate, e fa- zem assiti uma cana, na qual cabem 30 pessoas, para irem 4 guer- ra. A casea tem a grossura de um dedo pollegar, mais ou menos 4 pés de largura e 40 de comprimento; algumas mais compridas ¢ outras mais curtas. Nellas remam apressados ¢ navegam longe tanto quanto querem. Quando o mar est4 bravo, puxam as candas para a terra até o tempo ficar bom, Nio vao mais de duas milhas, mar a féra; mas, ao longo da terra, mavegam muito longe. CAPITULO XXV Porque um inimigo devora o outro N io o fazem por fome, mas por grande odio e inveja; e quan- do na guerra combatem, gritam um para 0 outro, por grande odio: “Dete Immeraya Schermiuramme beiwoe” (129), “a ti suc- cedam todas as desgracas, minha comida”. “De kange Juca cypote (128) Fga Fwera, do tupi — Fgd-ybyrd, que quer dizer — pau on ma- deira de canda, (12) Doete Immeraya shermiurama beiwoe, phrase que se restaura pela forma seguinte; — ndé t'mbecraba cha remil-rama moe ambor, que se tras duz litteralmente: “a ti queceda, oh! comida minha, coisa mA!” Apostrophe ‘com que se ameaga de fazer do inimigo _ sun comida, isto 6, de devoral-o. 156 VIAGEM AO BRASIL kurine” (130), “eu quero ainda hoje cortar a tua cabega”. “Sche innam me pepicke keseagu’ (131), “para vingar a morte de meus amigos, estou aqui”. “Yande soo sche mocken sera quora ossarime rire” (182), ete., “tna carne sera hoje, antes que o sol entre, 0 meu assado”. Tudo isso fazem por grande inimizade. CAPITULO XXXVI Como fazem seus planos, quando querem ir 4 terra de seus inimigos para os guerrear Ove se dispéem a levar a guerra 4 terra de seus inimigos, os ehefes se reunem e conferenciam como o devem fazer. Isto communieam a todas as cabanas para que s¢ preparem, ¢ dio o nome de uma fructa eujo amadurecimento mareara o tempo da partids, pois que nao conhecem a differenga do anno e do dia. Tam- bem determinam o tempo da partida, pelo tempo da deséva de um peixe a que chamam Pratti (133) na lingua delles, ¢ o tempo da deséva chamam Pirckaen (134). Para esta epoea apromptam as suas canéas, suas fleches e farinha dura de raizes, que chamam Fythan [wyti], para mantimento. Depois consultam os Pagy, 08 adivinhos si aleangariio vietoria. Estes, em geral, dizem que sim, mas Thes ordenam que tomem sentido nos sonhos que tém a res- peito dos inimigos, ¢ quando a maior parte delles sonha que véem (130) De konge yueo cypota kurine, que vale dizer: — nde canga jucd e'ypotd curimé, que se traduz: — “tun cabega oertar quere ji!" «181) bd innan. me pepicke keseagu, que vale dizer no tupi: — che y anama pepike ki choted — ¢ se tradux ao pé da letra: ‘or meus parentes vin- gar aqui estou eu” (182) Fande 00 sche mocken sora quora ossorime rire, que vale diter no tupi: Rendé cod che mocacn serd coaracy eyma riré — ¢ ee traduz: “a tua earne moquearet decerto depois do sol posto”. (183) Pratti 6 0 mestio Bratti como o esereveu o uarrador anteriormente, nome do peixe a que o genlio chamara paraty, iste 6, a tainha. (184) Pirakaen € 0 tupi pind caen, que signifien — peize eeora —. . Come & epoca da deaiva era tambem o tempo da pescaria o da aécea do peize, ® mar. rador usa do termo pird caen nos dois sentidos. 157 HANS STADEN assar a carne dos inimigos, quer isto dizer que terfo vietoria. Maa si yéem assar a sua propria carne, niio é de bom presagio ¢ devem ficar em casa. Quando os seus sonhos ihes agradam, aprestam-se em todas as cabanas; fazem muita bebida, bebem e¢ dangam com o8 idolos Tammaraka, e cada um pede ao sen que o ajude a apanhar um inimigo. Depois partem. Ao chegarem perto da terra dos seus inimigos, ordenam os chefes, um dia antes daquelle em que viio in- vadir a terra daquelles, que reparem bem nos sonhos que tiverem durante a noite. ‘Tomei parte com elles numa expedi¢io, Ao chegarmos perto da terra dos sens contrarios ¢, na noite anterior quella em que a pretendiam inyadir, 9 chefe pereorrea o acampamento todo a dizer gue attentassem bem nos sonhos que tivessem e ordenou mais que os mogos, logo que raiasse o dia, fessem cagar e pescar. Isso feito, mandou o chefe preparar tudo. Depois eonvidou aos outros che- fes a que viessem para a cabana delle. Assentaram-se todos no chao e fizeram roda. Mandou-Ihes servir a comida. Acabada esta, contaram-Ihe os seus sonhos, mas sémente os que lhes agradaram ; depois dangaram de alegria com os Tammarakas. Fazem reconhecimento das aldeias dos seus inimigos durante a noite e, ao raiar do dia, investem. Si apanham algum que esteja gravemente ferido, matam-no logo ¢ levam-lhe a carne depois de assada para a casa; mas si esti sao o prisioneiro, levam-no vivo. Depois matam-no na cabana. Atecam com grande vozeria; pizam duro no ehio; tocam trombetas, feitas de cabagas, e levam todos cordas, enleadas ao re- dor do corpo, para amarrar os inimigos; pintam-se e enfeitam-se com pennas vermelhas, para nao se confundirem com os outros; @ atiram com presteza, Arremessam tambem flechas aceesas sobre as cabanas de sens inimigos para incendial-as, E quando algum doa delles reeebe um ferimento, applicam-Ihe hervas proprias com que se curam . 158 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXVII Qual é o seu armamento para a guerra T fa elles ox seus arcos, e as pontas das flechas sfio de ossos que agueam e¢ amarram; tambem fazem-nas de dentes do peixe a que chamam Tiberaun (135) e que apanbam no mar. Usam tam- hem algodao, que misturam com cera, amarram nas flechas € accen- dem; sio essas as suas flechas de fogo. Fazem tambem eseudos de eascas de arvores ¢ de couros de animaes ferozes. Enterram tam- bem espinhos, como aqui as armadilhas de tesoura. Ouvi tambem elles, mas nfo vi, que, quando querem, expul- sam og seus inimigos das cabanas fortificadas, com empregarem 4 pimenta que cresee no paiz, desta forma: fazem grandes fogueiras e, quando o vento sopra pdem-Ihe grande porgéo de pimenta, euja fumaga, attingindo as cabanas, os obriga a fugirem; e eu o creio. Estava uma vez com os. portuguezes numa loealidade da terra de Brannenbucke [Pernambuco] chamada, a que j4 me referi, e ahi aconteceu-nos de fiear num rio com o bareo em seceo, porque a maré baixara. Vieram muitos selvagens para nos atacar; mas como nao 9 puderam amontoaram entio muita lenha ¢ galhos seeeos, entre o navio ¢ a margem, para nos obrigar a sair, por effeito da fumaga da pimenta; mas nao lograram pegar fogo na lenha. (135) Tiberaun, do portugues. — tubardio — alterada; 6 0 peixe a qoe ehamam no tupl — Fperd. : 159 nh HANS 8TADEN CAPITULO XXVIIT Com que ceremonias maiam e comem seus inimigos. Como os matam e como os tratam Ov trazem para casa os seus inimigos, as mulheres ¢ as erianeas os esbofetciam. Enfeitam-n'os depois com pennas pardas; cortam-lhes as sobrancelhas; dangam em roda delles, amar- rando-os bem, para que néo fujam. 160 VIAGEM AO BRASIL Dao-lhes uma mulher para os guardar e tambem ter relagdes com elles, Si ella coneebe, educam a erianga até ficar grande; e depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta ¢ a devoram. Fornecem aos prisioneitos boa comida; tratam assim delles algum tempo, € do comecarem os preparativos, fabricam muitos potes ea- peciaes, nos quaes paem todo o necessario para pintal-os; ajuntam feixes de pennas que amarram no bastio com que os hie de matar. Trangam tambem uma corda comprida a que ehamam Afassu- rana [Mussurana] com a qual os amarram na hora de morrer. Ter- 161 HANS STADEN minados todos os preparatives, Marcam 0 dia do sacrificio. Convidam entao os sel- vagens de outras aldeias para ahi se re- unirem naquella épeca. Enchem todas as vasilhas de bebidas e, um on dois dias an- tes que as mulheres tenham feito essas be- hidas, conduzem o prisioneire uma ou duas verzea pela praca ¢ daneam ao redor delle. Reunidos todos os convidados, o che- fe da cabana hes d& as boas vindas e Thes “Vinde ajudar agora a comer 0 vos- so inimige”. Dias antes de comegarem a . amarram a mussurana ao pescoce aco prisioneire, No mesmo dia, pintam ¢ sitam o bastio chamado Iwera Pemme, com que o matam, e é da forma que més tra esta figura [ao lado}. Tem este mais de ume braga de cum- prido eo untam com uma substancia que eruda. Tomam entio caseas pardas de eves de um passaro chamado Mackukawe, # moem-mas até reduzil-as a pd, que esfre- gam no bastdo. Uma muiher entio risea figuras nesse pé adherente ao bastito, e¢ emquanto ella desenha, as mulheres todas cantam ao redor. Uma vez prompto o Jwéra Pemme eom os enfeites de penmnas e outras preparagies, penduram-no em uma cabana desoecupada e¢ eantam ao redor delle toda a noite. Do mesmo modo pintam a cara do prisioneiro, e emquanto uma das mulheres o esté pintando, as outras cantam. E logo que come- gam a beber, levam o prisioneiro para 14, bebem com elle ¢ com elle se entretém. Acabando de beber, deseancam no dia seguinte; fazem depois uma casinha para o prisioneiro, no logar onde elle deve morrer. Ali fica elle durante a noite, bem guardado. 162 VIAGEM AO BRASIL De manha, ante: do bastio ce easinha e a de are cantar ao redor que o devem matar. ntho o prisioneiro da . para abrir espa¢o; amarram @ mussurana ao peseotd c em redor do eorpo do paciente, esticando-a para os dois |s Fiea ello enia dlo, e muitos delles a segurarem a corda pelas duas pontas. ino assim fiear por algum tempo; dio-lhe pedrinhas para elle arremessar sobre as mu- lheres que andam em roda ameagandse de devoral-o. Estio ellas en- tao pintadas ¢ prompias para, quando o prisioneiro estiver reduzi- do & postas, comerem os quatro primeiros pedacos ao redor das ca- 163 HANS STADEN ‘banas. Nisto consiste 0 seu divertimento. Iste prompto, fazem um foge cerca de dois paxsos do prisioneiro para que este o veja. Depois ver uma mulher correndo com o Jivera Pemme; vira os feixes de pennas para cima; neiro, para que este o veja. ita de alegriz © passa pelo prisio- ‘e E Feito isto, um homem toma da elava; dirige-se para o prisio- neiro; piira na sna frente e the mostra o cacete para que elle o veja. Emquanto isso, aquelle que deve matar o prisioneiro vai com uns 14 on 15 dos seus e pinta o proprio corpo de pardo, com einza, Volta enido com os seus companheiros para o logar onde esté 164 VIAGEM AO BRASIL © prisioneiro, ¢ aquelle que tinha fieado em frente deste lhe entre- ga 4 maga. Surge agora o principal das eabanas; toma a clava ¢ a enfia por entre us pernas daqunelle que deve desfeehar © golpe mortal, Isso 6 por elles considerado uma grande honra. De novo aquel- le que deve matar 0 prisioneiro pega na elava e diz: “Sim, aqui estou, quero te matar, porque os teus tambem mataram a muitos dos meus amigos e os devoraram”. Responde-lhe 0 outro: “Depois de morto, tenho ainda muitos amigos que de certo me hio de vin- 165 HANS STADEN gar." Entao desfecha-lhe 0 matador um golpe na nuca, os miolos saltam ¢ logo as mulheres tomam o corpo, pachando-o para o fogo; esfollam-no até fiear bem alvo e¢ lhe enfiam wm paozinho por de traz, para que nada lhes escape, Uma vez esfollado, um lomem o toma ¢ lhe corta as pernas, acima dos joelhos, e tambem os braces. Vém entiio as mulheres: pegam nos quairo pedagos ¢ correm ao redor das cabanas, fazendo um grande vozerio. Depois abrem-lhe as costas, que separam do lado da frente, e 166 VIAGEM AO BRASIL repartem entre si; mas a3 mulheres guardam os intestinos, fervem- nos e do caldo fazem uma sopa que se chama Mingau, que ellas e as criangas bebem. Comem os intestines c iamber: a earne da eabeea; os miolos, a lingua eo mais que houver sfo para as ¢riangas. Tudo acabado, volta cada qual para sua casn levando o seu quinho. Aquelle, que foi o matador, ganha mais nm nome, ¢ o principal das cabanas ris- ea-lhe o brago com o dente de um animal feroz, Quando siira, fica a marea, ¢ isto & a honra que tem. Depois tem elle, no mesmo dia, 167 HANS STADEN de fiear om repouso, deitade ma sna rede e Ihe dio um pequeno areo com uma fiecha para passar o iempo atirande em um alvo de cera. Isto é feito par de ter matado. ‘a que os bragos ngo fiquem ineertos, do susto Tudo isto vi eu e presenciei. Illes néo sabem contar sendo até eineo. Si querem contar mais, mostram os dedos da mio e do pé. Em querendo falar de um numero grande, apontam quatro ow cinco pessoas, indicando quan- tos dedos da mao e do pé ellas tém. 168 VIAGEM AG BRASIT Assands um prisioneira 169 HANS STADEN Comenda um prisioncira 170 VIAGEM AO BRASIL CAPITULO XXTX Deseripeio de alguns animaes no paiz H Ano paiz veados e poreos do matto, de duas qualidades. Uma especie 6 como a daqui. As outras sao pequenas, como por- cos noves, e se chamam Taygasu, Dattu (136) ; sio difficeis de cair nas armadilhas com as quaes os selvagens costumam apanhar caga. Ha tambem macacos de a especies. Uma especie chama-se Key (187), 6 a que vem para eA. Ha mais uma especie a que se chama dAcka Key (138) e& ge- ralmente anda em grandes bandos, saltande nas arvores ¢ fazendo grande gritaria no matteo, E ha mais uma especie a que st chama Prickt (139); sio ver- melhos, tem barbas como os bodes e sio do tamanho de um cao re-- gular. (136) Taygasu, Poti, do tupi — Toytitd, Tetd, que hoje se chama vul- garmente — Castetd e Tata. (187) Key é do tupi — Cay ou cahy. (138) dAcka Hey, do tupi — aca coy, ou aca cahy, que quer dizer — ma- eace de algararra ou de bando. (189) Pricki, do tupi Burthi, nome de uma especie de macaco vermetho, donde Frei Gaspar da Madre de Deus fez derivar a palavra Bertioga, que para o autor das “Memorias para Historia da Capitania de S. Vicente” é uma cor- ruptella de Buriquicea, refagio de macacos. 171 HANS STADEN Tambem ha uma especie de animal a que ehamam Daft (140) ; tem mais ou ménos um palmo de altura, e couraga no corpo todo, excepto ng barriga onde niio a tem. A couraca ¢ como chifre ¢ fecha com articulagdes como uma armadura. ‘lem focinho longo e pontu- do e cauda comprida. Gosta de andar por entre as pedras; a sua comida sio formigas e tem carne gorda, que muitas vezes comi. CAPITULO XXX Serwoy H A tambem uma especie de eaga a que se chama Serwoy (141), do tamanho de um gato braneo, de pelle parda, tambem einzento e tem rabo como o gato, Quando pare, pare um ou seis filhos e tem uma fenda no ventre de perto de palmo e meio de com- prido. Por dentro da fenda ha mais uma pelle, pois que o ventre nio lhe é aberto ¢ por dentro da bolsa esto as tetas. Por onde quer que vA, leva comsigo os filhos dentro do saceo, entre 2g duas pelles. Muitas vezes, ajudei & apanhal-a e lhe tirei os filhos da bolsa. (140) Dati, do tupi — Tata. (141) Serwoy, do tupi — Sorigud, on cad que quer diter — ant- mat de sacco, ou dotado de bolso, Em outros logares diz-se — sarud, serud, ae, 172 VIAGEM AQ BRASIL CAPITULO KXXT Ha tambem muitos tigres no paiz, que matam gente e causam muitos prejuizos H A tambem uma especie de leio, a que chamam Leoporda (142), isto é Leda Parde, e outros muitos animaes singulares. Ha um animal chamado (ufivere (143), que vive em terra e¢ tambem na agua. Alimenta-se da tabtia que se encontra nas aguas doces. Quando se amedronta foge para o fundo d’agua. 340 maio- res do que um cordeiro, e tem a cabeca parecida com a da lebre, porém maior, ¢ as orelhas curtas. A cauda é pequena e as pernas siio um pouco altas, Correm muito em terra, de uma agua para outra. Tem o pello pardo-escuro, tres inhas em cada pé e a carne tem o gosto da de pores. Tambem ha uma especie de grandes lagartos na aircin (144) em terra; estes sio boms para se comer. CAPITULO XXXII De uma especie de insectos pequenos como pulgas pequenas, que os selvagens chamam “atlun” A uns insectosinhos parecidos com pulgas, porém menores, que se chamam Attum (145), na lingua dos selvagens. ‘Criam-se nas cabanas, da sujeira da gente. Entram nos pés; 56 pro- (142) Leopards, ista 6, “Lede parde”, como diz o marrndor, nao 4 aqui nome dado pelo gentic, mas pelos portuguezes. O nome tupi ¢ ¢od-aesd-arasa, ou mais contractamente susuara, que vale dizer — tirande a veado —, nome dado & onga parda. (143) Catiuare, do tupi — capiwers, hoje eapivare, qve signifien come. dor de capim, ou herbivoro. (144) © autor aqui quer se referir aos sauriog brasileiros; xo iagarte d'agua chamava o gentio — yoceré e uo do terra — teyti-crd. (145) Attun, do tupi — tum ou tung, “o bicho de pé”, que tambem se liz tumbyra. 173 HANS STADEN dnzindo uma cocegazinha quando entram, e vao penetrando na car- ne de modo que quasi néo se percebe. Niio se reparando e nao os tirando loge, poem elles um saceo de ovos, redondo como uma er- vilha. Uma vez, porim, pereebides ¢ retirados, fica na carne um buraco do tamanho de um grio de ervilha. Eu vi, quando cheguei a este pais, pela primeira vez, os espanhdées e alguns dos nossos fi- carem com os pés estragados por deseuido, CAPITULO XXXUI De uma especie de morcego do paiz, e como de noite, durante 9 somno, elle chupa os dedos do pé e 2 cabega da gentle a tambem uma especie de morcegos, que sio maiores do que os da Allemanha. Véum de noite para dentro das cabanas, ao redor das redes, em que dorme a gente. Tanto que pereebem que alguom dorme ¢ o5 nio inquicta, powsam-lhe nos pés e os sugam até s¢ encherem, ou mordem-lhe a cabega, e se vio embora, Emquanto estive entre os selvagens, sugaram-me muitas vezes os dedos do pé. Ao accordar é que via entaéo os dedos ensanguen- tados. Mas, aos selvagens, mordiam-lhes em geral a eabeca, CAPITULO XXXIV Das abelhas do paiz RES especies de abelhas ha no paiz. As primeiras sio seme- Ihantes as daqui. As segundas sio pretas e do tamanho de moseas, As terceiras sfo pequenas, como mosquites. Todas estas abelhas fabricam o mel no éco das arvores, ¢ muitas vezes tirei mel com os selvagens de todas as tres especies. As pequenas tém, em geral, melhor mel que as outras. Tambem nio mordem como as iv4 VIAGEM AO BRASIL abelhas daqui. Vi, muitas vezes, ao tirarem mel os selvagens, que fieavam eheios de abelhas e que a custo as tiravam 4 mio do corpo ni. Eu mesmo tirei mel, ni; mas da primeira vez fui coagido pela dér a metter-me na agna e tiral-as ali para me livrar dellas, CAPITULO XXXV Dos passaros do paiz H: tambem muitos passares singulares ali. Uma especie cha- mada Uware Pirenge (146) tem seus pastes perto do mar ese aninha nas rochas, junto 4 terra. Tem o tamanho de uma gal- linha, bico compride ¢ pernas como as da garga, mas nfo tio com- pridas. As primeiras pennas que siem nos filhotes sio pardacen- tas e com ellas vdam um anno; mudam entio essas pennas e todo o passaro fica tao vermelho quanto possivel, e assim persiste. As suas Ppennas sio muito estimadas pelos selvagens. CAPITULO XXXVI Deseripgio de algumas arvores do paiz H: ali arvores a que os selvagens chamam Junipappceywa (147), Estas arvores dio uma fructa semelhante 4 maga. Os selvagens mastigam esta fructa, expremem o suceo em uma vasilha e se pintam eom elle, Quando o passam pela primeira vez na pelle, é como a agua; mas dahi a ponco, fica-lhes a pelle tao preta como tinta; isto dura até o nono dia e s6 entific é que se desmancha, e nunea antes deste tempo, por mais que se lave. (146) Gwora Pironge 6 do tupl — Dird-piranga, isto G: “‘o pasenro ver- melho". (Ibis Rubra). (147) Junipappeeywa, do tupi Genipapayba, a arvere do genipapo. 175 2 HANS STADEN CAPITULO XXXVII Como crescem o algodio e a pimenta do Prasil, e tambem algumas outras raizes mais, que os selvagens planiam para comer O ALgopio d& em arbustes da altura de mais ou menos uma braga; tem muitas ramas ¢, quando floresce, d& boties, que, uma vez maduros, se abrem e o algodio se v@ entio dentro dos ca- sules, ao redor de uns carocinhos pretos, que sao as sementes, as mesmas que s¢ plantam. Os arbustos estio cheios destes easulos. A pimenta da terra é de duas qualidades, uma amarella e ou- tra vermelha, mas ambas creseem da mesma maneira. Emquanto verdes, sio eomo o fructo da roseira de espinhos; sao pequenos ar- bustos mais ou menos de meia braga de alto e tem florinhas. Fi- cam muito carregados de pimentas, das que ardem na boca. Quan- do maduras, colhem-nas ¢ seccam-nas ao sol. Ha tambem uma es- pecie de pimenta miiida, nfo muito differente da ja mencionada, e que seccam do mesmo modo. Ha tambem umas raizes a que chamam Jeftiki (148), que tém bom gosto. Quando plantam estas, cortam-nas em pedagos peque- nos, e as enterram no chlo, onde brotam ¢ se estendem pela terra, como as ramas do lupulo, enchendo-se de tubereulos. DISCURSO FINAL Ao leitor deseja Hans Siaden a graca e a paz de Dens B onposo leitor: — Propositalmente descrevi esta minha via- gem e@ navegacio com a miaior brevidade, simente para eontar como, pela primeira vez, cai no poder dos povos barbaros. E para mostrar como, poderosamente e contra toda espectativa, o Salvador, nosso Senhor e Deus, todo poderoso, ainda maravilhosa- (148) Jettiki, do tupi — getica — a nossa batata indigenn. 176 VIAGEM AO BRASIL mente protege e eneaminha os seus fieis entre os poves impins e pagios, como elle sempre tem feito. EH tambem para que cada um * seja grato a Deus e confie nelle na desgraga, porque elle mesmo diz; “Invoca-me no tempo da necessidade, para que eu te salve, & tu me louvards, ete.” Agora muitos poderiio dizer que, si eu quizesse mandar impri- mir tudo que experimentei na minha vida e vi, teria de fazer um grande livro. & verdade; deste modo, teria eu tambem ainda muito que descrever; mas, este niio 6 0 caso, Eu estou certo de que o que me fez escrever este livrinho, j4 tenho sufficientemente demonstra- do, é que somos todos obrigados a louvar e agradecer a Deus que nos preservou desde as primeiras horas do nascimento até a hora pre- sente da nossa vida. Ainda mais: Posso tambem pensar que o con- tefido deste livrinho parega extranho a alguns. Quem tem culpa disso? Nio sou o primeiro e nao serei o ultimo a ter conhecimento de taes navegagées, terras ¢ povos. E nao hao de rir-se daquelies a quem isso aconteceu, nem daquelles a quem ainda pode acontecer. Mas pretender que aquelle que se quer libertar da vida para a morte esteja no mesmo estado de espirito que aquelle que esta longe e sé vé ou ouve dizer; isto cada qual que julgue melhor por si. E si todos os que navegam para a America tivessem de eair nas maos de inimigos barbaros, quem desejaria la ir? Mas disto estou certo, que muita gente honesta em Castella, Portugal, Franca e alguns de Antdorff, em Brabant, que tenham estado na America, hao de dar o testemunho de que tudo é como eu aqui o deserevo. Para aquelles, porém, que nao conhecem estas coisas, chamo em primeiro logar o testemunho de Deus. A primeira viagem que fiz 4 America, foi em um navio portu- guez, enjo capitio se chamava Pintyado e eramos tres allemfies a bordo. Um era de Bremen ¢ s¢ chamava Heinrich Brant; o segundo chamava-se Hans von Bruchhausen, e eu. A segunda viagem fil-a en de Sevilha, em Espanha, para o Rio de Platta, provincia situada na America e assim chamada. O capitao dos mavios chamava-se Don Diego de Senabrie. Nenhum i7T HANS STADEN allem&o havia nesta viagem. E depois de muitos labores, angustias ‘© periges, tanto no mar como em terra, durante dois annos, como j4 disse, naufragémos numa ilha chamada S. Vincente, perto da terra firme no Prasil, habitada por portuguezes. Ahi encontred um patricio, filho do bemaventurado Eobani Hessi, que me reeebew bem. Havia li mais um de nome Peter Risel, que era factor de negociantes de Antdorff, que se chamam os Schetz (149). Estes dois podem dar testemunho de como cheguei e como fui capturade por barbaros inimigos. Ainda mais. Os marinheiros que me resgataram dos selvagens eram .de Normandia, Franga. O capitao do navio era de Wat- tauilla, chamava-se Wilhelm de Moner, O piloto chamava-se Fran- coy de Schantz e era de Harflor (150). © interprete era de Har- flor e se chamava Perott.. Esta gente honesta (Deus Ihe pague na vida eterna) auxiliou-me, depois de Deus, para voltar 4 Franga. Arranjaram-me um passaporte, vestiram-me e me deram de comer. Estes podem dar testemunho onde me acharam. Embarquei depois em Dippaw (151), em Franca, e fui para Landen (152) na Inglaterra. Ali agentes de hollandezes souberam do capitio tudo o que me dizia respeito, Convidaram-me para ser seu hospede e me deram dinheiro para viagem. Depois naveguei para a Allemanha. Em

You might also like