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JPAL BIBLIOTECA CENTRAL ~ CAPITULO UM «SER E TEMPO» 1. NEOKANTISMO, FENOMENOLOGIA, EXISTENCIALISMO Ser e Tempo, a obra que em 1927! impés Heidegger a aten- 40 do mundo filos6fico e também da cultura nao espe- cializada, traz como epigrafe uma passagem do Sofista, de Platéo (244 a) em que se diz que,-apesar da aparente evidén- cia do conceito, o termo «ente» est4 muito longe de signi- ficar algo claro, que no necessite de ser indagado; como no tempo de Platio, também para nés a nocio de ser s6 é dbvia aparentemente, pelo que é necessdrio reformular 0 problema 1 Sein und Zeit, Halle, 1927: Tubinga, 1963", traducio italiana de Pietro Chiodi, Milio, 1953; edigao revista, Turim, 1969. A tradugio de Chiodi, publicada pela Primeira vez em 1953 fora apenas precedida pela tradugio japonesa (Téquio, 1930-40) e por uma tradugao espanhola (México, 1951). Nas citagdes ¢ na ter- minologia, vamos remeter-nos tle preferéncia para a primeira edicio ¢ nao para a segunda. Os termos introduzidos por Chiodi na primeira edicio (por exemplo, «" (com o qual, mesmo no que se refere 4 terminologia, nos remete para a nogio de «espirito vivente» da tese sobre Escoto) e a sua solugio esté aqui explicitamente vinculada (quando remete, em nota, para os paragrafos 5 e 6) com o préprio problema fundamental de Ser e Tempo. E a vinculagio nao vai num tnico sentido; isto é, tendo tropecado num determinado momento com o problema da historicidade, Heidegger reconhece que também esse problema pode encontrar solugio adequada apenas sob o ponto de vista de uma reformulacio ontolégica; mas mais fundamentalmente —€ isto explica o comprimento excessivo do par4grafo dedicado a Dilthey e a Yorck e das citagdes nele contidas — é preci- samente o fenémeno da historicidade e da «vida» que impée a reproposi¢ao do problema do ser. Que essa é realmente a situacio é demonstrado nao sé pelo caracter central que tem o tema e da historicidade em Ser e Tempo, embora aparentemente 0 tema se encontre ao longo de uma andlise ainda simplesmente «preparatéria», que nao se refere directamente ao ser, isto é, 0 homem; ao aparecimento desta problematica da historicidade do espirito vivente nos escritos de 1913-16 corresponde, e é 0 mérito particular da interpretagdo de Péggeler ter especialmente acentuado isso, um amadurecer da atencio pela facticidade e 0 concreto da vida por meio da reflexio sobre o pensamento cristo, reflexdo que ocupa um lugar dominante na indaga¢ao de Heidegger durante os anos que se seguem a Primeira 14 Veja-se were e Tempo, traducio citada, p. 575. 15 Ibid, p. 574. 16 Guerra Mundial. E nesta perspectiva que o nome de Kierkegaard adquire um sentido relevante. Em Ser e Tempo, Kierkegaard é considerado um pensador que «afirmou explici- tamente e penetrou com argticia o problema da existéncia como problema existentivo. Pelo contrario, a problemitica existencial é-Ihe tao alheia que Kierkegaard, relativamente as perspectivas ontolégicas, permanece completamente sob o dominio de Hegel e da filosofia antiga vista através desta>'’. Apesar de nao ter conseguido passar 4 problematica propria- mente existencial, Kierkegaard é explicitamente invocado em alguns pontos fundamentais do desenvolvimento de Ser e Tempo, no que se refere ao conceito de temporalidade”. Uma posigao andloga 4 de Kierkegaard assume S. Agostinho; embora 0 juizo a seu respeito no seja tao explicito como o relativo a Kierkegaard, também dele diz Heidegger que a sua andlise permaneceu geralmente a um nivel éntico’’; e também ele é referido a propdsito dos mesmos problemas centrais da angtistia e da fundamentagao da temporalidade. 16 Ibid., p. 357. Os adjectivos @existenziel e existenzial) fazem alusio & distingio entre o problema da existéncia como se coloca no seio da propria existéncia (Glo existentivos os problemas coneretos que encon- tramo’ e resolvemos dia apés dia em qualquer nivel ¢ até, como se vera, a deci- sio antecipante da morte) ¢ o problema da existéncia que se coloca ao nivel reflexivo e que poderiamos chamar 0 problema «sobre a existéncia>, «O pro- blema da existéncia s6 pode clarificar-se no préprio existir>. A compreensio de si mesmo que faz de guia neste caso chamamo-la existentiva [...]_O problema a seu respeito [a existéncia] refere-se, por sua vez, i discussio daquilo que cons- titui a existéncia, A analitica da existéncia tem o cardcter, nfo de uma compre- ensio existentiva, mas de uma compreensio existencial (ibid., pp. 66-67). A dis- tingdo, formalmente clara, complica-se todavia se tivermos em conta que 2 e os esquemas conceptuais que, através de todas as vicissitudes da hist6ria da filosofia, se mantiveram de algum modo dominantes no pensamento ocidental (recorde- -se que Kierkegaard, através de Hegel, se liga aos gregos) e sAo 0s mesmos que ainda nos determinam. Como veremos melhor no exame particularizado de Ser e Tempo, a insuficién- cia deste aparelho conceptual metafisico, que é substan- cialmente o mesmo desde Parménides até Hegel e Nietzsche, consiste no facto de conceber o ser como Vohandenheit, como simples-presenga. Eesta concepg¢ao do ser que torna impossi- vel pensar adequadamente o fenémeno da vida e da histéria. Dita concepgao esta também na base (como suposto nio problematizado) do neokantismo (e da fenomenologia husserliana; mas Heidegger s6 vera isto claramente mais tarde). E paralelamente a Ser e Tempo, Heidegger elabora uma interpretagio da Critica da Razdo Pura” que constitui uma clara polémica com o neokantismo: enquanto para os 22 Kant und Problem der Metaphysik, Bona, 1929; tradugao italiana de M. E. Reina, Milio, 1963. a a = neokantianos a obra de Kant se reduz essencialmente 4 fun- damentagao de uma teoria do conhecimento e, particular- mente, do conhecimento cientifico, Heidegger reivindica 0 caracter central do problema da metafisica num sentido muito diferente do que este termo tinha nas paginas finais da tese sobre Escoto. + Assim, definitivamente, o itinerario que leva Heidegger a levantar o problema do ser como o faz em Ser e tempo desenvolve-se entre dois pdlos: por um lado, a questao do «valor» do conhecimento que Heidegger retoma da polémica neokantiana contra 0 psicologismo e que, através do problema da verdade, da aplicagio das categorias ao objecto, etc., o aproxima dos grandes temas da tradigo metafisica (nos cursos dados depois de 1916, Aristételes ocupa uma posicao de pri- meiro plano); e, por outro lado, quer a origindria formagio religiosa que manifesta um claro interesse pelo Novo Testa- mento e pelos Padres da Igreja, quer o problema da histori- cidade e em geral da «vida» que encontra na cultura da época, levam-no cada vez mais radicalmente a pér em causa as nogoes de valor, de realidade, nogdes herdadas da metafisica. A fenomenologia, como vimos, representa para Heidegger, pelo menos ao principio, a sintese entre as exigéncias trans- cendentais do neokantismo e a reivindicagio do Leben (a vida), reivindicagio que Heidegger encontra viva em muitos aspectos da filosofia e da cultura de principios do século xx e dos anos posteriores 4 guerra. A originalidade da sua proble- matizagao talvez consista precisamente, como sugere Gadamer*, no facto de ter sabido pensar toda a tematica «irracionalista> que penetra a cultura da época sob 0 ponto de vista da exigéncia husserliana de uma <«filosofia como 23 Veja-se H. G. Gadamer, introdugio a Der Ursprung des Kunsrwerkes, op. cit. p. 105. 20 ciéncia rigorosa>. Quando se fala, no caso do pensamento heideggeriano, de «existencialismo» (termo que o proprio recusa e que hoje esté um pouco passado de moda, mas que conserva a sua legitimidade), ha que notar que a palavra nao indica o predominio exclusivo do interesse pela existéncia do homem relativamente a problematica propriamente metafisica; o problema central de Heidegger é 0 problema do ser. Existencialismo significa, por um lado, que este problema se repde dramaticamente devido 4 incapacidade da filosofia europeia da época (ainda dominada pela concepgio classica do ser entendido como simples-presenga) de pensar a histori- cidade e a vida na sua efectividade (pelo que toda a posigio que se remeta ao Leben, como efectivamente acontece na filo- sofia do século Xx, se reduz as formas de «irracionalismo» e significa, por outro lado, que a reposi¢io do problema do ser se pode efectuar apenas partindo de uma andlise renovada desse fenémeno que, precisamente por nao pensar-se dentro das categorias metafisicas tradicionais, nos obriga a p6-las em causa: o fendmeno da existéncia na sua facticidade. Apesar do aparente «cardcter abstracto» do problema do ser, 0 caminho que percorre Heidegger desde o neokantismo até 4 fenome- nologia e ao «existencialismo» representa um progressivo esforco de concretizar, esforgo devido ao qual se manifestam em primeiro plano as dimensées efectivas desse «sujeito» que, na perspectiva transcendental, se concebe sempre como © sujeito «puro». Mas «o espirito vivente é essencialmente espirito histérico». Na conexio muito estreita que se estabe- lece entre os dois problemas (0 problema da existéncia e o problema do ser), que reciprocamente se implicam, e nas consequéncias que disto se derivam, consiste a originalidade e significado especifico da problematizacao filosdfica heidegge- riana, nfo sé perante o neokantismo e a fenomenologia, mas também perante todo o pensamento do século xx. ay zt 2. O SER DO HOMEM COMO SER-NO-MUNDO A dificuldade que a metafisica tradicional encontra, com os seus prolongamentos também no pensamento moderno, para conceber a historicidade e a vida, devem-se, como indi- cA4mos e como se esclarecerd4 no exame de Ser ¢ Tempo, a que o sentido do conceito de ser se identifica sempre com a nocao da presenca, que também poderiamos chamar, com um termo talvez mais familiar, a objectividade. Num sentido exacto, é aquilo que «subsiste», aquilo que pode encontrar-se, aquilo que «se da», que esti presente; quanto ao mais, ndo é uma casualidade 0 facto de o ser supremo da metafisica, Deus, ser também eterno, isto é, presenga total e indefectivel. Pois bem, como é 0 ser histérico do espirito que nos obriga a re- examinar 0 nogao de ser, e como esta, numa simples andlise preliminar, se revela dominada pela ideia da presenca — pen- sada em relagao a uma especifica determinacio temporal -, a reformulagio do problema do ser é efectuada em relagio com o tempo. E isto realiza-se, como vimos, partindo de uma and- lise desse ente que o problema, nao sé no sentido de que, por ser irreductivel aos esquemas metafisicos tradicio- nais, o levanta, mas também no sentido de que explicitamente, ao apresentar o problema, se interroga sobre o sentido do ser. Ser e Tempo comega, assim, com uma anélise preparatéria do ser do homem’. Tal ser deve formar-se e estudar-se na sua 24 Convém ter presente a partir de agora a estrutura geral do Sein und Zeit, como a esboca Heidegger no parigrafo 8: indagagio do sentido do ser nio prescinde, mas exige que se submeta 2 andlise um ente especifico (0, homem); este ente € constitutivamente histérico de maneira que a indagacio no sentido do ser implica necessariamente também um aspecto das coisas, mas é 0 seu modo de dar-se mais origind- rio, o modo em que, em primeiro lugar, se apresentam na nossa experiéncia. Que as coisas sejam antes de mais instru- mentos, nao quer dizer que sejam todas meios que empreguemos efectivamente, mas sim que as coisas se nos apresentam, antes de mais, dotadas de certo significado relativamente 4 nossa vida e aos nossos fins. Este resultado corresponde ao que. j4 tinhamos descoberto sobre a existéncia entendida como caracterfstica essencial do Dasein. O homem esta no mundo sempre como ente referido as suas préprias possibilidades, isto é, assumindo-as, num sentido amplo, como instrumentos. Instrumento, neste sentido, é também a lua, que ao iluminar uma paisagem nos submerge num estado de espirito melancélico; e em geral também a contemplagio «desinteressada» da natureza insere sempre esta ultima num contexto de referéncias, por exemplo, de recordagées, de sentimentos ou, pelo menos, de analogias com o homem e suas obras. Tudo isto é muito importante, porque, pensando-o pro- fundamente, nos leva a pér em crise o proprio conceito de realidade como simples-presenga. A filosofia e a mentalidade comum pensam, desde ha séculos, que a verdadeira realidade das coisas é a que se apreende « com um olhar desinteressado que €, por exceléncia, o olhar da ciéncia e das suas medicdes matemiticas. Mas se, como se viu, 0 modo origindrio de as coisas se apresentarem na nossa experiéncia nfo é aparecerem como «objectos» independen- tes de n6s, mas darem-se como instrumentos, fica aberto o caminho para reconhecerem a prdpria objectividade das coisas como um modo particular de a instrumentalidade se 28 determinar. A objectividade € algo a que se chega (e sobre isto esté de acordo a propria metodologia cientifica), em vir- tude de uma operagio especifica, na qual se «deixam de lado» Os preconceitos, as referéncias, os interesses, para ver a coisa tal como € «em si». Mas esta operacio é todavia, inevitavel- mente, uma operago do homem, que este leva a cabo preci- samente com os olhos postos em certos objectivos precisos: a conexio das ciéncias objectivas modernas com a técnica nao necessita de ser documentada*. A simples-presenga revela-se aqui como um modo derivado da prestabilidade e da instru- mentalidade, que € 0 verdadeiro modo de ser das coisas". Com base em tudo isto pode entender-se facilmente grande parte do desenvolvimento ulterior da andlise existencial. Os passos dados até aqui mostraram-nos j4 como a simples- -presenca no sé é inadequada para pensar o ser do homem, mas é também um modo de ser sé parcial e derivado também das coisas diferentes do homem (dos entes intramundanos, como diz Heidegger). A simples-presenca € um modo em que _ as coisas se manifestam em relago com uma operacio precisa do homem; e, geralmente, as coisas no sio «em si» mas, antes de mais, est3o em relacdo connosco como instrumen- tos; 0 seu ser esta radical e constitutivamente em relagdo com © ser projectante do estar-af. Este é o primeiro passo para levar por diante uma revisao geral do-conceito de ser. As coisas sao, antes de mais, instrumentos; mas o instru- mento nunca esta isolado, sempre é instrumento-para. Isto significa que o instrumento, por ser tal, exige que se dé uma 30 Na esfera da’escola fenomenolégica, este tema ja tinha sido elaborado por Max Scheler, um pensador muito estimado por Heidegger especialmente em Vor Umsturz der Werte, Leipzig 1919; ver também Die Wissensformen und die Gesellschaft, ibi., 1926. 31 «A prestabilidade € a determinagiio ontolégico-categorial do ente tal como este é “em si”» (Sein und Zeit, tradugio citada, p. 145; 0 sublinhado é de Heidegger. 29 totalidade de instrumentos dentro da qual ele se define: «antes de meio individual, esta j4 descoberta uma totalidade de meios»*”. Nesta perspectiva, o mundo nio € soma das coi- sas, mas condi¢ao para que aparegam as coisas individuais, para que estas sejam. Apesar de tudo, ha que observar, e evi- dentemente nao num sentido temporal, que o mundo como totalidade de instrumentos esté primeira do que as coisas-ins- trumentos. Por outro lado, a totalidade dos instrumentos da-se apenas enquanto existe alguém que os emprega ou pode empregi-los como tais, enquanto é 0 estar-ai, para o qual os instrumentos tém q seu sentido, a sua utilidade. «Primeiro» que 0 mundo, ou na raiz do dar-se do mundo, como totalidade instrumental, esta o estar-ai. Nao ha mundo, se no existe o Dasein. Também é verdade que, por sua vez, o estar-ai nao é sendo enquanto ser-no-mundo; mas a mundanidade do mundo funda-se apenas na base do ser-ai, e nao vice-versa. Por isso, como se viu, o mundo é «uma caracteristica do pré- prio ser-ai». No que se refere 4s coisas, ser nfo significa, pois, em pri- meiro lugar, estar simplesmente-presentes, mas pertencer a essa totalidade instrumental que é 0 mundo. Este pertencer ao mundo pode definir-se ulteriormente com base numa ané- lise mais precisa do conceito de instrumento. Uma vez que estd sempre constituido em fungao de outro, o instrumento tem o caracter de referéncia. O instrumento refere-se nao sé ao uso especifico para o qual esta feito, como também, por exemplo, se refere 4s pessoas que 0 usam, ao material de que esta constituido, etc. Apesar de tudo, o instrumento como tal nao esté feito para manifestar tais referéncias;. esta feito para um certo emprego e n4o para fornecer estas diversas infor- magoes. Gontudo, hé um tipo de entes intramundanos utili- 30 zaveis em que o cardcter da referéncia, precisamente no sen- tido «informativo», nao é apenas acidental, mas também constitutivo: sao os signos. Heidegger nao fala aqui (pard- grafo 17 de Sein und Zeit) da linguagem, de que trata explici- tamente mais adiante. Mas, evidentemente, nao o faz porque aqui a anilise se dirige para a consideragdo da coisalidade das coisas, como entes intramundanos; ao passo que a linguagem esté mais directamente vinculada com os existenciais. Para entender quer a nocao heideggeriana de compreensio como constitutiva do ser-no-mundo, quer os desenvolvimentos da sua filosofia nos anos posteriores a Sein und Zeit e especial- mente os seus escritos mais recentes, convém ter em conta que aquilo que aqui se diz sobre o signo vale também e prin- cipalmente para o caso da linguagem. No signo, a utilidade coincide com a «capacidade de refe- réncia>, 0 signo nao tem outro uso sendo referir-se a algo. Assim, no signo revela-se de maneira particularmente clara o que em geral é préprio de todas as coisas intramundanas, isto é, a refer€ncia, no sentido da conex4o com outra coisa. Enquanto instrumentos, as coisas remetem constitutivamente para algo que nao sao elas prdprias. Mas, no signo, este cons- titutivo estar-em-relagdo apresenta-se em primeiro plano na identidade de prestabilidade e referibilidade. Por isso, o signo manifesta a esséncia de toda a coisa intramundana. Mas ha uum segundo sentido mais profundo em que o signo revela a mundanidade do mundo ec o ser das coisas. Efectivamente, de dizer-se que, se o mundo é a totalidade dos instrumen- s do homem, os signos so um pouco como as «intrugdes ra usar>-os ditos instrumentos. De facto, aprendemos usar as coisas nao tanto vendo-as usar ou usando todos os strumentos de que o mundo esté constituido, mas sobre- do através dos discursos que nos pdem ao corrente sobre 0 0 das coisas. Como se esclarecerd cada vez mais no desen- 31 volvimento da analitica existencial, o nosso ser no mundo nao é s6 ou principalmente um estar no meio de uma totalidade de instrumentos, mas um estar familiarizados com uma totali- dade de significados’. A instrumentalidade das coisas, de acordo com aquilo que dissemos, nao é sé o seu servir efec- tivo para fins, mas é de uma maneira geral o seu «valer> para n6s, num sentido ou noutro; mas as valéncias das coisas, que nunca se descobriram todas no seu uso efectivo, manifestam- -se através da linguagem e em geral através dos signos. Dispomos de um mundo mediante os signos e devido a eles estamos no mundo. «O signo é um ente éntico utilizdvel que, enquanto é este meio determinado, faz. ao mesmo tempo as vezes de algo que manifesta a estrutura ontoldgica da prestabilidade, da uti- lidade das referéncias e da mundanidade» (0 sublinhado é de Heidegger)*. Assim se chega a precisar a nocao de ser-no-mundo por meio da descoberta da instrumentalidade constitutiva das coisas e da descoberta do signo como coincidéncia de prestabilidade e referibilidade; ser-no-mundo significara agora nio tanto ter sempre relacao com uma totalidade de coisas-instrumentos, como ter j4 sempre familiaridade com uma totalidade de significados. A conexfo entre munda- nidade e significatividade prepara j4, como veremos, 0 aparecimento da linguagem em primeiro plano, ao longo da especulagao heideggeriana posterior; mas, entretanto, também é essencial aqui essa conexdo para entender a importancia central da nogao de compreensio na descrigio das estruturas existenciais do ser-no-mundo préprio do estar-af. 33 O nexo esta explicito na p. 165: a significatividade «constitui a estrutura do mundo». 34 Ibid., p. 159. 32 _ 4. A CONSTITUICAO EXISTENCIAL DO DASEIN Se o estar-af é ser-no-mundo, o resultado da andlise da mundanidade deverd reflectir-se também na determinacio das estruturas existenciais do Dasein. Isto é 0 que Heidegger chama a andlise do «*. Para o estar-ai ser no mundo equivale a ter originaria- te intimidade com uma totalidade de significados. Como vimos, o mundo nio lhe é dado primariamente como um junto de . Se, como vimos, as coisas, antes de mais, nao sio essas sim- ples-presengas, entaéo nem sequer se ‘pode pensar em sair da compreensao (ou precompreensao) do mundo que originaria- mente nos constitui, para encontrar directamente as coisas € verificar se as ideias que delas temos so vlidas ou nao. A impossibilidade de sair da precompreensao que j4 sem- pre temos do mundo e dos significados (uma vez eliminado o pressuposto do ser das coisas entendido como simples-pre- sen¢a) nao é algo negativo ou limitante, nao constitui a nossa propria possibilidade de encontrar 0 mundo. O conhecimento nao € um ir do sujeito para um «objecto» simplesmente-pre- 35 senga ou vice-versa, a interiorizagao de um objecto (originaria- mente separado) por parte de um sujeito originariamente vazio. O conhecimento é antes a articulagao de uma compre- ensao originaria em que as coisas esto j4 descobertas. Esta articulagao chama-se interpretagio (Auslegung): Nao tem sen- tido fazer a observacao de que, desta maneira, o conhecimento é apenas um movimento do sujeito no interior da propria «imagem do mundo» ja dada; nao estamos aqui no plano de uma redugio do conhecimento ou da filosofia a «visio do mundo»*, no sentido subjectivista do termo. O ser-no-mundo nada tem do «sujeito» de que fala muita filosofia moderna, porque esta nogio pressupée precisamente que o sujeito é algo que se contrapde a um «objecto» enten- dido como simples-presenga. O estar-ai nunca é algo de fechado de que ha que sair para ir ter com 0 mundo, antes de toda a distingao artificial entre sujeito e objecto. O conhecimento como interpretagio nao é o desenvolvimento e articulagio das fantasias que o Dasein, como sujeito individual possa ter sobre © mundo, mas sim a elaboragio da constitutiva e origindria relagdo com 0 mundo que o constitui. A ideia do conhecimento como articulagio de uma compreensio origindria é a doutrina do que Heidegger chama (juntamente com a tradi¢ao da teoria da interpretagio) 0 «circulo hermenéutico». Esse circulo pode parecer um circulo vicioso sob o ponto de vista de um ideal do conhecer que concebe o ser como simples-presenca. «Mas se neste circulo se vé um circulo vicioso e se pro- curamos evité-lo ou se, simplesmente, 0 “sentimos” como uma irremediavel imperfeigio, entende-se mal e por completo a 36 A afirmacio do mesmo conceito de Weltanschauung esta vinculada com 0 sub- jectivismo moderno que é apenas um correlativo da redugio do ser & objectivi- dade e é simples-presenga. Veja-se 0 ensaio sobre A época da imagem do mundo no vol. Sentieri interrotti (tadugio italiana de H , Francoforte, 1950), Florenga, 1968. 36 compreensio... 0 esclarecimento das condigées funda- mentais da possibilidade do préprio interpretar quanto as condigdes fundamentais da sua possibilidade. O importante nfo é sair para fora do circulo, mas per- manecer dentro dele de maneira justa. O circulo da compreensao nao é um simples circulo em que se mova qualquer forma de conhecer, mas sim a expres- sao da pré-estrutura (Vorstruktur) propria do Dasein»”. 5, A SITUACAO AFECTIVA E 0 ESTAR-LANCADO Na base da conexao de mundanidade e significatividade, a andlise do «ser-em» conduz, pois, ao reconhecimento de um primeiro grupo de existenciais: a compreensio, a interpreta- cdo (estreitamente ligada 4 compreensao relativamente 4 sua articulagio interna), a que se acrescenta o discurso (Rede) como a concretizagao da interpretagao*. Mas, tao originério como a compreensio e o discurso, de alguma maneira até mais radical, pois € o que permite passar 4 no¢ao de estar-lan- cado (nogao que continuaré a ser determinante ainda na segunda seccao de Sein und Zeit), é um terceiro existencial que Heidegger designa com o termo de Befindlichkeit” e que traduzimos por «situacao afectiva»®, mas que literalmente quer dizer o modo de se «encontrar», de se «sentir» desta ou daquela maneira, a «tonalidade afectiva» em que nos encon- tramos. 37 Essere e temps, tradugao citada, p. 250. 38 Ibid., pardgrafo 34. 39 Ibid., parigrafo 29. 40 Na nova edigo da sua tradugio italiana, Chiodi adoptou a expresso «situagio emotiva» (ver pp. 225 e segs.). Nos preferimos a expressio «situacio afectivan, que aparecia na 1." edigao, pelas raz6es indicadas na nota 1. 37 O Dasein, enquanto ser-no-mundo, nao sé j4 tem sempre certa compreensao de uma totalidade de significados, como tem sempre certa tonalidade afectiva; isto é, nao sé estio dotadas de um significado num sentido «tedrico», como tam- bém uma valéncia emotiva. Se a analitica existencial se quer acautelar do risco de privilegiar um aspecto do Dasein em detrimento de outros ~ e a filosofia comummente privilegiou 0 aspecto tedrico ou cognoscitivo — deve ter na devida conta a afectividade™. Nio se trata apenas de reconhecer os direitos da afectivi- dade juntamente com os da compreensio, devido 4 preocupa- cio de fazer uma anilise completa; a elaboracao do conceito de situagao afectiva leva Heidegger a dar um passo decisivo no desenvolvimento do seu discurso. Que o Dasein se encon- tre sempre e originariamente numa situagio afectiva nado é um fenémeno que «acompanhe» simplesmente a com- preensao ¢ a interpretacio do mundo; a prépria afectividade é ela mesma uma espécie de precompreensao ainda mais origi- néria do que a prépria compreensio. E verdade que em Sein und Zeit apenas se fala de uma cooriginariedade de situacio afectiva ¢ compreensio. Mas a nossa hipotese é legitima se pensamos, por um lado, que precisamente a situagio afectiva «abre o estar-ai no seu estar-langado»” (e agora ver-se-d a importincia central desta nogio) e, por outro lado, que o proprio encontro com as coisas no plano da sensibilidade s6 é possivel com base no facto de que o Dasein est sempre ori- ginariamente numa situagio afectiva”; por conseguinte, toda a relagao especifica com as coisas individuais (mesmo a com- preensio € a sua articulacdo interpretativa) é possivel em 41 Este interesse pela esfera afectiva do Dasein explica a estima que Heidegger sempre teve pelo pensamento de Max Scheler; ver O. Poggeler, op. cit, pp. 76-77. 42 Essere ¢ tempo, traducio citada, p. 232. 43 Veja-se também ibid., p. 230, O sublinhado é de Heidegger. 38 virtude da abertura ao mundo garantida pela tonalidade afec- tiva. «d tonalidade afectiva abriu jd sempre 0 Dasein ao mundo na sua totalidade, tornando assim possivel um dirigir-se para»*. A tonalidade afectiva, isto é, 0 modo originario de se encontrar ¢ de se sentir no mundo, é uma espécie de primeira «preensio» global do mundo que, de alguma maneira, funda a propria compreensio. No plano ontolégico fundamental, devemos con- fiar a descoberta origindria do mundo 4 simples tonali- dade afectiva». A intuigio pura, ainda que penetrasse nas mais intimas estruturas do ser do que esta simples- mente-presente, nunca poderia descobrir algo de ameacador®. Na parte final desta passagem, é evidente a polémica con- © transcendentalismo neokantiano e as tendéncias trans- lentais da prépria fenomenologia. E aqui que se torna nte a importancia do conceito de situagio afectiva no wolvimento do Sein und Zeit; esse conceito constitui um esso no caminho da «concretizacio» do problema do . preocupacdo que, como vimos, guia Heidegger nos anos formagio filoséfica. Se até aqui as estruturas do ser no poderiam fazer pensar ainda numa forma de trans- jentalismo no préprio Heidegger, agora este possivel fica desfeito. O ser-no-mundo nunca é um sujeito jue nunca é um espectador desinteressado das coisas s significados; o «projecto» dentro do qual o mundo ao Dasein nao é uma abertura da «razio» como tal 4 priori kantiano), mas sempre um projecto «qualifi- cado», definido, poderiamos dizer, «tendencioso». A afectivi- dade nao é um acidente das coisas como um aspecto suscepti- vel de ser distinguido e do qual se possa prescindir (num esforco de conhecimento desinteressado). Jé dissemos que o mundo nao seria acessivel se nao tivéssemos uma precompre- ensio dele como totalidade de significados; mas agora esta precompreensio revela-se-nos constitutivemente vinculada a uma tonalidade afectiva determinada. Enquanto a anilise se mantém ao nivel da compreensio e da interpretagio, o Dasein pode ainda talvez parecer semelhante ao sujeito kantiano. O que o distingue realmente é nao ser «puro» como a razao kantiana. E esta impureza surge da consideracao da situacio afectiva. A situacao afectiva revela o facto de o projecto, que cons- titui o Dasein, ser sempre um «projecto langado»*, e isto poe a claro a finitude do estar-ai. Com efeito, na situa¢ao afectiva, damos connosco a existir sem disso podermos, radicalmente, dar razdo. O estar-af € finito, j4 que o projecto sobre o mundo, que constitui 0 seu ser, nao é um pressuposto que ele possa «resolver» e cumprir, como queria Hegel. O mundo surge-nos sempre, originariamente, a luz de certa disposigao emotiva: alegria, medo, desinteresse, tédio. Todos os afectos singulares sio possiveis apenas como especificagdes do facto de o Dasein nao poder estar no mundo (e, portanto, as coisas nio se Ihe podem dar) a nao ser a luz de uma tonalidade afec- tiva, que, radicalmente, nao depende dele. Se a situagio afectiva é um aspecto constitutivo (nao ape- nas acidental) do nosso estar abertos ao mundo, vem imedia- tamente a constituir o préprio modo como se nos dio as coisas e, portanto, 0 modo como elas sao; e se, por outro lado, a situagao afectiva é algo que encontramos sem dela 46 Ibid., pardgrafo 31. 40 podermos dar razio, a conclusio sera que ela nos pde perante ‘© facto de o nosso modo origindrio de captar e compreender © mundo ser algo cujos fundamentos nos escapam, sem ser, por outro lado, uma caracterfstica transcendental de uma razio «pura», j4 que a afectividade é precisaménte o que cada um de nds tem de mais profundo, de mais individual e de mais cambiante. E principalmente sobre este tiltimo aspecto que Heidegger insiste, ao ilustrar 0 conceito de projecto langado. A caracteristica do ser do Dasein, de estar escon- dido no seu de onde e no seu onde e de estar tanto mais radicalmente aberto enquanto tal, € o que chama- mos 0 estar-lancado (Geworfenheit) deste ente no seu ai. A expresso estar-langado vem a significar a facticidade do ser entregue™. O estar-ai nao € o sujeito transcendental; é verdade que, como aquele, torna possivel o mundo devido a sua abertura; mas este estar aberto ao mundo nfo é, por sua vez, uma «estrutura» transcendental e pura; é um facto, um que, bem determinado e definido no caso de cada Dasein, facto que se manifesta na afectividade, como aspecto constitutivo do pro- jecto. O estar-ai €, pois, finito, apesar de ser 0 que abre e funda o mundo; é, por sua vez, langado a esta abertura, que no lhe pertence nem como algo de que ele possa dispor, mem como uma determinacio transcendental de todo o su- jeito como tal. Esta estrutura langada do Dasein é 0 que Heidegger chama a facticidade (Faktizitét) da existéncia*. Facticidade e Geworfenheit (estar-lancado) sao expressdes sin6nimas ,que pdem a claro o verdadeiro sentido da pre- -estrutura de que se falava na passagem a que nos referimos, A7 Ihid., p. 226. 48 Ibid., pp. 226-7. A quando aludimos ao circulo compreensao-interpretagao. O pre que se revela neste circulo, o facto de o conhecimento nao poder ser outra coisa senao a articulagio de uma precom- preensio em que o estar-ai ja se encontra sempre, € apenas a finitude constitutiva do Dasein. Ao sujeito puro neokantiano substitui-se um Dasein concretamente definido e, como se verd, também historicamente situado. 6. SER-LANCADO E DEFECCAO. AUTENTICIDADE E INAUTENTICIDADE Com 0 conceito de ser-langado chegamos ao micleo da temdtica mais propriamente «existencialista» de Heidegger, ao ponto que permite, apesar dos limites que apresenta a definicao, considerar que a sua filosofia pertence indis- cutivelmente a «filosofia da existéncia». A sua polémica contra o transcendentalismo neokantiano tem um sentido funda- mentalmente andlogo ao da polémica de Kierkegaard contra Hegel: trata-se sempre de reivindicar a finitude do estar-af contra concepgdes que consideram o homem como um puro olho voltado ao mundo. Também a rejeigio heideggeriana do conceito de simples-presenga assume aqui a sua justa dimensio; tal rejeigo destina-se a reivindicar uma dependén- cia idealista do mundo do eu; 0 ser como objectividade é negado precisamente porque € 0 correlativo de um concebido como puro olho, como espectador da verdade entendida como dar-se na presenga. Finitude e Geworfenheit significam o projecto, que € 0 Dasein, est4 sempre concretamente definido, como trans- parece da andlise da situagao afectiva. Ha um tipo de qualifi- cagio do projecto que Heidegger tematiza explicitamente ¢ que tem uma funcao fundamental em Sein und Zeit (mesmo 42 quando sobre esta questao surgem miultiplos problemas que provavelmente nao podem ser resolvidos dentro do dmbito da obra)”, trata-se da distincao entre existéncia auténtica e existéncia inauténtica. Esta distingio, que sé na base do conceito de finitude, a que agora se chegou, encontra uma primeira justificagdo, aparece em Ser e Tempo, j4 nas primeiras paginas e frequentemente aparece sempre de modo sintético sem nunca encontrar uma definicao em termos formalmente precisos. Nesta distingéo certamente que se oculta um dos niicleos problematicos que ficam pendentes depois de Ser e Tempo e que, subterraneamente, impulsionam o posterior desenvolvimento do pensamento heideggeriano. ‘Vimos que 0 estar-langado € a facticidade do Dasein, isto é, o facto de estar-ai ter j4 sempre um certo modo global de se relacionar com o mundo e 0 compreender, modo global testemunhado na situagao afectiva e na compreensao. Ora bem, como se actua concretamente para 0 estar-af, esta origi- naria posse de uma apreensio e compreensio preliminares e globais do mundo? Na quotidianidade média a que se atém a analitica existencial como seu ponto de partida, a compreen- sio preliminar do mundo que constitui 0 estar-af realiza-se como participacio irreflexiva e acritica num certo mundo hist6rico-social, nos seus pre-juizos, nas suas propensées e reptdios, no modo «comum» de ver ¢ julgar as coisas. Se nos perguntamos que significa concretamente o facto de o Dasein ter sempre uma certa compreensao do mundo, até emotiva- mente definida, a primeira resposta que encontramos é a de que, de facto, o estar-af encontra o mundo ja sempre & luz de certas ideias que respirou no ambiente social em que se encontra a viver. J4 observimos que o homem nao se prepara 49 Como bem viu P. Chiodi, L’esistenzialismo di Heidegger, Turim, 19557, que baseia nestes problemas toda a sua critica a Heidegger. 4B para usar 0 mundo, como totalidade de instrumentos, pro- curando empregar todos os instrumentos e, 0 que é mais importante, ouve falar deles. Com a ideia de mundo como totalidade de instrumentos vincula-se, pois, imediatamente o facto de o Dasein estar no mundo junto de outros, de ser-com. «O estar-ai é, antes de mais e geralmente, 0, “mundo” que 0 ocupa, € preocupa. Esta identificagio contém geralmente o cardcter de extravio na publicidade do “se” (man)*. Preci- samente porque na manipulagao das coisas o estar-af esta sempre junto com os outros, tem a tendéncia a compreender o mundo segundo a opiniio comum, a pensar 0 que se pensa, a projectar-se na base do anénimo se da mentalidade publica. Mesmo quando, concretamente dentro dos esquemas do se: «Afastamo-nos do “grande massa” porque se afastam dela. Achamos “escandaloso” 0 que se acha escandaloso»" (o subli- nhado é nosso). No mundo do «se» dominam a conversa sem fundamento, a curiosidade e 0 equivoco: a caracteristica comum de todos estes fendémenos é 0 facto de neles 0 estar-ai ter a impressio de «tudo compreender sem nenhuma apropriagao preliminar da coisa»’. As opinides comuns par- tilham-se, nio porque as tenhamos verificado, mas apenas porque sao comuns. Em vez da apropriagao originaria da coisa, verifica-se aqui a pura ampliagio e a pura repetic¢ao do que ja se disse®. Esta pertenca ao mundo do «se» nao é apenas um limite negativo e nao é algo que se possa imaginar evitar com uma decisio deliberada. « (ibid, p. 378). 52 Que significa este primeiro esbogo ontolégico da morte relativamente ao problema da totalidade do Dasein? Por um lado, a morte € a possibilidade mais peculiar e, por conse- guinte, mais auténtica (recorde-se 0 nexo auténtico-préprio, eigen-eigentlich do Dasein; por outro, uma vez que nunca pode experimentar-se como «realidade» (pelo menos, para mim, a minha morte), ela é auténtica possibilidade, isto é, possibili- dade que continua a ser permanentemente tal, que nunca se realiza, pelo menos enquanto o Dasein é. A morte é, pois, pos- stbilidade auténtica e auténtica possibilidade: nesta base revela-se a fungao que a morte tem em constituir 0 Dasein como um todo, no tinico sentido em que o Dasein pode ser um todo (que é, em ultima instancia, o sentido de uma totalidade his- toricamente coerente e em devir. Efectivamente, a morte, como possibilidade da impossibilidade de toda a possibili- dade, longe de fechar o estar-ai, abre-se as suas possibilidades da maneira mais auténtica. Mas isto implica que a morte seja assumida pelo Dasein de uma maneira auténtica, que seja explicitamente reconhecida por ele como sua possibili- dade mais apropriada. Este reconhecer a morte como possibi- lidade auténtica é a antecipagéo da morte, que nao significa um «pensar na morte», no sentido de ter presente que devere- mos morrer, mas equivale antes a aceitago de todas as outras possibilidades na sua natureza de puras possibilidades. A libertagao antecipadora pela propria morte liberta da dispersao nas possibilidades que se entrecruzam fortuitamente, de modo que as possibilidades efec- tivas, isto é, situadas aquém daquela possibilidade insuperavel, possam ser compreendidas e escolhidas autenticamente. A antecipagio abre a existncia, como sua possibilidade extrema, a rentincia a si mesma, dis- solvendo assim toda a solidificagdo em posigdes exis- tenciais alcangadas [...]. Posto que a antecipagio da 53 possibilidade insuperdvel se abre a0 mesmo tempo a compreensio das possibilidades situadas aquém dela, arrasta consigo a possibilidade da antecipagio existen- tiva do estar-ai total, isto é, a possibilidade de existir concretamente como poder-ser total>®. A antecipagio da morte identifica-se com 0 reconheci- mento de que nenhuma das possibilidades concretas, que a vida nos apresenta, é definitiva. Dessa maneira 0 Dasein nao se petrifica projectando-se «definitivamente> na base de uma ou outra destas possibilidades, mas permanece con- tinuamente aberto: sd isto Ihe garante o poder desenvolver-se para além de cada uma das possibilidades que vai realizando. Agora vé-se claramente em que sentido a morte de- sempenha uma fungao decisiva na constitui¢do do Dasein como totalidade auténtica: ao antecipar-se na propria morte, o Dasein j4 nao esta disperso nem fragmentado nas diferentes possibilidades rigidas e isoladas, mas assume-as como pos- sibilidades préprias, que inclui num processo de desenvol- vimento sempre aberto precisamente por ser sempre um ser-para-a-morte. A morte possibilita as possibilidades, fa-las aparecer verdadeiramente como tais, pondo-as assim na posse do Dasein, que nao se agarra a nenhuma delas de maneira definitiva, mas as insere no contexto sempre aberto do proprio projecto da existéncia. A partir de agora podemos afirmar que s6 ao antecipar a propria morte, que possibi- lita possibilidades, o estar-ai tem uma histéria, isto é, um desenvolvimento unitério para além da fragmentagio e da dispersio”. 66 Ibid., pp. 395-396. 67 Talvez seja vitil a distingio kierkegaardiana entre vida estética ¢ vida ética vida estética é simbolo a figura de D. Juan, da vida ética € simbolo 0 marido: 0 primeiro vive no instante e na descontinuidade; 0 segundo na continuidade de 54 JFAL BIBLIOTECA CENTRAL A autenticidade, que a analitica tinha descoberto, mas cujos cujos contornos apenas havia esbogado, adquire agora um ulterior cardcter definido. Vimos que uma das caracteris- ticas essenciais da existéncia inauténtica é a incapacidade de se apropriar das coisas na sua verdadeira esséncia de posssibi- lidades. Agora, a antecipagao da morte, que constitui o estar- -ai como um todo auténtico, proporciona a fundagio radical do facto de o Dasein auténtico ser tal, precisamente e apenas, enquanto se relaciona com o mundo em termos de possibili- dades. E de uma maneira geral, na andlise preparatoria da primeira secgio de Ser e Tempo, a autenticidade permanecia em suspenso e, de certo modo, «abstracta», pois ainda era principalmente a estrutura de fundo que a reflexio existencial descobre sé na inautenticidade do quotidiano. A nogao de antecipagao da morte pée a claro o que é, precisa e concreta- mente, a existéncia auténtica. Mas trata-se ainda, diz Heidegger, de uma descrigio da autenticidade ao nivel puramente existencial; trata-se de uma espécie de hipdtese ontolégica em que ainda nao sabe- mos se¢ a autenticidade tem um correlativo ao nivel 6ntico ¢ existentivo®. Substancialmente, agora que se precisou a nogao de autenticidade-totalidade mediante 0 conceito de antecipagao da morte, trata-se de ver se, no plano existencial, uma historia fundada precisamente numa decisio. Sobre isto, veja-se Kierkegaard, Aut Aut, tradugio italiana (parcial de R. Cantoni, Mildo, 1956; e © Disrio do sedutor (originariamente contido em Aut Aut), traducao italiana de A. Veraldi, Milo, 1955. Se a analogia de autenticidade e historicidade faz pensar em Kierkegaard, igualmente reveladora é a analogia entre fungio a que Heidegger atribui aqui 4 morte e a significacio que esta tem nas paginas da Fenomenologia do espirito de Hegel, dedicadas & dialéctica senhor-escravo. Para Hegel, é precisamente o medo da morte que leva a reconhecer ao escravo a sua essencial liberdade propria. Veja-se Fenomenologia della spirito, trad. italiana de E. Negri, Florenca, 1961, vol. 1, pp. 161-162. 68 Essere ¢ tempo, traducio citada, p. 399. Sobre o significado dos termos «exis- tentivo» e «6nticom, vejam-se as notas 16 e 18. 5S e nio no da reflexio filoséfica, mas sim na vida concreta, © ser-para-a-morte se apresenta como termo efectivo, de uma alternativa que o Dasein pode escolher. O problema é: Projectar-se-4 o Dasein sempre efectivamente neste ser-para-a-morte ou, na base do seu ser mais espe- cifico, pretenderd ao menos um poder-ser auténtico fundado na antecipagao”? Como ja aconteceu no caso da anilise da inautenticidade e do estado de dejecgao, também aqui o esforco de concretizar, no plano existentivo, os resultados da anélise existencial, tera nio s6 0 sentido de fornecer uma confirmacio de tais resulta- dos, mas abrird, além disso, o caminho a ulteriores e efectivos desenvolvimentos. A busca de uma possibilidade existen- tiva da antecipacio da morte leva Heidegger a elaborar uma doutrina completa da decisio, que implica o emprego de con- ceitos objectivamente «enredados»”, como os conceitos de consciéncia e de culpa, aos quais nos referimos na minima medida indispensavel para dar uma ideia da problematica final de uma segunda secgao de Ser e Tempo. Como ja se disse, 0 problema consiste em descobrir a possibilidade existentiva de um auténtico ser-para-a-morte. Na quotidianidade média, inauténtica e dejecta em que se apresenta o estar-ai, como € possivel a passagem 4 existéncia auténtica? Falta advertir aqui que, dada a distingdo entre exis- tentivo e existencial, nao se pode pensar que tal passagem possa ser provocada por alguma referéncia filos6fica 4 auten- ticidade. Teremos de ver que coisa, na existéncia quotidiana, torna possivel algo como «tornar-se auténtico» por parte do Dasein. A antecipacio da morte possibilita todas as outras 56 possibilidades, pois isto implica uma espécie de suspensio momentinea da adesio a essas possibilidades, supde, de certo modo, sair do emaranhado dos interesses peremptérios com que as ditas possibilidades se impGem na sua presenga efectiva. O estar disperso na adesao a esta ou aquela posssibilidade mundana constitui precisamente uma caracteristica de inau- tenticidade. Antecipar a morte nao quer dizer renunciar as possibilidades efectivas, e isto exige uma espécie de suspensio da adesio aos interesses intramundanos em que estamos dispersos. Ora, o que em linguagem comum se chama a «voz da consciéncia> constitui justamente esse fendmeno existentivo de que pode partir o «tornar-se o auténtico Dasein»”'. Essa voz nio diz nada que possa ser discutido ou comunicado e pode por isso afirmar-se que fala como 0 siléncio”. Essa voz limita-se a remeter 0 Dasein a si mesmo, o que significa que nio ordena contetidos precisos (nisto é andloga ao imperativo kantiano), pedindo apenas ao Dasein que assuma uma possibi- lidade concreta, nao porqur se faz assim, mas como possibili- dade prdpria. Posto que o estar-ai vive sempre primeiramente na dispersao e na autenticidade, a consciéncia fala «negativa- mente», no sentido de que é como um tornar presente ao Dasein uma culpa em que desde sempre se encontra. Na voz da consciéncia, anuncia-se-nos uma culpabilidade originaria do Dasein que nao é posterior a nenhum acto culpavel, mas antes constitui o fenémeno e a base da possibilidade de qual- quer culpa individual. Além disso, a culpa que a voz da cons- ciéncia pée a claro nao € s6 a dejecgao como tal, mas é 0 que funda a dejeecao, é 0 ser-langado. A negatividade a que sempre alude o conceito de culpa (uma culpa chama-se também comummente uma «falta») é a negatividade que caracteriza o estado de dejeccdo e que se manifesta na dejecgio da existén- cia quotidiana. Na chamada da consciéncia, 0 ser-lancado da existéncia inauténtica representa a situagio negativa e de dispersdo em que se encontra sempre o Dasein e da qual deve sair, reencontrando-se a si préprio. Mas a inautenticidade quotidiana funda-se no ser-langado: o ser-langado € algo em que nos encontramos sem o termos querido nem escolhido, portanto, numa situagdo de que importa tomar consciéncia. Heidegger resume todo este complexo raciocinio dizendo que a nulidade (negatividade) do Dasein, que a consciéncia apresenta com a nogio de culpa, € o facto de o Dasein ser 0 «fundamento de uma nulidade»”, Como estar-ai, ele é esse ente que esté na forma de poder-ser, isto é, que tem em si o seu fundamento; mas, por outro lado, enquanto langado, o Dasein nio pode dispor desse estado de dejecgio em que j4 desde sempre se encontra. Que resposta pede a voz da consciéncia? Como fala no modo do siléncio, escuté-la nao pode significar tomar nota do que se diz e ver depois como se deve proceder. A voz da cons- ciéncia s6 pode escutar-se respondendo-lhe, 0 que significa sair do anonimato do se para decidir-se «pelo préprio». A decisio implica que as possibilidades entre as quais esta dis- perso o Dasein inauténtico sejam escolhidas como préprias. Mas escolhé-las como préprias quer dizer ao mesmo tempo escolhé-las como possibilidades verdadeiras e em relagio com a possibilidade mais prépria, isto é, com a morte. A decisio que responde 4 voz da consciéncia, e que torna auténtico o estar-ai nao significa apenas assumir as dificuldades a respeito desta ou daquela possibilidade existentiva, mas 4 decisdo ante- cipada da morte. 73 Wid., p. 421. Com esta nogao de decisao antecipadora da morte se vin- cula o conceito heideggeriano de temporalidade, entendido como sentido do ser do Dasein. Enquanto antecipagao da morte, a decisio é uma auténtica possibilitagao das possi- bilidades, nao se petrifica em nenhuma realizdgao particular alcangada: tem um porvir, um futuro. Por outro lado, a decisio antecipadora da morte é uma safda do estado de inau- tenticidade: mas este estado é reconhecido como tal apenas na decisfo, que escuta a voz da consciéncia: neste sentido, a decisao, abrindo-se ao préprio futuro assume em si (reconhe- cendo-a pela primeira vez) a prépria culpabilidade, em que se encontra jd desde sempre e da qual deve sair. O ser-langado como ser culpavel é 0 passado do estar-ai. Com efeito, como vimos, a decisao antecipadora possibilita como possibilidades verdadeiras as possibilidades efectivas, faz ver concretamente tais possibilidades; mais ainda, faz que se apresentem ao ser. Para compreender o alcance desta fundamentagio hei- deggeriana da temporalidade (com as suas trés dimensdes: passado, presente e futuro) ha que ter em conta trés coisas: a) Antes de mais, que ela quer ser uma verdadeira fun- dagao da temporalidade como tal, e nao apenas pér a claro um «aspecto temporal do Dasein. Se, como defende Heidegger, nao podemos pensar nem o ente em geral, nem, sobretudo, o estar-af de acordo com o modelo da simples-presenga, também o tempo nao podera conceber-se como referéncia a esse sentido. O ente intramundano remeteu-nos para o estar-aij assim é evidente que nao é segundo o modelo do ente, mas do Dasein que poderemos encontrar as bases para conceber adequadamente 0 tempo que, de resto, sempre se subtraiu ao modo de pensar da meta- fisica. A metafisica, com efeito, sempre saltou por cima do problema da relagao ser-tempo ao conceber, pura e simplesmente, o ser como presenca; 59 b) Apesar de tudo, para Heidegger, nao se trata aqui de fundar a nogao de tempo na estrutura existencial do Dasein; 0 tempo nao foi do ente intramundano a nogio de ser, j4 que este ente vem ao ser na medida em que entra no projecto que o Dasein abre e funda, o que implica haver um transcender do ente por parte do Dasein, uma relagio deste com o ser, anterior e mais fundamental do que a sua relagao com 0 ente. Mas, como é que na base desta transcendéncia se pode constituir o discurso filoséfico que fala do ser? Heidegger dira mais tarde que Ser.e tempo ficou inter- rompido por insuficiéncia de linguagem’”, isto é, pela impos- sibilidade de desenvolver a indagagao dispondo apenas da lin- guagem filos6fica herdada da tradigio metafisica (dominada pela ideia do ser como presenga). Nesta dificuldade — que constitui o ntcleo, ainda positivo, de todo o ulterior desen- volvimento do pensamento heideggeriano — os dois proble- mas indicados na parte final de Sein und Zeit revelam-se radi- calmente unidos: a metafisica como heranga de uma linguagem e de um conjunto de esquemas mentais aparece 75 Ibid., pp. 618-619. 76 Ibid., p. 619. 77 Ueber den Humanismus, Fancoforte, 1949, p. 17 63 como 0 principal impedimento para passar da compreensao implicita do ser (que 0 estar-ai sempre tem) a uma compreen- sio filos6fica. Nestes dois termos da questao — significado e histéria da metafisica, compreensio do ser e linguagem apropriada, a tarefa que os resultados de Sein und Zeit propdem é posterior reflexao heideggeriana. 64

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