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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 14 HISTORIA DE UMA NEUROSE INFANTIL (“0 HOMEM DOS LoBos"), ALEM DO PRINCIPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS (1917-1920) TRADUGAO PAULO CESAR DE SOUZA RR CoMPannia Das LETRAS O INQUIETANTE (1919) THTULO ORIGINAL: "DAS UNHEIMLICHE”, PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGOV.5,N, 5/6, PP. 297-324. TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE Xi, PP. 227-68; TANBEN SEACH EM STUBIENAUSGABE W, PP 251-74, OINQUIETANTE! I E raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigagdes estéticas, mesmo quando a estética nfo é limitada a teo- ria do belo, mas definida como teoria das qualidades de nosso sentir. Ele trabalha em outras camadas da vida psiquica, e pouco lida com as emogdes atenuadas, inibi- das quanto 4 meta, dependentes de muitos fatores con- comitantes, que geralmente constituem o material da estética. Pode ocorrer, no entanto, que ele venha a inte- ressar-se por um 4mbito particular da estética, e ent&o este serd, provavelmente, um Ambito marginal, negli- genciado pela literatura especializada na matéri “O inquietante”* é um desses dominios. Sem diivi- da, relaciona-se ao que é terrivel, ao que desperta an- giistia e horror, e também esta claro que o termo no é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante. E licito espe- rarmos, no entanto, que exista um niicleo especial [de significado] que justifique o uso de um termo concei- : das Unkeinliche. Por raxBes que ficardo evi- texto, é desnecessirio chamar a atengo do li tor para a insuficigneia da traduglo desse termo, que é também 0 titulo do ensaio. Limitemo-nos a registrar as solugées adotadas emalgumas versbes estrangeiras deste ensaio (duas em espa «da Biblioteca Nueva ea da Amorrortu, a italiana da Boringhier 4 francesa da Gallimard ea Stondardinglesa): Lo siniestr, Lo omi= nos, I pertubante, Linguittane érangeeé, The uncanny. A prontin- do termo alemao &, aproximadamente, “unredinmlir’, endo esse “e” final pronunciado como o “j” espanhol. 89 OINQUETANTE tual especifico, Gostarfamos de saber que mticleo co- mum é esse, que talvez permita distinguir um “inguie~ tante” no interior do que é angustiante. A respeito disso nada encontramos nos minuciosos tratados de estética, que se ocupam antes das belas, su- blimes, atraentes — ou seja, positivas — sensibilidudes, de suas condigdes e dos objetos que as provocam, do que daquelas contratias, repulsivas, dolorosas. Do lado da literatura médico-psicolégica sei apenas de um trabalho de E. Jentsch, de contetido rico, porém nio exaustivo.' gadas ao momento atual," no pesqui grafia para essa pequena contribuigio, em particular a de lingua estrangeira, motivo pelo qual a apresento a0 leitor sem nenhuma reivindieagdo de prioridade. Jentsch tem inteira razio ao enfatizar, como uma di- ficuldade no estudo do inquietante, que a susceti de para esse sentimento varia enormemente de pessoa la- para pessoa, E 0 autor deste novo ensaio nfo pode se- no lamentar sua particular obtusidade nessa questio, quando uma extrema delicadeza dos sentidos seria apro- priada. Ha muito ele no conhece ou experimenta algo que poderia Ihe produzir a impressio do inquietantes primeiro tem de transportar-se para esse sentimento, lade dele. Entretanto, di- evocar dentro de si a possibil "Zur Psychologie des Unheimlichen”, Peychiatrisch-newrologis- che Wochenschrift [Semanirio Psiquiatrico-Neurol6gico], 0. 22/23, 1996, * Freud se rfere, naturalmente, a0 perfodo da Primeira Guerra Mun- dial, que aeabou no ano anterior 2quele em que escreveu este enstio. we DINQUETANTEL ficuldades desse género também pesam em vérios ou- tros dominios da estética; assim, nfo precisamos aban- donar a esperanga de achar casos em que a caracteristica «em questio ser reconhecida sem problemas pela maio- ria das pessoas. Podemos encetar dois caminhos agora: explorar que significado a evolugo da lingua depositou na palavra iunkeimlich, ou reunir tudo aquilo que, nas pessoas ¢ coi- sas, impressdes dos sentidos, vivéncias e situagbes, des- perta em nés o sentimento do inquietante, inferindo o caréter velado do inquietante a partir do que for comum, 2 todos os casos. Jé antecipo que os dois caminhos le~ ‘vam 20 mesmo resultado: 0 inquietante € aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é ha muito co- hecido, ao bastante familiar. Como isto é possivel, sob que condigées o familiar pode tornar-se inquietante, as- sustador, deverd ser mostrado nas paginas que seguem. Fago também notar que esta investigagao, na realidade, principiou pela reunidio de casos individuais, e somente depois achou confirmagiio no uso da linguagem. Mas na presente exposigio tomarei o caminho inverso. ‘A palavra alemi unfeimlich & evidentemente 0 opos- to de heimlich, heimisch, vereraut [doméstico, autéctone, familiar], sendo natural concluir que algo é assustador justamente por ndo ser conhecido e familiar. Claro que no 6 assustador tudo 0 que & novo e nio familiar; a re- lagio nao é reversivel. Pode-se apenas dizer que algo novo torna-se facilmente assustador e inquietante; al- gumas coisas novas so assustadoras, certamente nilo 3 Oo NOUIETANTE todas. Algo tem de ser acrescentado 20 novo e no fa- miliar, a fim de torné-lo inquietante. ‘Tudo somado, Jentsch limitou-se a esse vinculo do inquietante com 0 novo, o nio familiar. Para ele, acon digdo essencial para que surja 0 sentimento do inquie- tante é a incerteza intelectual. O inquietante seria sem- pre algo em que nos achamos desarvorados, por assim dizer. Quanto melhor a pessoa se orientar em seu am- biente, mais dificilmente terd a impressio de algo in- quietante nas coisas e eventos dele. Notamos facilmente que essa caracterizagao € in- completa, ¢ procuramos ir além da equagio inquie~ tante = nao familiar. Primeiro nos voltamos para ou- tras linguas. Mas os dicionérios que consultamos nada nos dizem de novo, talvez simplesmente porque nés mesmos somos de lingua estrangeira. De fato, adquirimos a impressio de que muitas linguas nao rém uma palavra para essa particular nuance do que éassustador.* Latin (segundo K. E. Georges, Kleines Deutsch- lateinisches Worterbuch, 1898): um local unheimlich — locus suspectus; em hora da noite unheimlich — intempesta nocte. GREGO (diciondirios de Rost e von Schenkl): Eevog—ou seja estrangeiro, estranho. inxs (dos diciondrios de Lucas, Bellow, Fltigel, Muret- Sanders): uncomfortable, uneasy, gloomy, dismal, uncanny, ghastly; de uma casa: haunted; de um individuo: « repulsive fillow. 2 Devo os extratos seguintes& gentileza do dr. Theodor Reik. a ‘OINQUIETANTEL wnancis (Sachs-Villatte): inguiétant, sinistre, lugubre, ‘mal d son aise. ESPANHOL (Tollhausen, 1889): sospechoso, de mal agiiero, lugubre, siniestro. O italiano e © portugués parecem contentar-se com ter~ mos que designariamos como parafrases. Em arabe e hebrai- co, “unkeimlick” equivale a “demoniaco”, “horripilante”. Retornemos entio a lingua alem’. No Dicionério da lingua alemd, de Daniel Sanders (1860), encontramos os seguintes dados sobre a palavea “wheimli- cA”, que aqui reproduzirei na integra e nos quais sublinharei uma ou outra passagem (¥. 1, 729) Heiniich, adj., (subst. Heimlichkeit,fem., pl. com en): também Heimelich, keimelig, pertencente & casa, no es- tranho, familiar, caro e intimo, aconchegado ete. (a) ou, tido como per- (ant.) pertencente & casa, & fami tencente, of latim familiaris, familiar. Os Heimlicken, os membros da casa; Der heimliche Rat. Gén. 4t: 45311 Sam. 35,2331 CrOn. 12, 255 Sab. 8, 45 agora mais comumente: Geheimer (ver d 1.) Rat [Conselheiro Privado], ver Heilicher — (6) de animais, domesticado, que se apro- -xima confiantemente ds pessoas. Anton. selvagem, p. eX. animais que nfo so selvagens nem Aeimlich etc. Eppendorf. 88; Animais selvagens [...] de modo que so criados A. ¢ habituados aos seres humanos. 92. Quando esses animaizinhos sio criados desde a infancia junto aos homens, tornam-se inteiramente A. ¢ amigiveis etc., Stumpf 6o8a ete. — Assim também: B bastante A. (0 ‘cegonha é, de cordeiro) ¢ come na minha mao. Holty; B om sa (QUIETANTE toda forma, um belo e &. (ver ¢) péssaro. Linck, Schl. 146. ver Héiulich 1, [doméstico} ete. — (0) confidvel, que lembra intimamente o lar; 0 bem-estat de uma tranquila satisfagio ete., de confortavel sossego ¢ segura protesio, ‘como 0 que se tem no interior da propria casa (cf. Gehewer [seguro]): Ainda the é 4. em seu pais, onde os estrangei- 105 derrubam seus bosques? Alexis H. 1, 1, 289. Para ela no era muito A. na casa dele. Brentano Wehm. 925 Numa clevada senda, umbrosa e A. [...], a0 longo do rumore- jante ¢ borbulhante riacho da floresta. Forster B. 1, 417. Destruir a Heimliohteir da terra natal. Gervinus Lit. 5, encontrar um lugarzinho tio intimo e h. 375. Foi Goa gracioso, agradével eA. 15, 9; Em tranquila H-keit, rodea- és o imaginévamos bem confortavel, bem do de cereas préximas. Haller; Uma cuidadosa dona de casa, que sabe criar uma deliciosa H-keir (Hiiuslichkeit [domesticidade}) com poucos meios. Hartmann Unst. 4, 188; Tanto mais A. pareceu-lhe entio o homem que hé pouco era tio desconhecido. Kerner 540; O's proprietd~ ros protestantes ndo se sentem A. entre os seus sicitos / cat6licos. Kohl. Tel. 1, 1725 Quando fica A. €levemes o silencio da noite espreita s6 a tua tenda. Tiedge 2, 5 Quieto, agradével e f., bem como eles/ Desejariam um lugar para o repouso. W. 11, 1445 Ele ndo se sentiu nada 4. quanto a isso 27, 170 etc. — Também: © local era tio tranquilo, tio ermo, tio umbroso-A. Scherr Pilg. 1, 1703 (© fluxo € refluxo das ondas, sonhadoras, acalentado- ras-h, Kémner, Sch. 3, 320 ete. — Cf. em particular Unf — Em eseritores sudbios e suigos, frequentemente com trés silabas: Como volton a ser Aeimelig para Ivo, quando Omguieranes estava deitado em sua casa. Auerbach, D. 1, 249; Naquela casa foi to heimelig para mim. 4. 3073 O aposento aque- cido, a tarde heimelig. Gotthelf, Sch. 127, 1485 Bis o que é verdadeiramente Aeimelig, quando o homem sente no proprio coragio como & pequenino, e como é grande 0 Senhor. 1473 Pouco a pouco ficaram confortéveis ¢ hei ‘melig uns com os outros. U. 1, 297; A cordial Heimeligkeit, 380, 2, 86; Em nenhum outro lugar me seré mais heime- lig do que aqui. 327; Pestaloz2i 4, 2403 Aquele que vem de longe [...] ndo vive inteiramente heimelig (Keimatlich, freundnackbarlich [como em casa, em boa vizinhanga]) ‘com as pessoas. 3255 A cabana em que/ tio heimelig, tio alegre/ [...] com frequéncia ele ficava com os seus. Reithard, 20; A corneta do sentinela soa tio heimelig da torre —e convida-me a sua vor hospitaleira. 49; Dorme- se ali na suavidade e calidez, mar samente heimelig. 23 ete. — Essa forma mereceria tornar-se generatizada, a fim de evicar gue esse bom termo caisse em desuso pela féeil confiesdo com 2 ef. ‘Os Zeck sf0 todos h. (2.)' H...? Que entende vocé por h...? — ‘Bem... com eles tenko a impres- sao gue teria com uma fonte encerrada ou um lago secado. Nio se pode passar ali sem achar gue a dgua poderia nova- ‘mente aparecer"Nés chamamos a isso un-h; voces, h. O gue 0 fax pensar que essa familia tem algo de acuta e ndo confid- vel? etc. Gutzkow R. 2, 61. — (d) (ver ¢) em especial na Silési legre, sereno, também se diz. do tempo, ver ‘Adelung ¢ Weinhold. — 2.oculto, mantido is escondidas, de modo que outros nada saibam a respeito, dissimulado, ef. Gebeim [secreto] (@.), apenas no novo-alto-alemio e em que nem sempre 35 DINQUIETANTE se distinguem precisamente, sobretudo na linguagem mais antiga, p. ex. na Biblia (J6 11, 6; 15, 83 Sab. 2, 2231 Cor. 2, 7 etc.), assim como H-keit em vez de Geheimnis {segredo]. Me. 15,35 ete», fazer, tramar coisas 4. (por trés de alguém); afastar-se A. [Furtivamente]; encontros, compromissos 5 olhar o infortinio alheio com 4, ale- git f., como se tivesse algo a gia; suspirar, chorar esconder; amor, caso amoroso, pecado h.; locais A. (que ‘a decéncia manda escondes), 1 Sam. 5, 6; 0 recinto h. (la~ trina). 11 Reis 10, 273 W. 5, 256 ete., assim como: © as- sento A. Zinkgraf 1, 2495 3, 753 Rollenhagen Fr., 83 ete. — Conduciu A. ante angat em foss0s, em H-keiten, Laomedon/ as éguas. B. 161 b etc. — Tanto dissimula- do, h. e maldoso para com senhores cruis [...] como aberto, livre, participante e solicito para com o amigo so- fredor. Burmeister gB 2, 1573 Voe? saberd o que tenho de mais h, e sagrado. Chamisso, 4, 563 A arte h. (a magia). 3, 2243 Onde tem de cessar a ventilagao piblica, comega a maquinaglo A. Forster, Br. 2, 1353 Liberdade € a sus- surrada sertha dos 4. conspiradores, 0 sonoro grito de guerra dos subversivos piblicos. G. 4, 2225 Uma santa, 2, atuagio, 155 Tenho raizes/ que so bem .,/ no solo profundo/ estou alicergado. 2, 1093 Minha A. perfidia [Ticks] (cf. Heimeiicke). 30, 3443 Se ele nfo recebe isso de modo aberto e escrupuloso, pode tomé-lo de maneira ‘he inescrupulosa. 39, 225 Fer construir, A. sigilosa- mente, telescépios acromaticos. 3753 A partir de agora, desejo que nada mais de A. exista entre nds. Sch. 369 b. —Revelar, tornas publica, trairas H-keiten de alguéms Urdir Hokeiten atris de minhas costas, Alexis, H. 2, 3, a6 Oo mouIETANTE! 265 3, 92; A. Hokeit e as intrigas por baixo do pano. jo meu tempo/ cultivava-se a H-keit. Hagedorn, Immerman, M. 3, 289; Apenas a mao do conhecimento, pode romper/ o impotente encanto da H-keit (do ouro oculto). Novalis, 1, 1693/ Diga onde o oculta {...] em ‘que lugar de reservada H-keit. Schr., 495 bs Voces, abe thas, que formam o selo das H-keiten (a cera para 0 la- cre). Tieck, Cymb., 3, 25 Versado em raras H-keiten (artes mégicas). Schlegel, Sh., 6, 102 ete.; of. Geheiinnis L. toragrss. Para compostos, ver 1 ¢, sobretudo para 0 antén. Unkeimlich: incOmodo, que desperta angustiado receio: Pareceu-the simplesmente un-h., espectral. Chamisso, 3, 258; As angustiadas, un-A, horas da noite, 4, 148; Ha muito eu jf sentia algo un-A., até mesmo apavorante. 2423 Agora comeca aficar un-A. para mim. Gutzkow R. 2, 825 Sente um pavor un-h, Verm. 1, 51; Un-k. ¢ hirto como ‘uma imagem de peda. Reis, 1,10; A neblina un-f., cha- mada de Hearrauch. Immermann M., 3, 2993 Esses jo- vens pélidos so wa-A. ¢ tramam sabe Deus 0 qué de rim, Laube, v. 1, 1195 Unk. chame-se a tudo o gue deveria _permanecer em segredo, oculto, mas epareceu. Schelling, 2, 2, 649 ete. — Ocultar 0 divino, rodea-lo de uma certa Un-keit 658 ete. — Inusual como antén, de (2.), como afirma Campe, sem abonagio. Nessa longa citagGo, 0 mais interessante para nos é que a palavra heimlizh ostenta, entre suas varias nuances de significado, também uma na qual coincide com 0 seu oposto, unheimdich. © que é heimlich vem a ser unheimli- a oINQuIETANTE. oh; ef. 0 exemplo de Gutzkow: “Nés chamamos a isso heimlich, voces, unheimlich”. Somos lembrados de que 0 termo heimlich néo é univoco, mas pertence a dois gru- pos de ideias que, no sendo opostos, slo alheios um 20 outro: o do que é familiar, aconchegado, e do que é es- condido, mantido oculto. Unheimlich seria normalmen- te usado como antOnimo do primeiro significado, nao do segundo. Sanders nada nos diz sobre uma possivel relagdo genética entre os dois significados. Nossa aten- gio é atraida, de outro lado, por uma observagio de Schelling, que traz algo inteiramente novo, para nés inesperado. Unheimlick seria tudo o que deveria perma- necer secreto, oculto, mas apareceu. ‘Um parte das dvidas assim despertadas é removida pelos dados que nos oferece 0 Dicioncirio aleméo, de Jacob e Withelm Grimm (Leipzig, 1877, 1v/2, pp. 874 59): Heimlich; adj, € adv. vernaculus, ocultus; meio-alto-ale~ mio heimelich, heimlich, , 874: em sentido algo diferent bem, sem medo” [...] 8) heimaick & também o local livre de fantasmas (...] P. 875:,8) familiar; amavel, confiante. 4. partir de heimatlich, hiiuslich {de terra natal, donnés~ ‘Sinto-me heimlich, ico] decenvolve-se oconceito de algo subtratdo aolhos esra- hos, oculto, secreto, conceito que se forma em variadas re~ lagoes P. 876 “A esquerda do lago ‘Acha-se um prado Aeinalich no bosque” 3 OINQUIETANTEL Schiller, Guilherme Tel, t, 4. [..-] de modo livre, e incomum no uso moderno da lin- gua [...] heimlich € agregado a um verbo expressando ocultamento: Ele me oculta heimlich em sua tenda, Salmos, 27, 5. ([-+-] locais Aeimlick do corpo humano, pu- denda {...] E os que no morriam eram feridos em locais heimlich, » Sam. 5, 12 (.+-]) 6) funcionérios que dio conselhos importantes ¢ sigilosos [gekeim ue haltende] em assuntos de Estado chamam-se “conselheitos secretos” [feimlicke réthe], sendo 0 adjetivo .] (Faraé) nomeia-o (a José) o conselheiro secreto, Gén., 41, 453 P, 878: 6, heimlich para o conhecimento, mi gorico: sentido hefmlick, mysticus, divinus, occuleus, f- substituido por geheim no uso atual: 10, ale- guratus, P. 878: em seguida heimlich & outra coisa, & algo subtrai- do 20 conhecimento, inconsciente [...] Mas heimlich também ¢ fechado, impenetravel & explora~ gio: “Vosé nao vé? Eles nao confiam em mim; temem o semblante heimlich de Friedlinder.” Schillet, Wallenseeins Lager, cena 2 9. O sentido de oculto, perigoso, que surge no niimero ante- rior, desenvolve-se ainda mais, de modo gue heimlich recebe 0 significado que normalmente tem unheimlich (formado a ‘partir de heimlich, 36, col. 874): “Sinto-me as vezes como ‘um homem que vagueia na noite e acredita em fantasmas, cada canto, para ele, é heimlich e horripilante”. Klinger, Teatro, 3, 298. 3 DO mouietanTE Portanto, heimlick & uma palavra que desenvolve 0 seu significado na diregio da ambiguidade, até afinal coincidir com 0 seu oposto. Unheinlick é, de algum ‘modo, uma espécie de heimlich. Mantenhamos esse re sultado, ainda nao muito bem esclarecido, juntamente com a definigdo do unkeimlich feita por Schelling. O exame individual dos casos do unkeimlick tornara com- preensiveis essas alusées. ‘Se agora passamos a examinar as pessoas ¢ coisas, im- presses, eventos ¢ situagdes que chegam a despertar em nés, com particular forsa e nitidez, a sensagio do inquietante, o primeiro requisito é escolher um bom cexemplo inicial. Jentsch pds em relevo, como easo pri vilegiado, a “diivida de que um ser aparentemente animado esteja de fato vivo ou, inversamente, de que uum objeto inanimado talver esteja vivo”, nisso invo- cando a impressio deixada por figuras de cera, autd- matos ¢ bonecos engenhosamente fabricados. Ele jun- ta a isso o sentimento inquietante produzido pelo ataque epiléptico e pelas manifestagées de loucura, por provocarem no espectador a suspeita de que processos automaticos — mecdnicos — podem se esconder por tris da imagem habitual que temos do ser vivo. Sem estarmos inteiramente convencidos dessa afirmasio do autor, vamos partir dela em nossa investigagio, pois logo depois ele nos lembra um escritor que, mais we DO mQUETANTE que nenhum outro, teve éxito em produzir efeitos in- guietantes. “Um dos mais seguros artificios para crier efeitos in- quietantes ao contar uma histéria”, escreve Jentsch, “consiste em deixar o leitor na incerteza de que de- terminada figura seja uma pessoa ou um autémato, ¢ isso de modo que tal incerteza nao ocupe 0 centro da sua atengio, para que ele nao seja induzido a investi- gara questio e esclarecé-la, pois assim desapareceria 6 peculiar efeito emocional, como foi dito. Em seus contos fantésticos, E. T. A. Hoffmann valeu-se desta ‘manobra psicol6gica repetidamente e com sucesso. Essa observagio, sem diivida correta, diz resp: sobretudo & narrativa “O Homem da Area", dos Contos noturnos (texceiro volume da edigo Grisebach das obras completas de Hoffmann), da qual saiu o personagem da boneca Olimpia, do primeiro ato da épera Contos de Hoffmann, de Offenbach. Mas devo dizer — ¢ espero que a maioria dos leitores da hist6ria concordem— que © tema da boneca aparentemente viva, Olimpia, nfo é 0 ‘nico nem o principal responsavel pelo efeito inompa- ravelmente inquietante da narrativa. Também no con- tribui para ele o fato de o proprio autor dar um ligeiro viés satirico ao epis6dio da boneca, usando-o para ridi- cularizar a superestimagiio do amor por parte do jovem, No centro da hist6ria acha-se um outro elemento, que ademais Ihe empresta o titulo, e que sempre retorna nas passagens decisivas: 0 tema do Homem da Areia, que arranca os olhos das criangas. omwouteTaNTE Essa histéria fantéstica tem inicio com as recorda- 0es de infancia do estudante Nathaniel, que, apesar de sua felicidade presente, no consegue afastar as lem- brangas ligadas & morte misteriosa e terrivel de seu amado pai, Em certas noites, a mie costumava mandar cedo as criancas para o leito, com a adverténcia: “O Homem da Areia vem ai!”; ¢, realmente, a cada vez 0 garoto ouvia os passos pesados de uma visita, que ocu- pava seu pai naquela noite. Quando perguntada sobre 0 Homem da Areia, a mie negou depois a sua existéncia, mas uma babi Ihe deu informag3o mais concreta: “E um homem mau, que aparece quando as criangas no querem ir para a cama e joga punhados de areia nos olhos delas, ¢ os olhos, eles pulam fora da cabega, san- grando, Entio ele os joga num saco e leva, na meia-lua, para alimentar os filhos, que esperam no ninho e tém icos redondos como as corujas, ¢ usam esses bicos para comer os olhos das eriangas malcriadas”. Embora o pequeno Nathaniel tivesse idade e enten- dimento bastante para rejeitar esses horriveis atributos dados 3 figura do Homem da Areia, o medo* que sentia dele firmou-se. Decidiu verificar que aparéncia tinha 0 Homem da Areia, e, numa noite em que novamente © aguardavam, escondeu-se no escrit6rio do pai. Re- ‘conheceu entio no visitante o advogado Coppelius, uma pessoa repugnante, da qual as criangas costumavam fu- gir, quando ocasionalmente era convidado para o almo- + No original: Angst, que pode sgnificar tanto “medo” como ‘angiistia” oe OINOUIETANTEI ‘50, ¢identificou esse Coppelius como o temido Homem da Areia. O autor jé nos deixa em diivida, no restante da cena, se estamos vendo 0 primeiro delirio do garoto possuido pelo medo ou um relato a ser tido como real no ‘mundo da narrativa. © pai eo visitante se acham ocupa- dos com um forno flamejante, © pequeno espido ouve Coppelius dizer: “Olhos aqui, olhos aquil”, deixa esea- par um grito e € agarrado por Coppelius, que quer por fragmentos de brasas em seus olhos, para jogi-los ento no forno. O pai intercede pelos olhos do filho. A expe- Higncia termina com um profundo desmaio e uma pro- longada doenga. Quem decide por uma interpretago racionalista do Homem da Areia no deixard de reco- nhecer, nessa fantasia do garoto, a duradoura influéncia daquela histéria da bab4. Em ver de gros de areia sto fragmentos de brasas que devem ser aplicados aos olhos dda erianga, a fim de faz@-los saltar. Por ocasiio de outra visita do Homem da Areia, um ano depois, o pai morre, vitimado por uma explosio no escritério; 0 advogado Coppelius desaparece sem deixar pistas. ‘Agora estudante, Nathaniel acredita reconhecer essa figura hortorosa de sua infancia num ético italiano am- bulante, Giuseppe Coppola, que na cidade universitaria cem que vive Ihe oferece barémetros e, apés sua recusa, dia: “BarOmetro no, barémetro ndo? Tem também tho bonito, olho bonito!”, O pavor do estudante é miti- gado quando se verifica que os tais olhos oferecidos sao apenas inofensivos éculos. Ele compra de Coppola bind culos de bolso, e com eles observa o apartamento do professor Spalanzani, do outro lado da rua, onde ve 36 OINQUETANTE Olimpia, a bela, mas enigmaticamente silenciosa ¢ imével filha do professor. Logo se apaixona por ela vio~ lentamente, e esquece a garota prosaica e sensata de quem esté noivo. Mas Olimpia é um autémato, do qual Spalanzani fez. as engrenagens e no qual Coppola — o Homem da Areia — inseriu os olhos. O estudante surge quando 0s dois mestres discutem por causa de sua obras 0 ético leva a boneca de madeira, sem olhos, eo mecini- co, Spalanzani, pega no chiio os olhos ensanguentados de Olimpia e os joga ao peito de Nathaniel, dizendo que Coppola os roubara deste. Nathaniel tem um novo aces- so de loucura, ¢ em seu delitio se unem a reminiscéncia da morte do pai e2 impressio nova: “Opa! Opa! Cireulo de fogo! Circulo de fogo! Rode, circulo de fogo! Alegre! Alegre! Opa, bonequinha de madeira, bonequinha bo- nita, rodel”. Com isso, langa-se sobre o professor, 0 “pai” de Olimpia, ¢ tenta estrangulé-lo, Vindo de uma longa e severa doenga, Nathaniel pare- ce enfim curado. Pensa em desposar a noiva que reen- controu. Certo dia, os dois estio passando pela cidade, na praca do mercado, sobre a qual a alta torre da prefeitura langa sua enorme sombra. A garota prope 20 noivo su= birem na torre, enquanto o seu irmao, que acompanha 0 casal, permanece embaixo. L4 em cima, a curiosa apari- fo de algo que se agita na rua chama a atengio de Clara. Nathaniel observa essa coisa pelos bindculos de Coppola, {que estavam em seu bolso, é novamente tomado pela lou- cura e, dizendo as palavras: “Rode, bonequinka de ma- deira!”, tenta langar das aleuras a garota. Chamado por seus gritos, o irmio a salva e corre com ela para baixo. La OINoUIETANTE cem cima o possesso grita, correndo de um lado para 0 outro: “Rode, circulo de fogo!”, palavras cuja origem co- nhecemos. Entre as pessoas que se juntam embaixo so- bressai o advogado Coppelius, que subitamente reapare- ceu, Podemos supor que a visio de sua presenga é que fez irromper a loucura em Nathaniel. Alguns querem subir, para dominar 0 possesso, mas Coppelius' ri: “Esperem tum pouco, logo ele desce por si”. Nathaniel para de re- pente, nota Coppelius e, gritando agudamente: “Sim! Otho bonito! Otho bonito!”, joga-se por sobre o parapei- to, Enquanto ele jaz sobre o pavimento da rua, a cabega ‘esmagada, o Homem da Areia desaparece na multidao. Essa breve sintese no deixar divida de que o senti- mento do inquietante liga-se diretamente & figura do Homem da Areia, ou seja, &ideia de ter os proprios olhos roubados, e de que uma incerteza intelectual, como a concebe Jentsch, nao tem relagio alguma com esse efei- to. A diivida quanto & natureza animada on inanimada, admissivel no caso da boneca Olimpia, nio importa nes- se exemplo mais forte do inquietante. £ certo que no inf cio o escritor produz em nés uma espécie de incerteza, no nos permitindo saber, claro que deliberadamente, se est nos levando ao mundo real ou a um mundo fantésti- co qualquer. Ele tem, notoriamente, o direito de fazer ambas as coisas, ¢ se escolhe para cendrio da narragio, por exemplo, um mundo povoado de espiritos, demdnios 5 Sobre a procedéncia do nome: cappella = crisol (as operagies ‘quimieas que vitimaram o pai); eappo = eavidade ocular (Segundo apontou.a sra. Rank). us ‘OINOUETANTE ¢ fantasmas, como faz Shakespeare em Hamlet, em ‘Macbeth e, num sentido diverso, em A tempestade e Sonko de uma noite de vero, temos de ceder e tratar como uma realidade 0 mundo por ele pressuposto, enquanto nos colocarmos em suas mios. Mas no curso da histéria de Hoffmann desaparece tal diivida, notamos que o autor quer fazer com que nés mesmos olhemos através dos culos ou bindculos do demonfaco 6tico, ¢ que ele pro- prio talves tenha usado pessoalmente um tal instrumen- to, Pois a conclusdo da narrativa deixa claro que 0 ético Coppola é realmente o advogado Coppelius ¢, portanto, também o Homem da Areia. ‘Aqui jf no entra em consideracio uma “incerteza intelectual”: sabemos agora que nao nos querem apre- sentar as fantasias de um louco, por trés das quais pode~ ‘mos reconhecer, com superioridade racionalista, as coi- sas tais como elas so — mas esse esclarecimento nao reduziu em nada a impressio do inquietante. Assim, a nogio de incerteza intelectual nfo nos ajuda a com- preender esse efeito inquietante ‘A experiéncia psicanalitica nos diz, por outro lado, que co medo de ferir ou perder os olhos é uma terrivel angiistia infantil. Muitos adultos @ conservam e, mais que qualquer outra lesdo fisica, remem a lesdo ocular. Nao hé o costume de dizer que uma pessoa cuida de algo como “a menina de seus olhos"? O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mi- 10s nos ensinou que o medo em relagZo aos ollios, o medo de ficar cego, éfrequentemente um substituto para o medo da castragio, O ato de cegar a si mesmo, do mitico crimi- noso Fedipo, é apenas uma forma atenuada do castigo da ue DINUIETANTE castrago, 0 tinico que lhe seria apropriado, conforme a k de Talo, Pode-se procurar rejeitar, pensando de maneira tacionalista, a derivagio do medo relacionado aos olfios do medo da castragao; acha-se compreensivel que um érgao precioso como os olhos seja guardado por um medo cor- sespondentemente enorme, que por tras do medo da cas- tragdo nao haja segredo profundo nem significado diverso. ‘Mas assim nao se leva em conta arelagio substitutiva entre colho e membto viril, manifestada em sonhos, fantasias nitos, endo se pode contrariar a impressdo de que um sen- timento bastante forte e obscuro dirige-se precisamente contra a ameaga de perder 0 membro sexual, e de que ape- nas esse sentimento confere ressondncia a ideia da perda de outros érgaos. Qualquer outra divida desaparece quan- do nos inteitamos, nas andlises de pacientes neuréticos, dos detalhes do “complexo da castracio”,"e conhiecemos 0 ‘enorme papel que ele tem em suas vidas psiquicas.. Nao aconselhatia a um opositor da concepgao psica- evocar justamente essa histéria de Hoffmann para sustentar a afirmago de que o medo relativo aos olhos & algo independente do complexo da castragio. Pois por que esse medo é af colocado em relagio intima nal ‘com a morte do pai? Por que o Homem da Areia sempre surge para perturbar 0 amor? Ele separa o dante de sua noiva e de seu melhor amigo, que é 0 irmao daquela to de amor, a bela boneca Olimpia, ¢ leva o proprio estudante ao suici estu- + sComplexo da castragdo”: Kastraionskomplexs ver nota ip. 28. ur o1wouieranre quando é iminente a sua feliz. unio com Clara, apés t®- -la reconquistado. Esses ¢ outros tragos da narrativa pa- recem arbitrérios e sem sentido, quando é rejeitado 0 nexo entre o medo relativo aos olhos e a castragio, € tornam-se plenos de significado ao substituirmos 0 Homem da Areia pelo pai temido, de cujas maos se espe- aque venha a castracao.* 4 A claboragio realizada pela fantasia do artista nfo embaralhou. (0s elementos de forma tal que no possamos reconstruir a sua oF Coppelius represen tam 0s dois opostos em que a ambivaléncia dividiu aimago pater ‘naj um ameaga com a cegueira (8 eastragio), enquanto 0 outro, 0 pai bom, intercede pelos olhos do filo. A parte do complexo mais, atingida pela repressio, o desejo de morte dirigido ao pai ri acha representagao na morte do pai bom, atribuida & Coppelius. A cessa dupla de pais corresponderio, no periodo em que é estudan= te, 0 professor Spalanzani ¢ 0 6tieo Coppola, 0 professor ja sendo ‘uma figura da série paterna, e Coppola sendo pereebido como {déntico ao advogado Coppelius. Assim como antes trabalhavam juntos diante do forno, constroem juntos a boneca professor é também chamado de pai de Olimpia, Essa boragio revelacos como cisdes da imago paterna, ou se, tanto 0 mecinico como 0 dtico sio pai de Olimpia e também de Naths- nel. Na cena de horror infantil, Coppelius, ap6s resolver nfo ce~ gar o menino, desatarraxou-the os bragos € a8 pernas, isto &, me- xeu nele como um mecénico numa boneca. Esse trago pe que extrapola a imagem que se tem do Homem da Are tum novo equivalente da castracio; mas ele também aponta para a identidade interior entee Coppelius ¢ sua contrapartida futura, 0 ‘mecinico Spalanzani, e prepara-nos para a interpretagio de a, Essa boneca autSmata nio pode ser outra coisa que a materia~ j2aglo da postura feminina de Nathaniel ante seu pai na primei infincia. Os pais dela — Spalanzani e Coppola — slo apenas no- vas edigies, reencarnagées da dupla de pais de Nathaniel; a frase de Spalanzani, incompreensivel de outro modo, segundo a qual os us OINOUIETANTE Entio ousaremos referir 0 elemento inquietante do Homem da Areia a angiistia do complexo infantil de cas- trago. Mas, surgindo a ideia de recorrer a semelhante ator infantil para [explicar] génese do sentimento in quietante, somos impelidos a considerar a mesma deri- -vagioo para outros exemplos do inquietante. No “Homem da Aceia” também se acha o tema da boneca aparente- mente viva, enfatizado por Jentsch. Segundo esse autor, uma condigio particularmente favoravel para a geragio de sentimentos inquietantes ocorre quando é despertada uma incerteza intelectual de que algo seja vivo ou inani- mado, e quando vai muito longe a parecenga do inani- ‘mado com o vivo. Naturalmente, no caso das bonecas nfo estamos longe do mundo infantil. Lembramo-nos de colhos de Nathaniel haviam sido roubados pelo para serem colacados na boneca, adquire entio si prova da identidade entre Olimpia e Nathaniel. Olimpia é, diga- mos, um complexo desprencido de Nathaniel, que se Ihe defronta ‘como uma pessoa; o dominio por esse complexo acha expressio ‘no amor a Olimpia, absurdamente obsessivo. Podemos chamar de 0 a esse amor, ¢compreendemos que quem a ele sueumbiu torne-se alheio 20 objeto real de amor. A justeza psicolégica da nogio de que © menino fixado 20 pai pelo complexo da eastragio ‘vem a ser incapaz do amor 3 mulher é mostrada por numerosas, ses de doentes, cujo teor € menos fantistico, mas quase t30 iste quanto a historia do estudante Nathan ET. A. Hoffmana fo filo de um casamento infeliz. Quando cle tinha trés anos de idade, seu pai abandonow a pequena familia «eanca mais tornow a viver com ela. Segundo os documentos ci- tados por E. Grisebach na introdugio biografica as obras de Hoff- ‘mann, a relagio com o pai sempre foi um dos pontos mais delica- dos da vida emocional do autor. 3p OINQUETANTE, que, na idade em que comega a brincar, a crianga nfo distingue claramente entre objetos vivos ¢ inanimados, ¢ gosta de tratar sua boneca como um ser vivo. Ja ouvi mesmo, de uma paciente, que ainda aos oito anos de ida- de ela estava certa de que suas bonecas adqui jam vida se as olhasse de determinada forma, o mais intensamente possivel. Também aqui, portanto, é ficil verificar 0 ele- ‘mas, curiosamente, no caso do Homem_ da Areia vimos o despertar de um velho medo infantil, e no da boneca animada nio se pode falar de angiisti garota ndo receava a animagio de suas bonecas, talvez as desejasse. A fonte do sentimento inquietante no seria, aqui, uma angiistia infantil, mas um desejo infantil ou to somente uma erenga infantil. Isso parece uma con- tradigio; possivelmente é apenas uma complexidade, que depois talvez seja titil & nossa compreensio. E.T.A. Hoffmann é 0 inigualavel mestre do inquie- tante na literatura. Seu romance O elixir do diabo traz toda uma série de temas a que se pode atribuir 0 efeito inquietante da histéria. © conteiido do livro é demasia~ do rico e intrincado para que tentemos resumi-lo. No final, quando o leitor & informado dos pressupostos da ago, que até entdo the foram ocultados, o que dat resul- ta nio & 0 esclarecimento, mas uma total perplexidade para o leitor. O autor acumulou demasiadas coisas seme~ Thantes; isso no afeta a impressio do todo, mas talvez a compreensio dele. Temos de contentarmo-nos em ex- trai os mais notdveis entre os temas de efeito inquietan- te, para investigar se também eles podem ser derivados 30 OINQUIETANTE de fontes infantis. Sio os do “sésia” ou “duplo”, em to- das as suas gradagbes ¢ desenvolvimentos; isto é, 0 sur~ gimento de pessoas que, pela aparéncia igual, devem ser consideradas idénticas, a intensificagdo desse vinculo pela passagem imediata de processos psiquicos de ‘uma para a outra pessoa — o que chamariamos de telepa~ tia —, de modo que uma possui também o saber, os sentimentos ¢ as vivéncias da outra; a identificagio com uma outra pessoa, de modo a equivocar-se quanto a0 proprio Eu ou colocar um outro Eu no lugar dele, ou seja, duplicagio, diviséo e permutagdo do Bu —e, en- firm, 0 constante retorno do mesmo, a repetigio dos mes- ‘mos tragos faciais, caracteres, vicissitudes, atos crimino- 05, ¢ até de nomes, por Virias geragdes sucessivas. © tema do “duplo” foi minuciosamente estudado por Otto Rank, num trabalho com esse titulo.' Ali so investigadas as relagBes do duplo com a imagem no es- pelho ea sombra, com o espirito protetor, a crenga na alma e o temor da morte, mas também é langada viva luz sobre a surpreendente evolugao do tema, Pois 0 du plo foi originalmente uma garantia contra o desapareci- mento do Eu, um “enérgico desmentido ao poder da morte” (Rank), e a alma “imortal” foi provavelmente o primeito duplo do corpo. A criagao de um ral desdobra- mento para defender-se da aniquilagZo tem uma contra- partida na linguagem dos sonhos, que gosta de exprimir a castragio através da duplicagio ou multiplicagio do simbolo genital. Na cultura do antigo Egito, ela impul- 5 O. Rank, “Der Doppelgiinger”, Jmago, v3, 1914. a ‘oINguetanTe sionou a arte de construir uma imagem do morto em material duradouro. Mas essas concepgdes surgiram no terreno do ilimitado amor a si préprio, do narcisismo primério, que domina tanto a vida psiquica da crianga como a do homem primitivo, e, com a superagdo dessa fase, o duplo tem seu sinal invertido: de garantia de so- brevivéncia passa a inquietante mensageiro da morte. A ideia do duplo no desaparece necessariamente com esse narcisismo inicial, pois pode adquirir novo teor dos estigios de desenvolvimento posteriores da li- ido, No Eu forma-se lentamente uma instncia espe~ cial, que pode contrapor-se ao resto do Eu, que serve & auto-observagio e & autocritica, que faz 0 trabalho da censura psiquica e torna-se familiar & nossa consciéncia [Bewupisein] como “consciéncia” [Gewissen].” No caso patolégico do delirio de estar sendo observado, ela tor- na-se isolada, dissociada do Eu, discernivel para o mé- dico, © fato de que exista uma instincia assim, que pode tratar o restante do Eu como um objeto, isto é, de que o ser humano seja capaz de auto-observasio, torna posst- vvel dotar de um novo teor a velha concepgao do duplo atribuir-Ihe vérias coisas, principalmente aquilo que a autocritica vé como pertencente ao superado narcisismo dos primérdios.* + Bm alemlo, Bewyfisein designa o estado da conse Gewissen, a consciéncia moral 6 Acho que, quando os poetas lamentam que duas almas habitem 6 peito humano, e quando os psicélogos populares falam da cisio do Eu no ser humano, eles t8m em mente essa divisio, que faz parte da psicologia do Bu, entre ainstincia eritica eo resto do Eu, 32 DO INQUIETANTE: ‘Nilo apenas esse contetido repugnante para a critica do Eu pode ser incorporado 2o duplo, mas também todas as possibilidades niio realizadas de configuracio do destino, a que a fantasia ainda se apega, ¢ todas as tendéncias do Eu que no puderam se impor devido a cireunstincias desfa- vordveis, assim como todasas decisdes volitivas coartadas, que suscitaram a ilusto do livre-arbitrio.? No entanto, apés assim considerar a motivagao ma- nifesta da figura do duplo, somos obrigados a admitir que nada disso nos torna mais compreensivel o elevado grau de inguietante estranheza que lhe é proprio, e nos- s0 conhecimento dos processos psiquicos patologicos nos leva a acrescentar que nada, nesse material, poderia explicar 0 esforgo defensivo que o projeta para fora do Eu como algo estranho. O cardter do inquietante pode proceder apenas do fato de 0 duplo ser criagao de um tempo remoro e superado, em que tinha um significado mais amigo. O duplo tornou-se algo terrivel, tal como os iio woposigio entre ou eo reprimidoe inconsciene, desven- dada pela psicailise.E certo que a diferenga um tanto apagada pelo fato de que, em meio iq ica do Eu, tackam-se primeiramente os derivado do reprimid. [James Stra- hey lembra que Freud havia abordado essa instinca citiea na parte ir da “Introdugto a0 narcisismo, de 1p, e que ela seria mpliada e denominada “ideal do Bu” (efeldeat) "Super-e (Cher teh) no capitulo nx da Pecologia dar masses (1921) €0 capi- tulo mde 0 Bue 0143925) 7 Em O esudanse de Prog, de HL. H. Evers, que fi o ponto de Partda para o enssio de Rank sobre o duplo, o heb promete & tmaia nfo mataro seu adversirio num duel. Mas no camino para O local do duelo enconra seu plo, que ja cuidou do adversiio, 38 DO mouieTaNTE deuses tornam-se demdnios apés o declinio de sua teli- gito (Heine, Die Gétter im Exil [Os deuses no exilio}) F ficil apreciar, seguindo o modelo do tema do du- plo, os outros distdirbios do Eu explorados por Hoff- mann. Sio um recuo a determinadas fases da evolugo do sentimento do Eu, uma regressio a um tempo em que o Eu ainda nfo se delimitava nitidamente em rela io ao mundo externo e aos outros. Creio que esses te~ mas concorrem para a impressio do inquietante, embo- ra seja dificil isolar a parte que tém nessa impressio, © fator da repeticao do mesmo pode néo ser admiti- do por todos como fonte do sentimento inquietante. Segundo observei, é indubitavel que, em determinadas condigdes ¢ juntamente com certas citcunstancias, ele provoca um tal sentimento, que também recorda 0 de- samparo de alguns estados oniricos. Em certa ocasiiio, ao andar pelas ruas desconhecidas e ermas de uma pe quena cidade italiana, cheguei a um lugar que niio me deixou em diivida quanto ao seu cardter. Havia apenas mulheres maquiadas nas janelas das pequenas casas, ¢ apressei-me em virar no cruzamento seguinte para aban- donat aquela rua. Mas, depois de vagar sem orientagio poralgum tempo, encontrei-me novamente ali, onde co- mecava a chamar a atengdo, e meu apressado afastamen~ t0 56 teve o resultado de que, por um novo rodeio, cat Entdo fui tomado por pela terceira vez no mesmo loe: tum sentimento que posso qualificar apenas de inquie~ tante, ¢ fiquei contente quando, tendo renunciado a ou- tras exploragdes, vi-me novamente na piazza de que ha- via partido antes. Outras situagées, que tém em comum a OINQUETANTEW. ‘com esta o retorno ni intencionada e dela diferem radi- calmente em outros pontos, também resultam na mesma sensacao de desamparo e inquietude. Por exemplo, se nos percemos numa floresta, talvez surpreendidos pela névoa, ¢, apesar de todos os esforgos em achar um cami- ho conhecido ou demarcado, sempre retornamos a um mesmo local, caracterizado por certa formacao. Ou quando, 20 andar num aposento escuro e desconhecido, & procura da safda ou do interruptor de luz, batemo-nos pela enésima vez contra um mével — algo que Mark ‘Twain, porém, exagerando grotescamente, transformou numa situago de irresistivel comicidade. Também com outra série de experiéncias notamos, sem dificuldade, que apenas o fator da repetico nfo de- liberada torna inguietante 0 que ordinariamente é ino~ fensivo, ¢ impde-nos a ideia de algo fatal, inelutével, quando normalmente falarfamos apenas de “acaso”. De modo que nao faz diferenga se, deixando 0 casaco no guarda-roupa de um teatro, por exemplo, recebemos um carto com determinado némero — 62, digamos —, ou se, embarcando num navio, vemos que a nossa cabine tem esse ntimero. Mas a impressio muda se os dois even tos, irrelevantes em si, sucedem um apés 0 outro e depa- ramos com 0 niimero 62 varias vezes no mesmo dia, se observamos que tudo o que é numerado — enderecos, quarto de hotel, vagio de trem etc. apresenta de novo esses algarismos, ou pelo menos uma numeragao que os contém. Achamos isso “inquietante”, e quem nao for impermedvel as tentagdes da superstigfo se inclinaré a atvibuir um significado secreto a esse obstinado retorno 3 OINQUETANTE de um ndimero, a ver nisso, por exemplo, uma indicagio dos anos de vida que Ihe cabem. Ou se alguém esté ocu- pado com as obras do grande fisiologista H. Hering, e recebe cartas de duas pessoas com esse nome no espaco de poucos dias, quando até entio jamais lidou com gente que tivesse tal nome. Um engenhoso cientista procurou, recentemente, subordinar os eventos desse tipo a certas leis, o que anularia a impressio de inquietante. Nao ouso decidir se foi bem-sucedido.* Como o efeito inquietante do retarno do mesmo pode remontar vida psiquica infantil é algo que posso apenas mencionar aqui, indicando para isso uma expo- sigdo detalhada, ja pronta, realizada em outro contexto. Pois no inconsciente psiquico nota-se a primazia de uma compulsdo de repeticZo vinda dos impulsos instintuais, provavelmente ligada 8 intima natureza dos instintos mesmos, ¢ forte o suficiente para sobrepor-se ao princi- pio do prazer, que confere a determinados aspectos da psique um carater demoniaco, manifesta-se claramente ainda nas tendéncias do bebé e domina parte do trans~ curso da psicanilise do neurdtico, As consideragbes an- teriores nos levam a crer que sera percebido como in- quietante aquilo que pode lembrar essa compulsio de repeticao interior. Mas parece-me que ja € tempo de abandonar essa questio, dificil de julgar, em todo caso, ¢ procurar ca- 8 P, Kammerer, Das Gesert der Sere [A lei da série}, Viena, 1919. * Referéncia a Além do principio do prayer, publicado em 1920. 36 OINQUIETANTE 0s indiscutiveis do inquietante, cuja andlise nos antori ze uma decisio final sobre a validade de nossa hipétese. No “Anel de Policrates”,’o anfitsifo se afasta com horror de seu héspede, porque observa que todo desejo do amigo é logo satisfeto, todo problema é imediata- mente solucionado pelo destino. O héspede tornou-se “inguietante” para ele. A explicagdo que ele proprio fornece, de que alguém demasiado feliz deve recear a inveja dos deuses, parece-nos ainda obscura, tem o sen- tido mitologicamente encoberto. Tomemos um outro ‘exemplo, retirado de condig6es mais simples. Na hist6- ria clinica de um nenrético obsessivo,"* contei que 0 doente havia feito um tratamento hidroterpico, com 0 qual melhorou bastante. Mas ele foi inteligente 20 no atribuir 0 sucesso & forca curativa da 4gua, e sim & posi- fo de seu quarto, que era vizinho 20 alojamento de uma amével enfermeira. Quando voltou aquele estabe- lecimento, pediu o mesmo quarto onde ficara na primei- +a vez, mas soube que jé estava ocupado por um senhor idoso, e exprimiu seu descontentamento com as seguin- tes palavras: “Que ele tenlia um ataque!”. Duas sema- nas depois, o senhor realmente sofreu um ataque. Para ‘meu paciente, essa foi uma experiéncia “inquietante”. A impressio do inquietante seria ainda mais forte se 0 tempo decorrido entre aquela manifestagio e 0 inciden- te fosse menor, ou se o paciente pudesse relatar numero- * Conhecido poema de Friedri ** “Observagées sobre um caso de neurose obsessiva” (O homem dos ratos], 1909, Gesammelte Werke v 30 DNOUIETANTE sas experigncias iguais. Na verdade, nio Ihe foi dific encontrar confirmagSes desse tipo, ¢ todos os neuréti- cos obsessivos que estudei podiam relatar coisas andlo- gas de si mesmos. Nao se espantavam em sempre depa- rar com uma pessoa na qual — talvez. aps um longo intervalo — tinham acabado de pensar. Costumavam receber, pela manhi, carta de um determinado amigo, quando na noite anterior haviam dito que dele nao rece biam noticias hé bastante tempo; e, sobretudo, era raro {que sucedessem casos de morte ou acidente que pouco antes nao lhes tivessem passado pela cabega. Costuma- ‘vam referir-se a tal situagao de maneira bem modesta, dizendo ter “pressentimentos” que “em ger mostra ‘yam-se corretos. ‘Uma das mais inquietantes e difundidas formas de superstigao é 0 medo do “mau-olhado”, que foi estu- dado a fundo por S. Seligmann, um oftalmologista de Hamburgo.’ A fonte desse medo parece ser conhecida. Quem possui algo valioso, porém fragil, receia a inve- ja dos outros, projetando sobre eles a inveja que senti- ria no caso inverso. Tais impulsos sfo revelados pelo olhar, mesmo quando tém negada a expresso em pala vras, ¢ quando alguém se destaca por caracteristicas evidentes, sobretudo de natureza indesejada, acredita- -se que sua inveja alcangard particular intensidade e sera convertida em ago. Teme-se, portanto, uma se- ereta intengio de prejudicar, e supde-se, por derermi- 9 S.Seligmann, Der Bove Blick und Verwandees [O maucolhado & coisas afins], 2 vols, Berlim, 1910 € 1911 38 COINQUIETANTE nados indicios, que esse propésito tenha forga para ser levado a efeito. Esses tiltimos exemplos do inquietante relacionam- -se ao principio que, recorrendo & expresso de um pa ciente, chamei de “oniporéncia do pensamento”. Agora jA nao podemos ignorar em que terreno nos achamos. A anélise de casos do inquietante nos levou a antiga con- cepgao do animnismo, que se caracterizava por preencher 0 mundo com espiritos humanos, pela superestimacao narcisica dos proprios processos psfquicos, a onipotén- cia dos pensamentos e a técnica da magia, que nela se baseia, a atribuigio de poderes magicos cuidadosamen- te graduados a pessoas ¢ coisas estranhas (mana), € também por todas as exiagdes com que o ilimitado nar cisismo daquela etapa de desenvolvimento defendia-se da inequivoca objegio da realidade. Parece que todos ‘nds, em nossa evolugio individual, passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos, que em nenhum de nds ela transcorreu sem deixar ves- tigios e tragos ainda capazes de manifestagio, ¢ que tudo 0 que hoje nos parece “inquietante” preenche a condigio de tocar nesses restos de atividade psiquica animista estimular sua manifestagio.” Este € 0 lugar para duas observacdes que conteriam to Cf parte i, “Animismo, magia e onipoténcia do pensamen- to", do meu livro Totem e tabu, de 1933, onde se acha a seguinte rota: “Parece que dotamos de cariter ‘inguietante’as impresses aque tenderiam a confirmar a oniporéncia do pensamento e a forma de pensar animista em geral, quando em nosso julgamento jé nos afastamos deles". w ‘OINQUIETANTE a esséncia desta pequena investigacao. Primeiro, se a teoria psicanalitica esta correta a0 dizer que todo afeto de um impulso emocional, nfo importando sua espécie, é transformado em angustia pela repressio, tem de ha- ver um grupo, entre os casos angustiantes, em que se pode mostrar que o elemento angustiante é algo repri- mido que retorna, Tal espécie de coisa angustiante seria justamente o inquietante, e nisso nao deve importar se originalmente era ele proprio angustiante ou carregado de outro afeto, Segundo, se tal for realmente a natureza secreta do inquietante, compreendemos que o uso da linguagem faga 0 heimlick converter-se no seu oposto, 0 unkeimlich (p. 340), pois esse unkeimlich nio é realmen- tealgo novo ou alheio, mas algo hé muito familiar 8 psi- que, que apenas mediante o proceso da repressio alheou-se dela, © vinculo com a repressio também nos esclarece agora a definigao de Schelling, segundo a qual 6 inquietante é algo que deveria permanecer oculto, ‘mas aparecen. Falta-nos apenas aplicar essa percepgio que adquiri- mos & explicagio de alguns outros casos do inquietante. Para muitas pessoas é extremamente inquietante tudo o que se relaciona com a morte, com cadaveres & com o retorno dos mortos. Ja vimos que em algumas linguas modernas a nossa expressio “uma casa unheim- liek” pode ser vertida apenas por “uma casa mal-assom- brada”, Poderiamos ter iniciado nossa indagagio com esse exemplo de Unkeimlichkeit, talvez 0 mais forte de todos, mas ndo o fizemos porque nele o inquietante esti muito mesclado ao horripilante, e em parte é por ele co- 360 DO INQUIETANTEIT berto, Mas em nenhum outro ambito nossos pensamen- tos e sentimentos mudaram to pouco desde os primér~ dios, 0 arcaico foi tio bem conservado sob uma fina pelicula, como em nossa relagio com a morte. Dois fa~ tores contribuem para essa imobilidade: a forga de nos- sas reagdes emotivas originais e a incerteza de nosso conhecimento cientifico. Nossa biologia ainda nao pode decidir se a morte & 0 destino necessario de todo ser vivo ou apenas um incidente regular, mas talver vel, dentro da vida. f certo que a frase “Todos os ho- mens sio mortais” vem apresentada, nos manuais de \égica, como exemplo de proposicio universal, mas para nenhuma pessoa ela é evidente, hoje, como outrora, ‘nosso inconsciente niio tem lugar para a ideia da propria mortalidade. As religides insistem em negar importin- cia a0 fato indiscutivel da morte individual e fazer pros- seguir a existéncia além da vida; 0s poderes seculares no acreditam poder conservar a ordem moral entre 08 vivos, se for preciso renunciar a outra vida que com- pense esta; em nossas grandes cidades anunciam-se pa~ lestras que devem ensinar como estabelecer contato com as almas dos mortos, e é inegavel que alguns dos melhores e mais finos pensadores, entre 0s nossos ho- ‘mens de cincia, acharam, sobretudo no fim de sua pro pria vida, que tal comunicagio nio impossivel. Se quase todos nés ainda pensamos como os primitivos esse ponto, nio é de suxpreender que 0 primitivo medo dos mortos ainda seja tio forte dentro de nés, ¢ esteja pronto para manifestar-se quando hé alguma solicita- io, Provavelmente ele possui ainda o velho sentido de x Do mguierante que 0 morto tornou-se inimigo do que sobrevive e pre- tende leva-lo consigo para partilhar sua nova existéncia, Considerando a imutabilidade dessa postura ante a morte, poderiamos antes perguntar para onde foi pressio, condigio necesséria para que o primitivo retor- ne como algo inquietante. Mas ela também subsistes re oficialmente, as chamadas pessoas cultas no mais creem {que os mortos venham a aparecer como espiritos, ligam © seu surgimento a condigdes remotas e raramente con- cretizadas, e a postura emocional ante a morte, origi- nalmente bastante equivoca e ambivalente, abrandou-se para as camadas superiores da vida psiquica, dando Iu- gar ao inequivoco sentimento da piedade. Restam apenas algumas coisas @ actescentar, pois com animismo, a magia e feitigaria, a onipoténcia dos pensamentos, a relagdo com a morte, a repeticao nfo in- tencional ¢ complexo da castragio nés praticamente esgotamos 0s fatores que transformam algo amedronta- dor em inquietante. ‘Também dizemos que uma pessoa viva é inquietan- te, € 0 fazemos quando the atribuimos mas intengdes. Nio basta isso, porém; é preciso igualmente que essas intengdes de nos prejudicar se realizem com a ajuda de forgas especiais. Um bom exemplo disso é 0 re”, essa inquietante figura da supersticZo latina, que Albrecht Schaeffer, com intuigio poética e profunda 11 Cf. “O tabu e a ambivaléneia”, em Totem e tabu. * Literalmente, 0 “langador” — de mi sorte ou mau-olhado, su- bentende-se. sa ONQUIETANTE compreenséo psicanalitica, converteu em personagem simpatico no livro Josef Montfort. Mas com essas for- {gas secretas nos encontramos de novo no terreno do animismo. £ 0 pressentimento de tais poderes ocultos que faz Mefist6feles tio inquietante para a piedosa Gretchen: Ela sente que sou um génio, sem divide, Etalvez até mesmo 0 Diabo.* © efeito inguietante da epilepsia e da loucura tem a ‘mesma origem. Os leigos vem nelas a manifestagao de forgas que niio suspeitavam existir no seu proximo, mas ue sentem obscuramente mover-se em cantos remotes de sua propria personalidade. De modo consequente ¢ psicologicamente quase correto, a Idade Média atribui todas essas manifestagdes patolégicas & ago de dem6- nios. E nfo me surpreenderia se a psicandlise, ocupan- do-se em desvendar tais forgas secretas, por isso mesmo se tornasse inguietante para muitas pessoas. Num caso ‘em que consegui — embora nio rapidamente — a re- cuperagio de uma moga que hi muitos anos estava doente, eu proprio escutei isso da mie da paciente, bas- tante tempo depois. ‘Membros seccionados, uma cabeca cortada, uma + No original: “Sie fl daft ik gang sicher ein Genie/ Viele wohl gar der Tefel Bin” (Goethe, Fausto 1, O jardim de Marta); c- tado por Freud com tma ligeira imprecisio (coger em vez de wohl _gar) que nio alterava o sentido. x6 Oo mouieTANTE iio separada do brago, como numa histéria de Haut, és que dangam sozinhos, como no mencionado livro de Schaeffer, tém algo de extremamente inquietante, sobretudo quando dotados de agio independente, como no iiltimo exemplo. J4 sabemos que essa Unheimlichkeie ‘vem da proximidade ao complexo de castracdo. Para al- {gumas pessoas, a ideia de ser enterrada viva por engano €a mais inquietante de todas. Mas a psicanilise nos en- sina que essa apavorante fantasia é apenas a transforma- ‘slo de uma outra, que originalmente nada tinha de pa- ‘vorosa, e era mesmo sustentada por uma certa lasc a fantasia de viver no ventre materno. Facamos ainda uma consideracio de natureza ge- ral, que a rigor ja se inclui no que dissemos sobre 0 animismo ¢ 0s superados modos de operagao do apa- relho psiquico, mas que me parece digna de uma énfa- se especial: que o efeito inquietante é facil e frequen- temente atingido quando a fronteira entre fantasia realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até ento viamos como fantastico, quando um simbolo toma a fungio eo significado plenos do sim- bolizado, e assim por diante. Nisso baseia-se boa parte da Unkeimlichkeit inerente as praticas magica. O que ha de infantil nelas, que também governa a vida psi~ quica dos neuréticos, é a excessiva énfase na realidade psiquica, em comparagtio com a material, um trago que se vincula & onipoténcia do pensamento. Durante ‘0 isolamento da Grande Guerra, caiu-me nas maos um niimero da revista inglesa Strand, no qual, em meio a 384 ‘OINQUETANTEN artigos um tanto supérfiuos, lium conto sobre um ca- sal jovem que se muda para um apartamento mobilia do em que se acha uma mesa de forma peculiar, com crocodilos esculpidos na madeira, Ao anoitecer, um odor insuportivel e caracteristico espalha-se pela casa, as pessoas tropegam em algo no escuro, acreditam ver algo indefinivel deslizando pela escada; em suma, d- -se a entender que, com a presenga da mesa, crocodi- los fantasmas assombram a casa, que os monstros de madeira adquirem vida no escuro, ou algo assim. Era uma histéria ingénua, mas o efeito inquietante que produzia era notavel, Coneluindo essa reunido de exemplos — certamente ainda incompleta — devo mencionar uma observagao da pratica psicanalitica, que, se niio se assenta numa for- tuita coincidéncia, traz uma bela confirmagao de nossa teoria do inquietante. Com frequéncia, homens neuréti- cos declaram que o genital feminino é algo inquietante para eles. Mas esse uieimlick & apenas a entrada do an- tigo lar [Heimat] da criatura humana, do local que cada ‘um de nés habitou uma veo, em primeiro lugar. “Amor & nostalgia do lar” [Liebe ise Heimivel], diz uma frase espi- rituosa, e quando, num sonho, pensamos de um local ou ‘uma paisagem: “Conhego isto, jé estive aqui”, a inter- pretagio pode substitui-lo pelo genital ou o ventre da de. O inquietante [unheimlich] é, também nesse caso, 0 que foi outrora familiar [Aeimisch], velho conhecido. O sufixo wn, nessa palavra, € a marca da repressio. 365 DINQUIETANTE Ml Ji durante a leitura das paginas precedentes terdo surgi- do diividas no leitor, as quais devemos agora permitir que se juntem e tenham expresso. Pode ser correto que 0 unheimlich seja o heimlich- heimisch [oculto-familiar] que experimentou uma re~ pressio e dela retornou, e que tudo inquietante satisfaga tal condigiio. Mas 0 enigma do inguietante nio parece resolver-se com essa selego do material, Bvidentemente nossa proposigio nfo pode ser invertida. Nem tudo que lembra impulsos instintuais reprimidos e modos de pensar superados da pré-histdria individual e dos povos 6 inquietante por causa disso. ‘Também no ignoramos que, para quase cada exem- plo que deveria demonstrar nossa tese, pode-se achar outro andlogo, que 0 contradiz. Assim, no conto “Historia da mio amputada”, de Haul, a mio cortada tem efeito certamente inquietante, algo que relaciona- mos a0 complexo da castragdo. Mas na narrativa que Herédoto faz do tesouro de Rampsinito, em que a prin- ccesa tenta segurar a mio do ladrdo mestre e este lhe dei- xa a mio amputada de seu irmfo, os leitores provavel- mente julgarao, tal como eu, nenhum efeito inquietante. No jue isso nfo provoca nel de Polferates” pronta satisfagio de desejos certamente nos parece to inquictante como ao rei do Egito. Mas os nossas contos tradicionais pululam de satisfagdes imediatas dos dese- jos, e 0 inquietante nao esta presente neles. No conto dos trés desejos, o cheiro saboroso de uma salsicha faz 366 ‘OINUIETANTE tH ‘uma mulher dizer que gostaria de uma assim. De ime- dato esta surge no seu prato. Aborrecido com a precipi- tagdo da mulher, o marido deseja que a salsicha Ihe fique pendurada no nariz. Bis que ela the pende entao do na~ riz. Isto pode impressionar, mas nio é minimamente inquietante. As fabulas colocam-se abertamente na po cao animista da onipoténcia dos pensamentos e dese- jos, ¢ eu no poderia mencionar uma fabula genuina em que algo inquietante sucedesse. Foi dito que é extrema- mente inquietante quando coisas, imagens, bonecas inanimadas adquirem vida, mas nos contos de Andersen 05 utensilios domésticos, os méveis, o soldadinho de cchumbo so animados, e nada est mais longe de ser in- quietante. Também nfo sentimos como algo inquietan- te que a bela estitua de Pigmaliao ganhe vida. ‘Vimos que a morte aparente e a reanimagio dos mor- tos so concepgdes bem inquietantes. Mas coisas assim também surgem habitualmente nas fabulas, Quem diia ser inquietante, por exemplo, que Branca de Neve abra novamente os olhos? Também o despertar dos mortos em histérias milagrosas, como no Novo Testamento, provoca sentimentos que nada tém de inquietante. O re~ tomo nfo intencional da mesma coisa, que nos produziy efeitos indubitavelmente inquietantes, presta-se a outros muito diferentes numa série de casos. Ja mostramos um_ exemplo em que foi usado para evocar 0 sentimento do cémnico, e casos assim podem ser multiplicados. Outras| vvezes age como reforgo etc. Além disso, de onde proce dea Unheimlichkeit do siléncio, da solidgo, da escuridio? Esses fatores nao remetem ao papel do perigo na génese so O NOUIETANTE do inquietante, embora sejam as mesmas condigdes em, que vemos as criangas manifestarem mais frequente- mente angiistia? E podemos de fato negligenciar 0 fator da incerteza intelectual, havendo admitido sua impor- taneia no cardter inquietante da morte? Entdo devemos estar prontos a aceitar que interve- nham, para que surja o sentimento inquietante, outras condigdes além das mencionadas, relativas ao contetido. Poderfamos dizer que com essas primeiras constatagdes acaba o interesse psicanalitico no problema do inquietan- te, €0 resto solicita provavelmente uma indagagio estéti- ca. Mas com isso abririamos as portas para a chivida acerca do valor que pode reivindicar nossa concepgio da origem do inquietante no familiar [Aeimisch] reprit ‘Uma observagio talvez nos aponte o caminho para a resolugdo dessas incertezas. Quase todos os exemplos que contrariam nossas expectativas foram tiados do éim- bito da fiegdo, da literatura. [sso nos convida a estabele- cer uma distingo entre o inquietante que é vivenciada e aquele que é apenas imaginado, ou sobre o qual se Ie. inquietante que se vivencia depende de condigdes, muito mais simples, mas abrange casos muito menos mumetosos. Creio que ele se enquadra plenamente em nossa tentativa de solugo, que sempre remonta a algo reprimido, ha muito tempo conhecido. Também aqui, no entanto, deve-se fazer uma relevante e psicologica- mente significativa diferenciagio no material, que per~ ceberemos melhor tomando exemplos apropriados. Consideremos 0 inquietante da onipoténcia dos pen- samentos, da imediata satisfagdo de desejos, das forgas CO INOUIETANTE I cocultas nocivas, do retorno dos mortos. inequivoca, nesses casos, a condigto para que surja 0 sentimento do inguietante. Nés — ou nossos ancestrais primitivos — jd tomamos essas possibilidades por realidades, estva- ‘mos convencidos de que esses eventos sucediam. Hoje dio mais acreditamos neles, superamos tais formas de pensamento, mas no nos sentimos inteiramente segu- ros dessas novas convies6es, as velhas ainda subsistem dentro de nés, & espreita de confirmagio. Quando acon tece algo em nossa vida que parece trazer alguma con- firmagio as velhas conviegdes abandonadas, temos @ sensagio do inquietante, que pode ser complementada pelo seguinte julgamento: “Entio é verdade que pode- ‘mos matar uma outra pessoa com o simples desejo, que ‘os mortos continuam a viver e aparecem no local de suas atividades anteriores!”, ¢ assim por diante. Quem, pelo contririo, livrou-se de forma radical e definitiva dessas conviegdes animistas, ignora o inquietante dessa espécie. A mais notivel concordéncia entre desejo ¢ sa tisfagdo, a mais enigmatica repeticao de experiéncias similares no mesmo lugar ou na mesma data, as mais enganadoras visdes € os mais suspeitos ruidos nao 0 confundirao, nao Ihe suscitardo um medo que se possa designar como “medo do inquietante”. Trata-se pura- mente de algo relativo & “prova da realidade”, de uma questo da realidade material." 12 Como também o cariter inquietante do duplo &desse tipo, sera interessante verificar o efeito da propria imagem, quando surge inesperadamence. Eenst Mach relata duas observagées assim em Analyse der Empfindungen [Anélise das sensagbes], 1900, p. 3 69 DOINOUIETANTE E diferente quando o inquietante procede de com- plexos infantis reprimidos, do complexo da castragio, da fantasia do ventre materno etc., mas as vivencias reais «que despertam esse tipo de sentimento inquietante nao sio muito frequentes. O inquietante das vivéncias per~ tence, em geral, ao primeiro grupo; para a teoria, no entanto, a diferenciagao dos dois € muito importante. No inguietante oriundo de complexos infantis no con- sideramos absolutamente a questo da realidade mate- tial, cujo lugar é tomado pela realidade psiquica. Trata~ -se da efetiva repressio de um contetido e do retorno do reprimido, no de uma suspensio da crenga na realidade desse contetido. Poderiamos dizer que num caso foi re~ primido um certo contetido ideativo, e no outro, a eren~ gana sua realidade (material). Mas essa sltima formula- Cerra veu espantourse consideravelmente a0 note que © r03t0 aque via era o seu; em outra oeasio, fez um juizo bastante desfa- sorivel de um suposto estranho que entrava no seu 6nibus: “Que professor dectépito esti entrando aqui!” — Posso contar um epi- Tadio semelhante, Visjava 86, n0 vagio de leitos de um trem, Gquando, numa brusca mudanga da velocidade, abriu-se a porta gue dava para o toaletevizinho e apareceu-me um velho senhor “Te pijamas e gorro de viagem. Imagine que ele tivesse ertado a {icegdo, 20 deixar o gabinete que fcava ente dois compa tos, €entrasse por engatio no meu compartimento, ¢ ergui-me paca expiear-Ihe isso, mas logo recone, perplexo, que ointru~ fo era minha prOpria imagem, refletida no espelho da porta de comunieagio. Ainda lembro que a figura me desagradou profsn~ ddamente, Portanto, em ver de apavorar-se com o duplo, os dos a ranto Mach como eu — simplesmente nfo 0 reconheveram Mas tlvez aquele desagrado fosse um vesigio da reagio arcaica que percebe 0 duplo como algo inguietante. omouieran do provavelmente amplia 0 uso do termo “repressio” além de sua fronteira legitima. Mais correto é levarmos em conta uma diferenga psicolégica que ai se pode veri- ficar, dizendo que a condigo em que se acham as cren- as animistas do homem civilizado € a de serem — em maior ou menor grau — superadas. Entdo a nossa con- clusio seria esta: o inquietante das vivéncias produz-se quando complexos infantis reprimidas so novamente avivados, ou quando crencas primitivas superadas pare~ ‘cem novamente confirmadas. Por fim, nio devemos deixar que 0 gosto por solugées escorreitas e exposigdes transparentes nos impega de admitir que nem sempre podem ser claramente diferenciados os dois tipos de in- quietante das vivencias aqui estabelecidos. Quando re- fletimos que as convicgSes primitivas relacionam-se a0s complexos infantis do modo mais intimo, neles de fato se enraizando, nao nos surpreenderemos de que esses ites tendam a se apagar. (0 inquietante da fieg0— da fantasia, da literatura —— merece, na verdade, uma discussio a parte. Ele é, sobretudo, bem mais amplo que o inquietante das vi- véncias, ele abrange todo este e ainda outras coisas, que no sucedem nas condigdes do vivenciar. O con traste entre reprimido e superado no pode ser trans- posto para o inquietante da literatura sem uma profun- da modificagio, pois 0 reino da fantasia tem, como premissa de sua validade, o fato de seu contetido néo estar sujeito a prova da realidade. O resultado, que soa paradoxal, & que na literatura néo € inguieeante muita coisa que 0 seria se ocorresse na vida real, ¢ que nela exis- mm OINoUETANTE. tem, para obter efeitos inquietantes, muitas possibilidades gue ndo se acham na vida. -Enere as muitas liberdades do criador literirio estéa de eseolher a seu bel-prazer 0 mundo que apresenta, de modo que este coincida com a realidade que nos é familiar ou dela se distancie de alguma forma. Nés 0 seguimos em qualquer dos dois casos. O mundo das fabulas, por exem- plo, abandona o terreno da realidade desde o principio e toma abertamente o partido das crengas animistas. Realizagdes de desejos, forcas ocultas, oniporéncia dos ‘pensamentos, animagao de coisas inanimadas, que sic tio comuns nos contos de fadas, no podem ter influéncia in quietante nesse caso, pois para que sua o sentimento in- uietante 6 necessirio, como sabemos, um confito de jul- gamento sobre a possibilidade de aquilo superado ¢ nfo mais digno de f€ set mesmo real, uma questio simples- ‘mente eliminada pelos pressupostos do mundo das fabu- las. Entfo os contos de fadas, que forneceram a maioria dos exemplos que contradizem nossa teoria do inquietan- te, ilustram a primeira parte do que dissemos, que no reino da fiegdo deixa de ser inquietante muita coisa que o seria se ocorresse na vida, Em relagfo &s fabulas hé ainda outros fatores, que logo mencionaremos. Os eseritores podem também criar um mundo que, embora menos fantastico que o das Fébulas, diferencia- se do mundo real pela incluso de seres espirituais supe riores, como demdnios ou fantasmas de mortos. Toda a natureza inquietante que poderiam ter essas figuras de~ saparece entio, na medida em que se mantém os presst~ postos dessa realidade pottica. As elmas do inferno de x” DINQUIETANTE IN Dante ou 0s espiritos que aparecem em Hamlet, Macbeth ou filio César, de Shakespeare, podem ser kigubres terriveis, mas no so mais inquietantes, afinal, do que 6 mundo jovial dos deuses de Homero, por exemplo. Nés adequamos nosso julgamento as condigbes dessa realidade fingida pelo poeta, ¢ tratamos espiritos, almas fe fantasmas como se fossem existéncias legitimas, tal como nés proprios na realidade material. Também nes~ se caso a Unheimlichkeie& excluida ‘A situag&o é outra quando 0 escritor, aparentemente, move-se no dmbito da realidade comum. Entio ele tam- bém aceita as condigGes todas que valem para a génese da sensagio inquietante nas vivencias reais, e tudo o que produz efeitos inquietantes na vida também os produ literdria. Mas nesse caso 0 esct x pode exacer- bar e multiplicar 0 inguietante muito além do que é pos- sivel nas vivéncias, ao fazer sobrevir acontecimentos que jamais — ou muito raramente — encontramos na reali- dade. Ele como que denuncia a superstigao que ainda abrigamos e acreditévamos superada, ele nos engana, 20 prometer-nos a realidade comum e depois ultrapassé-la Nés reagimos a suas ficgdes tal como reagiriamos a nos- sas proprias vivéncias; ao notarmos o engano, é tarde demais, 0 autor atingiu seu propésito, mas afirmo que nao alcangou pleno éxito. Fica-nos um seatimento de in- satisfago, uma espécie de desgosto pelo malogro tenta- do, como senti bem claramente apés a leitura de “A pro- facia” [“Die Weissagung”], de Schnitzler, e de outras hist6rias que flertam com 0 maravilhoso. Mas 0 escritor tem ainda um meio com 0 qual pode escapar a esse nos- x ‘OINoulETANTE. s0 protesto e, a0 mesmo tempo, melhorar as condigdes . Consiste em no nos deixar para atingir seu propé perceber, durante muito tempo, que premissas escolheu para o mundo por ele suposto, ou em retardar até o fim, com asticia e engenho, tal esclarecimento decisivo. No geral, porém, cumpre-se ai o que enunciamos: a ficgao ctia novas possibilidades de sensagio inquietante, que no se acham na vida. ‘A rigor, todas essas complicagées dizem respeito so- mente ao inguietante que se origina daquilo que foi su- perado, © inquietante que vem de complexos reprimidos é mais resistente, e permanece tdo inquietante na litera- tura —& parte uma condigtio — como nas vivéncias. O outro inguietante, advindo do superado, mostra esse cardter na vida e na obra que se situa no terreno da rea- lidade material, mas pode perdé-lo nas realidades fict/- cias, criadas pelo autor. E evidente que essas consideragdes no esgotam 0 tema das liberdades do escritor e dos privilégios da fic do em evocar ou inibir a sensagio do inquietante. Diante do vivenciado nos comportamos, em geral, de ‘maneira uniformemente passiva, sucumbindo & influén- cia do que sucede. Mas em relagdo ao escritor somos particularmente maledveis; por meio do estado de ani- ‘mo em que nos coloca, das expectativas que em nés sus cita, ele pode desviar nossos processos afetivos de uma diregdo e orienti-los para outra, e pode frequentemente obter, do mesmo material, efeitos bem diversos. Tudo isso é conhecido ha bastante tempo e provavelmente foi examinado a fundo pelos especialistas em estética. om Dmguieranre: Atingimos esse Ambito de pesquisa sem verdadeira in- tengo ao cedermos A tentago de explicar por que cer- tos exemplos contrariam nossa teoria sobre o inquietan- te, Retornemos, agora, a alguns desses exemplos, ‘Ja nos perguntamos por que a mao cortada na hist6- ria do tesouro de Rampsinito nao tem o efeito inquie- tante daquela do conto de Hauff. A questo parece ad- quirir mais importincia, agora que notamos a maior tenacidade do inquietante que provém de complexos re- primidos. A reposta nio é dificil. Na narrativa de Herédoto, atentamos mais para a asticia superior do la dro do que para os sentimentos da princesa. Ela bem pode ter experimentado a sensago do inquietante, e es- tamos dispostos a crer que tenha desmaiado, mas nada sentimos de inquietante, pois colocamo-nos no lugar do lado, nfo no dela. Em O dilacerado [Der Zerrissene], uma farsa de Nestroy, outras circunstincias nos impe~ dem a impressio do inquietante, quando o fugitivo, que se considera um assassino, vé o suposto fantasma da vi- tima se erguer de cada algapio que abre, e exclama, de- sesperado: “Eu matei somente um! Por que essa terrivel multiplicago?”, Nés sabemos o que ocorreu antes da cena, nfio compartilhamos 0 erro do “dilacerado”, e, por isso, tem para nds um efeito ircesistivelmente cOmi- co aquilo que deve ser inquietante para ele. Mesmo um ", como o da histéria de Oscar Wilde, “O fantasma de Canterville”, tem que abdicar de toda pre~ tensio de inspirar a0 menos pavor, quando 0 autor se diverte em ironizé-lo e deixar que trocem dele. De tal fantasma “te: maneira, no mundo da fiego, o efeito emocional pode om DEVE-SE ENSINAR APSICANALISE NAS UNIVERSIDADES?

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