Logica Simbolica Sabores PDF

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Gastmonowun: Cons & Ricontes A Logica e a Simbolica dos Sabores Tradicionais 1 comida, ses ehdigos, suas representaries suciais, Os hibites alimentares convo lingnageon que reflete géners, Janilia, reliido, identidade. A comensalidade cone forma de sociabilidade, Tao isso seri abardado neste texto ‘por nein de ums trabalho realizado pela autora'sobre a percepata da comida entre os colonas tento brasileivos do Rio Grande do Sul seus descendentes. Por ELLEN FENSTERSEIFER WOORTMANN DouTorA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UNIVERSIDADE DE BRASILIA UNIVERSIDADE DE BRASILIA e-mail: ellen@unb.br Este trabalho visa a analisar algumas dimensdes das representacdcs sociais sobre a comida, Como categoria fais como trabalho e terra cultural nuclante, a idéia de comida articul: . Em outro trabalho (WOORTMANN: WOORTMANN, 1997), foi deta Se No universo camponés com outras categorias, ‘ado como a igualmente ricas em significad classificagio da comida € parte de uma matriz cognitiva mais ampla e, como mostra Woortmann (1986), que os habitos de comer constituem uma linguagem que fala de outras coisas como género, familia, religido, identidade, ete. A comida, ou melhor, a comensalidade é também um meio de sociabilidade ¢ de tracar distingdes sociais. Eo que diz também Douglas (1972), quando confere & comida um status de codigo. “Se a comida 6 tratada como wm cidigo, as mensagens que ela eodifica serio encontradas no padrio de relagies socials que estan sendo expressas. A mensagen trata de diferentes graus de bierarguia, de incluso © exclusii, de fronteiras ¢ transagtes através de fronteiras ...) as eategorias de comida, por consegint cendificam eventos sociais, — 56 — Habitos Alimentares A percepcio da comida entre os colonos (camponeses) teuto-brasileiros do Rio Grande do Sul e seus descen- dentes, que serio o objeto de minha anilise, apresenta semelhangas com outras regides e tradicdes culturais do Brasil = como a oposicio entre comidas fortes ¢ fracas, Contudo, irei me limitar apenas ao grupo anteriormente mencionado. Os habitos alimentares sio produzidos pelo que Elias (1997) ¢ Bourdieu (1983) chamaram de Aabitus. Para 0 primeiro, o habitus consiste num saber social incorporado, introjetado no individuo ¢ nele sedimentado. Os padrdes alimentares socialmente incorporados formariam como que uma ponte entre a continuidade e a mudanca. Para Bour- dieu, 0 habitus consistiria em disposigdes internalizadas ¢ naturalizadas em relacio dialética com as priticas, Conjugan- do as duas proposiges, poder-se-ia dizer que o habitus forma os habitos. O gosto relative & comida sofre mudangas no tempo e no espaco, Assim, as inovagdes tecnolégieas, as mu- dancas sociodemogriticas, novas concepsbes de saiide e de percepcio do corpo conduziram a transformagdes nos padres alimentares daqueles colonos e de seus descendentes urbanizados. A tradigao, contudo, nao foi abandonada, ‘© as mudangas parecem constituir mais adaptacoes & modernidade do que alteragdes radicais. Assim, como sera visto, se a comida tradicional teuto- brasileira cotidiana sofreu alteracdes, ela foi ressignificada, Retida na memoria, ela foi revalorizada como comida ritual das festas em que os lacos de parentesco sao reforgados e as raizes familiares € émicas sio atualizadas. Esse cariter de ‘dentidade portétil representado pela gastronomia também se faz presente, por exemplo, entre nipo-brasileiros (WOORTMANN, 1995), que aos domingos, em reuniiio familiar, comem a comida tradicional japo- nesa, ¢ entre italo-brasileiros (OLIVEIRA SANTOS, 2004). Como afirma Dutra (1991): “O praladar muitas veges 0 tiltimo a se desnacionalizar, a perder a referéncia da cultura original. A eulindria é por sua caracteristica de portable [..} que ela pode cata com nm dos referencias do sentimento de identi se tornar referencial de identidade em terras estranhas.” Cabe aqui também a afirmagao de Lucien Fébvre de que era fundamental analisar a sociabilidade e a ritualizacio da vida cotidiana, Nesse sentido, Lavaggi e Martinelli (2004) observam que: nee GastRonomia: Cortes & RECORTES “La gastronomia [-.} es portadora de la cultura de una comunidad. La que se sirvey ka manera en que se hace es un rasgo distintvo que diferencia a um grupo cultural de otro y constituye un vebicula de comu. nicacion.”” Comida distingue-se de alimento. Ambas as nocdes sio socialmente construidas ¢ devem ser percebidas em seu contexto, Ainda que sejam préximas, no se confundem. Basta lembrar que quando vamos a certo tipo de restaurante desejamos comer comida italiana, comida balinesa, etc. ¢ no alimento italiano ou alimento balinés. Alem disso, a categoria ali- mento refere-se a um rir a ser, a algo que podera potencialmente ser consumido. Para que 0 alimento se torne comida ele deve, normalmente, sofrer um processo de transformacio qualitativa, realizando a passagem do plano da natureza para o da cultura pela via da culindria. Camponeses, sejam os colonos do Sul ou 0s sitiantes do Nordeste por mim estudados, nio se referem a comida dos animais, mas a0 alimento des animais, Referem-se ao que esta sob 0 dominio simbélico/produtivo do pai de familia, isto é, aquilo que diz respeito a0 rogado € que permanece no plano da natureza. Ese referem a comida da familia quan- do designam aquilo que passou do dominio do pai de familia para 0 dominio simbélico ¢ reprodutive do consumo humano gerenciado pela mic de familia - é na cozinha que alimento (natureza) se transforma em comida (cultura). Quando falam no alimento da familia estao se referindo Aquilo que ainda esta in natura, seja embaixo da terra, como a mandioca, ou no paiol, como o milho. Nem todo alimento se transforma em comida. Existem aqueles que sio exclusivos para o mundo animal, como a palma, no Nordeste', simbolicamente afastados do consumo humano. Em um caso por mim observado em Hon- duras, logo apés a catistrofe inflingida em 1999 pelo furacio Mitch, alguns donativos nao foram accitos pelas vitimas porque nao se enquadravam em sua classificacio relativa ao consumo humano®. E existem também os alimentos proi- bidos, como aqueles que fazem parte das abominagies do Leviticus, ow outros, como, por exemplo, no Rio Grande do Sul, (© mucum, no. comido por sex um bicho exquisit; & do mar e ndo é peixe, parece cobra. 1. Anndo-observincia dessa classiicapso, aliada a outs fatos, expica 0 fracasco de projlos volados para a melhor do estado nuricional de populagdes ‘carentes, Mesmo em periode de seca prolongads houve recusa de consumo da palma, embora esla seja, segundo pesquisas de laboratorio, muto muti. 2. Segundo 0 depoimento de uma representante de organism internacional de socorro és vitias do desaste, duas variedades de feijéo procedentos do ‘Canada foram recusadas pelos camponeses hondurenhos porque eram variedades localmente definidas como alimento destinado aos porcos. — 58 Hiabitos Alimentares Cada grupo clege aquilo que pode ou nio ser comido, ou que constitui a base do minimo social aceitavel para ‘0 consumo familiar em situagdes normais. Eo caso de pescadores do litoral da Paraiba que tém como base de sua dieta a combinagio de peixe ~ trazido do mar pelo pai c emblematico da identidade masculina — com a mistura, isto &, a farinha, o feijio ¢ os legumes produzidos pela mulher na terra. Como observei entre pescadores do Rio Grande do Norte, 0 conjunto da comida revela a complementaridade entre os dominios masculino e feminino, ainda que 0 do- minio masculino seja a dimensio mais valorizada. Para essas populacdes, a falta do peixe é indicadora de precisdo, ainda que nao faltem os outros componentes que podem compor uma refeicio nutticionalmente adequada. No caso dos colonos teuto-brasileiros, a fome € representada pela falta de carne de porco ou, em sua manifes tacio mais grave, pela auséncia de alguma modalidade de gordura na tefeigio. Os colonos teuto-brasileiros distinguem um sistema antigo do sistema novo, isto é, ha um modo de vida tradicional do qual a comida é parte e expressio, diferente dos ajustes 4 modernidade a partir da segunda metade do século XX, que se refletem nos padrdes alimentares. O sistema antiga ¢ 08 habitos alimentares correspondentes resultam da combinacio entre padres ja existentes no Rio Grande do Sul e aqueles trazidos pelos imigrantes. Estes tiltimos sdo bastante heterogéncos, visto que os imigran- tes vieram de regides localizadas na atual Alemanha, assim como da Austria, parte da Suiga ¢ partes das atuais Polonia e Hungtia, Sio heterogeneos também porque entre os imigrantes havia pessoas de todas as classes sociais (camponeses, artesios, profissionais liberais e membros da pequena nobreza), bem como refugiados por motivos politicos ou reli- giosos. Dada tal hetcrogeneidade, se muitos habitos alimentares processos produtivos foram retidos ou redefinidos, outros foram abandonados ¢ outros ainda reincorporados. Elementos basicos dos padroes germanicos foram mantidos, embora adaptados, ¢ entre eles a propria categoria comida — aquilo que é socialmente definido como de consumo humano, oposto aquilo que é para consumo animal ~ de forma semelhante ao que foi antes referido para outros grupos sociais do Brasil. Hiibner Flores mostra que na década de 1840 houve graves periodos de fome na Boémia, assim caracterizados pelos emigrantes: ‘As colbeitas miseriveis de batata inglsa {..) feos recarrer & batata seloagem, destinada ao gado,e «farina prota on dquela destinada d alimentario dos animais. Carne sé aparecia na mesa de alguns na Péscoa, Pente- costes ¢ Natal, meia libra para uma familia de cinco a seis pessoas!” (yrifos meus). —59— GasTRONOMIA: CORTES & RECORTES Sobte essa mesma regio, Lilie (1984) detalha: A alimentagio do morador lac consstia [..} de batatas,sopa acre, leit, pita e manteiga. Carne $6 quatro exes por ano {..] Café sb haria aos domingos, mas nao na mesa do camponés, qite comia diariamente sua 1 ‘merenda de sopa rata [..) Pao branco era igualnente muito raro Na Europa, como entre os teuto-brasileiros, a falta de gordura é percebida como fome ou pentiria extrema, 20 lado do fato de terem de compartilhar soro de leite com batatas no almogo € com pio no jantar. Como relata Umann, esta foi uma das razdes pelas quais emigrou da Boémia. Fome significa também naa comer suficiente, isto 6, até se saciar. Na Alemanha € entre os colonos teuto-brasilei- ros (como também mostra Wall para camponeses de Portugal), 2 mie distribuia a comida aos seus familiares de manei- 1a proporcional ao trabalho de cada um na unidade produtiva. Reforgava, assim, a hierarquia tradicional, privilegiando © pai acima de si mesma e dos filhos e a estes em relagao as filhas, e a estas tiltimas em relagao aos empregados. Um filo de camponeses do Paraguai aponta em suas memérias que, quando menino, seu maior sonho era poder comer sozinho um pio branco de dois palmos de comprimento porque raramente recebia a comida necessiria para se sentir saciado. Essa mesma preocupacio dos camponeses com a fome é destacada por Darnton quando analisa algumas das hist6rias do ideario camponés resgatadas pelos irmios Grimm no norte da Alemanha ¢ na Dinamarca, historias nas quais a comida constitui, com freqiiéncia, um dos focos centrais. No Brasil, nem sempre se encontrava a fartura, Como disse uma colona idosa, filha de camponeses fracos de um lugar chamado Picada 48, referindo-se a sua infincia na década de 1930: ‘No J a pouca terra que minha mite herdow era fraca também e meu pai éramos colonos muito fracas. era muito doente, Com o estilo (expressan idiomética) cheio de flbos pequenos, més passamous ds vezes meses sé comendo feito, arroxe aipin, e no domingo minha mie dividia uma galinha para toda a familia [com 11 pessoas]. Os viginhos ¢ minha tia mandavam as vezes alguma carne {de porco), bacon ¢ banba, mas eles tambins nao tinham muito. Sé depois quando més comeganes a trabalbar também é que melhoro Habitos Alimentares Nunca me exquepa, era pao sé de milbo com doce (Scbmier) de goiaba ow da comum, nem ricota (Kiiss- chmier) ou mata a gente tinha; era tudo vendido.” E nio tinham frutas, plantavam verduras, essas coisas? “Bessas a gente tinha que vender também para pagar 0 médico ¢ comprar os remédios do pai.” Note-se 0 uso da expresso estibulo para se referir A casa, como que animalizando a familia em situacio de peni- tia, Mas de modo geral era marcado 0 contraste entre a fome ou o acesso limitado & comida na Europa, de um lado, € JA a fartura conquistada na América de outros, que marcava 0 contetido das cartas enviadas por imigrantes para os E ¢ daqueles vindos para o Brasil A comida ideal valorizada pelos colonos é a por eles denominada comida forte (starkes Essen ow krifiiges Essen), a refeicio percebida como nutritiva, ou ainda a fettes Essen, comida com bastante gordura. E interessante observar que Graefe, com relagio a teuto-russos instalados no século XIX na Argentina, também menciona essas categorias, que expressam a relacio entre comida forte e trabalho forte. Nessa relagio 0s colonos opdem a /eichies Essen (refeigao leve), relacionada ao tempo de trabalho leve, ao lazer, a doenca, ao descanso e a alimentos doces. © caso do lanche da tarde, composto de café com leite, alguma cuca que sobrou do domingo, ou biscoito, pio com doce ¢ alguma modalidade de queijo, ricota ou nata. A comida forte devia ser consumida por aqueles que realizaram durante a manba o trabalho pesado, geralmente homens adultos ¢ em algumas ocasides também mulheres adultas. Fi a refeicio do almogo, ao final do tempo distio de trabalho pesado, O almoco forte € considerado uma forma de reposigao de energias despendidas. A tarde, o trabalho é mais leve, € a comida que a ele se segue no jantar deve ser forte, mas leve. Combina-se uma sopa de legumes (reforcada com osso de tutano) ou de galinha, ou ainda restos do almogo, com o café com leite, pio e banha temperada como também o café da manhi que se seguiu a um periodo de sono reparador. A refeigio da noite deve ser leve também porque as atividades noturnas so leves: as mulheres cabia fiat, tecer, costurar, bordar, escolher sementes € 0 feijio para o dia seguinte, fazer travesseitos, preparat conservas, etc, enquanto 0s homens cabia cortar a palha de milho, remendar arreios e sacos. Cabia ainda a algum membro da familia ler em voz alta para todos. Como afirmou um colono octogenrio sobre a relago comida — trabalho no sistema antigo: 61— GasrRonomua: Coxres & RECORTES Vaguela épaca ndo era como hoje — se coma vigorosamente (kriftig) se trabalhava pesadamente (ges- chaft). As pessoas tambim eram mais fortes que as de hoje.” .¢ com a medida tradicional alema de terra — Morgen ~ que corresponde 4 extensio de Essa concepgaio relaciona-s terra trabalhada por um homem até o fim de uma manha de trabalho érduo. Eo trabalho que exige grande esforco fisi- co, expresso pelo suor, como que remetendo ao universo biblico dos colonos: do suor de teu rosto comers teu pio. Mais especificamente, a siarkes Essen compreende a preparacio da comida com ingredientes definidos como fortes, ou tornados fortes, remetendo a quantidade de gordura presente na comida. Entre os ingredientes definidos como fortes ¢ mais valorizados esta a carne de porco e seus derivados, em especial o bacon, cru ou defumado, a banha €.as lingiiicas, a carne bovina, a nata ¢ a manteiga. Como observa Schmitz com relagio aos colonos de Nova Petrépo- lis, “a criagao de porcos era basica e generalizada, ao ponto de haver colonos que matavam em média um porco por semana para o consumo da familia.” O feijio, numa evidente forma de adaptacio ao Brasil, foi incoporado aos habitos alimentares dos teuto-bra- sileiros desde o inicio de sua instalacao e foi um dos primeiros produtos por eles comercializados para Porto Alegre. Ble foi classificado entre os ingredientes mais fortes, com gradagdes expressas pela cor: 0 feifio escuro (preto, roxo) é considerado mais forte que as variedades mais claras, enquanto o feiji0 branco (¢ também a lentilha) sio considerados os mais fracos dentre os fortes. Com relagio a0 milho, a variedade amarela € considerada forte, enquanto a branca é fraca. Também a morcela de sangue, preta, é considerada mais forte e destinada aos homens, enquanto a branca é destinada as mulheres ¢ as criancas. ‘Ainda assim, todas as variedades devem ser reforgadas com derivados de porco © acompanhadas de farinha de mandioca frita e temperos. Mas devem ser consumidas com arroz, considerado fraco por natureza, e com picles azedos ou agridoces, ou saladas que vortam a gordura, tornando-as mais digeriv ‘A partir dessa classificagao relaciona-se © consumo alimentar com a concepsio de trabalho: o milho branco é exclusivo para consumo humano e, mais especificamente, para criangas, velhos, mulheres gestante ou nutrizes. Para estes tiltimos recomenda-se também a sopa de galinha; um de seus ingredientes, o figado, considerado quase um re~ médio, destina-se A crianga mais franzina, enquanto 0 coragio era o prémio para a crianca mais obediente. A variedade fraca de milho também é consumida em momentos de ndo-trabalho: o lazer nos fins de semana ou os eventos rituais, tais —62— Hibitos Alimentares como © Kerb? ou festas de batizado, casamento ou vel6rio. Nas ocasiées rituais, contudo, comia-se também, quando possivel, churrasco. As farinhas de milho branco ou de trigo eram em geral combinadas com a manteiga, considerada mais fraca ow leve (Hiché) que a banha de porco ou 0 toucinho, Em contraposicio, as variedades de milho amarelo tanto podem set consumidas pelos animais domésticos quanto, depois de beneficiadas, servirem para o consumo familiar. O milho amarelo destina-se aqueles que /rabalbam duro, devendo ser consumido por aqueles que despendem muita energia no processo de trabalho, principalmente nos periodos de derrubada e preparacio do solo, colheita, reparagio dos cami- hos, etc. ssa mesma relagio também esti presente na sua incorporagio como ingrediente do pao caseiro, No pio con- sumido no domingo, dia de descanso, sem dispéndio de energia, deve ser incorporada a farinha de milho branco, ou apenas a farinha de trigo (comprada), ao passo que os pes consumidos durante a semana de trabalho devem conter a farinha amarela e, eventualmente, outros ingredientes fortes, como a lingilica ou o torresmo. Alimentos definides como neutros (nem fortes nem fracos) ou fracos podem ser refor¢ados com um ingredien- te forte, como no caso do nhoque (Kis), ou da massa feita em casa, reforcados com particulas de massa crocante fritas ou farinha de mandioca frita. A batata-inglesa, batata-doce ou ao aipim, cozidos em Agua e sal, definidos como neutros, adicionam-se bacon, farinha de mandioca frita ou manteiga. Sem tais adifivos, sio comidas ministradas aos doentes. O sistema antigo era caracterizado por um dispéndio de energia maior que 0 atual, por isso: “A gente naguele tempo comia muito porgue trabalbava muita. Enguanto tinba sol a gente trabalbava lé _fora {na roca} e depois, de noite, agente ainda fagia outras caisas. Nao tinha motor para puccar dewa, fazer isso on aguile, trator, essas coisas, Fira tudo a gente, no braco (..} Galinha era sé no domingo ou se tinba alguém doente. As vexes o pai deixava os guris cagar no mato, li embaixo {...] om oles pegavam algun peixe, ‘mas sé no sébado & tarde {..j assim, no domingo a gente tina alguna coisa diferente na mesa.” 3. Korb &a denominagao da principal festa das colones teuto-brasileros, Correspondia ates dias (hoje, nas areas urbana, fol reduzida a um dia) nes quals, em hhomenagem ao santo padroeiro da localidade, entre os catdlcos, ou na data da inaugurapao da igre, entre os luteranos, cada familia recebia seus parentes ‘amigas de outras localicades. Grande quantidade de comida era consumica nas casas-(ronco de tim grupo de descondéncia ou em um clube. — 63 — GasRonoma: Conres & RECORTES Nos fins de semana consumiam-se também alimentos associados ao lazer, como aqueles obtidos pela caga ou pesca, jé mencionados. Em contraposigio aos dias de semana, observa-se uma inversio de papéis, Sendo atividades definidas como masculinas, cabia aos homens /impar os peixes ou a caca, i diferenca da caca obtida durante a semana pelas mulheres em armadilhas dispostas nas proximidades da casa ou como forma de protegio da roga. O churrasco domingueiro também implica uma inversio de papéis, 3 comida, mas é preparada pelos homens ao at livre, no patio, enquanto as mulheres preparam na cozinha as varias modalidades de salada ¢ os aperitivos, isto é, 0s componentes secundarios que acompanham a carne. Deve-se ressaltar que na concepgio dos colonos 0 nao-trabalho nio significa écio; ele inclui, por exemplo, a tarefa de afiar facas ¢ instrumentos de trabalho, realizada pelo pai no patio em frente 4 casa ¢ portanto de forma bas. tante visivel. Os dias de chuva, quando os colonos eram impedidos de realizar 0 trabalho arduo, masculino, fora de casa, ou a entressafra, eram tamb fio de estabulos, arrumagio do depésito, reparagio de dedicados a atividades leves: repara instrumentos de trabalho. As mulheres, por sua vez, aproveitavam esses dias para preparar conservas e doces, tal como também entre os teuto-russos da Argentina. De modo geral, os colonos consideram que o sistema novo foi sendo configurado entre 1950 e 1980, ainda que 0 sistema antigo se tenha mantido em varias colonias mais afastadas até a década de 1990. O sistema antigo manteve a valorizacao da gordura, tal como na Europa, sinalizadora nao s6 da comida forte, mas também simbolo de fartura, expressiva da qualidade de vida, Correlatamente, esta tiltima expressava-se mais pela quantidade e pela variedade, do que pela sofisticagao ou pela estética. Certamente, ndo eram gourmets — comer bem era comer muito, Por isso, seja no cotidiano ou em eventos especiais, a mesa farta é 0 centro das atengd Avaliada pela comunidade, ela indica a pros- peridade deriv Ja da eficiéncia da familia, notadamente do pai ¢ da mie. O ja referido Kerb constitui o grande momento do ano em que a diversidade e a quantidade de comida sio exi- bidas, Exibe-se toda a preparagio realizada durante 0 ano, a0 longo do qual animais e outros produtos sao cultivados, Sao consumidos também ingredientes especiais como 0 coco, refrigerantes ¢ cerveja. Ea ocasiao ritual em que lougas e talheres da cginha de dentro, assim como os aventais tradicionais € as roupas de mesa festivas sao postos em uso. O carter ritual do Kerb atual manifesta-se hoje em dia, embora tenha-se reduzido bastante o nimero de convidados, pelo 64 — Habitos Alimentares esforco para manter a comida tradicional; aqueles que no fo mais produzidos pela familia so agora comprados. A comida do Kerb deve continuar a ser a Kerbeesse do sistema antigo, parte da identidade dos colonos teuto-brasileiros. A gradativa substituigdo do sistema antigo pelo novo deu-se a partir de vitios fatores, quase simultaneos. O pri- meiro deles diz respeito a migracio dos filhos de colonos para as cidades proximas, atraidos pela indiistria de calcados ¢, numa etapa subseqiiente, por sua incorporagio 4 forga de trabalho das fabricas quando da instalagio de unidades fabris coureiro-calcadistas nas proprias areas coloniais, criando uma nova categoria ~ os camponeses-operarios. Nes. sa nova atividade, o trabalho é considerado leve, exigindo pouco dispéndio de forga fisica ~ no provoca suor ~ por implicar um horario definido restrito a oito horas difrias ¢ por set realizado no interior das fabricas, ao abrigo do sol eda chuva. Com tais caracteristicas, o trabalho nas fébricas aproximava-se do trabalho feminino realizado dentro da casa, Esse trabalho semanal, leve, contrasta com o trabalho pesado realizado agora na unidade camponesa aos fins de semana. Ocorteu, pois, uma notivel inversio com relagio a0 sistema antigo. Outra modificacio que alterou 0 workteam tradicional foi o que Catneito caracterizou como plutiatividade, Desde um ponto de vista mais amplo nao € propriamente uma novidade, pois Chayanov j mostrava que atividades domésticas ndo agticolas eram parte da logica da economia camponesa, mas a0 mesmo tempo eram uma forma de ocupar aqueles que Tepicht (1973) caracterizou como forras marginais do grupo doméstico camponés. Entre os colonos teuto-brasileitos foi uma novidade, Tal como entre os camponeses franceses estudados por Carneiro, os colonos te~ direcionam parte de sua forca de trabalho para outras atividades, como ser garcon de restaurantes ou clubes nos fins de semana (uma situacio inversa a dos camponeses-operirios, que sio colonos nos fins de semana). Outras atividades sao realizadas no proprio espago camponés e remuneradas por produgao — foram bem aceitas nas coldnias, percebidas como complementares ao trabalho na roa, sao flexiveis, a0 contririo do trabalho nas fibricas. Fo caso da colocacio de fivelas, cadarcos ow trancagem para a indtstria calgadista, ou a aplicagio de enfeites, etiquetas, elisticos para ma- Iharias proximas. Destarte, a comida do cotidiano semanal dos homens ~ forte ¢ pesada — cede lugar a comidas mais leves, nas quais a banha ou a manteiga sio substituidas pelo dleo de soja ¢ pela margatina, por exemplo. Em contraposigio, a comida leve do final de semana no sistema antigo € substituida pela comida mais pesada. Se 0 trabalho mudou de lugar, ‘© mesmo ocorreu com a comida. —65— GasTRONOMIA: CorTES & RECORTES ‘Outta dimensio é dada pela instalacio de cooperativas ¢ grandes empresas que conduzem a outro tipo de trabalho, mais rentavel e mais leve: a criagio de frangos, porcos € coelhos, Com a nova insercio no mercado, novas variedades sio introduzidas, como 0 potco ipo carne que substitui o tipo banha, ow o frango de granja que substitu 0 tipo da colinia. Com isso, 08 produtos de autoconsumo que sempre supriram a alimentagao familiar passaram a ser restritos Aqueles considerados basicos, ou mais vidveis, dada a nova disponibilidade de forca de trabalho familiar, substituin- do-se os demais por produtos comprados. Assim, mantém-se a produgio doméstica de batata, feijio e legumes, mas 6 arroz ¢ as farinhas passam a ser comprados, Mantém-se, nas unidades maiores, 0 gado ¢ a produgio de leite, mas, como ja dito, a banha cede lugar ao dleo de soja e 4 margarina, A Sebmier, uma modalidade de doce, ainda é produzida como forma de aproveitamento das frutas sazonais, mas a maior parte das frutas i natura e as cristalizadas € agora destinada 20 mercado. © melado e 0 agiicar mascavo, produzidos na moenda familiar, sio substituidos pelo agdcar branco. A massa (Nude também desaparece do processo produtivo doméstico; agora, 0 macarrio é comprado, como © sio as variedades de lingtiiga. Outro fator de modernizagio foi a construcio de uma rede de estradas vicinais e pontes substituindo os antigos caminhos mantidos pelos proptios colonos, o que estimulou a venda de produtos alimenticios para as cidades ou para cooperativas de outras localidades rurais. As novas tecnologias que tornaram o trabalho mais leve, como os motores elétricos, facilitaram a produgio familiar e alteraram o padrio de consumo familiar. Desaparece, por exemplo, a antiga pratica alema de conservagao de carnes em banha, assim como 0 processamento sob a forma de defumados, lingiiiga ou torresmo. Hoje, recorre-se a0 congelamento ou a refrigeragio, que substitui a conservagio de ovos em cal. O chucrute, alimento tradicional, é agora preparado domesticamente em pequena quantidade ou é comprado daqueles colonos que 0 produzem para comercia- lizagio. Desapareceram também os virrios tipos de cervejas brancas ¢ escuras de preparagio doméstica, assim como o Spritebier (refrigerante nao alcodlico derivado do abacaxi ou do ananis). Mas se alguns produtos saem do universo produtivo camponés, outros sao nele incorporados, como © tomate. Como mencionou uma matriarca: “No mew tempo ni se combecia tomate. Ex me tembro bem quando men irmio veio un dia do quartel [onde prestava servigo militar por volta de 1940} e trouxe alguns para experimentar; era dagueles grandes, — 66 — Hibitos Alimentares sabe? Primeiro a gente achou estranho, mas depois a gente vin que a comida ficava mais bonita, vermelbi- shay ¢ se acostunou com 0 gosto deles. Mas era sb coxid, Comer tomate orn? Sé uns tempos depois 6 que a _gente aprendew a comer ele na salada.” E complementou o marido: “Feu mo erei sem conhecer maméa, Os primeiros que chegaram tinham um cheiro muito esquisite, parecia coci de gato, Depais, a gente foi se avostumando; era na salada [de fratas], com agscar. Eu me lembro que @ Harry foi 0 primeiro a trazer [as sementes}¢ plantar. Depois todo mundo plantou também. Hoje, desde que ex fui operado, en como mami quase tudes os dias porque faz, bem para men estimage.” © que também causow um significativo impacto, seja quanto & alimentagio seja quanto ao trabalho, foi a apo- sentadoria rural ¢ 0 acesso a rede publica de satide. Como disse, jocosamente, uma mulher idosa que hoje mora na cidade: “Nunca me esqueco— quando mex marido ganbon o primeiro dinbeiro dele [primeira aposentadoria} ele me disse: agora podemos ficar doentes, temos médica temos dinheiro para pagar os remédios. Sé que tem uma coisa; depois que nés fizemos agueles exames de sangue 0 médico cortou quase tude, Imagina uma vez, nis que comenos porca toda a vida, agora ficar comendo galinbaszinhas on peixe? Até que a banha a minha sora je usava pouce, ela usa mais é éleo, mas fcar sem toucinko? Nao tem gost, fica tudo insosso. Por isso que nos domingos, quando dé, meu ftbo nos leva para comer no Wolf [restaurante tipico}.” Destarte, © desenvolvimento de atividades turisticas conduziu a uma ressignificagio dos habitos de comida tradicionais que, na regiao aqui considerada, conduziu a uma revalorizacio da comida étnica teuto-brasileira, corres- pondendo ao que diz Schliiter (2002): ‘A través de sus proferencias y aversiones las personas comunican su identidad y cuando emeigran la llevan consigo reforgando su sentido de pertenencia al lugar que dejaron. Asimismo, van oreando nna cocina de cantcterético wlilizada con mucha freenencia en el turismo para resaltar una cultura en partiular.”” —67— GastRonoma: Coates & RECORTES “Tanto 0 turismo como a migragio para areas urbanas de descendentes dos colonos fizeram com que a comida tradicional passasse por uma certa sofisticacio. [5 0 caso do chamado café colonial, hoje parte do roteito turistico-gastro- némico do Vale do Rio dos Sinos e da Serra Gaticha. Hoje existem varios restaurantes — como 0 ja refetido Wolf — de renome nessa regiio que servem a comida colonial, isto é, aquela do sistema antigo para turistas ¢ para ex-colonos urbani- zados. Para estes tiltimos, é como uma meméria gastrondmica. B, novamente, opera-se uma inversio, semelhante aquela que ocorre no Kerb: é uma comida considerada pesada, nos termos da atual relagio comida ~ trabalho, visto que utiliza ingredientes como banha, manteiga, carne de porco, etc. Mas seus novos consumidores podem se dar ao luxo de rom per, no domingo, o controle alimentar auto-imposto durante a semana para consumir a comida do antigo cotidiano camponés, Além disso, se habitualmente consomem alimentos tratados quimicamente, nessa ocasiio se percebem em face de uma comida tida como saudavel, pois seus ingredientes so naturais, sem conservantes ou outros aditivos. Finalmente, um ponto deve ser ainda ressaltado: os principios classificatdrios tradicionais que distinguem co- mida forte de comida frac: | que relacionam essas propriedades 4 cor do alimento e definem tais qualidades em relagao a0 corpo € a estados de satide sio os mesmos que informam a percepsio da comida em outras partes do Brasil. Pa- rece haver uma convergéncia entre uma tradicio mediterranea, presente no Nordeste, no Norte € no Centro Oeste, € outra, norte-curopéia, presente nas concepcdes dos colonos teuto-brasileitos. O que € étnico, entdo, nao € 0 principio Alassificatério, mas o produto consumido: chucrute, Sebrnier, nata, etc. ee

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