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MODERNIDADE E DIREITO! Jodo Miurtcio Adeodatw? Sumatio: 1. Introdugao: modemidade e complexidade. 2.|T1és pressuostos sociais para modernizacao do dircito. 3. Moderidade oe ‘um entre 6 varios conceitos possiveis. 4. O direito dogmatico m« Positivismo juridico. 1. Introducdo: modernidade e complexidade. Jerno. 5. |Etica e _O conceito de modemiidade 6 muito amplo ¢ pofle ser aplicado a setores do conhecimento’e da atividade humana.|/Vamos procurar delimitar um sentido no qual se pode chamar de “modefna” determinada forma de organizacao do direito. Claro que um tema assin genérico precisa Set tipificado, amputado de muitos de seus aspectos impdrtantes, além do Que, © pouco espago disponivel-em uma comunicagao com: compromete algo da profundidade e talvez da clarezal mereceria esta certamente que 0 assunto a, modemnidade jutidicas; na-definigao de compléxidade aqui apontada, ‘aireito. : Primitiva organiza-se de forma indiferenciada, o que signi aspectos, que as ordens normativas, étieas, que regulam a uma das quais € w direito, esto todas coligadas, sem separadamente no contexto social. Ento, para tomar um Pode-se entao coniegar adthitindo que uma ot * Aula inaugural dos Cursos de de agosto de 1997, | Curiculo académicu: Professor Titular da Facildade de Ditto do Recife - UF Doutorado pela Fundaco Alexander yon Humboldt (1988-89). Professor Conv de Mainz (1988-1989 © 1991), Freiburg i. B, ¢ Frankfurt (1995). Profeseor Ps-Graduacdio om Direilo da Universidade Gama {Prbetsidades no Bras Coordendor dos Cursos de Pés-Graduacdo em Direito da do Recife - UFPE (desk 1996). Pesquisadér do CNPq (desde 1984). Pesquisa 1992), Consultor do CNPa (desde 1986), da CAPES (desde 1990), da Secretaria MEC ¢ de diversas Fundaoses Estaduais de Amparo a Pesquisa (desde 1995), Ensino Juridico do Consetho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (desde 1 do Comité de Ciéncias Sociais Apticadas do CNPq (1990-1993). Ex-Membro da Nacional de-Cursos de MEC (1996), juridica mais a, entre outros nduta’ humana, 190es ‘definidas mplo'no Egito jilho proferida em 15 imoralidade e mesmo um pecado contra a estrutura social. Nao ha essa separagéio entre 0 ilicito religioso, 0 ilicito moral, o ilicito Juridico, 0 ilicito dds usos sociais, Que seriam, para seguir a doutrina tradicional, as grandes ordens normativas mais assemelhadas. Pois bem. Os primeiros registros histéricos de qu¢stionamentos a Tespeito de tal indiferenciagio remontam 4 Antigona del Séfocles®. ao separar nitidamente o direito de Créon, posto, do direito nftural superior, teclamado por Antigona para sepultar seu irmao; depois, a dflebre frase de Jesus Cristo, presente em trés dos quatro Evangeihos ofitiais da Igreja Catolica: “a César 0 que é de César, a Deus 0 que ¢ de Deus”. Comega-se a pleitear, dentro do monopélio que o Estado Romano tinha spbre as normas éticas, a separagao entre uma esfera que seria de competéncid de uma Iere emergente, independente. de outra ordem, atribuida ac Eftado Romano onipresente, onisciente, onipotente da época. Pois bem: os |seguidores de Jesus, do apéstolo de Tarso e outros grande pensadores|a servigo do catolicismo fizeram um bom trabalho e € $6 no século XVIII |que aparecem © que poderiamos denominar de “Jesus Cristos as at ”, os dois primeiros grandes juristas. moderos: Samuel me Christian Thomasius, Sim, pois tudo 0 que estivera outrora unificado a égide do Estado antigo, depois separado pela idéia de um direito ranscendente, natural, j4 voltara a unificar-se, monopotizado pelas maos| da Igreja. O objetivo pratico das teorias de Pufendorf ¢ Thomasius é cont fario: arrancar um pouco dessa competéncia omnicompreensiva da | reja Para o Estado absolutista que nascia. Como toda grande teoria, como thda idcologia influente, a de Pufendorf e Thomasius também tinha um olfjetivo pratico especifico, que era este: tirar da competéncia da Igreja aquela parte das ordens normativas que seria, exatamente. a parte juridical destinada a competéncia estatal Os critétios que eles inventaram sto bem conheckdos daqueles que estudaram Introdugao ao Estudo do Direito. Em primeip lugar, o da interioridade ¢ da exterioridade - ao Estado estariam afeitag as condutas externas dos individuos enquanto que a religido, as condutaslinteras. Fa partir dai que a ciéncia juridica nascente vai aperfeigoar of critérios de Pufendorf ¢ Thomasius, trazendo critérios mais sofisticados 10 autonomia © heteronomia, identidade e alteridade, uitilateralidade e bildteralidade ou coercitividade € incoercitividade. * Sophoctes: Antigone. trad. Elizabeth Weckoff, The Creat Books of the Western Wurll, vol 4. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. pp, 159-174 “ s2vangethos de Marcos, 12 (17): Mateus. 22 (21) ¢ Lucas. 20 (25). ~ produzido por outras fontes. © Estado, a gente pode dizer de xima maneita gpnérica, sempre existiu; um Estado modermno, porém, diferencia-se de outros Hstados, como 0 -Egipcio ¢ o Feudal, por exemplo, entre um sem-nir caracteristicas, por esta: arvorar-s¢'6 thonopélio'ha pro | || thtinea aconteceu antes. Havia instituigdes produtoras de di importantes do que 0 Estado, como 0 pater familias ‘para o fato de que, himenos de dois séculos atrés, 0s crimes contra” a ais tido como * Niklas Luhmann: “Positivitat des Rechts als Vorausseteamg einer modernen Gd Luhmann: Ausdifferencierung des Rechts ~ Belirige zur Rechissaztologie und Relfs 2M: Suhrkamp, 1981, pp. 113-154. ° Sitvio Baptista: “A Familia na Obra de Rudolf von dhering. Conccito: Ror Poder", in Joo Mauricio Adcodato (org) ‘Jhertig e 0 Direito no UniverstériaUFPE, pp. 202-210, o © Atal de Patrio referentes a les corporal gravee homicidio, com ou sem fiso de armas, constituindo-se em clara circunsténcia atenuante, desde que o|procedimento dogmatico prescrito tenha sido obedecido (formalidades conto padrinhos e “Tribunal de Honra”, por exemplo)’. A segunda caracteristica de uma sociedade age pretende modemizat 0° seu direito, decorrente dessa primeira, a crescente impottancia das’ fuintesestatais em detrimento das fontes ¢spontneas ¢ extemestatais dé diveite: O ‘costume sempre foi de importancia| primordial no direito amit go. Ele é i i antigas quanto. eivilizagao. Os historiadores nos falam dps éforos no direito espartano ¢ dos cédigos de Manu e Hamurabi, pois, depois que 0 ser bumano aprenden a escrever, preooupou-se em reduzir a term os costumes ent existentes. Mas'é s6 com 9 Estado moderno que o proce4so legislativo > Tesultando na lei - e o costume. jurisprudencial - priginando a jurisprudéncia = passam a prepohderar sobre as fontes nao estalais do direito como. 0 contrato, as declaragSes unilaterais de vontade ght 0 costume Jjuridico, que s6 valem na medida em que constituem fontes cor iplementares, subsididrias as regras estatais. [int4o, no contrat, por exemplo, & preciso objeto licito, agente capaz etc., a autonomia da vontade ngo basta para estabelecer um:vinculo juridico, sendo necessario 0 acordo dom as fontes estatais do direito. | E possivel até conceber que estas formas de orgartizagaé social sob as quais vivemos estdo acabando; com a globalizagao, o Egtado nacional parece enfraquecer-se. Mas 0 fato é que a estrutura em que vivemos até hoje ainda é aquela do Estado nacional e esta teoria nao pretende set prospectiva, vez que nao é intengao aqui fazer previsdes. ] A terceira e mais importante das caracteristicas que fazem uma sociedade capaz de dogmatizar seu direito é 0 que podemos flenominar de emancipagao da ordem juridica em relacdo as outras ordens hormativas, a atito-teferéncia'd6 sistemajutidico, que vamos expor sucintamante. Vimos que um ‘elemento importante nos primérdfos de ‘nossa civilizagao era aindifenciagao das ordens normativas, em unia indistingado ” Cédigo Penal y Lei n°. 9:155, de 04.12.1933, art. 38 (£1 Tribunal de Honpr en el delito de diuelo), além da Lei n® 7.253. de 06.8.1920, ambas em vigor, ropetindo esta altinf 0 teor do untigo (Codigo Penat do Uniguai, de 1889. al, o moral e 0 eritre 0 que é juridico e 0 que é religioso, 0 juridico eo religiogo, direito e economia, direito e magia etc. |l A auto-referéncia significa que os critérios paralp definigdo do que '€ licito e do que é ilicito, juridicamente falando, sdojem larga medida independentes em relagdo aos demais modos de organizapao da vida social, com as regras internas do sistema, as “normas juridibas”, definindo ¢ tratando o que é juridicamente relevante (fechamentg), ainda que em permanente interagdo com os demais subsistemas (abeltura). Dentro dos litaifes simplificadores de uma comunicagdo como esta, fode-se denominar esta auto-referéncia de autopoiese (aitopoiesis), reservaydo-se a expressio ‘alopeiese para descrever sociedades mais indiferenciadas Jsto admitindo que os individuos comppnentes de uma comuinidade organizam-se segundo as mais diversas |regras, formando diferentes subsistemas sociais: ha os religiosos e os que nfio tm religiao, os bonitos:€ os feios, os amigos e 0s’ oiltros, os nortistas| e os sulistas, ha aqueles que: posstiem:muitos ¢ 0s’ qué nao possuem taros bens etc. Pois bem: 0 direiio de uma sociedade' sera tio mais complexo quanto mais nitidamente separado desses subsistemas, quanto mais esfeja ele imunizado contra as interferéseias-deles, entre outras varias cargcteristicas. E, ao contrario, uma:secieédade pode ser dita mais indiferencigda na medida em que ocorre essa:interferéncia, como, por exemplo, quand o fato de alguém pertencer ao grupe das amigos (subsistema de vontato, dq boas relagdes) do presidente de determinado Gnterfere na afirmagad da jurisdictio, no dizer 0 Direito*. ‘ Um exemplo real de alepoiese, eomprovado a {todo momento na se, digamos, ente — carente cia) € noventa € mesmo conceito, metade (independentemente dos critérios cinco por cento dos condenados esta havendo interferéncia da condigas + Bo sobre 0 licito 6 ilicito. Quanto ao subsistema de boas q ar 9 dito “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Isto pode gerar prdblemas graves de legitimagao, os quais sfo tratados ¢ contoriades por ontfas estratégias que fe cabe examinar aqui’. Assim, ndo se deve pensaf que um sistema z Organizado - Notas ‘Teoria de Niklas Luhmann™. in Revista da Faculdade de Direito de Coraira Caruaru: ano XX, 0.16. 1985, pp. 65-92, Niklas Luhmann: Legitimotion durch Verfahren. Praskfrt JM: Suhekamp, 1983. pp 75s * Jodo Mauricio Adcodato: “Brasilien. Vorstudien zu einer emanzipatorischeq Legitimationstheoric fiir uunterentwickelte Lander”. im Rechtsthearle, 22. Band. Heft 1. Berlin: Dunclfr & Humblot. 1991. pp. 108-128. Ou “Uma Teoria (Emancipatéria) da Legitimacao para Paises Subs Ividos™, in Anndrio: do Mésirado em Direito n° 5, Recife: Edita Universitiia, 1992. pp. 37-42. 6 alopoitico nao se legitima, mas apenas que sua legitimagap ndo é modema do ponto de vista da autopoiese. 3. Moderaidade juridica: um entre varios conceitos posgiveis. Para este conceito simplificado de “modernidadg”, trés ressalvas epistemolégicas devem ser feitas. A primeira 6 que nosso conceito’é qualitative 4 nao meramente temporal. As sociedades assim estruturadas podem ser| ditas modernas porque sua forma de organizagdo obedece ao padrao aq escolhido para definir “modernidade”. Deste modo, nem tudo o que € confempordneo, nem tudo © que vem apés a Revolugdo Francesa ou a Segunda Grande Guerra, ¢ modemo, como o exemplificam os sistemas juridigos _ teocraticos fundamentalistas ou as formas de organizagao do direito em|comunidades no interior do Brasil. | Uma segunda ressalva ¢ que nao pretendemos I modernidade a qualquer juizo de valor, afirmando que of tipos ideais de “modernidade” aqui descritos sejam melhores ou piores pafa as sociedades © as pessoas, Nao se deve pensar que sistemas alopoiéticos: sejam_ © conceito de necessariamente mais disfincionais ou em si mesmos merfos complexos € sofisticados do que o direito caracteristico da modemidade. i A terccira ressalva ¢ que nao entendemos que op parametros de organizagao do direito definidos como modemos constitugm um caminho pelo qual evoluirio todos os povos © a sociedade flobalizada dos neoliberais; nada parece indicar que o mundo esteja caminliando na diregio desse_ tipo de: complexificacfo social. Muitos dos sig alopoiéticos contemporaneos apresentam outras formas ta complexas ¢ ¢staveis, estrategicamente bem-sucedidas de} direito. - ‘ femas juridicos bém altamente positivagio do basicamente por dois motivos. O primeiro é seu carate | inusitado, sem precedentes na hist6ria do direito. Um ordenamento Jjuridjco identificado com a religiéo ou a-influéncia da riqueza econémica sobfe a jurisdicao, sobre 0 poder de separar o licito do ilicito, sio fatos fonhecidos dos historiadores do direito. Mas o direito dogmatico, autopoiéfico, este é uma grande novidade. O segundo motivo é a tendéncla dos paises contempordncos, bem-sucedida ou nao, no sentido de ddpmatizar o seu direito, com os Estados arvorando-se progressivamente g monopdlio da jurisdigao, fixando agrupamentos de normas_positivas,| pretensamente omnicompreensivas e inequivocas, além de eficazes, funcionarios especifico para decidir o direito ete com corpo de ios tém sido amente imoral, provavelmente produzido de acordo com as regras do sistema. A gante vé isso, por exemplo, na teoria da validade das normas, |na teoria da inconstitucionalidade das leis e atos juridicos. Valida e assim legitima é toda norma elaborada de acordo com o contetdo das nprmas superiores (compatibilidade “formal”). No topo do sistema de norma do poder constituinte originario fixa livremente os cont Advogando o fim da “ideologia” do direito natural, 0 p como modernidade exatamente essa autofixagao dos ilicito. ato de vontade dos do direito. jitivismo coloca férios do licito e A afirmativa, por exemplo, de que ndo € juridico) um sistema que: proiba a fiberdade de. desigualdade entre homens ¢ mulhetes. €-p o ele antipositivista, ‘atitidogmatica, jusnaturalista, até, neste amplo (sentido) dado aqui. Isto ‘porque parte do principio de que ha normas Superiores ¢ anteriores 4 fixagao das regras positivas de dircito © que essa8 horas : superipres valem por si ‘mesmas, qualquer que seja seu fundamento (ai j4 se trata de uma discussao entre os antipositivistas), servindo como critério para afgrir a legitimidade do direito posto. O sistema juridico piramidal, imaginado por um antecessor de‘Kelsen, Adolf Merkl, estabelece a partir da “nortia funflamental” os seus critérios, 0s quais ndo tém qualquer contetido axiolégico| aprioristicamente valido. (¢ assim nao é ja ou consagre a A inconstitucionalidade por contetido, por ef inconstitucionalidade material, s6 € possivel porque foram fixados conteéidos normativos na primeira constituigao pelo poder constituinte originario, mas a inconstitucionalidade: permanece um cbnceito interno do direito positive. As decisdes de uma assembléia constituinte originaria néo podem ser inconstitucionais, vez que, em principio, emplo, chamada ceme da doutrina juridica positivista Pois bem. Mas ao mesmo tempo em que a|)modernizacdo- do direito assume o alto risco da instabilidade de um direith cmancipado das certezas da religido e da moral, relativamente independpnte de uma idéia material de justia, ela também traz consigo a vantagem ética de uma maior toleraucia para com as. diferengas individuais entre qs seres ¢ grupos humanos. Umi sistema juridico cmancipado de ordens |normativas outras permite uma maior diversidade de condutas, assumindg 0 monopélio da itividade, o monopélio da violéncia legitima, apenasfno que concerne a suas proprias regras. Entdo, hd uma tendéncia no Estado dogmético de permissividade em relagdo a comportamentos que nao spguem a ortodoxia moral, religiosa, de etiqueta, desde que de acordo gom o subsistema juridico. ‘Tomemos outro exemplo bem prosaico. No Bragil de hoje, mesmo nas capitais mais tolerantes, um jurista que use brincos, por melhor que seja, dificilmente sera presidente do tribunal de justiga ou cogrdenador do curso de doutorado em direito. Este é um sintoma de alopoiese,|na medida em que se supSe que a aparéncia das orelhas interfira Indevidamente no comportamento do jurista. E de fato interfere, posto qué a sociedade esta assim organizada e os advogados, as partes e os servertuarios talvez nao interagissem devidamente diante de um desembargador heterodoxo, provocando disfungdes naquele subsistema, ainda que toflos saibam, cm si consciéncia, que uma coisa nada tem a ver com a outra. Uma sociedade sera tanto mais diferenciada quanto mais esses subsistemas (np caso, a forma de apresentar-se e a competéncia juridica) estejam imunizafios uns diante dos outros. : Assim, a inusitada-complexidade do mundo mpdemo traz para 0 direito o problema de precisar lidar com os mais diversos|contetidos, valores por vezes incompativeis. Ha o subsistema moral daqugles que querem a pena de morte para os homossexuais; ha os que pretendgm permitir que os homosexuais tenham direito 4 vida, mas reclusos a guefps, sem ¢idadania; outros querem que eles tenham direito de votar mas nao possam casar entre si ow adotar, hd os que defendem a igualdade de direitos|para homossexuais © heterossexuais; ¢ hé até'aqueles que pretendem tomar 9 homossexualismo obrigatério. O mesmo pode ser dito das mulheres ou dp quaisquer grupos sociais, raciais, regionais, nacionais, culturais. Dentre essps visdes de mundo © subsistema juridico tem que escother uma e fixd-la domo dogma, como norma de direito. |" ndo ocorrerd necessariamente. 4_O direito dogmatico moderno. Uma vez que a sociedade apresente estes pré-requisitos jpbacionados, ela estd apta a dogmatizar o seu direito, d que, como visto, Dentre as diversas caracteristicas do diteito logmatico, vamos ressaltar apenas duas, que parecem as mais importqntes. A primeira caracteristica é 0 que podemos chamar a “inegabilidalle dos pontos de partida”". EntSo, o direito é dogmético quando os ponfos de partida sic inegaveis. O que significa isso? Significa que um argumeyfto é juridicamente aceitavel se, e na medida em que, toma por base uma norma juridica do sistema, pois ¢ exatamente a norma que constitui o dogma deste tipo de direito. Isto no implica que nao se. possa rejeitar esta) ou aquela norma juridica, mas sim que uma norma juridica s6 pode ser recusada com base em outra norma juridica. Um juiz altemativo pode nao querer desppjar um inquilino inadimplente porque ele é pobre e o proprietario, rico, mds nao pode basear sua decisiio expressamente neste argumento, posto que|nfio ha em nosso sistema uma norma que garanta direitos subjetivos merarpente pela pobreza ‘ou que penalize alguém por possuit mais iméveis do que necessita para morar. Por isso ele vai as normas constitucionais, algufpas das quais sao vagas e ambiguas justamente para permitir que og mais diferentes argumentos caibam nelas, e 14 toma a norma que protege a dignidade da pessoa humana para embasar seu argumento de que a mdfadia € essencial a dignidade e que a Constituigao deve prevalecer sobre a Lei do Inquilinato, Jef esta que seria a via normal de aplicagaio naquele caso cpncreto. O argumento nao vale por ser racional, nao vale por ser empirica ou cientificamente demonstrvel. E por isso que, para tpuitos, a atividade dogmatica nada tem de cientifica'', podendo, quando mpito, ser objeto da ciéncia do direito. Do outro lado temos Kélsen, afirmando|que a dogmatica é se, por exemplo, o conceito juridico de pai, que ndo é a diologia, pelo DNA (a nao ‘ser que uma norma juridica i belo dia, entender que todos os velhos:sio pais de todos ps jovens, os quais enhahn, 1970. pp. 116- 119. "Hans Kelsen: Teoria Pura do Direito. trad, Joo Baptista Machado. Coirab: | | | 1 pp. 109 ss. | | | | | 0 so seus filhos, como queria Platéo na Repiiblica, esta serg a “realidade juridica” dogmética. Pensamos que ai esté o ponto de Kelsey A Escola do Direito Livre falou na revolta dos fatos contra as normas, mas Kelsen defende uma revelta das normas contra os fatos pois, em wl sentido bem literal, as normas fazem os fatos. Qs fatos, sobretudo os fatos juridicos, nfio so dados puros da realidade, nao se confundem com os eventos do mundo, fatps so versdes lingiiisticas sobre eventos'*. Assim, um fato juridico, para dogmatica, € aquilo que a norma determina como tal. Por isso os profisgionais do foro repetem que “o que ndo esta nos autos nao esté no mundo’} Presumem-se_ do marido 0 filhos da mulher casada havidos na consténcia do casamento", mesmo que as evidéneias empiricas indiquem o contrario, eqmo no caso de Dom Casmurro'>, Dai o dogma fundamental: argumentar a paftir do texto de alguma norma juridica do sistema. ‘A segunda caracteristica desse direito dogmatico, p ser destacada aqui, é a proibigao do nan fiquet ou a obrigatoriedade de depidir. $6 com 0 modemo Leviatf, o Estado passa a decidir, sempre, é juridicamente relevante, pretendendo o monopdlio da violé dizer o direito, em altima instdncia. E esse € 0 drama|do magistrado brasileiro ¢ do magistrado de uma maneira geral, 0 ter que chtender de tudo para decidir sobre tudo. O direito vai se tomando cada vez mais complexo € & impossivel que um juiz consiga apreender-Ihe todos os mat}zes. Nao é raro ver-se um jovem juiz, ainda na casa dos vinte anos, reofm concursado, defrontando-se com uma causa no valor de mithdes de reais, de cujo teor pouco entends, posto que refere-se, digamos, a detalhes de direito econéniico-financeiro, envolvendo formulas matematicas contar que © processo traz dois pareceres opinandp em sentidos diametralmente opostos, ambos com argumentos altamerfe complexos € assinados por juristas renomados, pagos a peso de ouro. E por esta e outras que o juiz probo tem o complexo de Atlas, 0 tit que carrega a abdbada celeste sobre os ombros. Imaginemos lides de conteide juridico simples mas. que envolvam um valof profundo, nao necessariamente econédmico, uma causa com cont@ido axiolégico importante: uma das partes € esta mulher exemplar, cujo nico problema é ndo conseguir viver com este homem exemplar, que por seu turno também n@o quer viver com cla; objeto do litigio é a guard de dois filhos amorosos_e extremamente unidos, acontece que @ mae acaba de receber © Tércio Ferraz Jt Jntraduedo ao Estudo do Direito - Técnica, ectsae, Domin 5988, p. 253. Pe oTicde 1911916 (Cihige Civil Brastleir). Sao Paulo: Sarva, 14. CE ars. 338, 40. 343 e344 i Machado de Assis: Pom Casomurro. So Paulo; Abril Cultural. 1978. sa. So Paulo: Atlas. ‘motto, © Tei exercita sua sabedoria'®” Um juiz conte it 6, reine materiais axiolégicos os mais diversos e antagéificos A proibigao do non liquet nao era um pipblema para o rei Salomao, por exemplo, famoso na Biblia, entre outros notivos, justamente quando nao seguiu esta regra. O Livro dos Reis conta qup, julgando um caso de duas mulheres que reclamavam a maternidade Ja mesma crianca, Salomfo, por falta de prova conchisiva, decide pela destruigao do objeto controverso, ou seja, manda dividir ao meio a crianga. [fiante da reagéio das mulheres, uma das quais prefere que o filho seja entregud 4 outra ao invés de poraneo que, apés isa, alegando nao dstudo' dos autos, se pronunciasse pela destruigaio da . He maluco. E que o di§por de’stementos para decidir, seria’ por certo taxado ‘Diteito dogmiatizeu-se.‘O- mundo muidou: ao tempo de|Salomao, o Estado POdia dizer 0 ‘non liquet. Hoje. Bstadld arvora-se 0 monppélio da jurisdigao © competéncia ‘para decidir tudo‘ que é juridicam@nte relevante. Dai Kelsen, talvez 6° maior teérico do ‘direito dogmatio, entender como redundante a expresso “direito positivo estatal”, pois toflo dircito é positive € todo direito é posto pelo Estado’ 5. Etica e positivismo juridico: Ainda que 0 dogmatism; enquanto teoria gerpl do direito, esteja obsoleto, e, enquanto visao politica do: direito, tenha exercido influéncia conservadora, 0 fato de ser dogmatico ndo significa qu¢ o direito modemo implique uma visio tacanha dos problemas jutidices, fem que sua teoria geral, a dogmitica, seja atitude necessariamente inalfequada diante do mundo real. Posturas competentes diante do direito tico exigem, ao contrario, a utilizagao do dogma juridico, a norma, porta de entrada extremamente complexa para esta outra “realidade” mencionar. O jurista dogmatico tem a tarefa dificil de isso bem, tem poder. SCR Prameire Livre das els. 3-4, eo Antigo Testament. " Hans Kelsen: Teoria Pura do Direito, trad, Jose Baptista Machado. Coimbip Pp. 383 ss. ‘Anménio Amado, 1976, Quando a mae entra no eseritério do advogado cheia de odio porque o marido de quem depends financeiramente qger abandona-la e levar-ihe a guarda dos filhos, os argumentos dogm: ticos ndo podem processar-se. no mesmo padrio. O advogado no pode defender o cempregado argumentando que 0 patrao o demitiu por estap ele flertando com sua muther, © jurista dogmdtico tem exatamente a fungao de transformar ses conflitos existenciais, dramaticos, emocionais, em lides dogméticas. A ia que informa tal tipo de trabalho ¢ a hermenéutita juridica, que 6, digamos assim, a filha nobre da teoria geral do direito, Esta a grande ilusio de muitos profissionais dq direito, achar que opdem-se a pritica dogmatica ¢ a tcoria geral. A hiftoria dos grandes juristas da modemidade mostra isto claramente, até hojg. O procurador ou adyogado ndo-familiarizado . com conceitos como ligéncia, validade, eficdcia, que nao souber quando uma norma entra em figor ¢ quando ela deixar de vigorar, nfio souber o que € vigéncia temporfria determinada & indeterminada, relagdo juridica ou principios hermenéftticos, ele nao vai conseguir trabalhar dogmaticamente de forma eficiente. Muito bem. Para finalizar, podemos sugerir qhe nao se deve ver no positivismo dogmatico - que ainda luta por se implantar no, Brasil - motivo para a angtstia existencial que se percebg em alguns anti- positivistas, no Brasil ¢ fora dele. O direito modemo fio ¢ mau por ser assim organizado, da mesna maucira que a ligagao ontglégica pré-modema entre direito e moral nao constitui um bem em si mesmal)Se Jesus Cristo era um jusnaturalista, Hitler tambem o foi. O direito natura} parte do principto antidemocratico de que ha um conteiide de justiga apriorfstico em relagao a0 direito positivo, o qual precisa curvar-se a seus pripeipios e deve ser imposto a todos os desviantes ¢ recalcitrantes. Ai a cfntribuigdo, ética do positivismo, tal como definido aqui: como nao ha uma justiga evidente em si mesma, n6s proprios € que temos de tomar em nossa costas 0 fardo de dizer, de por (dai positivismo) o direito. Foo que mudoh:: o direito continua axiologico como inevitavelmente:o é, mas seu valor nag esta pré-fixado por qualquer insténeia a ele anterior ou superior. Ele & imposto pela infalibilidade do Papa ou da Santa Madre igreja, nem 6) ixado a partir desta ou daquela concepsao que alguém tenha de “justiga” oulHe “razio™ Portanto, se a emancipagdo paga um prego plto, como dito, por outro lado gera essa ética tolerante, democratica. Glaro que & previs aperfeigoar 0 contetido do direito, sempre na diregao de}mais tolerdncia, mas a modemnidade nao é em si um mal ¢ ninguém tem de gptar desesperado por ndo ter nascido na Wade Média ou na época das luzes européias. Se 0 mundo hoje é ruim, parece que ja foi pior e pode ficar por do que jamais foi | ‘defende qualquer ideologia da facgdo vitorioea ne | 8 : Se nao abrirmos os olhos ¢ fixarmos esse contesido maneira que nos parecer mais “justa” légico do direito da E simplista a argumentagao antipositivistalde que o positivismo ijerente a um positivismo modetno, parece-nos, ni ‘admitir qualquer conteiido, presta-se, por exemplo, af "| compulséria de padres homogéneos de com Comunidade. Por recusar parémetros de conduta legiti © positivismo coaduna-se mais facilmente com um: cética, compreensiva, disposta a tolerar posturas dive, Pretendam estender a todos a todo custo. Apesar da imensa forga retorica dos jusnal Carregam as certezas de quem viu a fuze sabe separar ndo-ético, um ceticismo trangiiilo quanto ao direito magico da juris dictio, de diferen tt Se a crenga em um dircite’ natural superior direito positive, segundo esta ou aquela aperfeigoamento ético, como, por exemplo, na defesa nos primérdios do Cristianismo, ndo.se deve esque Petspectivas jusnaturalistas que inspiram a intolerancia assemelhados. pelo poder. A ética aquela que, por stificar a imposicao ética_genericamente ‘as, desde que nao se ralismos, posto que laramente 0 ético do a este poder quase icito do ilicito, cabe pode impuisionar o do, para um igualdade feita ja que sao também ligiosa, 0 racismo ¢

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