Hans Robert Jauss - A Estética Da Recepção. Colocações Gerais PDF

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I A ESTETICA DA RECEPGAO: COLOCAGOES GERAIS HANS ROBERT JAUSS Que significa a experiéncia estética, como ela tem se manifestado na his- téria da arte, que interesse pode ganhar para a teoria contemporinea da arte? Por muito tempo, a teoria estética ca hermenéutica literaria deram pouca aten- ‘do a estas questdes. Na reflexo teérica sobre a arte, quer a anterior, quer a pos- terior & constituicao da estética como ciéncia auténoma, tais perguntas perma- neciam ocultadas pelos problemas legados pela ontologia ¢ pela metafisica platdnica do belo. A polaridade entre a arte e a natureza, a correlacao do belo coma verdade 0 bem, a congruéncia da forma com o contetido, da forma com a significacao, a relagdo entre imitacdo ¢ criagZo cram as quest6es candnicas su- premas da reflexao filoséfica da arte. O legado platénico, muitas vezes nao ad- mitido, mostra-se ainda em curso na filosofia contemporinea da arte sempre que se concede 4 verdade, manifestada pela arte, a primazia sobre a experiéncia da arte, na qual se extetioriza a atividade estética como obra dos homens. Por isso a pergunta pela prixis estética, de importincia decisiva em toda arte mani- festada como atividade produtora, receptiva ¢ comunicativa, permanece, em grande parte, nio esclarecida e precisa ser hoje recolocada. Este estado de coisas jé é restemunhado por seu lugar na tradicao: fala-se sobre os efeitos da arte principalmente na retdrica, temporariamente na pole- mica dos doutores da Igreja contra a arte, ocasionalmente na doutrina dos afe- tos da filosofia moral, depois na psicologia do gosto, mais tarde na sociologia da arte €, em data recente, com mais freqiiéncia, no estudo dos mass media. A pottica aristotélica constitui, na Antigiiidade, a grande excecio ¢, na idade mo- demna, a Kritik der Unteillraft (Critica da faculdade de julgar) de Kant. Contu- 67 do, nem da continuagao da doutrina aristotélica da catarse, nem da explicagao transcendental de Kant, surgiti uma teoria abrangente ¢ capaz de formar uma tradigao acerca da experiéncia estética. O que, ao contrario, prevaleceu foi pro- clamado por Goethe, em seu famoso veredicto, que recusava a pergunta pelos efeitos como, em suma, estranha & arte; assim também sobre a estética de Kant recaiu a censura de subjetivismo e sua tentativa em prol de uma teoria da ex- periéncia estética, que fundava o belo no consenso do juizo de reflexo, per- deu-se, ao longo do século XIX, nas sombras de uma estética mais influente, a hegeliana, que definia 0 belo como o aparecimento sensfvel da idéia e, desta maneira, abria o caminho para as teorias histérico-filoséficas da arte. Desde entao, a estética se concentrava no papel de apresentacao da arte ¢ a histéria da arte se compreendia como histéria das obras e de seus autores. Das finng6es vitais (debensweltlich) da arte, passou-se a considerar apenas 0 lado pro- dutivo da experiéncia estética, raramente 0 receptivo ¢ quase nunca o comuni- cativo, Do historicismo até agora, a investigacao cientifica da arte tem-nos in- cansavelmente instruido sobre a tradigao das obras e de suas interpretagées, sobre sua génese objetiva ¢ subjetiva, de modo que hoje se pode reconstruir, com mais facilidade, o lugar de uma obra de arte em seu tempo, sua originali- dade em contraste com as fontes € os antecessores, mesmo até sua fungio ideo- Kégica, do que a experiéncia daqueles que, na atividade produtiva, receptiva ¢ comunicativa, desenvolveram int actu a praxis histérica ¢ social, da qual as his- trias da literatura e da arte sempre nos transmitem o produto jé objetivado. O programa do presente volume contém as perguntas sobre a praxis es- tética, sobre sua manifestagao histérica nas wés funces basicas de Posesis, Ais- thesis ¢ Katharsis (como denomino, numa retrospectiva da tradicao poetolégi- ca, as atividades produtiva, receptiva e comunicativa), sobre o prazer estético como a orientagao fundamentadora, caracteristica das trés fungdes, ¢ sobre a relagdo de vizinhanga da experiéncia estética com as outras dreas de significa ‘sao da realidade cotidiana. Apresenta-se aqui a versio refundida das tentati- vas primeiro formuladas na minha Kleine Apologie der dsthetischen Erfabrung (Pequena apologia da experiéncia estética) (1972) e que, de forma ampliada, le- vei a discussio no VI Coléquio de Poetit und Hermeneutik.' A este tomo, de- ' Negativinde und Idenrifikation — Versuch zur Theorie der achetschen Exfabrang (Negatividade e identificagdo — estudo para a teoria da experitmcia estérica) (1972, publicado em 1975). 68 verd seguir um outro, que procuraré mostrar a tarefa de uma hermenéutica li- teréria, ndo tanto em mais uma teoria da compreensao e da explicago, quan- to na aplicagio, isto é, na mediagéo da experiéncia contemporinea e passada da arte. Permanecerd neste contexto 0 problema central de como se pode rea- lizar, de forma metodicamente controlavel, o realce e a fusio dos horizontes da experiencia estética contemporinea e passada. Ser, ademais, colocada a re- lagio entre pergunta ¢ resposta como instrumento hermenéutico, que tam- bém poderd ser mostrada como relacdo consecutiva entre problemas e solu- gdes nos processos literdrios. Os ensaios aqui apresentados no campo da experiéncia estética encon- tram sua limitagao necessdria na competéncia do especialista em literatura. Ainda quando estes ensaios incluam testemunhos da histéria de outras artes se apdiem nos resultados da histéria da filosofia ¢ da histéria dos conceitos (Be- griffgeschichte), de modo algum desmentem que © autor adquiriu sua expe- riéncia, principalmente pelas pesquisas sobre a literatura medieval e sobre as li- teraturas francesa c alemi dos tiltimos trés séculos, assim como que sua reflexéo hermenéutica se formou na prixis da interpretacao literdria. Nao obstante, a jungao, formulada pelo titulo, entre experiéncia estética e hermenéutica literdria, também declara minha convicgio de que a experiéncia relacionada com a arte no pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexio sobre as condighes des- ta experiéncia tampouco hd de ser um tema exclusivo da hermenéutica filosé- fica ou teoldgica. Essa declaracio talvez me possa poupar as desculpas usuais de diletantismo, pela inevitével ultrapassagem dos limites académicos. A bipartigao do livro ademais se justifica por um fiundarmentum in re: adi- ferenciacZo fenomenolégica entre compreensio ¢ discernimento, entre a expe- rigncia priméria ¢ 0 ato da reflexdo, com que a consciéncia se volta para a signi- ficagio e para a constituicio de sua experiéncia, retoma, pela recepcéo dos textos ¢ dos objetos estéticos, como diferenciagdo entre o ato de recep ¢ o de inrer- pretacio. A experiéncia estética nfo se inicia pela compreensio ¢ interpretacdo do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrugio da intengio de seu autor, A experiéncia primdria de uma obra de arte realiza-se na sintonia com (Ennstellung auf ) seu efeizo estético, isto é, na compreensio fruidora e na frui- Go compreensiva. Uma interpretagio que ignorasse esta experiéncia estética pri- meira seria propria da presuncdo do fildlogo que cultivasse o engano de supor que 0 texto fora feito, nao para o leitor, mas sim, especialmente, para ser inter- pretado. Disso resulta a dupla tarefa da hermenéutica literdria: diferengar meto- 69 dicamente os dois modos de recep¢io, Ou seja, de um lado aclarar 0 processo atual em que se concretizam 0 efeito ¢ 0 significado do texto para o leitor con- temporinco ¢, de outro, reconstruir 0 processo histérico pelo qual o texto & sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos. A aplicacéo, portanto, deve ter por finalidade comparar o efeito arual de urna obra de arte com o desenvolvimento histérico de sua experiéncia e formar o juf- 0 estético, com base nas duas instncias de efeito ¢ recepio. Se, desta forma, retornam questées que desenvolvi em minha ligéo inau- gural de 1967, em Konstanz, tomando posicéo perante a crise-das disciplinas filolégicas, estou, contudo, consciente de que este comego de minha teoria da recepgao nao pode ser hoje, simplesmente, prolongado e ampliado, Nos tlti- mos dez anos, mudou sensivelmente tanto a situagao cientifica e universitdtia, quanto & fungao social da arte e, deste modo, a experiéncia estética de nossa atualidade. Esta foi a década da reforma universitéria, em cujo processo se in- cluiram, particularmente, os professores de Konstany; reforma, cuja cilada se fez sentit em trés planos: a democratizacio da instituicao universitétia, a trans- formagio da educagao histérico-humanista numa formagao profissional ¢ a re- visio da auto-imagem da teoria da ciéncia presente na concepgao tradicional da universidade alema. O impeto da reforma, sua estagnacio ¢ decadéncia? for- mavam o pano de fundo perante o qual este livro foi escrito, numa situacéo que nao propiciava a elaboragdo de uma teoria completa. Tal reivindicagao tampouco € reclamada para 0s cnsaios reunidos neste volume, Vejo as partes antes redigidas (1 B, C, D, E) conto complementos do projeto que as precede (1A), em grande parte sé claborado em 1976/7 e que representa minha posi- fo atual.? 2 CE. Gebremste Reform — Em Kapitel deuscher Hochschulgeschichte. Universitit Konstanz 1966 bis 1976 (A Reforma travada — nm capttulo da historia do ensino superior ale- mda. A Universidade de Konstans, de 1966 a 1976), (Org,) de H. R. Jauss eH. Nesselhauf, Konstanz, 1977. 3 “Zur Frage der ‘Strukureinheit’alterer und modemer Lyrik” (‘Sobre a questéo da ‘unidade estrurural’ da lirica antiga e moderna”) (fi publicado em 1960) completa o cap. A 6 (Aisthesis); “Interaktionsmuster der Identifkation mit dem Helden” ("Os paddes de interagio da identifcagio com o hersi") (1975) “Uber den Grund des Vergniigens am komischen Hel- den” (Sobre a razio do prazer diance do her6i cOmico”) (1976) completam o cap. A 7 (Kathar- sis); “La Douceur du foyer” (‘A Dogura do lat”) (1975), 0 cap. A 8 (“Sobre a delimitagao da fungio estética doutras fungbes do mundo da vida’). (Parte do cap. A, o decisivo para a com- preensio das idéias do autor, ¢ apresentada no capitulo seguince, N. T). 70 Os fildlogos, que haviam se deslocado para Konstanz, estavam diretamen- te interessados na revisio da auto-imagem da teoria da Génca. Fundaram, por isso, o primeiro departamento de Ciéncia da literatura, na Alemanha, ¢ se volta- ram para a estética da recepgo e do efeito, cujo respectivo inicio foi marcado pe- la minha Literaturgeschichte als Provokation (A Historia da literatura como provo- cagio) (1967) e por Die Appelserukeur der Texte (A estrutura apelativa do texto) de ‘Wolfgang Iser. Retrospectivamente, cabe dizer que a provocacio estava menos no ataque is convengées respcitiveis da filologia, do que na forma inesperada de uma apologia. Diante do éxito mundial do estruturalismo lingiiistico ¢ do triun- fo mais recente da antropologia estrutural, assinalava-se, nas velhas ciéncias do es- pitito (Geisteswissenschafien), em todos os campos, o abandono dos paradigmas da compreensio histérica. Via entio a oportunidade de uma nova teoria da lite- ratura, exatamente nao no ultrapasse da histéria, mas sim na compreensio ain- da nao esgotada da historicidade caracteristica da arte ¢ diferenciadora de sua compreensio. Urgia renovar os estudas literdrios e superar os impasses da histé- ria positivista, os impasses da interpretagio, que apenas servia a si mesma ou a uma metafisica da “écriture”, ¢ os impasses da literatura comparada, que tomava a comparagdo como um fim em si. Tal propésito nfo seria alcangével através da panacgia das taxinomias perfeitas, dos sistemas semiéticos fechados ¢ dos mode- Jos formalistas de descricdo, mas tao-sé através de uma tcoria da histéria que des- se conta do processo dindmico de produgio e recepgio e da relagao dindmica en- tre autor, obra ¢ piiblico, utilizando-se para isso da hermenéutica da pergunta ¢ Fesposta. Os anos seguintes reservaram a estética da recepeao, a partir da chamada escola de Konstanz, um éxito inesperado, Ela respondeu a um interesse laren- te, que, nos anos 60, foi alimentado pela insuficiéncia geral do cinone tradi- cional da formagio filologica e que cresceu gragas & critica contra o “ideal da ciéncia burguesa”, empreendida pelo movimento de protesto estudantil. A teo- ria da recepgao logo entrou no fogo cruzado do debate entre critica ideoldgica ¢ hermenéutica; mas despertou sobretudo um novo interesse de pesquiisas, se- dimentado pela abundancia de pesquisas em historias da recepgao e em socio- 4 CEM. Fuhrman: Alte Sprachen in der Kise? (As linguas antigas na crise?), Seatt- gart 1976, que aqui e noutra parte fundamenta a revisio do cinone da formagio clissica € gue, a partir do ponto de vista de latinista, claborou proposicées no sentido da transposicio da teotia da recepgfo a novos paradigmas da educagio literdria 7 logia da literatura, bem como em andlises empiricas da recep¢éo. Esta mudan- a de paradigma nao teve éxito apenas por isso, pois nao se tratava apenas de um desenvolvimento interno alemao. Meus ensaios de um novo método his- tdrico da literatura e da arte, que partiram da primazia hermenéutica da recep- fo, foram antecipados pelo estruturalismo de Praga, que desenvalvera 0 for- malismo russo. Neste entretempo, através das edig6es ¢ das apresentagbes feitas por um grupo de pesquisadores de Konstanz, seus resultados, ainda entio des- conhecidos, tornaram-se acessiveis ao estudioso ocidental.> A semiologia da ar- te de Jan Mukatovskg} ¢ a teoria da concretizagdo de Felix Voditka jé haviam sobrepujado 0 dogma da incompatibilidade entre sincronia ¢ diacronia, entre sistema e processo, enquanto no Ocidente procurava-se pensar a estrutura co- mo processo ¢ introduzir-se 0 sujeito no universo lingiifstico auto-suficiente. Na Franga, Paul Ricoeur ja havia chamado a atengo sobre as raizes comuns de uma hermentutica da desmistificasio e de uma hermenéutica da recuperagio do sentido, quando, na Alemanha, se confrontavam, na discusso entre Ha- bermas e Gadamer, critica ideolégica e hermenéutica. Nao obstante, estes dois irmaos inimigos contribuiram, em conjunto, de forma decisiva para revalori- zat, contra 0 objetivismo o empirismo kégico da chamada ciéncia unitdria, 0 fandamento verbal (Sprachlichkeit) da experiéncia humana do mundo, e, com isso, a comunicagao como condigao da compreensao do sentido. Sobre a histéria do debate na Alemanha, entre as duas posigées da teo- ria da literatura, a “burguesa” e a “materialista’, acerca dos fundamentos ¢ da aplicagio da teoria da recepcéo, néo preciso aqui retornar, pois foi virias ve- zes contada ¢, mesmo neste livro, ¢ bastante apresentada.° Considero 0 de- bate sobre o ponto de vista “idealista” ¢ “materialista”, no campo da teoria da literatura, da estética e da hermenéutica, como encerrado, depois que a dis- 5 Cf, Suiedter (1976) e as amtologias de textos, junto com as introdugbes 2 Texte der russischen Formalizen (Testos des formalieas russ), vol. 1: Texte zur allgemeinen Litenarurcheo- vie und zur Theorie der Prosa (Tesos sobre a teoria gerat da literatura e sobre a teoria da prosa), (Org) J. Stricder (1969), v Is Texte zur Theorie des Verses und der poetschen Sprache (Textosso- bre a teoria do verse sobre a inguagen poétiea), (Org) W. D. Stempel (1972); ainda F. Vodié- as Die Struktr der literarischen Enswicklung (A Exsrutura da evolugialiterdria), (Org) J. Stried- ter (1976) e M. Cervenka: Der Bedeutungsauibau des literarischen Werkes (A Construgio da signifcacio na obra literévia), (Org) WD. Stempel, Miinchen 1977. 6 De K. Mandelkow (1970), PB. U. Hohendahl (1974), G. Labroisse (1974), M, Nau- ‘mann (1973) ¢ R. Warning (1975); cf, no segundo volume desta obra, parte G 72 cussfo esclareceu” as escandalosas acusages teciprocas — as implicagées idealistas da teoria materialista ¢ os desideratos materialistas da “idealista burguesa” — e depois que os representantes ndo-dogmaticos de ambas as po- sigdes se viram diante da mesma tarefa: empregar a teoria da recepgao para uma nova histéria da literatura e das artes. Das criticas & minha Litenarurgeschichte als Provokasion resulta, para a am- pliago das posigGes ali desenvolvidas, o seguinte programa: para aandlise da ex- petiéncia do leitor ou da “Sociedade de leitores” de um tempo histérico deter- minado, necessita-se diferenar, colocar ¢ estabelecer a comunicacao entre os dois lados da relagio texto e leitor. Ou seja, entre 0 ¢feizo, como momento con- dicionado pelo texto, ¢ a recepedo, como o momento condicionado pelo desti- natério, para a concretiza¢ao do sentido como duplo horizonte — o interno a0 literério, implicado pela obra, ¢ 0 mundivivencial (lebensweltlich), uazido pelo leitor de uma determinada sociedade. Isso é necessario a fim de se discernir co- mo a expectativa ¢ a experiéncia se encadeiam e para se saber se, nisso, se pro- duz um momento de nova significacio. No entanto, o estabelecimento do ho- rizonte de expectativa interna ao texto ¢ menos problematico, pois derivavel do prprio texto, do que o horizonte de expectativa social, que ndo € tematizado como contexto de um mundo histérico. Por isso, enquanto a psicologia do pro- de recepgio for to pouco esclarecida quanto o papel e a produgao da ex- periéncia estética no sistema das estruturas de acéo de um mundo histérico, é pouco apropriado esperar-se um esclarecimento total sobre 0 comportamento dos leitores pelas andlises fundadas em classes ¢ camadas, bem como procurar na literatura da moda, a literatura trivial ¢ de consumo, a mais rigorosa expres- sio das relag6es econdmicas ¢ os interesses disfarcados de poder. ‘As tentativas de determinar os modos de interago da identificago com os herdis (I B) e de pesquisar o fundamento do prazer diante dos heréis comi- cos (1 ©) dedicam-se ao problema de come se pode compreender 0 processo emocional da recepgio literdria e da comunicagao, visto sob os pressupostos da 7 CE Schlaffer (1974), como titulo representativo: Erweiterung der materialistchen Li- teraturtheorie durch Bestimmung ihrer Grenzen (Ampliagao da tearia mateialsta da literatura amavis da determinagin de suas fronteinas) ¢ a8 replicas de W. Iser e H.R. Jauss a M. Naumann, Gesellchafi— Literatur — Lesen. Liteaturreception in theoretscher Set (Sociedade — Literatu ra— Leinune. A recepcio da lirerarara do ponto de viea rdrica) (1973), in Warning (Reception sdsthetile — Theorie und Praxis), Miinchen 1975. 3 perspectiva estética. Com a anilise transversal da lirica do ano de 1857 (1 E), expero, por outro lado, haver mostrade como pode se fazer transparente a construgao de um mundo histérico, por meio de um sistema de comunicagao literdria, assim como ter descrito a fungao estética in actu, Este ensaio, além do mais, adveio da procura de uma aplicagio da sociologia do conhecimento ¢, em suma, mais uma vez confirma que a literatura de consumo nao é determi- navel sem referéncia & fungio estética e social da literatura “clevada”. ‘A préxis estética ainda nao é de todo deter minada quando se iguala a atividade estética produtiva e receptiva com a dialética econémica da produ- go e do consumo, deixando-se de lado a atividade comunicativa, como 0 momento mediador da experiencia estética® Este momento de modo algum falta no modelo da circulagéo da Einlei- sung zur Kritih der politischen Okonomie (Introdugao &erttica da economia polk- rica) de Karl Marx, a que poderia recorrer a nova teoria marxista da recepio, para legitimar seu ultrapasse da teoria do reflexo ( Widerspiegelungsmadell).> In- tervém af, entre pradupdo € consumo, um terceiro momento, dividido em dis- sribuigdo ¢ rroca, que normalmente representada a drea da interacio, mas que, significativamente, permite compreender a aco comunicativa apenas na for- ma rudimentar de relages economicamente tealizadas ¢ ver a intersubjetivida- de da comunicagio apenas no enfrentamento abstrato da sociedade com o in- dividuo. Em conseqiiéncia, para servir como fundamento de uma nova teoria da prixis estética, o modelo da circulagao de Mars deveria primeiro ser com- pletado por uma revalorizacdo do processo de interacio. Isto, se a teoria de Marx nfo couber a critica que Jiirgen Habermas aplicou & simplificagao, cau- sadora das maiores conseqiiéncias, da teoria social de Mane: que ela iguala pré- xis e técnica, ¢ assim “nao explicita propriamente a conexio entre interacio trabalho, mas sim, sob o titulo especifico da préxis social, reduz uma & outra, ® Assim Naumann (1973), p. 18, ss, Em “Das Dilemma der ‘Rezeptionstistherik’” (Poctica 8, 1976, p. 451 ss), incluiu recentemente a esfera da distribuicio na dialética da pro- duio ¢ recepsio, reduzida porém a0 momento da circulacio e reservada, historicamente, 20 processo de socializagio da lirerarura burguesa, Assim, ainda al se adia revalorizacio da inte- ra¢io (a “trocs" como ago comunicativa) para uma nova teotia marxista da literatura. 9 "A pessoa se objetiva na producio, o produto se subjeriviza no consumo; na distri- buisdo, a sociedade assume a mediacao entve produsao e consumo, sob a forma de determi nnagBes gerais, dominantes: na trova, a mediagio intervém através da determinacio fortuita do individuo” (MEW, v. 13, p. 621). 74 ou seja, entende a a¢do comunicativa como conseqiiéncia da agao instrumen- ral”.!© Quem concorde com esta critica, nao precisa fundar a esperanca de uma préxis social nova — que ponha a agao comunicativa antes da acao instrumen- tal ¢ que assim deveria criar de novo o equilibrio da relacio triddica entre téc- nica, comunicagio e visio do mundo — apenas no ideal do discurso livre de poder. Esta esperanca € mais fcil de se legitimar se, antes de tudo, ¢ mostrado 0 rendimento das trés fungdes da aio humana na atividade estética, onde a técnica transparece como Poresis, a comunicagio como Katharss ¢ a visio de mundo como Aisthesis, isto é, na experiencia da arte, que afirma a autonomia da agéo humana, através da histéria das relagbes sucessivas de dominio. (Como a experiéncia estética ainda no tem uma hist6ria canonizada e, por iss0, nao dispse do acervo correspondente de fontes!! impde-se, endo é sé algu- mas vezes necessiria, uma aproximago maior, como a aqui iniciada, com as dis- ciplinas vizinhas, para que se aceitem ou retifiquem seus diagndsticos e interpre tages, Também no quero dar a impresso de que eu sozinho, a partir de minha pesquisa e de minhas descobertas, haja decretado a tradigo que se manifesta por meio de minhas perspectivas em histéria e na hist6ria dos conceitos. Esforcei-me, por conseguinte, em tomar identificével o que anexei, onde, por falta de compe- téncia propria, acreditei estar autorizado a me apoiar nas pesquisas de outros. Se, esse ponto, sempre me referi ¢ citei os resultados doutros pesquisadores, sem. considerar suficientemente seus objetivos préprios, devo-lhes pedir uma descul- pa geral por terem sido, querendo ou nao, deste modo “ocupados”. Parece-me também recomendavel chamar a atengao sobre estes traba- thos, realizados em dreas vizinhas, porque, em. conjunto, tomaram disponivel um fundamento tedrico c histérico, do qual podem derivar pesquisas maisam- plas, no campo da experiéncia estética. O campo inteiro da pesquisa se inte- grou, sempre sob o prisma da interdisciplinaridade, aos temas e discussées do grupo Poetik und Hermeneutik; aos volumes publicados de sua série (I-VI: 1964-1976), devo o corpus mais rico de trabalhos preparatérios. Der Prozess der 10 “Arbeic und Interaktion” (“Trabalho e interacio”), in Techni znd Wissenschaft als ‘ideologie (Téonica e ciéncia como ‘deologia’). Habermas, Frankfurt, aM., 1968, p. 45; estas colocagoes foram retomadas ¢ ampliadas no ensaio Zur Rekonsiruktion des Historischen Mate- rialismnus (Para a reconstrugao do materialismo bistérico), Frankfurt 1976, espec. p. 160 ss. 4A mais fecunda ainda é a obra de K. Borinski, Die Antike in Poetle und Kunstibeo- rie (A Antigitdade na podtca e na teoria da arte) (Leipzig, 1914), embora demasiado centrada na “revivescéncia’” da antigiiidade e, por isso, necessitada de uma reinterpretacao permanente. 75 theoretischen Neugierde (O proceso da curiosidade tedrica) (1973), de Hans Blu- menberg, completa essencialmente a historia da experiéncia estética, na medi- da em que tematiza, 0 entrelacamento do teérico com o estético, desde a An- tigiiidade até a sua dissociagao no principio da Idade Moderna. Das Prineip Hoffisung (O Prinetpio-esperanca) (1959) de Ernst Bloch inclui a experiéncia estética nas categorias do “apareces” (Vorschein) e, desta forma, amplia a teoria unilateral da formagio do ideal de Freud. Jean Starobinski, em Oeil vivant (I: 1961, II: 1970), trabalhou a idéia de imaginacdo, a partir da historia da medi- ina e da histéria do conceito, e tornou sua significagio utilizavel nos paradig- mas da hermenéutica profunda. Quiest-ce que la littérature? (1948) de Jean-Paul Sartre abriu novos caminhos para a reabilitacio do leitor ¢ manteve sua impor- tancia na teoria da dialética entre escrever ¢ ler. Seu estudo fenomenolégico Limaginaire (1940) diferencia a produgao da consciéncia imaginante quanto perceptiva. Hoje, hd de se colocar a seu lado a Phenomenologie de lexperience esthétique (1967) de Mikel Dufrenne, compreendida como uma andlise trans- cendental do ato contemplativo além de seus “a prioris afetivos” e englobante de diferentes artes. Wolfgang Iser, com Der Akt des Lesens (O ato de ler) (1976), coloca ao lado da teoria da recep¢ao uma teoria do efeito estético, que conduz, a partir dos processos de transformacio, & constituicao do sentido pelo leitor e que descreve a ficgdo como uma estrutura de comunicagao. A estrutura dos tex- tos literdrios (1972) de Jurij Lotman ¢ também uma semistica esteticamente competente, que amplia 0 conceito de texto em direcdo a “informacio a mais” € ao “sistema formador de modelos”. As Strukturen der Lebenswelt (Extruturas do mundo da vida) (1975) de Alfred Schiitz ¢ Thomas Luckmann constituem © fundamento indispensivel para o problema da demarcacio do estético quan- to a outros universos de sentido da agao humana. Odo Marquard, diversas ve- zes (1973; Poetik und Hermeneutik II, VII e VIII), definiu o estético, histéri- ca e sistematicamente, a partir de suas fungdes compensatérias ¢ sugeriu a reinterpretagio da arte moderna como contrétia a “atrofia dos telos”, na Idade Moderna. Die Auflosung des Kunstbegriff (A dissolugio do conceito de arte) (1976), de Dieter Wellershoff, a tiltima andlise das manifestagies ¢ dissolugdes atuais do ambito estético, j4 esta fora do espaco histérico de minha exposicao. ‘Admito que este elenco de autores indica as linhas mestras de experién- cia ¢ que faltam alguns nomes. Pareceu-me contudo ocioso estabelecer dis- cussées polémicas com representantes doutras posicdes, onde se declare, ex- plicitamente, a decisao prévia em favor de uma estética da obra ou em que 76 no se analise a fungao comunicativa da experiéncia estética, Cabem neste reparo as teorias da chamada semiética parisiense e do grupo Tél Quel, con- tra as quais se levantou a conhecida e até hoje nao rebatida censura de Sar- tre: absolutizam a obra como écriture, afastam 0 leitor e, com isso, esquecem que a literatura é comunicagio.!? E 0 fato de que, declaradamente, eu con- ceda a primazia a via histérico-hermenéutica na definigao das fung6es da ex- periéncia estética, no me parece implicar uma retomada da velha discussio com a lingtifstica estrutural, com a poetica ¢ com a teoria da comunicagao; gostaria de que os resultados rec{procos decidissem em que os métodos con- tribuem para o problema da comunicacio literdria e onde se podem comple- mentar, para, de fato, integré-los. Meu agradecimento aos autores que, na seqiiéncia deste trabalho, cada vyez mais aprendi a apreciar, ea reconhecer como meus predecessores, serd, com. certeza, ocultado pela inevitavel redugio de suas teorias sobre a posicio a par- tir da qual péde o problema ser mais desenvolvido. John Dewey, com Art as experience (1934) e Jan Mukatovski; com Asthetische Funktion, Norm und de- thetischer Wert als soziale Fakten (A fungdo estética, a norma e 0 valor como fatos sociais) (1936) principiaram, na década de 1930, a rejeitar a estética da obra. O primeiro especificou a experiéncia estética como “qualidade” inerente de to- da experiéncia, realizada, o tiltimo como o principio “vazio”, isto é, transparen- te da fungio estética, que é capaz de captar e dinamizar todas as demais ativi- dades. Os pressupostos subjetivos no enfoque estético ¢ a delimitagao da experiéncia estética em face dos outros universos de sentido da vida permanc- com em aberto ¢ possibilitaram indagacées posteriores. No mesmo tempo, Walter Benjamin, com seu ensaio Das Kinstwerk im eitalter seiner techmischen Reproducierbarkeit (A obra de arte na época de sua re- produsibilidade téonica) (1936) ¢ Herbert Marcuse, com sua critica Uber den Af famativen Chanakter der Kultur ‘Sobre 0 cardter afirmativo da cultura) (1937) abriram a discussio sobre a abolicio da arte aurénoma. Benjamin definiu a ex- perigncia estética a partir do conceito da aura, e, com a andlise das conseqiiéncias de sua desrinualizagio, na época atual, antecipou as teses do Musée imaginaire 12 Em uma discussdo piblica com J. 2 Faye, J. Ricardou e outros, em 9 de dezembro de 1964, publicada sob o titulo: Que peut la littérature’, na col. Lnédit, Patis, 1965, p. 107- 127. Sobre Roland Barthes, que, em Le plaisir ds texte, redescobre o leivor que usufrui isolada ¢ filologicamente, voltarei no Cap. 3 (cf. aqui ensaio seguinte, N.T). 77 (1951) de Malraux,5 concedendo & arte tecnizada a significaco revoluciondria de, no firturo, transformar as massas no proprio sujeito de uma praxis estética po- litizada, Marcuse atacou a cultura idealista da época buzguesa, considerou a ex- perincia estética vigente suspeita de corroboradora do stamus quo e fundamentou a esperanga em uma organizagio melhor na “‘liberagéo do ideal”, através da emancipacao da experiéncia sensivel do belo, Marcuse que, nesta obra, esteve prestes a cair int cata na critica ideolégica, viu mais tarde na experiéncia estética a “dimensdo decisiva da liberdade” ¢ inferiu da “verdade subversiva da arte” a “pro- ‘essa da liberagio possivel’.!“ Deste modo, entretanto, ainda havia de se provar, pela histéria da experiéncia da art, este seu potencial subversivo, nao violento, “qanscendentea todo conteiido de class”; ou seja, havia de se esperas, como diz em face da teologia da histdria redentora de Benjamin, a redengao do passado, no s6 dos “momentos verdadeiros” de uma coincidéncia entre critica e profecia, mas também da continuidade da pritica estética dos homens, nunca totalmen- te reprimivel. ‘Abermentutica filoséfica de Hans-Georg Gadamer ( Walbeis und Mesho- de) (Verdade e métode) (1960) ea obra péstuma de Theodor Wiesengnind Ador- no, Asthetische Theorie (Teoria extética) (1970), deram-me o impulso direto para esta pesquisa. A teoria de Gadamer da experiéncia hermenéutica, a explicaggo histérica desta experiéncia na histéria dos conceitos humanisticos fiundamentais, scu principio de reconhecer na histéria do efeito (Wirkungygeschichte) 0 acesso a toda a compreensio histérica e a solucéo do problema da realizacao controlivel da “fusio de horizonte” séo os pressupostos metodol6gicos inquestiondveis, sem 0 quais o meu projeto seria impensével. Parece-me contudo discutivel a “salva- 0 do “passado” de Gadamer por sua idéia do clissico, atribuindo-sc “aos textos ceminentes” uma “superioridade ¢ uma liberdade de origem”, diante doutra tra- digio.!® Como, no entanto, conciliar esta superioridade original da obra clissica com o principio de concretizaczo progressiva do sentido? Como harmonizar a “identidade de sentido” da pergunta original, “que sempre medeia entre a origem a atualidade”, com a condita produtiva da compreensio, na aplicagao her- 15 In Les woix du silence, Paris, 1951, néo se encontra nenhuma referencia a0 que € tomado de Benjamin. ‘4 Tn Konterrevolution und Revolte (Contra-revolugito c revolta), p. 82, 104, 116. 'S Posticio a Wahrheit und Methode, 3* ed., Tubingen 1973, p. 539-540. 16 Ib. e (1960), com referéncia ao capitulo “Das hermeneutische Problem der An- wendung” ("O problema hermenéutico da aplicasio”), p. 290 ss. 78 menéutica? Creio, por isso, que possa invocar Gadamer contra Gadamer, quan- do sigo seu princfpio de aplicaggo e enttendo que a hermenéutica litendria tem por tarefa interpretar a relacao de tensio entre texto e atualidade como um processo, no qual o didlogo entre autor, letor e novo autor refse a distincia temporal no vai-e-ve de pergunta ¢ resposta, entre resposta original, pergunta atual ¢ nova solugio, concretizando-se o sentido sempre doutro modo ¢, por isso, sempre mais rico. Um segundo ponto que me parece discutivel é a critica de Gadamer & “abstragdo da consciéncia estética’.!” Esta critica atinge, na verdade, as formas de decadéncia da cultura estética do século XTX, mas nao esclarece as fungdes da experiéncia estética entre 0s palos histéricos da apropriagéo cultural (“ndo diferenciacao estética’) e do museu imagindrio (“diferenciacao estética’).'* Na Asthetische Theorie de Adorno, estas fungies, como toda a praxis estética da ar te pré-auténoma, cam numa dialética formada entre afirmario e negativida- de: em vista de uma praxis funesta, que ameaga reduzir toda experigncia esté- tica ao citculo da satisfagdo das necessidades manipuladas, ao comportamento consumista, apenas a obra de arte monddica ainda tem a forga de, por efeito de sua negatividade e pela reflexio de seu contemplador solitério — contem- plador que renuncia a todo prazer estético — de romper com a aparéncia do contexto geral de enfeiticamento. Na estética da negatividade de Adorno, a ar- te ea literatura vanguardistas dos anos 60 alcancam sua mais ampla teorizacao ¢ sua mais forte legitimacao; dediquei-lhe uma critica detalhada (Cap. 2), por- que reconhego em Adorno o adversério que me provocou a busca de assumir © papel pouco comum de apologeta da experiéncia estética, posta em descré- dito. Em vista da situacdo atual, o “parti pris” de minha intengio apologética deve ser agora sumariamente exposto. O discurso pouco critic sobre o “cardter de mercadoria’ da arte, mesmo sob as condigées da sociedade industrial, nao considera que, até mesmo os produ- tos da “indiistria da cultura’, permanecem como mercadorias sui generis, cajo ca- rdter permanente de arte é to pouco compreendido pelas categorias de valor de uso ¢ de mais-valia, quanto a sua circulacao o é pela relacao de oferta e procura.!? 1” Gadamer (1960), p. 84 ss. 18 CE ibidem, p. 81 ss. 19 A respeito, deve-se chamar a arengéo para a andlise minuciosa que Hannelore Schlaf- fer apresentou em sua “Kritik eines Klisches: ‘Das Kunstwerk als Ware” ("Critica de um diché: ‘a obra de arte como mercadoria ”), in Heine Schlaffer: Enueiterung (cf nota 7). 79 E sé de modo parcial que a necessidade estética é manipulvel, pois a produgéo € a reproducdo da arte, mesmo sob as condigées da sociedade industrial, ndo consegue determinar a recepgao: a recep¢io da arte nao é apenas um consumo passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da aprovacao e da recusa,2? ¢, por isso, em grande parte nao sujeita ao planejamento mercadolégico. Han- nelore Schlaffer, a quem agradecemos a critica mais penetrante do exitoso dli- ché, “a obra de arte como mercadoria’, também mostrou a curiosa passagem desta estética critico-ideolégica para o campo do pessimismo conservador: para sair do suposto “contexto de enfeiticamento” total da prixis estética contempo- rinea, restaura-se, sem se dizer, a obra de arte revestida de aura e sua contem- plagao solitdtia, como medida estética de uma essencialidade perdida. Assim a critica materialista retorna 4 compreensio idealista da arte, propria daquela “es- tética burguesd” contra a qual se levantara.2! A teoria de Adorno sobre a maquinaria da industria cultural ¢ de seu efeito de conjunto, no sentido de um “antiiluminismo”,”? ainda despertou, noutras escolas, o preconceito de que a arte de uma elite cultural cada vez me- hor, diante da multidio crescente de consumidores da indiistria cultural, ndo tem mais salvago. Mas o contraste entre uma arte de vanguarda, apenas vol- tada para a reflexo, e uma produgio dos mass media, apenas voltada para 0 consumo, de modo algum faz justica & situagdo atual. Ainda nao sc provou que a quebra das fronteiras do estético, através das possibilidades nao pressen- tidas da atividade poética e estética, leve necessariamente a “dialética do ilu- minismo”. Tampouco estd provado que a experiéncia estética, tanto da arte contemporanea quanto da arte do passado, que, pelos mass media, jd no s6 atinge uma camada culta, mas se abre para um cfrculo de destinatdrios até ho- je nunca alcangado, deva inevitavelmente degenerar numa relagdo consumis- tae corroboradora do starus quo. Contra isso €, quando nada, de se opor 0 que Brecht jé formulara a respeito do efeito do cinema: “Todos concordam 20 Sobre o duplo sentido do conccito de “manipulacac” ¢ para a defesa da retérica an- te a suspeita de formadora inevitavelmente coercitiva da opinigo, veja-se H-. C. Gadamer, in Apel: Hermenewtil und Ideologiehritile (Hermentutica e critica idevlégica), Frankfurt a.m. 1970, p-304 ss. 34 Iu Schaller (1974), p. 282 95 conn relerenici Ware (Da obra de arte & mercadoria), Neuwied, 1972 2 “Resumé iber Kulturindustrie” (“Resumo sobre a indistria da cultura’). in Ador- no: Ohme Leidhild — Parva Acschetia Sem tdolo — pequena esetica), Frankfurt, 1967. | H. Hole: Wore Keansrverk zim 80 que o filme, mesmo 0 mais artistion, é uma mercadoria (...). Quase sem exce- 30, todos lamentam este fato. Aparentemente, ninguém consegue imaginar que esta mancira de ser langado no mercado possa ser vantajosa para uma obra de arte”: Em que a teoria estética — que aparentemente estd em desvantagem crescente quanto aos métodos mais divulgados da semidtica, da teoria da in formacio e da lingtiistica do texto (Textlinguistik) — pode contribuir para a solucao do problema, a partir de sua propria competéncia ¢ tradicao, se a mudanga, tantas vezes prognosticada, de toda experiéncia estética comuni- cativa em uma fangio apenas ideolégica é o destino inevitivel da arte con- temporanea? A Asthetische Theorie de Adorno apresenta quanto a isso ape- nas uma resposta puritana: “Abstendo-se da praxis, a arte se tora o esquema da praxis social”. A ascese, que, desta maneira, se impée aos pro- dutores ¢ receptores da arte, deve libertar a consciéncia tutelada do indivi- duo da praxis de seu comportamento consumista. Nao se entende, porém, como, mediante receitas da pura negatividade, que também representam 0 ultimo degrau da sabedoria para uma estética materialista do tipo da do grupo Tél Quel, realizar-se-d a passagem para um novo esquema de préxis social.” A tese segundo a qual ¢ exatamente a obra de arte autonoma aque- la que oferece a contradita implacdvel & opressio social, herda, com o prin- cipio de art pour Fart, que volta aqui a ser valorizado, a perda da prixis, por sua vez conseqiiéncia da autonomia da arte, alcangada no século XIX, junto com a separagio da arte em “superior” (desinteressada) e “inferior” 23 Gesammelte Werke (Obras reunidas), v. 18, Frankfurt, 1967, p. 60-70. 4 Adorno (1970), p. 339. 25 Na Franca, a teoria panideolégica da Louis Althusser exerceu uma influencia mar- cante, Segundo esta teoria, toda aso socal inevitavelmente cai em poder do aparelho ideolé- gico do Fstado ¢ o imagindrio funciona como o instrumento principal da ideologia, para que 0 individuos concreros se convertam, sem o saber, em “sujeitos” (jogo de palavra com o du- plo sentido da palavra francesa) dependentes. Como a “produsao do interesse estético” pode servir apenas & reproducio do cédigo ideoldgico, & conveniente suspender, por enquanto, a &x- periéncia estética, aré que de novo se realizem as condigées para uma arte liv, atzavés da agio da ura de classes. Esta conseqiiéncia foi inferida, de mancira mais conseqiiente, por Charles Grivel, a partir do ensaio de Aluhusses, “Idgologie et upparels idéologiques dEtat” (in La Pen sée, junho 1970, 1-36), em uma monumental andlise transversal da década de 1870-1880 (cf Praducrion de Uitéeée romanesque, Un éat du teete, Hague Paris, 1973) 81 (itil).?° Para que ao antiiluminismo da industria cultural se oponha um no- vo iluminismo, por meio da experiencia estética, é preciso que a estética da negatividade nao mais renegue o carster comunicativo da arte. Fla deve se libertar da alternativa abstrata entre negatividade ¢ afirmagao, pela procura de refundir as formas violadoras da norma, ressaltadas na arte de vanguar- da, em produgoes formadoras de norma da experiéncia estética. A historia da experiéncia estética nos oferece pelo menos trés boas ta- wes para a tese de que a funcéo normativa da experiéncia estética, mesmo ho- je, nao hé de, inevitavelmente, resvalar na adaptacio, ideologicamente dirigi- da, ¢ que haja de terminar na pura afirmacao do status quo, Por mais terrivel que possa parecer aos puritanos da critica ideolégica a situagdo das artes sob 0 dominio ¢ a velada manipulacéo dos novos mass media, houve épocas no passado em que a sujeigao da arte tornava muito mais veross{meis os prognds- ticos sobre sua decadéncia. A proibigdo de imagens, por exemplo, que ressur- git periodicamenre durante o dominio da Igreja, par certo nao era um peri- go menor 2 praxis estética do que a inundagao de imagens através de nossos mass media. E, no entanto, de cada fase de hostilidade & arte, a experiéncia es- rética emergit: numa forma nova e inesperada, seja esquivando-se da proibi- 40, seja reinterpretando os cinones, seja descobrindo novos meios de expres- so, sobre o que ainda se falard (Cap. A 4), Esta rebeldia basica da experiéncia estética evidencia-se em segundo lugar, por sua permissio, muitas vezes rei- vindicada e dificilmente reprimivel, de colocar perguntas indiscretas ou de stt- gerir veladamente pela ficgio, onde um sistema de respostas obrigatdrias ¢ de indagacdes apenas toleradas consolidava ¢ legitimava o predominio de uma visio de mundo, Esta fungao transgressora de pergunta ¢ resposta encontra- se nos caminhos clandestinos da literatura ficcional, assim como no caminho real dos processos literérias: na recepgio dos mitos, que — veja-se, por exem- plo, a histéria de Anfitrido”” — deixa longe de si toda “superioridade origi- nal” ¢, enquanto veiculo de emancipagdo, pode plenamente concortet com 0 pensamento filoséfico. 26 Contra Adorno que, em seu “Reslimé uber Kulturindusteie” (1967, p. 60), apa- rentemente ignora que a separacio das esferas da arte em superior ¢ inferior nao vigora hd mi- lenios, pois aquelas esferas se encontravam unidas na fungéio pritica, até a emancipagio das belaseartes. 27 Cf. minha contribuicao a Paesik und Hermeneutik VIII (a ser republicada no v. I desta obra). 82 Quanto & pergunta como a arte poderd negar o status qua ¢, nao obstan- te, formar normas; dito doutro modo, como poderd prescrever normas para a agao pritica, sem as impor, de modo que sua normatividade sé se imponha pe- Jo consenso dos receptores, hd, em terceiro lugar, a formula de um iluminista do século XVIII, de indiscutivel autoridade. Ela se encontra na explicagao de Kant sobre o juizo de gosto: “O juizo de gosto nao postula por si mesmo a ade- so de cada um (pois s6 um jtsizo ldgico universal pode fazé-lo, porque pode apresentar raz6es), cle apenas atribui a cada um esta adesio como um caso regra, em vista do qual espera a confirmacao, nao a partir dos conceitos, mas pe- Jo acordo dos outros.”* Por conseguinte, a experiencia estética nao se distingue apenas do lado de sua produtividade, como criagido através da liberdade (S ef. 43), mas também do lado de sua receptividade, como “aceitagao em liberdade”. A medida que o julgamento estético pode representar tanto 0 modelo de um julgamento desinteressado, nao imposto por uma necessidade (§ ef 5), quan- t0.0 modelo de um consenso aberto, nao determinado «a priori por conceitos € regras (§ c.f. 8), a conduta estética ganha, indiretamente, significagéo para a pré- xis da aco. E 0 caso exemplar, distinguido por Kant como o procedimento da sucesio (Nachfalge) em face do mero mecanisano da imitagio (Nachabmung),? que medeia entrea razio tesrica ea pritica, entre a universalidade Iégica da nor- ma ¢ do caso ¢ a vigéncia aprioristica da lei moral, possibilitando, deste modo, a ponte entre o estética € 0 ético.”” O que, de inicio, poderia parecer como de- ficiéncia do jutzo estético — isto & que possa ser apenas exemplar ¢ nao neces- sirio pela Iégica — mostta-se como seu trago peculiar: 0 fato de 0 juizo estéti- co depender do consenso de outrem possibilita a participacio em uma norma em formagio, e, a0 mesmo tempo, constitui a sociabilidade. Kant, portanto, re- conheceu no juizo do gosto, necessariamente pltenalitico (§ ef. 29), a capacida- de de jutza sobre tudo aquilo atraués de que se pode transmitir a qualquer um até 0 seu proprio sentimento; derivou, ademais, este interesse empirico pelo belo, se 28 Kriike der Urtetlrapt (Critica da fculdade de julgar), § 8 2 Para o melhor entendimento do leitor brasileiro, cranscrevemos a passagem refe- rida de Kant “A justa expressdo paca a influéncia que as produgdes de um criador exemplar podem ter sobre os outros ¢ sucesso (Nachfolge) ¢ nao imitagao (Nachahtnung), Kritik der Urteilseraft. § 32. (Nota dos Tradutores).. 30 Tb, § 32, Sigo aqui a interprewagao de Giinther Buck: “Kants Lehre von Exempel” ("A doutrina kantiana do exemplo”), in Archiv flr Begriffigeschichre 11 (1967), 148-183, es pec. p. 181. 83 bem que sé de passagem, de uma analogia notével com © Contrat social de Rousscau. O juizo estético, que exige de cada um a busca de uma comunicagio universal, satisfaz um maximo interesse, pois resgata, esteticamente, uma parte do contrato social origindrio: “Também cada um espera e exige que se busque ‘uma comunicacéo universal com os outros, como se fosse por conseqiiéncia de tum contrato original, ditado pela propria humanidade” (§ cf 41). Tradugdo de Luiz Costa Lima e Peter Naumann Revisio técnica de Heidrun Krieger e Uwe Schmelter 84

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