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— A loucura de Isabella Lucia Wataghin - UsP RESENHA de: A loucura de Isabella ¢ outras comédias da commedia dell'arte, de Flaminio Scala. Organizasio, traducdo, introducio ¢ notas de Roberta Barni. Sao Paulo: Iluminuras, 2003. Nem todos os segredos da commedia dell'arte — apesar da grande quanti- dade de estudos dedicados a esse género, que dominou as cenas européias nos séculos XVI e XVII ~ foram ainda desvelados. Talvez nunca 0 venham a ser. A condigéo de “efémero” do fendmeno teatral parece alcangar aqui seu emblemético ponto maximo. No Brasil, particularmente, muito pouco se sabe sobre essa fase da histéria das artes cénicas, apesar de sua importancia para a formagio do teatro moderno. Chega portanto em boa hora a publicagéo, pela editora Iuminuras, de uma coletinea de comédias, traduzidas para 0 portu- gues, de Flaminio Scala (1547-1624), ator, dramaturgo, perfumista e diretor de uma das primeiras comy anhias da commedia dell'arte. Nao se trata de comédias apresentadas de forma tradicional, mas de “canovacci”, ou seja, de roteiros teatrais, compostos de tema (“argumento”), elenco dos personagens, objetos de cena (“coisas para a comédia”), acdes ¢ falas dos personagens ~ falas, porém, apenas indicadas, e nao redigidas por exten- so. Na qualidade de “leitores” de teatro, estamos acostumados a considerar A loucura de tsabella Lucia Wataghin as falas dos personagens (0 texto) como o fato central em qualquer pega € desconsiderar 0 fato de que a encenacio de um texto vai muito além do pro- nunciar das falas. Talvez essa forma peculiar de apresentar as comédias, pro- posta por Flaminio Scala no comego do século XVII, possa ter 0 mérito, hoje, de nos fazer refletir sobre o conjunto do espeticulo, sobre essa soma de ex- pressées das quais as falas séo apenas uma parte. Ao colocar no papel seus cingiienta canovacci (quarenta dos quais, as co- médias, agora traduzidas, se encontram neste volume), Flaminio Scala estava promovendo a gradual institucionalizagao de um teatro populas, rival e para- Ielo ao teatro cldssico, que por sua vez continuava a ser representado nas cor- tes, baseado nos textos escritos dos autores, dos quais nunca prescindiu. A commedia dell‘arte também tem textos, é claro: textos que estavam na memé- ria, ou talvez também nas anotagdes pessoais dos atores/autores, que forma- vam, durante anos de carreira, seus repertérios de falas ¢ exibigbes adequadas a.um personagem ou a uma situagao. Embora apenas uma pequena parte desses repert6rios tenha sido editada e publicada, a commedia delll'arte sobreviveu, sobretudo nos personagens, muitos dos quais fazem parte do nosso imagind- rio coletivo, ainda que nao saibamos exatamente sua origem e sua histéria. Sabemos, por exemplo, que as companhias da commedia dell’arte, em suas viagens pela Europa, acabaram tendo uma notével influéncia sobre as mani- de Shakespeare a Molitre, de Marivaux a Beaumarchais a Goldoni. Mas sua fescacdes teatrais locais e sobre 0 teatro contemporaneo e posterior: contribuigao & nossa cultura nao se restringe ao teatro, sendo disseminada em varios ramos do conhecimento ¢ das artes. Na rica iconografia que acompa- nha seu texto introdutério, a tradutora e organizadora do livro, Roberta Barni, colocou a reprodusao de um Arlequim de Paul Cezanne e de uma foro de Anna Magnani em traje de Arlequim, numa cena do filme Le carrosse d’or, de Jean Renoir: dois entre os numerosos exemplos possiveis da forga de penetragio na nossa cultura dos icones da commedia dell'arte. Particularmente no Brasil, um dos paises no mundo onde mais se festeja 0 carnaval, personagens como Arlequim (0 criado, representante da plebe em luta pela vida, sempre famin- to certamente por isso autocontraditério — porque a tinica “verdade” é a evista or Malianistiea view am Resenha necessidade -, covarde e dessacralizador, irresponsdvel ¢ engracado) & Colombina (mascara da moga bonita e voltivel), ao se transformarem em tra- jes do carnaval brasileiro, constituem uma viva ponte entre a cultura ceatral popular italiana ea mais tipica festa brasileira. De resto, arlequinada, arlequinal € outros termos derivados de arlequim sio palavras que jé pertencem ao nos- so vocabulirio. Até mesmo a preguiga de Arlequim, ¢ de todos os zanni (os ctiados) da commedia dell'arte, uma qualidade de certa forma revolucionéria, sendo expressio de critica e revolta contra a autoridade, tem algo de univer- sal: € quem pode dizer que a preguiga do Macunaima de Mario de Andrade nao seja inspirada nessa antiga preguisa italiana? Os outros personagens da commedia dell'arte também sao ricos de charme, com seus esteredtipos: o veneziano Pantalone Magnifico ou Pantalone de’ Bisognosi — cujos apelidos irdnicos (de’ Bisognosi quer dizer “dos necessitados”) so alus6es & sua tremenda sovinice -, mascara de um velho e rico mercador, em geral tolamente apaixonado; 0 bolonhés Balanzone (Doutor Graciano), jurista ou médico, verborrdgico ¢ pedante, representante da “alta” cultura (Bolonha, sede da mais antiga universidade européia, é tomada aqui como 0 emblema do pedantismo dos universitérios); 0 Capitio Spaventa, também chamado de Rodomonte, Spezzaferro, Capitan Fracassa, outro tipo especial- mente antipético aos olhos dos italianos, por sua fanfarronice ¢ covardia; um personagem que se finge corajoso, mas, como escreve Roberta Barni, “na hora do vamos ver, foge” Para a construcao da parédia de todos esses tipos, um dos recursos mais poderosos foi certamente a lingua, sendo que os persona- gens se expressavam com falas regionais ou dialetos. Este fato nao sé tem agradado sempre o publico italiano, mas certamente era condigao essencial para a representacio da comédia para um piiblico plebew, que notoriamente nao falava italiano, mas somente seu prdprio dialeto (0 dialeto mais préximo do italiano € 0 toscano, usado nas cenas de commedia dell‘arte pelos namorados, pelo préprio Scala, portanto, para representar seu papel em teatro, como in- forma Roberta Barni; mas o toscano nao deixa de ser um dialeto). © caso do Capitdo Spaventa, cuja lingua, magnilogiiente e cerimoniosa, era entrecortada de espanholismos macarrénicos, é outro exemplo de como 0 24 \ loucura de Isabella Lucia Wataghin genio comico e irreverente do tcatco popular atacava toda e qualquer institui- ao de poder: nesse caso, assumindo as dores € a revolta dos italianos cansados dos invasores espanhéis que dominaram o sul da peninsula por séculos. Particularmente qualificada para este trabalho, por ser italiana ha muitos anos radicada no Brasil, professora de lingua e literatura italiana (USP), tra- dutora profissional, mestre em Lingiifstica e Tradutologia e formada em dire- Ao teatral pela Escola de Comunicagao e Artes (USP), Roberta Barni enfren- tae resolve dificuldades notdveis na traducao para 0 portugués do italiano da época de Flaminio Scala. O livro composto por ela (selecao, tradugao e in- trodugio as comédias), além de ser, em primeiro lugar, de grande importin- cia para os profissionais do teatro, diretamente interessados no assunto, tem © mérito de reconstruir também para o ptblico nao especializado o que é atualmente reconstitufvel desta parte da histéria do teatro: nao sé com os canovacci aqui traduzidos, mas também com 0 excelente estudo introdutério, que nos revela muitos dos antigos segredos da commedia dell'arte. O maior desses segredos, do meu ponto de vista, talvez ainda seja o dos textos das pecas das quais Roberta Barni nos apresenta os canovacci. Como eram esses textos? Onde esto agora? Resta dizer que esta curiosidade, susci- tada pelas peculiaridades do material que estamos examinando, talvez seja reveladora de um vicio do nosso olhar, sempre em busca de textos ¢ autores para canonizar. Quem sabe nao valha a pena, desta vez, trocar 0 prazer do texto (0 prazer de ler o texto pronto) pelo prazer de penetrar num mundo em que os textos ainda nao eram sagrados, mais fluidos, flexiveis, em constante mutagao, justamente porque ainda no sujeitos 4 fixidez da forma escrita.

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