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JULIA KRISTEVA ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS MARIA CARLOTA CARVALHO GOMES —§VW7O©OOWN———S—S ee - “Thule orginal [ETRANGERS A NOUS MEMES © 1988, Lise Ant thee Fayard Dircitos ara agua portguess reserve com eclusividade pa 9 ras 'EDITORA ROCCO LTDA. ua Rodrigo Siva, 26 — 5° endar 2001-080 Rio de Jacko, RI “al! so72000 = Fax rad ‘low 342 EDRC Bk Printed in Brot pro wo Basi MAIRA PARULA revisto SANDRA PASSARO /MAURICIO NETTO ‘WALTER VERISSIMO. VIVIAN MARA CABRAL (CiP-Bras. Calogscto-nefnte Sindcato Nacional dos Eatoes de isos, Rd Krisea, Julia, 194 Kote Bstangeos para ns memos / Juli Kristes adusdo ‘Maria Celta Carvabo Gomes, — Ris de lanes Rowe 1994, Tanda de: Eranpers& nousmémes |, Esuangios. 2. Exrangeos — Aspects pcalégcon 3. Enrangetos aa Keraturs. 1 Hale cop - 302s HS so pu - 304461 | Leitor hipécrita, meu semelhante, meu irméo. BAUDELAIRE Mas o que € préprio deve ser to aprendido quanto 0 que é estrangeiro, HOLDERLIN Em pais estranho no meu préprio pais. ‘ARAGON SUMARIO Tocata ¢ fuga para o estrangeirO.........-. Os gregos entre barbaros, suplicantes ¢ metecos... 47 © povo eleito € a eleigdio da estranheza. 70 Sao Paulo ¢ Santo Agostinho: terapia do exilio ¢ da peregrinacao .. a + 82 Com que direito vocé é estrangeiro?. sees 100 Esse renascimento, ‘“‘de uma contextura t40 informe ¢ diversa’ 6 +. 110 Das luzes e dos estrangeiros. oe 134 A universalidade ndo seria a nossa propria estranheza? 177 Praticamente... TOCATA E FUGA PARA O ESTRANGEIRO Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparéncia, traco opaco, insondé- vel. Simbolo do édio ¢ do outro, o estrangeiro nfo ¢ nem a vitima romdntica de nossa preguiga habitual, nem o intruso responsavel por todos os males da cidade. Nem a revelacdo a ‘caminho, nem o adversrio imediato a ser eliminado para pa- cificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nds: _ ele é a face oculta da nossa identidade, 0 epaco que -wnossa miorada, o tempo em que se afundam o entendimento ‘¢-a-simpatia;-Por reconhecé-lo em nds, poupamo-nos de ter que detest4-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “‘nds”” pre- cisamente problemético, talvez impossivel, 0 estrangeiro comega ‘quando surge a consciéneia de minha diferena e termina quan- do nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vincu- los e as comunidades. O “estrangeiro”, que foi o “‘inimigo” nas sociedades pri- mitivas, pode desaparecer nas sociedades modernas? Lembra- remos alguns momentos da historia ocidental onde o estran- geiro foi pensado, acolhido ou rejeitado, mas também onde a possibilidade de uma sociedade sem estrangeiros péde ser cogitada no horizonte de uma religiao ou de uma moral. Hoje coloca-se novamente a questo, ainda e talvez sempre utdpi- ca, diante de uma integracdo econdmica ¢ politica na escala do planeta: poderemos viver intimamente, subjetivamente, com 0s outros, viver os oufros, sem ostracismo, mas também sem nivelamento? A modificacao da condicéo dos estrangeiros, que atualmente se impée, leva a refletir sobre a nossa capacidade de aceitar novas formas de alteridade, Nenhum ‘eédigo de ma- 0 ESTRANGEIROS PARA NOS MEMOS cionalidade’” poderia ser praticavel sem a lenta maturagao dessa questo em cada um de nés. Inimigo a ser abatido nos grupos humanos mais selvagens, © estrangeiro, na esfera das concepsdes religiosas e morais, torna-se um homem diferente que, sob a condigao de aderir a elas, pode ser comparado a alianca dos “sdbios”, dos ‘*jus- tos"” ou dos “‘naturais”’. No estoicismo, no judaismo, no éris- tianismo e até no humanismo das Luzes, variam as figuras dessa aceitacao que, apesar dos seus limites ¢ dos seus defeitos, per- manece uma barreira séria contra a xenofobia. A violencia do problema hoje colocado pelo estrangeiro provém, sem diivi- da, das crises das concepedes religiosas e morais. E causada, sobretudo, pelo fato de que a absoredo do estranho proposta por nossas sociedades revela-se inaceitavel para o individuo mo- derno, defensor de sua diferenca, nao somente nacional e éti- ca, mas essencialmente subjetiva, irredutivel. Saido da revolu- 40 burguesa, o nacionalismo tornou-se o sintoma, primeira- mente romantico, em seguida totalitério, dos séculos XIX XX. Ora, se 0 nacionalismo se opde as tendéncias universalis~ tas (sejam elas religiosas ou racionalistas), dispondo-se a se- gregar e mesmo a perseguir o estrangeiro, nem por isso chega, por outras vias, ao individualismo particularista e intransigente do homem modemo. Mas talvez seja a partir da subversio desse individualismo moderno, a partir do momento em que o cidadao-individuo cessa de se considerar unido ¢ glorioso pa- ra descobrir as suas incoeréncias e os seus abismos, em suma, as suas “estranhezas", que a questo volta a se colocar: ndo mais a da acolhida do estrangeiro no interior de um sistema que 0 anula, mas a da coabitaco desses estrangeiros que to- dos nés reconhecemos ser. Nao procurar fixar, coisificar a estranheza do estrangei- ro. Apenas tocé-la, rogé-la, sem Ihe dar estrutura definitiva, Simplesmente esbocar o seu movimento perpétuo através de alguns rostos disparatados desfilando hoje sob nossos olhos, através de algumas de suas imagens antigas, mutantes, disper- sas na historia. Tomar também mais leve essa estranheza, vol- tando a ela incessantemente — mas cada vez de forma mais rapida, Fugir do seu édio e do seu fardo, nao pelo nivelamen- to ¢ pelo esquecimento, mas pela retomada harmoniosa das diferencas que ela estabelece e propaga. Tocatas e Fugas: aos TOCATA E FUGA PARA O ESTRANGEIRO 0 meus ouvidos, as pecas de Bach evocam 0 sentido que eu gos- taria que fosse o atual da estranheza reconhi 3 uma vez que transcendida, suavizada, disseminada, inscrita ‘num jogo novo em formacao, sem finalidade, sem limites, sem fim. Estranheza levemente tocada e que jé vai se afastando. Felicidade que se queima Existem estrangeiros felizes? rosto do estrangeiro queima a felicidade, Primeiramente, a sua singularidade impressiona: esses olhos, esses labios, essas faces, essa pele diferente das outras © destacam e lembram que ali existe alguém. A diferenca des- se rosto revela um paroxismo que qualquer rosto deveria reve- Jar ao olhar atento: a inexisténcia da banalidade entre os seres humanos. Entretanto, é o banal, precisamente, que constitui uma identidade para os nossos habitos didrios. Porém esse dis- cernimento dos tracos do estrangeiro, que nos cativa, ao mes- ‘mo tempo nos atrai e repele: ‘*Pelo menos, sou também — sin- gular e portanto devo amé-lo” diz para si o observador; ‘nao, prefiro a minha prépria singularidade e portanto devo matd- Jo”, pode ele concluir. Do amor ao ddio, 0 rosto do estrangei- ro nos forca a manifestar a maneira secreta que temos de en- carar 0 mundo, de nos desfigurarmos todos, até nas comuni- dades mais familiares, mais fechadas. Além do mais, esse rosto téo outro traz a marca de um limite transposto que se imprime, de modo irremediavel, nu- ma calma ou numa inquietagdo. Seja ela perturbada ou ale- gre, a expresso do estrangeiro assinala que ele esta ‘‘a mais”. A presenga de uma tal fronteira interna ¢ visivel desperta os nosso sentidos mais arcaicos através de um gosto de queima- do. Preocupagao ou exaltagdo que se consomem pelo fogo, de- positadas ali naqueles tracos diferentes, sem descuido, mas tam- bém sem ostentagdo, como um convite permanente a alguma viagem inacessivel, exasperante, cujo cédigo o estrangeiro ndo ossui, mas cuja meméria silenciosa, fisica, visivel, ele guar- da. Nao que o estrangeiro parega necessariamente ausente, ator- 2 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS doado ou desvairado, Mas a insist@ncia de um revestimento — bom ou mau, agradavel ou mortifero — perturba a imagem jamais uniforme de sua face e Ihe imprime a marca ambigua de uma cicatriz — o seu préprio bem-estar. Pois, curiosamente, para além da perturbacdo, esse des- dobramento impoe ao outro, observador, a sensacdo de uma felicidade especial, um pouco insolente no estrangeiro. A feli- cidade parece transporté-lo, apesar de tudo, porque alguma coisa foi definitivamente ultrapassada: é uma felicidade do de- senraizamento, do nomadismo, 0 espago de um infinito pro- metido, Contudo, felicidade cabisbaixa, de uma discrig&io me- drosa, apesar de sua intrusdo penetrante, pois o estrangeiro continua a se sentir ameacado pelo territério de outrora, tra- gado pela lembranga de uma felicidade ou de um desastre — sempre excessivos. E possivel ser estrangeiro e ser feliz? O estrangeiro susci. ta uma nova idéia de felicidade. Entre fuga e origem: um limi- te fragil, uma homeostase proviséria. Assentada, presente, por vezes incontestavel, essa felicidade, entretanto, sabe estar em transito, como 0 fogo que somente brilha porque consome. A felicidade estranha do estrangeiro é a de manter essa eternida- de em fuga ou esse transit6rio perpétuo. A perda e o desatio Uma ferida secreta, que geralmente 0 proprio estrangeiro desconhece, arremessa-o nesse vagar constante, Entretanto, esse mal-amado nao 0 reconhece: 0 desafio emudece a queixa, Ra- os so aqueles que — como certos gregos (em As Suplican- tes, de Esquilo), os judeus (os fiéis no muro das Lamentacées) ou os psicanalistas — levam o estrangeiro a confessar uma sti- plica humilhada. “Nao foi voc€ que me fez mal”, recusa-se a admitir, feroz, esse intrépido, ‘fui eu que escolhi partir’; sempre ausente, sempre inacessivel a todos. No ponto mais lon- ginquo em que sua meméria remonta, ela esté deliciosamente magoada: incompreendido por uma mae amada e contudo dis- trafda, discreta e preocupada, o exilado é estranho a propria (i eR TRS SC ST ‘TOCATA E FUGA PARA © ESTRANGEIRO B mae. Ele néo a chama, nada Ihe pede. Orgulhoso, agarra-se altivamente ao que Ihe falta, & auséncia, a qualquer simbolo. Oestrangeiro seria o filho de um pai cuja existéncia nao deixa dtivida alguma, mas cuja presenca nfo o detém. A rejeicdo de um lado, 0 inacessivel do outro: se tiver foreas para nao sicumbir a isso, resta procurar um caminho. Fixado a esse outro lugar, tao seguro quanto inabordavel, o estrangeiro esta pron- to para fugir. Nenhum obstaculo o retém e todos os sofrimen- tos, todos os insultos, todas as rejeicdes Ihe sao indiferentes na busca desse territério invisivel e prometido, desse pais que no existe mas que ele traz no seu sonho ¢ que deve realmente ser chamado de um além. estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mae. Ca- mus soube reconhecé-lo: 0 seu Estrangeiro revela-se na morte da mae. Pouco se observou 0 quanto esse érfao frio, cuja in- diferena pode voltar-se para o crime, é um fandtico da au- séncia. Adepto da soliddo, incluindo a que se sente no meio das multiddes, ele é fiel a uma sombra: um segredo magico, um ideal paterno, uma ambic2o inacessivel. Mersault esté morto para si mesmo, mas vive exaltado por uma embriaguez insipi da que Ihe serve de paixdo: da mesma forma o seu pai, 20 vo- mitar numa ceriménia de execugao, compreende que a conde- nago morte é a tinica coisa de verdadeiramente interessante que pode acontecer 20 homem. Sofrimento, exaltacéo e méscara Os dissabores que, necessariamente, o estrangeiro encon- traré — ele é uma boca a mais, uma palavra incompreensivel, ‘um comportamento incomum — ferem-no violentamente, mas por instantes. Eles o depuram imperceptivelmente, deixam-no liso e duro como um cascalho, sempre pronto para prosseguir a sua caminhada infinita, mais longe, para além, em outros lugares. O objetivo (profissional, intelectual, afetivo) que al- guns se dao nessa fuga desenfreada jd uma traicao a condi- ao de estranho, pois ao escolher um plano, o estrangeito se propde uma trégua ou um domicitio. E, ao contrario, segundo “4 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS a l6gica extrema do exilio, todos os objetivos deveriam se con- sumir ¢ se destruir no Iouco impulso do errante em direcao a.um alhures sempre recuado, insaciado, inacessivel. O prazer do sofrimento é um quinh&o necessério nesse turbilhdo insen- sato € os prdxenos casuais sabem disso inconscientemente, 20 escolherem parceiros estrangeiros para Ihes infligir 0 suplicio do seu desprezo, de sua condescendéncia ou, mais sorrateira- mente, de sua ofensiva caridade. Oestrangeiro é um esfolado sob a carapaca de ativista ou de incansavel “‘trabalhador imigrado”. Ele sangra de corpo e alma, humilhado por uma situagdo em que, mesmo nos me- Ihores casais, ele/ela ocupa o lugar da empregada doméstica, daquele/daquela que ineomoda quando ele/ela cai doente, que encama o inimigo, 0 traidor, a vitima, O prazer masoquista explica somente em parte a sua submissdo, Na realidade, esta reforca o estrangeiro por trés da sua mdscara: segunda perso- nalidade impassivel, pele anestesiada com a qual se cobre pa- ra proporcionar a si mesmo um esconderijo onde goza por des- prezar as fraquezas histéricas do seu tirano, Dialética do se- nhor e do escravo? A animosidade suscitada pelo estrangeiro, ou no minimo a irritagao (““O que vocé estd fazendo aqui? “Aqui nao é 0 seu lugar!”) pouco o surpreendem. De bom grado ele sente uma certa admira¢o para com os que o acolheram, pois em geral acredita serem eles superiores, seja material, politica ou socialmente. Ao mesmo tempo nao deixa de julg4-los um pouco limitados, cegos. Pois os seus anfitrides desdenhosos nao pos- suem a disténcia que ele possui, para se ver e para vé-los. O estrangeiro fortifica-se com esse intervalo que o separa dos ou- tros e de si mesmo, dando-lhe um sentimento altivo, ndo por estar de posse da verdade, mas por relativizar a si proprio ¢ aos demais, quando estes encontram-se nas garras da rotina da monovaléncia. Os outros talvez possuam coisas, mas 0 es- trangeiro sabe que cle € 0 tinico a ter uma biografia, isto é, uma vida feita de provas. Nada como catdstrofes ou aventuras (embora tanto umas quanto as outras possam acontecer), sim- plesmente uma vida onde os atos so acontecimentos, porque implicam escolhas, surpresas, rupturas, adaptagdes ou estra- tagemas, sem rotina ou repouso. Aos olhos do estrangeiro, os que no 0 sdo nao tém vida alguma: mal existem, sejam es- TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 1s pléndidos ou mediocres, estao fora da corrida e, portanto, quase 34 corpos sem vida. Afastamento A indiferenca é a carapaca do estrangeiro: insensivel, dis- tante, no fundo ele parece fora do alcance das agressdes que, contudo, sente com a vulnerabilidade de uma medusa. E que © afastamento onde 0 mantemos corresponde aquele em que ele préprio se aloja, recuando até o centro indolor daquilo que chamamos de alma, essa humildade que, definitivamente, constitui-se de uma nitida brutalidade, Ali, purgado de emo- tividade fingida, mas também de sensibilidade, tem 0 orgulho de possuir uma verdade que talvez seja uma simples certeza — a capacidade de expor claramente o que as relagdes huma- nas t@m de mais abrupto, quando eclipsa-se a sedugao eas con- veniéncias cedem em proveito do julgamento dos confrontos: choque dos corpos e dos humores. Pois 0 estrangeiro, do alto dessa autonomia escolhida unicamente por ele, quando os ou- tros permanecem, prudentemente, ‘‘entre si”, de forma para- doxal confronta a todos com um simbélico que se recusa & ci- vilidade e reconduz a uma violencia desnudada. O cara-a-cara dos brutos. Nao pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor. A origem perdida, o enraizamento impossivel, a meméria imergente, 0 presente em suspenso. O espaco do estrangeiro um tremem marcha, um avigo em pleno ar, a propria transi- ‘cdo que exclui a parada. Pontos de referencia, nada mais. O seu tempo? O de uma ressurreic’o que se lembra da morte ¢ do antes, mas perde a gléria do estar além: somente a impres- so de um sursis, de ter escapado. Seguranga Permanece entretanto a seguranga de ser, de poder se es tabelecer em si, com uma certeza doce e opaca — ostra fecha- 16 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS da sob a maré ou alegria inexpressiva das pedras quentes. E tre as duas fronteiras patéticas da coragem ¢ da humilhacdo contra as quais o choque com 0s outros 0 arremessa, o estran- geiro persiste, fixaco em si mesmo, seguro desse estabelecimento secreto, de sua sabedoria neutra, do prazer embotado por uma solidao fora de controle. Narcisismo inveterado? Psicose branca sob o turbilho dos conflitos existenciais? Passando uma fronteira (... ou duas), © estrangeiro transformou as suas inquietacdes em foco de re- sisténcia, em cidadela de vida. Alids, se tivesse ficado em ca- sa, talvez fosse um marginal, um doente, um fora-da-le... Sem lar, pelo contrério, propaga 0 paradoxo do comediante: mul- tiplicando as mascaras e os “falsos selfs”, ele jamais ¢ inteira- mente verdadeiro nem inteiramente falso, sabendo adaptar aos afetos € aos desafetos as antenas superficiais de um coracdo de basalto. Uma vontade insensata, mas que se ignora, incons- ciente, desvairada. A raca dos durdes que sabem ser fracos. © que equivale a dizer que, estabelecido em si, 0 estran- geiro ndo tem um si. No limite, uma seguranca oca, sem valor, que centra as suas possibilidades de ser constantemente outro, a0 sabor dos outros ¢ das circunstAncias. Eu faco o que se quer, mas no sou “‘eu’” — meu “‘eu” est4 em outro lugar, meu “eu” nao pertence a ninguém, meu “eu’” ndo pertence a “mim”... “eu” existe? Fragmentagao Entretanto, essa insensibilidade, essa dureza em estado de auséncia de gravidade ¢ um absoluio que ndo dura muito. proprio traidor se trai, Seja ele um lixeiro magrebiano pre- so & sua vassoura ou uma princesa asidtica escrevendo as suas memérias numa lingua que ndo é a sua, a partir do momento em gue os estrangeiros t¢m uma atitude ou uma Paixao, eles fixam raizes. De forma proviséria, com certeza, mas intensamente, Pois 0 desligamento do estrangeiro é ape- has a resisténcia com a qual ele consegue combater a sua angiistia matricida. Sua insensibilidade aparece como a me- eR a ae ee So ye TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 0 tamorfose de uma fragmentac&o arcaica ou potencial que ar- risca reduzir a0 caos 0 seu pensamento ea sua palavra. As- sim ele se apega a esse desligamento, a essa insensibilidade = que ndo se toque nisso. A chama que trai o seu fanatismo latente s6 aparece quan- do ele se liga seja a uma causa, a uma profisso, ou a uma pessoa. Entéo cle encontra nisso mais do que um pafs: uma fusdio onde nao existem dois seres, mas um tinico que se con- some, total, aniquilado. A categoria social ou o talento pessoal, evidentemente, i primem variantes sensiveis nesse apostolado. Entretanto, quais- quer que sejam as suas diferencas, todos os estrangeiros que fizeram uma escolha acrescentam a sua paixao pela indiferen- a uma certa intransigéncia fervorosa, que revela a origem do seu exilio, Pois € por néo ter ninguém dentro de si mesmos pa- ra saciar essa raiva, essa combustéo de amor e de édio, e por ‘encontrar forcas para no sucumbir a isso, que eles vagueiam pelo mundo, neutros, mas consolados por haverem consegui- do atingir uma distancia interior contra o fogo e 0 gelo que outrora os queimara. Uma melancolia A dura indiferenca talvez seja somente a face confessével da nostalgia, Conhecemos o estrangeiro que chora eternamente © seu pais perdido. Enamorado melancélico de um espaco per- dido, na verdade, ele nao se consola é por ter abandonado uma época de sua vida. O paraiso perdido é uma miragem do pas- sado que jamais poderd ser reencontrada. Ele sabe disso, com © saber desolado dos que desviam a raiva dos outros (porque sempre existe um outro, uma causa ruim do meu exilio) con- tra si mesmo: “(Como pude abandond-los? Eu mesmo me aban- donei.” E mesmo aquele que, aparentemente, foge do veneno viscoso da depressio, nao se priva disso, no fundo do seu lei- to,nos momentos glaucos entre a vigilia e o sono. Pois em meio @ nostalgia, embebido de perfumes e de sons aos quais nao pertence mais e que, por causa disso, 0 ferem menos que os 18 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS daqui ¢ de agora, estrangeiro ¢ um sonhador que faz amor com a prépria auséncia, um deprimido extravagante. Feliz? Ironistas e crédulos Entretanto, ele jamais est simplesmente dividido entre aqui e alhures, agora e antes. Os que se acreditam assim cruci- ficados esquecem que nada mais os fixa li longe e que nada ainda os prende aqui. Sempre em outro lugar, o estrangeiro nao € de parte alguma. Mas ndo nos enganemos: na maneira de viver essa ligacdo com um espaco perdido, ha dois tipos de ‘estrangeiros que dividem os desterrados de todos os paises, pro- fissGes, posicdes sociais, sexos... em duas categorias incon: lidveis. De um lado, os que se consomem na divisdo entre que nao existe mais e o que jamais existira: os adeptos do neu- tro, os partidarios do vazio, insensiveis ou melodraméticos, mas sempre desiludidos; ndo forcosamente derrotistas, em geral eles se transformam nos maiores ironistas. Do outro lado, os que transcendem: nem antes, nem agora, mas além, eles so leva- dos por uma paixdo, certamente jamais saciada, mas tenaz, para uma outra terra sempre prometida, a de uma profissao, de um amor, de uma crianga, de uma gloria. Sdo os crédulos, 05 que, as vezes, transformam-se em céticos. Encontrar O encontro equilibra o nomadismo. Cruzamento de duas alteridades, ele acolhe o estrangeiro sem fixé-lo, apresentan- do 0 anfitrido ao seu visitante, sem engajé-lo, Reconhecimen- to reciproco, 0 encontro deve a sua felicidade exatamente 20 provisorio, pois os conflitos o dilacerariam se ele tivesse que se prolongar. O estrangeiro crédulo € um curioso incorrigivel, vido por encontros: alimenta-se deles ¢ os atravessa, eterno insatisfeito, eterno farrista também. Sempre em direcdo a ou- TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 9 tros, sempre mais longe. Convidado — ele sabe se convidar —, sua vida é um desfilar de festas desejadas mas sem futuro, cujo brilho ele aprende a embacar imediatamente, pois sabe que elas no tém consegiincia. “Acolhem-me, mas isso no conta... A proximal! ... Nao passam de uma despesa a mais para garantir uma consciéncia trangiila..!” Consciéncia tran- giiila tanto do anfitriéo, quanto do estrangeiro. O cinico esta ainda mais apto para o encontro: ele nem mesmo o procura, nada espera dele, mas participa de qualquer modo, persuadi- do de que mesmo se tudo desmoronar, vale mais a pena ser ‘um deles””. Ele ndo deseja os encontros, porém estes 0 dese- jam. Vivencia-os numa vertigem onde, desvairado, nao sabe ‘mais quem viu nem quem ele mesmo é. O encontro em geral comega com uma festa do paladar: pao, sal e vinho. Uma refeicdo, uma comunhao nutritiva. Um confessa-se bebé faminto, o outro acolhe essa crianca avida: num instante, eles se fundem no rito da hospitalidade. Mas 0 pequeno espaco da mesa que the cabe é agradavelmente devo- rador, ele o percorre por caminhos da meméria: surgem lem- brangas, projegdes, narragdes, louvores. O nutritive banquete €inicialmente um pouco animal, elevando-se nos vapores dos sonhos ¢ das idéias. Os celebradores da hospitalidade, por al- gum tempo, também se aliam espiritualmente. Milagre da car- ne e do pensamento, o banquete da hospitalidade é a utopia dos estrangeiros: cosmopolitismo de um momento, fraterni dade dos convivas que acalmam e esquecem as suas diferen- as, o banquete esta fora do tempo. Ele se imagina eterno na embriaguez daqueles que, entretanto, nao ignoram a sua fra- gilidade proviséria. Unica liberdade Livre de qualquer lago com 08 seus, 0 estrangeiro sente- se “completamente livre’’. O absoluto dessa liberdade, no en- tanto, chama-se solidao. Sem utilidade ou sem limite, ela é té- dio ou disponibilidade supremos. Sem os outros, a solidao li- vvre, como 0 estado de auséncia de gravidade nos astronautas, Syeaiesireonarrsremaeet 20 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS destréi os miisculos, os ossos e o sangue. Disponivel, liberado de tudo, o estrangeiro nada tem, nao é nada. Mas esta pronto para 0 absoluto, se um absoluto pudesse elegé-lo. ““Solidao”” talvez seja a nica palavra que ndo tenha sentido. Sem outra, sem ponio de referencia, ela ndo suporta a diferenga que, so- zinha, discrimina e faz sentido. Ninguém melhor do que 0 es- trangeiro conhece a paixdo da solidao: ele acredita té-Ia esco- Ihido para gozar ou té-la suportado para padecer. Assim ele definha num forte sentimento de indiferenca que, por ser al- gumas vezes embriagador, encontra-se incvitavelmente sem ctimplice. Este é 0 seu paradoxo: o estrangeiro quer estar sozi- ho, porém cercado de cimplices. No entanto, nenhum eém- plice est apto a se associar a ele no espaco térrido de sua uni- cidade. Os tinicos ctimplices possiveis seriam os participantes de uma comunhao, cuja monotonia e facilidade ele repele; en- quanto que, por outro lado, a falta de cumplicidade dos espi- ritos distintos 0 remete irremediavelmente para a sua propria desolacdo. A cumplicidade ¢ a miragem do estrangeiro: mais, atroz quando ausente, ela € 0 tinico elo, utépico, perdido; ela se apresenta sob a forma desfrutavel da caridade ou de qual- quer outro humanismo bem-pensante que, é claro, ele aceita, porém mantendo-se insensivel, cético ¢ indiferente. O estran- geiro aspira & cumplicidade para, ao recusé-la, melhor sentir a sua virgindade. Um édio #Viver 0 édio". Freqiientemente o estrangeiro formula as- sim a sua existéncia, mas o duplo sentido da expressao Ihe es- capa. Sentir constantemente o édio dos outros, nao ter outro meio social senio aquele Sdio. Como uma mulher que se do- bra, complacente e cimplice, & rejeicZo que seu marido Ihe ex- pressa logo que ela esboca a menor palavra, gesto ou propési- to. Como uma crianca que se esconde, medrosa e culpada, an- tecipadamente convencida de merecer a eélera dos seus pais. No universo de defensivas ou de falsas aparéncias que consti tuem as suas pseudo-telagdes com os pseudo-outros, o ddio SS ET TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 2 proporciona uma consisténcia ao estrangeiro. E contra essa pa- rede dolorosa, mas segura — ¢, nesse sentido, familiar —, que ele se choca na tentativa de se afirmar para 0s outros e para si mesmo. O édio 0 torna real, auténtico de alguma forma, sélido ou, simplesmente, vivo. Mais ainda: ele faz ressoar no exterior um outro ddio, secreto e inconfessdvel, 120 vergonho- 80 a ponto de se apagar, que o estrangeiro traz nele contra to- dos, contra ninguém, contra si mesmo ¢ que, se implodisse, seria motivo de grave depressdo. Mas ali, entre as fronteiras de si mesmo e dos outros, 0 édio nfo o ameaca. O estrangeiro © espreita, tranqililizado a cada vez que descobre que ele nfo falta ao encontro, ferido pela eterna auséncia do amor, mas quase feliz por essa permanéncia constante — real ou imagi- néria? — da aversao. Viver com 0 outro, com 0 estrangeiro, confronta-nos com a possibilidade ou ndo de ser wm outro, Nao se trata simples- mente, no sentido humanista, de nossa aptidao em aceitar 0 outro, mas de estar emt seu lugar — 0 que equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo. O “Eu é um outro” de Rimbaud nao era somente a confissdo do fantasma psicé- tico que assedia a poesia. A expresso anunciava o exilio, a possibilidade ow a necessidade de ser estrangeiro e de viver no estrangeiro, prefigurando assim a arte de viver numa era mo- derna, 0 cosmopolitismo dos esfolados. A alienacao de mim mesmo, por mais dolorosa que seja, proporciona-me esse dis- tanciamento requintado, onde se inicia tanto o prazer perver- so quanto a minha possibilidade de imaginar e de pensar: 6 © impulso de minha cultura. Identidade desdobrada, caleidos- cpio de identidades: poderiamos ser para nés mesmos um ro- ‘mance intermindvel sem sermos vistos como loucos ou falsos? Sem ter de morrer por esse dio do estrangeiro ou pelo estran- geiro? A aversti, para vot, significa que vocé ¢ um chato, irri- tante, e que isso vai lhe ser mostrado francamente e sem pre- caugdes. Ninguém neste pais pode defendé-lo ou vingé-lo. Voce no conta para ninguém e j4 & muito ter de suporté-lo & nossa volta. Os civilizados nao iém que ter consideragdo para com © estrangeiro: “Toma, e se isso nao te agrada, tens mais € que ficar em casal”” A humilhagao que rebaixa o estrangeiro con- fere ao seu senhor um tipo qualquer de grandeza mesquinha. 2 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS Pergunto-me se o marido de Wanda teria se permitido repre- sentar, de forma to insolente, 0 Dom Juan. Se teria se permi tido revelar seus gostos libertinos, exibir suas amantes que ela, infelizmente, nao tinha suficiente senso de humor para apre- cciat. Nao sei se ele agiria assim se a sua mulher nao tivesse vindo da Polénia, isto é, de lugar algum, sem familia e sem amigos, os quais, apesar do que se fala, constituem um abri- 20 para o narcisismo e uma muralha contra as perseguicdes paranéides. Pergunto-me se a familia da esposa de Kwang te- ria, de forma to brutal, feito com que ele perdesse a posse de seu filho, no momento de sua separacdo de Jacqueline, se Kwang nio tivesse essa maneira incompreensfvel de pronun- ciar as palavras e de esquecer os verbos; essa maneira que to- dos reconheciam como obsequiosa de se comportar, que vi- nha a ser a sua propria civilidade. Se nao tivesse também essa incapacidade de se juntar aos colegas em torno de um copo, durante uma pescaria... Mas € possivel que Wanda e Kwang ndo softam de suas estranhezas sozinhos. Marie ou Paul tal- ‘vez pudessem ter os mesmos problemas se estivessem um pou- co parte, se fossem um pouco diferentes, especiais, se nko tentrassem no jogo, se fossem como estrangeiros por dentro. (Ou serd que devemos admitir que nos tornamos estrangeiros num outro pais porque j4 0 somos por dentro? © siléncio dos poliglotas Nao falar a sua Kingua materna. Habitar sonoridades ¢ logicas cortadas da meméria noturna do corpo, do sono agi doce da infancia, Trazer em si, como um jazigo secreto ou co- ‘mo uma crianga deficiente — benquista e imitil —, essa lin- ‘guagem de outrora, que murcha sem jamais abandond-lo. Vo- se aperfeicoa num outro instrumento, como nds nos expres- samos com a Algebra ou 0 violino, Pode se tornar um virtuose ‘com esse novo artificio que, alids, proporciona-Ihe um novo corpo, igualmente artificial, sublimado — alguns dizem subli- me. Voc tem o sentimento de que a nova lingua é a sua res- surreicdo: nova pele, novo sexo. Mas a ilusdo se despedaca quan- ‘TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 23 do vocé se ouve, no momento de uma gravagdo, por exemplo, em que a melodia de sua voz Ihe volta esquisita, de parte algu- ma, mais proxima da gagueira de outrora do que do cédigo atual. Sua falta de jeito, tem encanto, dizem. Pode até mesmo ser sensual, supervalorizam os sedutores. Ninguém corrige os seus erros, para nao feri-lo, além do mais eles ndo acabariam nunca ¢, afinal, pouco importa. Mesmo assim, exprimem a sua irritagdo, apesar de tudo. As vezes, uma sobrancelha levanta- da ou um enfatico “‘como?”” fazem-no compreender que ‘“vo- c@ jamais conseguiré”, que ‘nao vale a pena”, que **pelo me- nos nisso no somos ingénuos”. Ingénuo vocé também nao o 6, No méximo crédulo, pronto para todos os aprendizados, em todas as idades, para atingir — segundo essa expresso alheia € muito usada que todos julgam perfeitamente assimilada: um dia — sabe Deus que ideal, para além da confissao implicita de uma decepeao devida a’prépria origem que ndo cumpriu a sua palavra. Assim, entre duas linguas, o seu elemento € 0 siléncio, De tanto falarmos de diversas maneiras, igualmente banais, igual- mente aproximativas, néo falamos mais. Um cientista de re- nome internacional ironizava sobre 0 seu famoso poliglotis- mo, dizendo que falava russo em quinze linguas. No entanto, eu tinha a sensacao de que ele era mudo € que esse silencio estagnado, as vezes, o impelia A longa monotonia dos entoa- dores de salmos para finalmente dizer alguma coisa. Quando Hélderlin aprendia grego (antes de buscar as fon- tes do alemao), ele exprimia dramaticamente essa anestesia da pessoa tragada por uma lingua estrangeira: ‘Um signo, assim somos ¢ de sentido/nulo. Mortos para todos os sofrimentos © quase/perdemos a nossa linguagem num pafs estrangeiro”” (Mnémosyne), Encurralado nesse mutismo poliforme, o estrangeiro tal- vez tente, em vez de dizer, fazer: fazer a faxina, jogar ténis, futebol, velejar, costurar, cavalgar, correr, fazer filhos... sei ld ‘mais 0 qué. Mas isso continua sendo um desperdicio, um des- gaste, além de propagar ainda mais o siléncio. Quem o escu- ta? No maximo, toleram voc8. Alias, vocé quer realmente falar? Por que ento cortar a fonte materna das palavras? O que voc? imaginava desses novos interlocutores aos quais voce se dirige com uma lingua artificial, uma prétese? Para voce, eles 2. ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS cram idealizados ou desprezados? Ora, vamos! O siléncio néo Ihe é somente imposto, ele estd em voce: recusa de dizer, sono preso a uma angtistia que quer permanecer muda, proprieda- de privada de sua discricao orgulhosa e mortificada — luz cor- tante, esse silencio, Nada a dizer, vacuo, ninguém no horizon- te. Uma completude impenetravel: diamante frio, tesouro se- creto, cuidadosamente protegido, fora de alcance. Nada a di zer, nada é para ser dito, nada € dizivel. No inicio, foi uma guerra fria com 0 novo idioma, desejado e rejeitador: depois a nova lingua Ihe cobriu como uma calmaria de aguas estag- nadas. Siléncio, nao o da célera que empurra as palavras para a fronteira entre a idéia e a voz, mas 0 siléncio que esvazia 0 espirito e enche 0 cérebro de abatimento, como o olhar de mu- Iheres tristes, envolto por alguma espécie de eternidade inexis- tente. .0s antigos desacordos com 0 corpo” (Mellarmé) Nao estar de acordo, Nao estar de acordo nunca com na- da, com ninguém. E tomar isso com espanto e curiosidade, como um explorador, um etnélogo. Cansar-se disso, emparedar- se no seu desacordo desbotado, neutro, pois vocé nao tem 0 direito de dizé-lo, Nao mais saber exatamente 0 que se pensa, nao ser que ‘*nao é bem isso”. Saber apenas que as palavras, 08 sorrisos, as raivas, os julgamentos, os gostos do nativo sao exagerados, falhos ou somente injustos e falsos e que ele nem desconfia — orgulhoso de estar na sua prépria terra — de que se pode falar, pensar, fazer de outro modo. Entao, por que nao Ihe dizer isso, ‘‘discutir’”? Mas com que direito? Talvez dando a si mesmo esse direito, desafiando a seguranca dos autécto- nes? Nao. Os que jamais perderam qualquer minima raiz nao Ihe parecem poder entender qualquer palavra capaz de relati- vizar os seus préprios pontos de vista. Entdo, quando nds mes- ‘mos somos desterrados, para que falar aqueles que acreditam ter os pés firmes em sua prépria terra? O ouvido somente se TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 2s abre para os desacordos quando o corpo perde seu pé no cho, preciso um certo desequilibrio, flutuar sobre algum abismo, para poder ouvir um desacordo. Entretanto, quando o estran- geiro — estrategista silencioso — n&o enuncia sua discordan- cia, por sua vez ele se enraiza no seu proprio mundo de rejei- tado que, supostamente, ninguém entende. O sedentério, sur- do ao desacordo, ¢ 0 errante, cujo desacordo o aprisiona, instalam-se assim frente a frente. Uma coexisténcia aparente- mente pacifica que dissimula o abismo: um mundo abissal, 0 préprio fim do mundo. Imigrados, portanto trebalhadores estrangeiro é aquele que trabalha. Enquanto os nati- vos do mundo civilizado, dos paises adiantados, acham o la- bor vulgar e assumem os ares aristocréticos da desenvoltura e do capricho (quando podem...), vocé reconhecerd o estran- geiro pelo fato de que ele ainda considera o trabalho como um valor. Certamente uma necessidade vital, 0 tinico meio da sua sobrevivéncia, que ele nao coroa necessariamente de gléria, mas reivindica simplesmente como um direito basico, grau zero da dignidade, Ainda que alguns, uma vez satisfeito o minimo, tam- bém sintam uma felicidade aguda em se afirmarem no traba- Iho ¢ pelo trabalho: como se fosse ele a terra eleita, a vinica fonte de sucesso possivel e, sobretudo, a qualidade pessoal inal- terdvel, intransferivel, mas transportével para além das fron- teiras ¢ das propriedades. Que o estrangeiro seja um trabalha- dor pode parecer um paradoxo ffcil, deduzido da existéncia tao discutida dos “‘trabalhadores imigrados”. Entretanto, co- nheci num vilarejo francés camponeses ambiciosos, vindos de uma outra regio, mais laboriosos do que os outros e queren- do ‘fazer 0 seu canto” com 0 suor do seu rosto, odiados por serem tanto intrusos quanto obstinados e que se faziam tratar (© cimulo do insulto durante uma briga) por... portugueses e espanhdis! De fato, confidenciavam eles, os outros (no caso, a palavra designava os franceses seguros de si) jamais se obsti- nam tanto no trabalho. E preciso realmente estar sem nada e, 2% ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS portanto, ter vindo de fora, para se agiientar tanto. Ora, em suas cidades, nao eram eles que faziam os trabalhos sujos? Nao, simplesmente, faziam sempre alguma coisa, esses “estrangei- ros” yindos de uma outra regio. E verdade que, na segunda geracdo, pode acontecer um relaxamento, Como um desafio aos pais labutadores ou por imitacdo exagerada dos costumes dos nativos, os filhos de es- trangeiros quase sempre acostumam-se & dolce vita, ao deixar para lé, até mesmo & delingiiéncia. Cheios de ‘‘razes”” para isso, ¢ claro. Porém o imigrante, este nao esté ali para perder o seu tem- po. Batalhador, audaz ou espertalhao, segundo as suas capa- cidades ¢ circunstancias, ele amealha todos os trabalhos esforga-se por se sobressair nos mais dificeis, Nao s6 nos tra- balhos que ninguém quer, mas também naqueles em que nin- ‘guém pensou. Empregado e empregada doméstica, mas igual- mente pioneiro das disciplinas de vanguarda, especialista im- provisado das profissdes insdlitas ou de ponta, o estrangeiro investe em si mesmo e se gasta. Se ¢ verdade que fazendo isso tem em vista, como todo mundo, o lucro e a poupanea futura [para 0s seus, a sua economia passa (para atingir esse objetivo e mais do que nos outros) por uma prodigalidade de energia ede meios. Ja que ele nao tem nada, j4 que nao é nada, pode sactificar tudo. E 0 sacrificio comeca pelo trabalho: tinico bem exportavel, sem alfandega. Valor, refiigio universal em estado errante. Que amargura entao, que desastre quando nao obtém a sua carteira de trabalho! Escravos e senhores Dialética do senhor e do escravo? A medida das forcas muda a propria relacdo das forgas. O peso dos estrangeiros € calculado nao somente pela sua superioridade numérica — desse ponto de vista, os escravos nao foram sempre uma maioria esmagadora? —, mas ele igualmente vem de nossa conscién- cia de sermos, nés também, um pouquinho estrangeiros. Por um lado porque, nesse mundo mais aberto do que nunca, ca- TOCATA F FUGA PARA © ESTRANGEIRO 2 da um é levado a se tornar por um momento estrangeiro, en- quanto turista ou funcionério de uma empresa internacional Por outro lado porque a barreira, outrora sdlida, entre 0 “‘se- nhor”” e 0 “‘escravo’” hoje est abolida, se nao no inconscien- te, pelo menos em nossas ideologias e em nossas aspira ‘Todo nativo sente-se mais ou menos “estrangeiro” em seu prio” lugar ¢ esse valor metaforico do termo “estrangeiro” pri- meiramente conduz o cidadao a um embaraco referente sua identidade sexual, nacional, politica, profissional. Em segui- da, empurra-o para uma identificacdo, certamente casual, mas no menos intensa — com o outro. Nesse movimento, eviden- temente a culpa tem o seu lugar, mas também se eclipsa diante de uma certa gléria sorrateira de ser um pouco como esses ou- ‘ros **metecos”” de quem se sabe, agora, que por mais desfa- vorecidos que sejam, estao de vento em popa. Um vento que desvia, atrapalha, mas que nos leva para 0 nosso préprio des- conhecido e para nao se sabe qual futuro. Assim, estabelece- se entre os novos ‘‘senhores”” e os novos ““escravos”” uma cum- plicidade secreta, que nao tem, necessariamente, conseqiién- cias praticas na politica ou na jurisprudéncia (mesmo que elas, Progressiva e lentamente, ressintam-se disso), mas cava uma suspeita, sobretudo no nativo: sera que estou realmente em ca- sa? Ser que sou eu ou serao eles senhores do “futuro”? Esse habito da suspeita provoca reflexao em alguns, qua- se nunca humildade, e nunca mesmo generosidade. Mas tam- bém suscita em outros a raiva regressiva e protecionista: nao sera preciso permanecermos unidos para, juntos, expulsarmos © intruso ou, pelo menos, colocé-lo no “seu” lugar? O “se- nhor’” transforma-se entao em escravo, perseguindo 0 seu con- quistador, Pois o estrangeiro, perseguido como um invasor, des- perta no nativo uma paixdo sepulta: a de matar 0 outro, ini- cialmente temido ou desprezado, depois promovido da cate- goria de dejeto ao estatuto de perseguidor poderoso, contra © qual um “nds” se solidifica para se vingar. Palavra nula ov barroca Nao contar para os outros. Ninguém o escuta, a palavra jamais é sua, ou enti, quando voct tem a coragem de tomé-la, Pa ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS rapidamente ela ¢ apagada frente aos propdsitos da comuni- dade, quase sempre mais voliveis e cheios de desembarago. A sua palavra nao tem passado e nao ter poder sobre o futuro do grupo. Por que a escutariam? Voce ndo tem cacife suficiente — no tem “peso social”” — para tornar a sua palavra wtil. Ela pode ser desejavel, surpreendente também, estranha ou atraente, até. Porém tais atrativos tém um peso fraco diante do interesse — que falta, precisamente — dos interlocutores. O interesse é interesseiro, ele quer poder utilizar os seus pro- pésitos contando com a sua influéncia que, como qualquer in- fluéncia, esta vinculada aos lacos sociais. Ora, precisamente estes voce nao os tem. As suas palavras, ainda que fascinantes por sua propria estranheza, nao terao conseqiiéncia, efeito e no provocarao, portanto, nenhuma melhoria da imagem ou do renome de seus interlocutores. Somente o escutardo distrai- damente, como uma diversio, ¢ o esquecerdo rapidamente para poderem tratar de coisas mais sérias. A palavra do estrangeiro pode contar somente com a sua pura forca retérica e com a imanéncia dos desejos nela investidos. Mas ela € desprovida de qualquer apoio da realidade exterior, pois exatamente 0 es- trangeiro é mantido afastado dela. Nessas condicdes, se a pa- lavra nao sogobrar no siléncio, torna-se de um formalismo ab- soluto, de uma sofisticacdo exagerada — a retérica ¢ soberana € 0 estrangeiro um homem barroco. Gracién e Joyce deviam ser estrangeiros. Orféos Ser desprovido de pais — ponto de partida da liberdade? Certamente o estrangeiro se embriaga com essa independén- cia e, sem diivida, o seu préprio exilio inicialmente nao passa de um desafio & fertilidade parental. Quem nao viveu a audd- cia quase alucinatoria de se pensar sem pais — isento de divi- das ¢ de deveres — nfio compreende a loucura do estrangeiro, © que ela proporciona como prazer (‘Sou meu tinico se- mhor””), 0 que ela contém de homicidio raivoso (“Nem pai, nem mae, nem Deus, nem senhor...”). Chega, contudo, 0 tempo da orfandade. Como toda cons- TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 29 cigncia amarga, esta provém dos outros. Quando 0s outros The fazem saber que vocé ndo conta porque os seus pais no con- tam, que invisiveis eles no existem, voce se sente bruscamen- te Orfao ¢, as vezes, responsavel por s8-lo. Uma luz estranha ilumina, entdo, essa sombra que estava em voc’, jubilosa e cul- pada, a sombra da dependéncia origindria, para transformé- la em solidariedade com aqueles que haviam ficado para tras doravante perdidos. Como? Nao estava implicito que voc? es- tava sempre com eles, solidario a esse passado que unicamen- te os pais conhecem, a essa preciosa e delicada dor que voce nao partilharé com mais ninguém? Como podem ignorar que 6s seus pais esto sempre ao seu lado, testemunhas invisiveis de suas altercagdes com os nativos? Pois bem, nfio! Eles nao sabem disso, no querem saber. Assim eles Ihe revelam a sua propria rejeicao longe daqueles que vocé abandonou sem real- mente fazé-lo — “eu sei, mas assim mesmo...”. Desse modo Ihe revelam também a sua propria perversdo sorrateira. En- to, voce sente como assassinos esses autdctones que jamais Ihe falam de sua familia. Sim, a familia de outrora e de outro lugar, inominavel, enterrada numa outra lingua. Ou entio fa- zem aluso a ela com tanta distracao, com um desprezo to desenvolto que voc8 acaba se perguntando se esses pais exis- tem realmente e em que espaco fantasma de um inferno sub- terraneo habitam. Dor diante desses olhares vazios que jamais ‘9s viram, Perda de si diante dessas bocas longinquas que nao medem 0 artificio das palavras que os invocam. Mas, de fato, quem € 0 assassin? Aquele que ignora os ‘meus ou eu mesmo, que construo a minha nova vida como um mausoléu onde a sombra deles esta integrada, como um cada- ver, a0 principio do meu vagar? A indiferenea dos outros para com 0s meus pais torna-os, para mim, imediatamente meus. A comunidade dos meus — didfana, distendida por milhares de quilémetros e por um esquecimento diurno quase perma- nente —cria-se, assim, pela distracdo desdenhosa de meus in- terlocutores com relacio aos meus pais. Diante dessa injusti- a, da qual sou a fonte ea vitima, emerge um “nds”. Oh, nao! Eu nao os idealizo. A indiferenca dos outros ndo me serve pa- ra acentuar 0s seus méritos. Conheco muito bem a sua peque- nez, a minha... Mas uma ternura, contudo, liga 0 além-timulo 20 thimullo, 0 sobrevivente que sou aos meus antepassados. Ouco 30 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS sinos, um perfume de leite quente enche as minhas narinas: sio eles, os pais do estrangeiro que ressuscitam nos meus sen- tidos, sob 0s olhos cegos de um paternalismo desdenhoso. E, entretanto, ndo tenho nada a dizer aos meus pais, Na- da. Nada ¢ tudo, como sempre. Se tentasse — por audacia, sorte ou aflico — partilhar com eles algumas dessas violén- cias que me tornam to inteiramente sozinha, eles nao sabe- riam onde estou, quem sou, 0 que me aborrece nos outros. Do- ravante sou estrangeira para eles. Eles so meus filhos que nao me seguem, as vezes admiradores, as vezes temerosos, mas ja magoados, resignados a ficarem sozinhos e condenados a ndo compreender. Preciso me decidir ¢, com essa sensacdo de fo- me nao saciada no corpo, depois de ter falado com eles, acostumar-me 4 idéia de que o nosso “‘nés”’ é uma miragem calorosa a ser mantida no centro da desordem, mas ilusoria privada de forca real. A menos que seja, precisamente, a forga da ilusao que, talvez, condicione todas as comunidades e cuja irrealidade necessaria e aberrante o estrangeiro sente perma- nentemente. Vocé tem amigos? Os amigos do estrangeiro, excetuando as boas almas que se sentem obrigadas a fazer 0 bem, somente poderiam ser aque- les que se sentem estrangeiros de si mesmos. Sendo, claro, exis- tem os paternalistas, os paranéicos ¢ os perversos que t&m ca- da um 0 seu estrangeiro predileto e até mesmo o inventariam se este no existisse. s paternalistas... como eles nos compreendem, como se compadecem, como apreciam 0s nossos talentos, sob a condi- go de mostrar que os tém ‘mais’ — mais dor, mais saber, mais poder, inchuindo 0 de poder nos ajudar a’sobreviver. s parandicos. Ninguém € mais excluido do que eles ¢, para demonstré-lo, escolhem como pano de fundo do seu de- lirio um excluido de base, o estrangeiro comum, que sera 0 con- fidente predileto das pcrseguigdes, das quais eles mesmos so- frem ainda mais do qr + ele — antes de ‘“descobrir”” nesse es- a TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO a trangeiro stricto sensu o usurpador ¢ uma das causas da sua infelicidade, pois se 0 mundo nao os compreende, é precisa- mente porque “os estrangeiros monopolizam agora todo 0 in- teresse da opiniao piiblica”, Jd 0s perversos, tém o seu gozo secreto, inconfessivel e, es- condidos em sua casca, de bom grado alojariam dentro dela um estrangeiro que ficaria muito contente em construir ali o seu do- micilio, mesmo que fosse ao prego de uma escravidio sexual ou moral que Ihe ¢ oferecida viciosamente, inocentemente. Entéo, nada mais restaria aos estrangeiros do que se uni- rem entre si? Estrangeiros de todos os paises, uni-vos? Nao to simples, pois se deve levar em conta o fantasma da domii nago/exclusio proprio de cada um. Nao é porque se ¢ estran- geiro que no se tem, igualmente, 0 seu préprio estrangeiro. Além disso, a fé extinta nas origens desperta bruscamente na terra de chegada, criando uma identidade completa, mais ex- clusiva quanto mais dela foi anteriormente perdido. Na Fran- ‘4, 08 italianos tratam os espanhdis de estrangeiros; os espanhéis culpam os portugueses; 0s portugueses, os drabes ou os judeus; 0 rabes, os negros, ef coetera e vice-versa... E mesmo se res- tam pequenas pontes entre uns e outros (nd se est do mesmo lado, em relagdio aos autdctones?), estas se rompem, invariavel- mente, quando os laos fandticos reagregam comunidades con- solidadas por puros e insensfveis fantasmas. Aqui, no solo es- trangeiro, a religiaio dos ancestrais abandonados erige-se como pureza essencial c imagina-se preservé-la melhor do que o fazem ‘0s parentes que ficaram “ld longe”’. Enclave do outro no ou- tro, a alteridade cristaliza-se entdo como auténtico ostracismo: © estrangeiro exclui, antes mesmo de ser exclufdo, muito mais do que o excluem. Os fundamentalistas séo mais fundamentais quando perdem toda ligag4o material, inventando para si pré- prios um “nds” puramente simbélico que, por falta de solo, enraiza-se no rito até atingir a sua esséncia, que é o sacrificio. O “caso Mersault” ‘ou “Somos todos como Mersault” ‘To estranho, esse Mersault de Camus (O Estrangeiro, 1942), tao anestesiado, privado de emocdes, desarraigado de 2 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS ‘qualquer paixao e sem nenhuma escoriago por isso. Ele seria facilmente tomado por um “borderline” ow um “falso-self”, ‘em suma, por um quase psicético, mais do que por um proté- tipo do estrangciro. Um “‘caso”, esse Mersault, e de forma alguma um “fran- c@s tipico” entre os arabes. Evidentemente, podemos pensar que foi a morte de sua mae que 0 arrancou dessa comunhao com o género humano, como sé o luto é capaz de fazer. En- tretanto, Mersault parece endossar um luto endémico. De fa- to, a partir de quando ele assume esse desligamento dos lacos, supostamente muito préximos, com a sua mie, a quem ele sa- be precisamente que nao tem nada a dizer? Desde muito tem- po? Desde o inicio? Seu luto é sem melancolia, claro e cortan- te como a luz de Oran — desértica, quente e inelutével. A pai- xo, talvez esteja no ponto infinito de uma queimadura que, para o psiquismo, equivale ao ponto zero do congclamento: bbranco, vazio. Sexualmente, sim: os seus enlacamentos com Ma- rie so intensos e avidos, 0 sabor de suas bocas na éeua per- turbam de prazer 0 leitor mais frio, mais precavido. Amor? Ou um sentimento reabsorvido em sensago? Em todo caso, um estado estranho, onde a sensaco no ousa se refletir. Por medo ou entio falta de tempo, ela se reprime em pele irisada, em olhares mais do que penetrantes, em olfato apurado ¢... em palavras, mas palavras breves, densas, exatas. Elas suge- rem uma experiéncia que acredita poder passar pela palavra sem transitar pelo psiquismo. Até a alucinacdo final: nenhu- ‘ma maldade nem célera contra os drabes, nenhuma afeicao vis- cosa pelo adversario deles, Raymond — 0 estrangeiro nao tem alma —, nada, sendo uma perda de consciéncia, uma onda de calor e um repente de despersonalizacéo sob 0 corpo suado —eo gatilho dispara. ‘Compreende-se, entdo, que Mersault sempre viveu como se estivesse num estado de inconsciéncia de alguma forma num estado de transconsciéncia e que essa oculta vertigem que, no fim, faz dele um assassino esteve sempre Id, sorrateira e vaga, porém permanente. Assim, ele nao fica chocado com a sta per~ turbacdo. Nada o choca. Ele nfo pode compreender o que os outros sentem como um choque. Os chogues somente existem para a consciéneia. A sua é indiferente, Por qué? Nao se saberd. Por uma decepeao, sem dtivida, insinua Camus. O rapaz ‘TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 3 perdeu cedo a fé na humanidade, em tudo. Hé também o seu ai, cuja tinica paixdo, vivida num vémito, foi a de assistir a uma execucdo que o revoltou. Ergo: a humanidade assassina nao mereceria somente a indiferenca? O lugar-comum seria muito claro, muito denso para a luz incolor que é a alma de Mersault. Ele nao tem principios, ndo tem interioridade, des- liza e registra sensagdes. Mersault, a “fortaleza vazia”” de Bet- telhcim que teria se tornado... escritor. Quem, na verdade, conta a histéria do estrangeiro? Camus? Mersault? A menos que os dois se confundam, Somente 0 confessor, que acredita que todo mundo eré, € capaz de tirar do sério 0 narrador. O homem sem valores, © “estrangeiro”, em suma, teria como tinico valor, negativo, a sua raiva contra a religiao. Religere, religar. Raiva contra as relacdes e 0s funciondrios das relacdes. Nesse sentido, ele é um estrangeiro tipico: sem ligacdo e blasfemador do laco paroxis- tico que € 0 sagrado. A cstranheza do europeu comeca pelo seu exilio interior. ‘Mersault esta tio — se nao for mais — afastado de seus com- patriotas quanto dos arabes. Em quem ele atira na alucinacao opaca que o aterroriza? Em sombras, francesas ou magrebia- nas, pouco importa. Diante dele elas deslocam uma angustia condensada e muda que 0 aperta por dentro. A paixdo sexual de seu amigo Raymond, transformada em querela homosse- “xual entre irmaos inimigos, com citimes da mesma mulher, serve de gatilho para levar ao ato assassino, 0 que Mersault sente como uma indiferenca em relacdo aos outros. O outro, abafa- do em mim, torna-me estrangeiro para os outros e indiferente a tudo: a neutralidade de Mersault é 0 contrario da “‘inguie- tante estranheza’’, 0 seu negativo, Enquanto a inquictante es- tranheza que sinto diante do outro me mata lentamente, a in- diferenga anestesiada do estrangeiro, em compensacao, explo- de em assassinato de outrem. De fato, antes de ser encenado na praia, o assassinato jd estava la, silencioso e invisivel, po- voando com uma presenca vazia 08 sentidos e o pensamento do estrangeiro, agucando-os, tornando-os de uma precisdo es- tridente, repentinamente fria em sua ternura abatida e mur- cha, Sentidos e pensamentos que so como objetos, armas reais. Ele se serve deles, atordoado ¢ eficaz, mas sem dar lugar as imagens, as hesitades, aos remorsos, & inquietacdo. Palavras- cr ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS objetos no nivel dos objetos, pungentes somente por serem per feitamente clean: “Hoje mamde morreu, ou talvez ontem, ndo sei. Recebi um telegrama do asilo: ‘Mae falecida. Enierro amanhd. Nos- sos respeitos.’ Isso ndo quer dizer nada. Talvez fosse ontem. [..] Mas, no fim de algum tempo, estava com a boca queima- da pela amargura do sal. Marie entao veio e se colouem mim na dgua. P6s.a sua boca na minha. Sua lingua refrescando os meus labios e rolamos nas ondas durante um tempo, [..] Ela quis saber se a amava, Respondi, como jd havia feito uma vez, que isso ndo significava nada, mas que sem diivida eu néo a amava. ‘Por que, entéo, se casar comigo?’ — disse ela. Expli- quei-lhe que isso nao tinha nenhuma importincia e que se ela 0 desejasse podiamos nos casar. [...] Mas 0 calor era tanto que me era também dificil permanecer imével sob a chuva ofus- cante que caia do céu. Ficar aqui ou partir, dava no mesmo. Ao cabo de um momento, virei-me em diregéo @ praia e me pus a caminhar. [...] O drabe puxou a sua faca que ele me ha- via mostrado no sol. A luz salpicou sobre 0 ago e era como se fosse unia longa lamina cintilante que me atingia de frente. L.J Essa espada incandescente roia os meus cilios e remexia nos meus olhos doloridos. Foi ent@o que tudo oscilou. O mar arremessou uma aragem espessa e ardenie, |...) O gatilho cedeu.”” De uma exatidao metalica, essas palavras nao sao conta- giantes, néio comovem. Elas dissociam, dissolvem a comuni- dade possivel dos interlocutores. Elas nos devolvem — a pro- Pdsito desses objetos ¢ desses estados — essa lucidez ‘‘a par- te” que as comunidades tentam suprimir. Os propésitos de Mer- sault portam o testemunho de uma distancia interior: “Nun- ca estou uno com os homens, nem com as coisas,” ele parece dizer. ‘*Ninguém me é prdximo, cada palavra é signo menos de uma coisa do que da minha desconfianea para com as coi: sas. E se falo, nao falo a alguém, eu me falo das coisas ou mes- ‘mo das pessoas enquanto coisas, estando ao mesmo tempo den- tro e fora, mais fora. Nao tenho realmente um interior. Sou 0 desdobramento, a tensdo posta em palavras, que suspende qualquer agao: nao faco nada e, se as vezes acontece-me de fazer algo, é como se nao tivesse feito nada, pois é fora de mim, meu eu esté fora de mim. Portanto, fazer ou falar sao iguais para mim, incluindo a morte’? TOCATA F FUGA PARA © ESTRANGELRO s Allis, se as palavras do estrangeiro descrevem atos ou so elas mesmas atos, é porque sao apenas simbolos, insignifican- tes — somente podemos fazé-los ou dizé-los, precisamente, para nada fazer ou nada dizer, As palavras so neutras. “'O cachorro de Salamo era to insignificante quanto a sua mulher. A mulher baixa, automética, era to culpada quan- toa parisiense que Masson desposara ou quanto Marie, cuja vontade era que eu me casasse com ela. O que importava que Raymond fosse meu amigo tanto quanto Celeste, que valia mais do que ele? O que importava que Marie desse hoje a sua boca a um novo Mersault?” assassinato aparece como o iltimo ato dessa tensao in- decisa, sem escolha nem valor, que as palavras nfo haviam ces- sado de rocar, sem conseguir expulsd-la. A execugo em lugar da verbalizacao de um nada, do outro emparedado em mim como um nada. O assassinato, como as palavras, serd ento indiferente ¢, mais do que elas, insignificante. Como numa psicoterapia, somente a célera contra 0 ca- pelo revela a Mersault o que, finalmente, ele aceita como a sua identidade psiquica: “‘Abria-me pela primeira vez & terna indiferenca do mundo. Por senti-lo igual a mim, enfim, t20 fraterno, senti que eu tinha sido feliz e que ainda o era.” Um cura que se tornara psicoterapeuta sem querer, por provocar a célera libertadora no estrangeiro. Sem isso, Mersault fica fora de interlocucio, fora de comunicagao, fora de ago, fora de paixo. Concenado, ele mal prova a sentenca. Ele esté mor- rendo? O leitor supde, mas de forma alguma acredita nisso, de tanto que a indiferenca do estrangeiro parece colocé-lo fo- ra do alcance da morte. Entretanto, por ter reencontrado o ddio, Mersault se pée a desejar: ele se oferece, em imaginacao, aos gritos de édio dos espectadores da sua execugao, a visio do 6dio dos outros, finalmente, torna-o feliz. Nao sem uma iro- nia rangente: “para que eu me sinta menos s6”. O grotesco dessa condicao de estranho, que atraira os psi- quiatras e 0s estetas mais do que os politicos e os juristas, en- tretanto, nao é estranho aos estrangeiros comuns. Mersault leva a0 extremo a dissociacdo do desarraigado: a sua dor indolor, a sua violéncia aprisionada em presenca do outro, o seu ag- nosticismo, &s vezes tranqtiilo, as vezes revanchista. Além dis- so, esse estranho Estrangeiro assinala que aqueles estrangei- 38 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS ra de Tanatos. Conheci uma estudante estrangeira, que che- gou virgem e pudica a Paris e que lancou-se de corpo e alma 10 “sexo grupal”” dos anos 60, impressionando 0 seu amante por suas audécias. Alguns meses mais tarde, depois de terem rompido, eu a reencontrei num hospital piblico, sofrendo de uma doenca dos pulmdes. O recalque zomba um bocado de nds! Pensamos t@-lo desmantelado mas ele esta apenas se des- locando perfidamente, mais abaixo, nas fronteiras entre 0 so- ma ea psique, ali onde as comportas do gozo se entravam e onde o erotismo abandonado encontra-se obrigado a recorrer a novos limites, os dos érgdos que, entdo, falham. O estran- geiro, que se imagina livre de fronteiras, do mesmo modo re- cusa qualquer limite sexual. Em geral, mas ndo de forma ab- soluta. Pois uma ferida narcisica — ofensa, traicéo — pode perturbar a sua economia do gasto sem limites, que por um momento ele pensara ser imperturbavel, ¢ inverté-la em des- truicdo da identidade psiquica e corporal. Mas, para comecar, que insdlita liberacdo da linguagem! Privado das rédeas da lingua materna, o estrangeiro que apren- de uma nova lingua é capaz de cometer as mais imprevisiveis audacias: tanto no terreno do intelecto quanto do obsceno. Essa pessoa que, na lingua materna, mal ousava falar em puiblico © expressava conceitos de um modo confuso, no outro idioma sente-Se como um interlocutor intrépido. O aprendizado de no- vos campos abstratos revela-se de uma leveza inaudita, as pa- lavras eréticas sobre as quais pesava a proibicao familiar nao provocam mais medo. Entretanto, a lingua estrangeira perm: nece uma lingua artificial — Algebra, solfejo — e & necesséria a autoridade de um génio para criar nela outra coisa diferente das redundancias facticias. Pois, em geral, 0 estrangeiro loquaz e “‘liberado” (apesar do seu sotague e dos seus erros gramati- cais, que ele nao percebe) povoa com esse segundo e secundé- rio discurso um mundo fantasmatico. Como numa alucinagao, as suas construcdes verbais — eruditas on escabrosas — ri Jam no vazio, dissociadas de seu corpo e de suas paixdes, dei- xadas como reféns para a lingua materna. Nesse sentido, 0 es- trangeiro nao sabe 0 que diz. O seu inconsciente nao habita © sew pensamento, assim ele se contenta em fazer uma repro- ducao brilhante de tudo 0 que existe para ser aprendido, rara- mente uma inovaedo. A sua linguagem nao o incomoda, pois TOCATA E FUGA PARA 0 ESTRANGEIRO 9 ele guarda silencio sobre as suas pulsdes; 0 estrangeiro pode dizer toda espécie de incongruéncias sem que nenhuma repul- sa, nem mesmo excitacdo, o abale, de tanto que o seu incons- ciente se protege do outro lado da fronteira. Um tratamento psicanalitico ou, de forma mais excepcional, uma intensa via gem solidéria pela meméria e pelo corpo podem, contudo, pro- duzir o milagre do recolhimento que unira a origem ao adqui- rido, resultando numa dessas sinteses méveis e inovadoras de que sao capazes os grandes cientistas ou os grandes artistas, imigrados. Pois, por nao pertencer a nada, estrangciro pode se sentir filiado a tudo, a toda a tradigo, ¢ essa auséncia de gravidade no infinito das culturas e das herancas proporciona- The a facilidade insensata de inovar. De Kooning nao diz outra coisa: ‘No final das contas, sou um estrangeiro, sou outro por- que tenho interesse pela arte na sua totalidade, Tenho acima de tudo a impresséo de pertencer a uma tradig&o” (1936). Um vagar irénico ou a meméria polimorfa de Sébastien Knight Se o vagar converge para a busca da lembranga, entao es- tase exila de si mesma e a memoria polimorfa que dela se vra, longe de ser simplesmente dolorosa, tinge-se de uma iro- nia didfana. A categoria mais amdvel, mais requintada dos es- trangeiros tem esse privilégio de viver a sua estranheza como uma... Montanha cémica — titulo que Nabokov atribui a um dos seus personagens, 0 romancista Sébastien Knight. La Viaie Vie de Sébastien Knight (1938), sem diwvida, no énada mais do que a sua propria escritura, de forma que nin- guém poderia fazer dela uma “biografia’” — nem mesmo 0 seu meio-irmao — sem mutilé-la ou trai-la, projetando-se ali, no lugar do escritor, como é normal na ternura feroz de todos 0s intérpretes e leitores. Em seu romance policial e metafisico, tragico ¢ cémico, sobre a inapreensibilidade do escritor, Vla- dimir Nabokov vai mais longe ¢, de um modo mais saboroso que 0 dos “novos romancistas”, desvenda o polimorfismo es- sencial da prdpria escrita. Se 0 meio-irmao russo do grande es- 40 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS critor inglés Sébastien Knight no pode (ou nao quer?) recons- tituir a sua biografia, é porque o “detetive” € 0 “herdi"” se- jam (talvez?) somente duas facetas de um mesmo processo: “E, portanto, sou Sébastien Knight. Tenho as mesmas impressdes, como se 0 encarnasse num palco iluminado”, conclui 0 irmao, bidgrafo fracassado, no final do livro. Pois a maestria polifé- nica da escrita consiste, incessantemente, em fazer ¢ desfazer por fragmentos 0 quebra-cabega, nao de um ‘‘mundo" consi- derado inacessivel pelo artista metafisico, como conseqiiéncia de sabe-se ld que falta, mas de um enigma essencial. ““E, co- mo todas as coisas, a forma deixava transparecer o signitica- do; chegavam até nés agora numerosas idéias e acontecimen- tos que pareciam ter uma extrema importancia, mas que se vi- ram reduzidos, néo & insignificancia, pois nada agora podia ser insignificante, mas A mesma importéncia que outrora se negava a outras idéias e outros acontecimentos.” Nao existe “solugdo final”, nao mais do que “‘palavra final’. ““O asfé- delo da outra margem continua mais obscuro do que nunca”, porque a escrita do cavaleiro errante Knight justapoe ¢ relati- viza as formas e essa virtuosidade digna de Cervantes passa, ‘agora, a ser perseguida com um distanciamento irdnico (Knight €o autor de Aris no espelho — um espelho gasto? — e de A montanha cdmica, depois esctevia O asfédelo obscuro). Co- mo um absoluto desenvolto, como uma desenvoltura obstinada. Nao se trata aqui de sondar a estética de Nabokov, a sua divida para com a literatura russa, logo de inicio polifonica, porque consciente de vir ‘*fora do tempo”, nem a sua moder- nidade que encarna no imaginério da midia — a infinita preo- cupagdo formal de Flaubert ou de Joyce. Trata-se somente de assinalar uma das fileiras desse relativismo implacavel: 0 cos- mopolitismo, a travessia — ida e volta — de dois idiomas (0 rrusso € 0 inglés), colocada, em relacao a Knight, no centro desse inapreensivel que descentra um homem ¢ o substitui por uma lingua arranhada em estilo. Vale lembrar das palavras que 0 romance atribui a um velho critico na ocasido da morte pre- matura de Sébastien Knight: “Pobre Knight! Na verdade, ele teve duas fases na sua vida: primeiramente um homem obscu- ro arranhando 0 inglés, depois um homem arranhado escre- vendo um inglés obscuro!”” Initil dizer que o pouco de bio- grafia reconstituido por seu irmao ndo atesta, de modo algum, TOCATA E FUGA PARA O ESTRANGEIRO a este repente no qual, ainda assim, muitos estrangeiros pode- ro se reconhecer. Estrangeiro, evidentemente, Sébastien 0 é, por causa des- sa meméria fragmentada — serd a sua propria ou a do irmao? — que no consegue restaurar um passado continuo ¢ com- acto, pois o exilio rompeu qualquer elo de ligacdo. “A ima- gem de Sébastien se presenta a mim de modo fragmentado, reduzida a algumas apariedes sem muita clareza, como se cle nao tivesse sido um membro constante de nossa familia, mas algum visitante errante, que atravessa a sala iluminada para desaparecer de novo, por muito tempo, na noite’” Noturno, esse Knight que retirou-se da familia de espectadores e no deixa 0s outros e a si mesmo a ndo ser retalhos de lembrangas. Um “si mesmo” disseminado... Estrangeiro, mas distanciado de sua estranheza, ele a to- ‘ma entre aspas e, sem ignoré-la, suaviza-a com uma doce iro- nia que nao participa da frieza do verbo “ironizar”” a néo ser com a condic&o de ali incluir o pudor: “Nunca nenhum senti- mento errante terd permissao de desembarcar na rocha de mi- nha prosa pouco acolhedora”, escreve o romancista, citado por seu irmao. Estrangeiro angustiado por se ver confinado ao seu do- micilio de origem. Ao velho professor de Cambridge que se ‘obstina em conversar com ele em russo, Sébastien declara que cele vem de Séfia e, quando 0 lingiiista se lanca, intrépido, no bilgaro, Knight substitui esse idioma pot uma outra lingua de sua lavra, pretendendo que aquela seja realmente a sua lingua “materna”’ e “biilgara””. Estrangeiro, que por muito tempo teve dificuldade em falar 6 inglés pois preservava 0 seti sotaque (os eres no inicio de cada palavra asperamente pronunciada; 0s erros estranhos que cometia ao dizer por exemple, “eu agarrei um resfriado”, ou ‘20 empregar 0 adjetivo “simpatico”” no sentido francés e rus- so. Ele pronunciava mal o acento t6nico em palavras como ‘‘in- teresting” ou “laboratory”"), Knight era sobretudo um solita- rio: “Com mais clareza, Sébastien se dava conta de que ndo fora feito para se enquadrar. Ele acabou compreendendo isso plenamente ¢, lamentando, pOs-se a cultivar esse sentimento de ser diferente dos outros, como se isto fosse algum talento ou uma paixdo rara. Foi somente af que tirou satisfacdo do 2 ESTRANGEIROS PARA NOS MESMOS monstruoso ¢ titil desenvolvimento dessa consciéncia de sie que o fato de ser discordante deixou de ser um tormento. A partir de entéo, 0 escritor atinge uma solidao que so- mente tem de prestar contas & sua cultura sem fronteiras. As- sim se obtém a témpera dos estrangeiros que Knight inspira, propagando 0 sorriso exilado de Joyce num imaginério mais banal e menos érido, sem a sagraco austera do irlandés. Nem revoltado, nem provocante, nem nostélgico, nem sombrio, nem doloroso, nem anestesiado, o errante Knight chega a ser de uma “‘deslumbrante gaiatice” que, mesmo mais tarde, “‘ainda atra- vessava, como um arco-iri, a tempestuosa tristeza das suas mais sombrias narragdes”. O ‘“desolado corpo-a-corpo com um idio- ma estrangeiro”, que talvez com razo 0 critico suponha exis- tir nele, € 0 irmAo bidgrafo que o vive e o confessa. Num tilti- mo sobressalto de masoquismo ou de nostalgia, esse alter ego de Sébastien, essa face descoberia de sua noite, planeja mes- mo traduzir para o russo e assim restituir as origens toldadas a obra-prima final do escritor. Esse irmao tem uma psicologia um tanto roméntica ¢ um pouco freudiana, Ele chega a s0- nhar, de maneira premonitéria, as vésperas da morte do escri- tor, que este Ihe “aparece com uma estranheza inquietante”! Mas e Sébastien? Ele ndo péra de vagar, e a doenca car- diaca que tornard gogoliana a tiltima fase de sua vida nao 0 protege dos erros ou das divagagdes de moleque: espécie de arco-iris que o irmao, & sua maneira ndo menos gogoliana, re- fletird nos erros ¢ inabilidades de sua investigacao. O auge dessa gaiatice de cores géticas concentra-se nas historias de mulheres, Depois da tranatilizadora inglesa Cla- 1a, junto da qual o escritor, por um instante, pensou encon- tar reftigio, Knight cai vitima de uma verdadeira regressao sob a forma de um amor por uma russa fatal. Mas quem é essa mulher? As pistas divergem e se embaralham: uma mulher le- viana, desaparecida na Céte d’Azur; uma russa afrancesada, que esconde a sua aventura ou entdo protege uma amiga... 0 narrador ali se perde, o leitor também. Existiu realmente a res- surrei¢do da mae morta, a qual §.K. sucumbe no fim de sua vida? Ele amou? Ou foi pura imaginac&o? As cartas em rus- So, que ele pediu que queimassem depois de sua morte... teria sido uma maquinagdo? Por que ele prdprio escreve em russo a ultima carta ao seu irmao? © drama da nostalgia, subita- aaa a as TOCATA E FUGA PARA © ESTRANGEIRO “6 mente, caminha ao lado do subterfiigio mais histriénico. Mas quem ri? Certamente nao 0 estrangeiro. O escritor, talvez. A mulher perdida — terra perdida, lingua perdida — nao € encontrdvel. Longe de ser unicamente trégica, essa cruel si- tuacdo presta-se a uma insoléncia praticada, ao final do livro, contra 0 préprio escritor. Depois de ter esquecido na pressa, © endereco do seu irmao moribundo, esse meio-irmao bidgra- fo se engana de cadaver e, em vez de velar S.K., assiste & ago- nia de um outro. Sébastien, portanto, nao deixou memoria dis- ponivel ¢, pior ainda, 0 seu préprio corpo escapa as buscas familiares. Entretanto, lembremo-nos: quando o jovem Sébas- tien procurava a tumba de sua prépria mie, inglesa morta na Franga, ele acreditava estar louvando a sua meméria no jar- dim de sua tltima morada, chamada ‘Les Violettes”, em Ro- quebrune, perto de Monte Carlo; contudo, alguns meses mais tarde, ele descobriu em Londres que sua mae morreu numa dade chamada Roquebrune, localizada no Var. Cabe ao escri- tor encenar essa ironia da origem ¢ da morte no seu romance Objets trouvés, como uma escrita premonitéria de sua propria morte nao-encontravel. Como um bumerangue, o embuste que, na verdade, rompera o laco materno, arrancando-o de qual- quer solo possivel para abrigé-lo somente na meméria fugidia da escrita, termina afetando a imagem e 0 corpo do préprio escritor. Nao se celebrard a meméria de S.K. mais do que ele proprio celebrou a de sua mie. Nao, ninguém blasfema, nem © filho nem o leitor. Simplesmente, quando a mae esta disse- minada em lembraneas ¢ em palavras, quando as mulheres ama- das so esquecidas-abandonadas-inventadas, a propria memé- ria que garante a nossa identidade revela-se uma metamorfose em curso, uma polimorfia. Aos amantes das sinteses, sugiro aqui uma ligacdo possivel entre Sébastien Knight e Lolita. Nao seria o mesmo polimorfismo, mnémico de um lado, sexual do outro? Contrariamente ao Estrangeiro, de Camus, 0 desenvolto cosmopolita Sébastien Knight perdeu cedo a mae, jamais as- sistiu ao seu enterro, no associa a sua tumba a nenhum lugar preciso. Mas, russo de pai, tomou o nome dela, da inglesa. Ele deu a si mesmo uma nova lingua, escolhendo o inglés que, sem ser a sua lingua materna, pois ndo a falou durante a in- fAncia, foi entretanto a da sua mde quase desconhecida — lin-

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