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Copyright © Antonio da Silveira Mendonca, 1999 Reviso (latim) Antonio da Silveira Mendonga Revisito (portuguiés) Paulo Sérgio de Vasconcelos, Simone Ligabo Gongalves, Zulmira Pesquelra Mendonea, Claudia Cavalcanti e Angel Bojadsen Compesicao Antonio Kebll e Anita Cortizas Capa Antonio Kehl/Estagio Liberdade Ilustragao da capa Dindvio de prata coma efigie de César, Ashmolean Museum, Universidade cle Oxford ‘Mapas Angel Bojadsen e Antonio Keb! Dados lnternacionais de Catalogncio na Publicagto (CIP) (Ciara Bralleia do Live, SP, Bras) César, Caio Jo ‘A guersa civil / Calo Jllo César: itroduco ~ Sto Paulo: Esagto Liberdade, 1999. ‘Tiulo original Bellum cv Bibtiografla 1, Roma ~ Mistéria ~ Guerra civil, 49-48 a. |. Mendonga, Antonio da Silvers. 1. Titulo 98.1569 cpps3707 Indice para catlogo sisemateo: 1. Roma antiga # Alto império : Histéria 93707 ISBN: 85-85865-94-6 Todos os direitos reservados Editora Estagio Liberdade Lda, Rua Dona Elisa, 116 ~ Barra Funda (01155-030' Sio Paulo SP Tel: (O11) 3661 2881 / 3661 2882 Telefax: (011) 3824 0020. Fax: (O11) 825 4259 ‘e-mail: estiber@hydra.com.br Antonio da Silveira Mendonga é professor adjunto da Universidade de Sio Paulo, onde leciona no curso de pés-graduacao (Lingua Literatura Latina). Foi professor do Instituto dos Estudos da Lingua- gem da Unicamp. Traduziu virias obras, entre as quais 0 De Pictura, de L, Battista Alberti (Ed. Unicamp), A Conjuracdo de Catilina e a Guerra de Jugurta, de Salistio (Ed. Vozes) e Remédios do Amor, de vidio (Ed. Nova Alexandria. e-mail: antoniomendonca@uol.com.br INTRODUGAO ca da Roma do século I a.C. podem fornecer alguns dados para uma melhor avaliagto desta obra de César, tares, alegando 2s vezes os mais nobres propésitos democr interferido € perturbado o andamento normal de nossa: 6 telato da rebelio armada de conta este livro, pode parecernos nada mais nada menos que uma simples quartelada, igual a muitas das que temos tido. E bem verdade que haverd momento em que a leitura dos fatos, sem 0 necessirio conhecimento do contexto hist6rico, poder corroborar essa presun- fo, quando virmos César se queixar dos atentados & sua dignidade, © a tropa, ululante, declarando-se disposta a defender seu comandan- te, vitima das injusticas da classe dominante dos p contra a constituigio do Estado. 5 historiadores, descartando a idéia de um mero gol tar, preferem ver na rebelito de César o desfecho de um complexo processo revolucionério em ebulico desde a metade do século IL a.C., com o qual se caldeiam € se misturam também rivalidades € competicoes caudilhescas pela lideranga politica na Cidade. A passagem da Cidade-Estado ao Estado-Império se processa~ ra sem que as instituigdes tivessem se acomodado as novas realida- des imperiais. Confrontada com as exigéncias das conquistas € ‘manutengao da ordem nas provincias, a administrago senatorial e republicana, sem quadros ou disposicio para enfrentar os problemas novos, se omitia, concedendo misses e comandos especiais de lon- ga duracio e de grandes recursos militares a generais-p " com © passar do tempo, passaram a exercer um poder paralelo 90 Estado, Ao se falar de militarismo na tarda Repdblica romana € bom sempre se prevenir contra o anacronismo hist6rico; lé 08 politicos € [que se fazem generais, enquanto muitas vezes, entre nés, os militares de generais se fizeram politicos com seus pronunciamientos. Desde 2 Antighidade, historiadores, como Salistio, balizaram a metade do séc. ITa.C. como um momento crucial e decisivo da hist6 sia romana, coincidente com 2 destruiglo de Cartago (146 a.C.), em- bora nem sempre seja, entre eles, de consenso 0 diagnéstico dos motivos da crise. ‘A progressiva conquista de vasios te hegemonia romana sobre 0 Mediterraneo, no campo cultural, um amplo contacto de Roma com a civilizagio helénica, provedora de sistemas filoséficos, de modelos literérios, de novas idéias sobre regimes politicos. No Ambito da economia, Roma vviu afluir 2 Itilia um acervo enorme de bens, constituidos de despo- jos e expropriagdes dos paises dominados, de um grande contingen- te de mio-de-obra barata formada de presas de guerra escravizadas, sem falar dos tributos impostos aos vencidos. ‘Do bolo da conquista uma parte foi para a jé favorecida classe detentora de terras e nada inclinada a aceitar reformas que vviessem 2 pér limites em suas conquistas ¢ seu acrescido poder; des- sa prosperidade também se beneficiou um grupo social emergente, ‘cogumelo do sistema imperialista, formado de banqueiros, negocian- tes e sociedades privadas de arrecadacdo de impostos nas provincias. ‘Uma grande massa de pequenos proprietirios rurais, que for- eceu © grosso dos efetivos das legides e dew o sangue nas longas campanhas militares, teve como recompensa a perda de suas pro priedades, porque foi desalojada ou expulsa delas ou porque se vit ‘obrigada a vendé-las, arruinada com a longa auséncia ¢ incapaz que estava de competir com a agricultura extensiva dos latiftindios, bene~ ficiados com a mao-de-obra barata dos escravos. © fato indiscutivel € que no decorrer do século II aC. se assiste ao fendmeno do despovoamento do campo e 2 conseqiente imigragao para as cidades de um grande niimero de cidadaos que foram engrossar a miserével clientela da plebe urbana. Essa popula clo desempregada, descrita como instével, turbulenta € pronta a ser- vir de massa de manobra de politicos desejosos de ascensio na car- reira das honras, era mantida sob suspeicao pela classe dirigente. senatori 18 certos perfodos de suas carreiras, diferenciado, mas agrupados ¢ identifi de populares, Entre esses politicos se destacam os Gracos (os iniciado- re3), Mario, Cina, Pompeu, Crasso, Catilina, César, Cl6dio. Bles mantive- tua colaboragio e assisténcia. Assu- miam a defesa dos interesses dela e dela recebiam 0 apoio politico. ‘Como € sabido, Tibério Graco e, mais tarde, seu irmo Caio, ambos na qualidade de tibunos da plebe, patrocinaram a causa dos sem-terra da época, em franco confronto com a politica da aristocra- a que tinha interesse em manter a ocupacdo das terras piblicas Com 0 assassinio dos Gracos e 0 malogro da reforma agriria por eles proposta para aliviar a situagio da plebe, ocorreu uma fissura © uma divisio na politica interna romana, ¢ as sérias divergéncias entre os grupos fizeram aparecer dois posicionamentos politicos, a que mu tos historiadores dao 0 nome de partidos: 0 dos defensores dos inte- resses da plebe (populares), o que representava a politica conserva- dora do Senado Coptimates). Entre 0s pontos programéticos dos populares estava a defesa ransigente do diteito da intercessdo, atributo dos tribunos da ple- 0 direito de veto sobre qualquer medida que I aos interesses da plebe e/ou de toda a comunidade, Como nao é dificil rmuitas vezes posta em pritica para inviabilizar e ns politica ou decretos provenientes do Senado. Foi o que tentaram fa: zer os tribunos que seguiam a orientacdo politica de César, quando 0 Senado Ihe cassou 0 comando da Galia. O Senado, para contrabalan- ‘ar esse direito, de certa forma discricionério, dos tribunos, de efeito Gevastador para sua atividade politica, angou mao de medida de exceslo, instituindo, durante a crise dos Gracos, o estado de emer- ¢gencia, simbolizado no famoso senatusconsultum sltimum; esse de- cereto suspendia todas as garantias constitucionais e conferia aos cén- sules até mesmo o direito de condenacdo & morte. Sabemos que em época posterior 0 Senado fez uso desse decreto durante @ conspira- 20 de Catilina e quando cassou o comando de César, que, em ambas as ocasides, se opés & sua aplicagao contestou sua legalidade. -ando a escolha do tema de sua monografia so- Jugurta (109-104 a.C.), diz que foi entao que pela 9 primeira vez se resolveu enfrentar a arrogincia da nobreza (B. lug. 5,1). Realmente, por ocasiio dessa guerra na Africa, 0 confronto entre populares e optimates, inaugurado com o malogto das propostas dos Gracos, se reacende no final do século segundo, prolonga-se pela primeira metade do século seguinte e vai atingir seu ponto culminan- te com a rebelito de César (49 a.C). ‘As operagbes na Numidia, apés uma primeira etapa cheia de comprometimentos e corrupsao por parte do Senado, caminhavam a contento sob 0 comando do nobre Metelo Numidico, quando um seu lugartenente (legatus), Mario, sem nenhum antepassado consu- lar (homo nowus), se atreve a candidat primeira magistratura, em franca discordancia com a politica dominante da aristocracia senatorial. © povo, cansado da guerra e de mos dadas com a cl eqdestre prejudicada em seus interesses e negécios no exterior, el g€ Mario. J4 cOnsul e com o apoio da assembléia popular, ele promo- ve a destituicio de Metelo, assume o comando da guerra, nao sem antes introduair uma reforma no exército, que com 0 andar do tem- po seria de profundas conseqiiéncias politicas e sociais. Até entao 0 servico militar era prestado por cidadao em condicdes de financis- lo. A partir de Mario passam a ser recrutados os proletarit, isto €, 0s que nada tinham a fornecer sendo a prole; dessa forma, paula- tinamente, as legides se profissionalizam, animadas e confortadas pela esperanca de prémios ¢ recompensas outorgados pelos seus comandantes; no serio mais 0 povo e a cidadania em armas, mas, muitas vezes, a tropa a servico de seus comandantes com ambigdes politicas. Enfim o bravo Jugurta, vencido, nao pelas armas, mas por ar- madilhas e ciladas, € entregue a Mario por um seu legado, Sila, um Patricio obscuro da gens Cornelia, que entio a vit6ria irmanava, O prisioneiro ilustre, apés o desfile da vitéria Ctriumphus) de Mario, é estrangulado na prisio. ‘A vitGria de Mario nao o dispensou de vos mais altos, ou, como diz Salistio, “as esperancas e os recursos da nacao estavam depositados nele” (B. lug. 114,4). Venceu os cimbros e os teutdes que ‘ameagavam 0 norte da Illia. Foi reeleito por seis vezes a0 consulado, em nitida contradigo com.os ideais dos fundadores da Repiblica, partidarios de eleices anuais para proporcionar rotatividade e alternancia no poder e evitar que os politicos se perpetuassem nele e voltassem a monopolizé-lo com sonhas monérquicos. 20 © exemplo de Mario frutificou em lares, pai de Comélia, primeira mulher de César. Durante um dos seus consulados e com apoio de Mario, é cassado 0 comando de cOnsul em 88, que se preparava para guerrear Mitridates na Asia, Inconformado com essa decisto, Sila, para escandalo de seus pro- prios oficiais, marcha com suas legides para Roma, inaugura as di duras militares na Cidade e passa a estabelecer estreitas relagdes com a aristocracia senatorial, Com sua partida para o Oriente, recompdem- se 08 lideres populares em Roma ¢ submetem os adversarios a um banho de sangue. Em 83 a.C, Sila retomna vitorioso com seus perseguides panida- ros aristocraticos e dé inicio a um dos perfodos mais negtos da hist6- ria romana, com arbitrariedades de toda ordem, expropriacdes, banimentos, execugdes, leildes dos bens do adversirios para enti. quecer os amigos. Com as punigdes, o tirano promove a reforma da constituigao sempre no sentido de assegurar 8 aristocracia decadente tranqitilidade politica, com amplos poderes no Senado ¢ nos tribu- nais, tornando 0 tribunado da plebe um poder jugulado e uma insti- tuiglo quase instil. Como em todas as ditaduras, houve também nes- ta os etemnos oportunistas que tiram partido de todas as situacoes, & direita ou & esquerda. Entre eles estavam figuras bem conhecidas: 0 jovem Pompeu a recrutar tropas em apoio 2o ditador, dele herdando 2 famosa alcunha de Magnus; Crasso se entiquece com os bens dos espoliados; Catilina faz desfilar pela Cidade seu sadismo macabro. ‘Tempos depois alguns deles posaram até de defensores da plebe, fortalecendo a crenga geral de que os politicos camegam a triste sina de serem canigos a0 sabor dos ventos e das votos. ina, outro lider dos popu- César, 20 contrério, embora sempre preocupado com sua pré- pria dignitas, parece ter mantido, em meio aos embates da politica, fidelidade constante & causa dos populares. Orgulhoso de sua tia Jil mulher de Mario, dela fez solene elogio; pressionado por Sila, q rele via emboscados muitos Marios, nao repudiou Comnélia, filha de Gina, lider popular. Apés a ditadura, bateu-se pela rest antigos direitos dos tibunos da plebe. Restabeleceu os troféus come- morativos da vitéria de Mario, derrubados por Sila. Durante a conju raglo de Catilina e em plena vigéncia do senatusconsultum iltimum, fez discurso memoravel contra a aplicago da pena de morte aos cGmplices do conspirador, aprisionados em Roma, tendo sido a Bibulo, colega no consulado, e de Cato, sogro dele lider inconteste do Senado; a ambos moveu campanha violenta de represilia: 0 pri- meiro viveu trancafiado na prOpria casa dh uase todo 0 ano de sua magistratura e 0 outro nao escapou de um dia de prisio. Apoiou fa concesséo de poderes extraordinarios a Pompeu para combater a pirataria no Mediterrineo e dar prosseguimento & guerra contra Mitridates, tendo com isso provocado a substituigo forgada de Luculo, ‘memibro eminente do Senado. Do exposto parece evidente que César tinha um passado de oposigio ao Senado, o que pode ser confirmado pela leitura do Bellem Ciuile. No discurso em que conclama os soldados & luta, lembra que a0 longo da vida tinha sido vitima das injusticas dos inimigos contra (05 quais se rebelava: “Omnium temporum iniurias inimicorum in se commemorat” B.C. 1,7,1). Quando Domicio Aenobarbo, cunhado de Cato ¢ um dos mais obstinados adversirios do procénsul, se rende em Corfinio, César esclarece que seus inimigos sao a oligarquia de cuja opresstio quer ele libertar 0 povo romano. © texto é emblemsti- co, bastante explicio e vale a pena citi-lo: *..) no saira.de sua provincia para fazer mal algum, mas para se defender dos agravos dos inimigos, para restabelecer em seus poderes os tribunos da plebe que tinham sido naquela ocasiio expulsos da Cidade, ¢ para devalver a liberdade a si 20 povo romano, oprimido por uma oligarquia® B.C.1225). reciso, contudo, no perder de vista que a leitura do livro de César nos da conta de que libertar 0 povo romano da opressio da oligarquia, fazer cumprir as prerrogativas dos tribunos da plebe nto feram as tinicas razdes da rebeliio de César. Na sua fala & tropa ele a exorta a defender 2 honra (dignitas) e o prestigio (existimatio) de seu comandante sob cuja diregio vitoriosa obtivera intimeros @xitos mili- tares e pacificara a Galia e a Germania (B.C.1,7,7). A primeira vista 0 apelo aos soldados se ressente de nitido corporativismo, em que o prestigio pessoal do general esté a frente de uma instituigio (no caso, 0 Senado) ¢ do préprio Estado, Estaria- ‘mos, pois, na presenga, nao de uma revolugao, mas de um auténtico golpe militar, no estilo do praticado por Sila quando os populares Ihe cassaram 0 comando contra Mittidates. Essa interpretacao discutivel 2 ‘mascara alguns compo do comportamento politico da classe dirigente romana. O que parece que César quer dar a entender é que se enqua- drou totalmente no jogo da politica romana e na iltima hora as regras ide traduzida atenuadamente por bonra, prestigio, digni- utacdo, posigéo, tem implicagdes sociais € pe vida pablica romana, Toda carreira pol a0 reconhecimento, a dignitas; tudo que a feria, a injustiga, da infurta, Todo cidadao romano pertencente a classe politica ou que a spirava tina de construir sua propria carreira; o normal era que 08 nobiles, isto é, os descendentes de antigos magistrados, se eleges- sem € a seu tempo também elegessem seus filhos para os varios car- gos que compunham as magistraturas. Apés os cargos, o normal era também serem escolhidos para fazer parte da numerosa assembléia do Senado. Os leitores de Salistio conhecem bem a critica contun- dente ¢ irdnica que Métio, um bomo nouus, que inaugurou sua pré- ria nobreza, faz da rotina com que os nobres distribuiam os cargos piiblicos de pais para filhos. Em virtude, porém, de haver gargalos na ascensio as magistraturas, isto €, porque, & medida que se avancava nna carreira, 08 postos mais elevados (p.e. cOnsules) comportavam ‘menos titulares, 0 proceso eleitoral se tornava de férvida competi- io, e 20 mesmo tempo se encarregava de promover uma selegao hierarquizacao entre os politicos. Os historiadores modemos nos lembram que para um romano aristocrata era uma obrigagio ¢ ponto de honra esforgar-se por manter € intensificar a propria dignitas, defenclendo-a contra os ataques dos que viessem a contesti-la, Essas sto as marcas do itinerdrio politico de César; sobretudo a partir da edilidade, pasando pela eleigao de pontifice ma- ximo, até chegar ao primeiro consulado do ano 59 a.C., nota-se um enorme empenho em buscar situac2o de lideranca e de poder, o que vem confirmar o anedotirio registrado pelos historiadores antigos. Com efeito, dele se conta que teria dito que preferia ser o primeiro numa humilde populacdo alpina a ser o segundo em Roma; que Sila, a0 re- rnunciar espontaneamente ao poder, tinha agido como um aprendiz em politica; que teria chorado diante da estétua de Alexandre porque com a idade em que o macedénico ji era senhor do mundo, ele, César, nada 23 tinha feito de importante; que em sonho teria estado com a propria me ‘numa relaglo incestuosa, tendo a mie sido interpretada como a mie- terra da qual ele um dia seria o senhor. Seja ou nao aceita a hipétese de que César alimentava a idéia de instituir em Roma um regime mondrquico, uma coisa € inegével: a frente dos seus competidores. Eis o que diz de si elle superare.) (B.C.1,32,9) No seu primeiro consulado (59 a.C.), César, apoi ‘outros membros do “triunvirado", dominou a cena politica, fez apro- var varias medidas dos populares, se bem que, para vencer a oposi- tivesse cometido arbitrariedades, como o confinamento de seu colega no consulado e a prislo, por um dia, de Catio. Bra um ainda tinha a Ihe fazer sombra a figura de Pompeu. Eram aliados contra 0 Senado, mas entre si competiam: um queria subir, o outro nao queria descer. Pompeu, pelas muitas campanhas vitoriosas, contra os piratas, os revoltosos da Hispania, os escravos rebelados, a memorével expediglo militar e administrativa na Asia, demonstrar comperéncia. César, se quisesse ser 0 dar provas. ‘Ao término do seu consulado e bem a contragosto do Senado efervescer a Cidade, estava aberta a grande temporada das armas, bem a seu desejo, com um grande comando, oe uma guerra’ diferente de todas as guerras, onde pudesse resplandecer sua bravura, como registra Saltistio, *(..) sibi magnum imperium, exercitum, bellum nouum exoptabat ubi uirtus enitescere B. Tug. 54,3) Por mais de oito anos esse patricio de cultura refinada, estu- ddioso da linguagem, orador elogiaco por Cicero, amante sedutor, tendo 4 seu dispor todos 0s encantos e os requintes da Cidade, dé adeus a ela, embrenha-se por entre tribos barbaras, submete-se @ toda sone de privacio, expde-se a riscos e perigos. £ 0 aristocrata na faina de intensificar e incrementar sua dignitas. Os resultados foram surpreen- 24 dentes € consagradores. A Gilia foi submetida, tributos exigidos, populacées inteiras escravizadas; os estandartes das legide: neira do general escritor e divulgados pelos seus positives e infor- mantes figis, foram, com o correr do tempo, chegando ao Forum, sdfrego de novidades, e acriménia e as ameacas de Catto, decretou, por varias v Pliblicas (supplicationes), em homenagem a César, por que jamais tinha sido concedida a qualquer outro general Em Roma, porém, nem tudo caminhou as mil maravilhas. A morte de Jilia, filha de César e esposa amada de Pompeu, a malogra- da expedicdo de Crasso contra 0s partos ¢ seu massacre em Carmas, € principalmente o citime do antigo genro que no suportava que al- ‘guém viesse a empanar-the a gloria, acabaram por romper 0s lagos da antiga alianca. Para César 0 rompimento de Pompeu se deu porque io aceitava que alguém viesse a se igualar a ele em dignitas (“quod neminem dignitate secum exequari uolebat.” (B.C.1,4,4). Para eliminar o concorrente, Pompeu se alia com as liderangas do Senado, O pretexto € 0 estopim da crise estiveram ligados & can- didatura de César a0 consulado de 49 2.C. © procénsul da Gali, emente, sem perda do , $e Pompeii mantivesse também o seu. Essa exigén- cia era condigio e garantia de sua sobrevivéncia pi se apresentasse candidato como simples cidadao, ameacas antigas ¢ recentes de seus inimigos, entre eles Catto, de leva-lo aos tribunais. Os atos, no minimo, atbitrarios de seu primeiro consulado (59a.C), as imegularidades cometidas durante 0 procon- sulado na Gala, os competentes advogados a servico da aristocracia dominante, a pressio ao tribunal das tropas de Pompeu aquarteladas do comando ¢ implantou 0 estado de emergéncia através do jé conhe- 25 cido senatusconsultum ultimum, cuja decretacao os lideres populares sempre constestaram, Com a suspensio das garantias ¢ o cerceamento do direito de intercessio, os tribunos da plebe partdarios de César, ameacados, fogem de Roma e vao buscar protecio junto ao chefe. © ‘general, alegando, entre outros motivos, que a decisio do Senado era lesiva a sua honra (dignitad e 20 seu prestigio (existimatio), a ele devi- dos pelas campanhas vitoriosas levadas a cabo e pela pacificacto da Gélia e da Germania, pede o apoio da tropa e invade a Itlia, A OBRA Importéncia, Essa obra memorialista fundamental para o es- tudo da hist6ria dos titimos anos da Republica por se tratar de fonte primaria sobre a guerra civil e apresentar a visio do protagonista a respeito de fatos tio importantes. Nesse sentido pode-se afirmar que 6 io merecedora de estudo e andlise, ou mais ainda do que sua irma ‘gémea 0 De Bello Gallico, que por raz0es didaticas ou de nossa afini- dade cultural com os herdeiros da Gélia, tem tido entre nés maior difusio e estudo. “Assunto. A obra trata de acontecimentos politicos ¢ militares que envolveram a Repiiblica Romana durante os anos 49 ¢ 48 aC, que tiveram inicio com a rebeliio armada de César, inconformado com as decisdes do Senado que Ihe cassara o mandato militar Cmperium) da Gélia, impedindo-o de se candidatar a um segundo consulado, ausente de Roma. Os fatos narrados tém inicio pratica mente com a invasio da Itdlia pelas legides do jf ento ex-procénsul terminam com o assassinio de Pompeu no Egito e com 0 inicio da chamada Guerra Alexandrina. Tratando-se de uma obra autobiografi- a, 0 protagonista e 0 narrador so uma e a mesma pessoa, embora, ‘como veremos, a técnica narrativa empregada pelo autor procure dis- simular essa identidade, Divisdo. Tradicionalmente as edigoes apresentam o relato em tués livros: 2) 0 primeiro, de oitenta e sete capitulos, apés breve apre- sentagao dos motivos que levaram César a se rebelar, relata: sua ten- {ativa frustrada de impedir a partida de Pompeu e grande parte do Senado de Brundisio (na Itilia) para Dirréquio (no lirico, hoje Albania) sua primeira estada em Roma; 0 inicio das hostilidades contra Mar- 26 selha, a campanha na Hispinia contra os exércitos pompeianos de Varrlo, Afrinio e Petreio com a capitulagdo dos dois tlkimos, obriga- dos a desmobilizar suas tropas; b) o segundo narra em quarenta € quatro capitulos: o prosseguimento do cerco de Marselha e sua pos- terior submissio; a rendigao de Varrlo, legado de Pompeu na Hispania Ulterior; a desastrosa expediclo de Curio, lugar-tenente de César na Africa, massacrado com seu exército pela cavalaria de Juba, rei da Numidia; ¢) 0 terceiro livro, de cento € doze capitulos, registra: a eleigio de César ao consulado de 48 a.C. e as medidas politicas por ele adotadas em Roma por essa ocasi2o; a campanba da Grécia, onde oexército de César, depois de sofrer dois duros reveses em Ditréquio, desbarata, em Farsilia, as legides sob 0 comando de Pompeu, em fuga para o Egito, onde € assassinado; 0 inicio da Guerra Alexat Natureza, Tanto 0 De Bello Gallico como o Bellum enquadram numa subclasse da historiografia romana chamada commentarius, € bom, porém, lembrar que a palavra portuguesa ¢ @ latina nio recobrem 0 mesmo campo semintico, uma vez que entre nés, ‘© emprego corrente do vocibulo pressupde texto ou matéria sobre 0 qual se discorre. reve 0 sentido de Iatim, 0 termo, vinculado etimologicamente a mens de reflexdes, caderno de apontamento, lembre- correr da pena, conciso € destituido de orna- 1 registro condensado generais para servir de assunto e matéria-prima a ser reescrita ¢ elabora- da anisticamente por historiadores. Tem-se noticia de comentarios pre~ parados por Sila e Cicero. César, em suas duas obras histéricas, empre- ‘g0u esse tipo de narrativa despojada e o fez. com tal maestria e arte que 6 transformou em género na literatura latina, a ponto de Cicero dizer que seria ousadia ¢ temeridade querer alg CObjetivo. No momento em que César escreveu o Bellum Chui a situagio militar Ihe era bastante confortével; era senhor da vvencera os trés poderosos exércitos de Hispania, derrotara Pomp’ em Farsilia, cuja morte jé no lhe causava apreensdes e, com sua eleigéo a0 consulado, tentava fazer figura de legalista. No entanto, as liderangas remanescentes da aristocracia al fe reagrupavam € iriam causarlhe ainda dificuldades na Africa (Tapso) e especialmente na Hispinia (Munda). Nesse contexto e em situacio militar no plenamente domina- da, que objetivos tinha em mente César 20 abrir, com as armas da a7 literatura, uma nova frente de batalha? Seria a tentativa de conquistar 2 opinido publica através da propaganda? Tratar do tema da opinido publica na Antigiiidade pode des- pertar desconfiancas ¢ suspeitas de anacronismo histérico. No entan- to, vivendo num regime de participagio direta nas assembiéias e ma- nifestagées pibiicas, mesmo com as resttigbes advindas da vigéncia de um governo de constinsi¢io aristocritica, 0 cidadao romano co- mum do fim da Reptibiica deu demonstragdes de estar bem a par da situagio do Estado. As manilestagbes populares nos jogos, os aplau- sos da platéia as insinuagdes e alusdes criticas feitas por atores nas representacoes teatrais, as vaias aos potentados, os grafites © até a relativa fortuna que tiveram os editos de Bibulo, colega e adversério ferrenho de César no consuldado de 59 a.C., sio prova da existéncia de uma opinio pablica atenta e vigilante. E por ela, a meu ver, que se explica a existéncia e florescimento, nesse periodo, de uma litera- ‘ura politica. Por mais reduzidos que fossem o alcance e a penetrag2o do livro na Antighidade, as publicagdes de que temos noticia Ihe garantem um espago certo. At a César nto 56 sensibilidade a opinio pablica como também competéncia no Com efeito, jd 0 De Bello Galtico, qualquer que tenha sido sua forma de veiculagio ~ volante, relat6rio a0 Senado, livro -, fora de importincia decisiva para a divulgacio de seus feitos na Galia, para lograr, mesmo a contragosto do Senado, solenidades piiblicas de agra- decimento aos deuses, para enciumar e obscurecer o grande Pompeu. Suas atividades de escritor politico nao se encerram af. Quando Cicero publica, com sucesso, a apologia de Catio, mértir da liberdade repu- blicana em Utica, talvezo tinico a quem nao se inclinaria a publicitada cleméncia de César, sai este a campo com o seu AntiCato, hoje perdi- do, Reconhecendo essa preocupagio de César com a opiniio publi- ca, ha até quem pense que as cartas de Salistio ad Caesarem senem teriam sido sugestOes assopradas pelo proconsul no ouvido do gran- de historiador. Diante do exposto, o que pretendia entio César com a compo- siglo do Bellum Ciuile? Homem pragmético, que tirava sempre partido das circunstin- clas, seu intento maior nao seria registrar para a posteridade feitos € virtudes que o perpetuassem; esse poderia ser 0 anseio freqiiente de generais, politicos € literatos preocupados coma imortalidade, de 28 acordo com o lema horaciano do non omnis moriar (nao morrerei Por inteiro). Seus motivos eram mais priticos e imediatos. Tendo ain- da pela frente a missio de reduzir ao bom caminho os sobreviventes das legides pompeianas e, a bragos com a tarefa de reorganizar 0 Estado, era urgente apresentar os fatos da guerra civil e sua ascensio 20 poder num enfoque convincente. A proposta era, pois, justificar a rebelido armada, tranqtilizar os temerosos e convencer os indecisos; a tarefa nao era nada facil para quem rompera a legalidade e atrope- lara a constituicto, fazendo crer que poderiam estar de volta os tem- os ominosos de Sila, cujas atrocidades estavam frescas na meméria de todos. Na guerra da propaganda as estratégias podem assumir formas diferenciadas: atacar 0 adversério ou simplesmente se defender, ou ainda atacar € defender. O autor do Bellum Ciuile escolheu a bipolatidade da tiltima opgao. Estrutura bipolar. € nesse ritmo que se processa a narrative dos acontecimentos, num jogo dialético em que a virtude de um partido, evidentemente o de Césat, se contrapde 30 defeito cor- respondente do seu adversdrio. A leitura da obra, parece-nos, ird comprovar essa afirmacio; por ora basta aflorar alguns pontos. A questio de avancar em armas contra 2 prépria patria num pais, cujo lema republicano era o de que elas deviam ceder sempre 0 lugar ao civilismo (cedant arma togae), era uum assunto ineludivel Nao teria sido César que rompera a legalidade? Nao, diz ele; a inicia- tiva de passar por cima da lei fora do Senado, levando de roldio todos os direitos, divinos e humanos (omnia diuina bumanaque iura permiscentur). O campeao da legalidade € César, que se levantou de armas na mio contra uns golpistas oligirquicos (pauct) que Ihe cas- ssaram uma prerrogativa concedida pelo povo e privaram os tribunos da plebe do sacrossanto € secular direito da interdicio. Quem € 0 legalista? Quem so os golpistas? Esse processo de defesa e ataque, de virtudes ¢ defeitos cons- titafdos em pares antagOnicos, permeia toda a exposigo dos fatos, numa exposicio a nfo querer deixar diividas sobre com quem esté a verdade, A mansidao e cleméncia de César se contrapde a crueldade dos seus adversétios; os apelos € propostas seguidas de paz. recon- lliagao tém, como resposta ¢ exigencia, a cabeca de César. Pode parecer até um pouco estranho que entrem em termos de compara- Gio as qualidades militares de César com a leviandade e inépcia da » cestratégia do grande Pompeu, general até entio de gl6rias inexcediveis; no se deve esquecer que para a carreira de César era importante ser superior 20 seu adversfrio até como chefe militar, sem deixar também de levar em conta que no ambito do pensamento do imperialismo romano virtudes militares e civicas eram perfeitamente condizentes com a dignitas do cidadao prestante. Nao é preciso prevenir o leitor de César que a defesa que ele faz de sie 0s ataques que proporciona aos adversérios se exprimem num estilo contido e sébrio, onde nao tem lugar qualquer exaltagio panfletiria. Veracidade histérica. Dado o carter autobiografico © propa- gandistico da obra, € justo que s¢ interrogue sobre a verdade dos fatos af narrados. Se mesmo em historiadores que professam isen¢ao Jalidade, a escolha ¢ selegiio dos dados j revelam uma toma: J, 0 que niio se dira de alguém que historia fatos de que foi protagonista e, mais, com intengio de se defender ou se promover? Essa questiio tem suscitado, desde a Antigiiidade (Suet. César 56,0), discussio e divergéncias, inevitiveis em razio de nao terem chegado até nés outras fontes contemporinezs diretas que trataram dos mesmos acontecimentos. A volumosa correspondéncia de Cicero € um depoi ‘mento valiosfssimo sobre os titimos anos da Reptblica, mas fragmentd- Polido, nfo s6 por ter convivido com César como também por ter afirmado que o general, de caso pensado ou por faléncia de memé- ria, faseara nos comentivios a verdade dos fatos (“tel consulto uel etiam ‘memoria lapsus perperam ediderit,”) Suet. César 56,4). Na esteira de Polio, hé quem modernamente desqualifique 0 valor do testemunho de César, considerando-o obra de deformacio hist6rica. Parece, no entanto, que boa parte dos historiadores moder- nos, alé mesmo levando em consideragio a préptia natureza do ge- nero autobiogrifico, atribui credibilidade a César, sem deixar de re~ conhecer os siléncios estratégicos, as atenuagdes e amplificagbes do seu relato. Ele mesmo parece que nos dé a senha para a interpretacao de sua obra, Com efeito, transcrevendo o longo discurso que atribui a Curifo, seu malogrado lugar-tenente na Africa, ele registra a seguin- te interrogativa ret6rica: “Porventura os malogros do exército, tanto quanto as feridas do corpo, nao devem ser dissimulados, para nao aumentar a esperanga do inimigo?” (B.C. 2,32,5). 30 para 0 nosso caso, Importante e decisiva teria sido a obra de Asinio Como a noticia € uma arma que no se deve dar de graga a0 la, manipulé-la de acordo com as tidos como honrados e sérios. Talvez se possa até fazer uma simula- Glo de como teria sido a redaglo da obra. De posse de um largo acervo de dados de memsria, de apontamentos, de cartas recebidas, de relat6rios substancialmente verdadeiros, apresentados pelos seus lugares-tenentes, César os processa, os seleciona ¢ 08 direciona. E nem é necessério pensar, por exemplo, que todas 2s omissdes ocor- rem conscientemente € de caso pensado, (© que nio se pode negar € que ha siléncios, dosagens, ampli- ficacdes comprometedoras. Quem conheceu através do proprio César a brilhante atuaglo de Labieno na Gélia, gostaria de ter uma explica- ‘glo no Bellum Ciuile por que teria ele passado para o lado de Pompeu. ‘Mas 0 que dele se fica sabendo é que é um homem desinformado, cruel e pérfido, © relato no peca apenas por sonegacio de noticias, peca também por exageros. No livro terceiro, capitulo quarto e quin- to, 0 leitor é submetido a um cansativo bombardeio de informacoes sobre a composicao das legides de Pompeu. Insiste-se sobre o niime- 10, nada se diz de sua qualidade. “Aspectos formais. Numa obra autobiogrifica, em que, como é Sbvio, o agente da hist6ria e 0 narrador sio uma $6 pessoa, 0 normal € que aquele que toma a iniciativa de contar sua prOpria histéria, se aproprie dos dispositivos da fala, enunciando-se na primeira pessoa sgramatical, César, no Belluum Ciuile, como jé o fizera no De Bello Gallico, contraria a regularidade dessa pritica, apresentando-se como narra- dor autobiogrifico de terceira pessoa. Um pequeno exemplo: em vez de dizer “Naquela ocasio eu me encontrava em Ravena e aguardava respostas as minhas exigéncias bastante moderadas”, ele registra “Na- quela ocasiao César se encontrava em Ravena e aguardava respostas as suas exigéncias bastante moderadas." (B.C. 1,5,5). Esse emprego da terceira pessoa, a que, com freqiiéncia, se tem dado o nome de olimpico, encontra, segundo me foi dito, documentagio anterior na literatura grega. A questo pertinente é saber se, na economia da obra, a adogio da terceira pessoa é indiferente © neutra, ou se seu emprego provoca algum efeito. Dizem os lingitistas que o que chamamos tetceira pessoa, na realidade vem a ser a nao-pessoa, justamente porque ela nao € pai cipante interativa da fala. Ora, faz8-la participar do discurso autobio- 3 grifico como substituto da primeira pessoa tem como efeito provocar no leitor a ilusio de que a pessoa cujos fatos se narram e o narrador constituem entidades diferentes, de que entre eles nao ha a cumplici- dade de alguem que fala em causa propria. Esse distanciamento aparente ndo-envolvimento dao ares de isencio, descartam suspeitas de favorecimento € contribuem poderosimente para conferir credibi- lidade ao relato Esse me parece um dos recursos da asticia e sagacidade do escritor politico. H outros. O leitor pouco atento pode até se enfas- tar com a platitude de uma narrativa cujas ages, a0 contririo dos outros grandes historiadores latinos, na sua grande maioria, se desen- rolam linearmente, sem grandes lances emocionais, sem discursos patéticos, sem montagens de quadros draméticos, num estilo quase burocratico. © tom predominantemente impessoal do relato, seu despojamento so conscientemente explorados no intuito de fazer ver e crer que a preocupacio maior € 0 compromisso com a exatidio € a verdade dos fatos. Essa mesma preocupagio de no dramatizar o texto € visivel quando César reproduz falas ou discursos seus ou alheios. Quando se Iéem os épicos, como Virgilio ou historiadores como Saltstio, Tito Livio, Tacito, nao se pode deixar de notar o largo espaco concedido 0s discursos, redigidos de acordo com os cAnones ret6ricos e repro- duzidos textualmente no chamado discurso direto. A preferéncia de César € pelo discurso indireto, processo de citagio desenvolvido na linguagem administrativa, e posteriormente, dada sua agilidade, em- pregado com éxito no texto literdrio. Por ser um discurso narrado, 0 emprego desse tipo de reproducio de fala tem a vantagem de niio interromper a narragio, de permitir ao narrador insistir em alguns pontos da fala, sem que por isso seja acusado de parcialidade. A ocorténcia do discurso direto no Bellum Ciuile € parcimo- niosa e tem a funclo especifica de revelar o carter, o comportamento ea coeréncia (ou incoeréncia) das pessoas que falam. O tinico dis- curso longo de todo 0 texto sai da boca de Curio; reproduzindo-o (ou redigindo-o}), 0 general presta comovida homenagem a seu fiel e infeliz. lugar-tenente que, o que falou, cumpriu: no compareceria vivo & presenga de César sem o exército que Ihe tinha sido confiado. Caso semelhante é 0 do centuriio Cristino (B.C. 3,91); suas palavras concordam com sta vida, por isso César Ihe € reconhecido e grato (BC. 3,99,3). A leviandade, a incoeréncia, 0 perjério sio contraparti- 22 dda das solenes palavras dos adversérios. Labieno € categ6rico: o atual exército de César € um arremedo do que submeteu a Gélia e a Germania (B.C. 3,87,1); no menos incisivo € o proprio Pompeu desbaratar o exército de César antes mesmo de disparar um projétl (B.C. 3,86,3). A verdade é outra. Pompeu abandona o campo de ba- talha, refugia-se no acampamento, ¢ alegando que ia reforgar suas portas, foge covardemente (B.C. 3,94,5-6). Em todo 0 relato da A Guerra Civilapenas uma ‘nica vez apa- rece citagao textual de uma fala de César, no momento em que tem ele de suspender a marcha porque Pompeu oferece a oportunidade da batalha, Sua fungio tinica parece consistir em estabelecer contras- te total com as fanfarronadas dos seus adversirios. Nao é crivel que ‘num momento crucial e dramatico em que dois exércitos jogam seu um general se dirija & tropa nestes termos tio frios e serenos: “No momento temos de adiar a marcha e cuidar da batalha que sem- pre reclamamos. Estejamos preparados para a luta; no nos seré encontrar uma outra oportunidade.” (B.C. 385.4) 33 See Sota petites ders nudorn exp Se a Saoactne ee oes Sete See Se Pompelus quoqie, ut poses cognitim ext suum omni onan sara Proc Secee: Neue eta i esti suptorns Confimauerin), wt, com propus sit acest, dentro Caesars corns 3 tnere sper agpredcrenu ecicamoen ab tego ale prs poutbanin ‘rere pelletencquama nob telum in howe acre 4a sine pei Iegionum er pacne tine wunere bellum confi Td autem file non ec curs tant equa sts” 5, Sl ennai st esent aimo Fantlin poster ct quoniam ert dnicand pote, teaepe rogiasiasent, ‘ne suam neu reliquorum opinionem fallerent. i madam oe Ssssnesee nares nnnIIEanSnuInnaESSaTEEESSTIEaEL “ ‘as cita em discurso direto; pronunciadas num contexto de sinsac30 de a frog, quando se cumpram seus dees decaf enfenar Pom fouco etl ques num do dno eros ep dos poo arate Seno de esudada fet © contengio, em que ©. ego a), normal nm tmoment de expres de conan eerem, € mado ou nealzado por Un soguines, da qual ele pretende ser a anttese Perfo, verbal comporamental 218 Guerra Civit ~ Livao Terceino {851 1. Pompeu, que estava acampado numa colina, dispu- ‘ha sua linha de combate bem no sopé da elevagio, aguardando sempre, evidentemente, que César ocupasse posi¢ao desfavord. vel. 2. César, pensando que em hipétese alguma conseguiria atrair Pompeu 20 combate, julgou que a tética mai decampar dali € manter-se sempre em marcha, no intuito de, com as mudangas de acampamento ¢ 0 acesso a muitos lugares, ter maior facilidade para se abastecer de trigo e, ao mesmo tempo, com a longa caminhada lograr alguma oportunidade de tava combate ¢ cansar com marchas didrias 0 exército de Pompeu, Pouco afeito a labuta. 3. Estabelecidos esses objetivos, o sinal de Partida jé tinha sido dado e as tendas ja estavam desmontadas quando se notou que, ao contrério da rotina didria, as linhas de Pompeu tinham avangado um pouco além da trincheira, de ma- neita que parecia possivel travar combate em lugar no desfavo- rivel. 4. Foi entdo que César, quando as colunas jf se postavam as Portas, disse aos seus homens: “Temos no momento que adiar a marcha ¢ cuidar da batalha que sempre reclamamos. Estejamos Preparados para a luta; no futuro nao encontraremos ocasido." E as pressas retirou do acampamento as tropas, livres das bagagens. {86] 1. Pompew igualmente, como posteriormente se ficou sa- bendo, a instincia de todos os seus, decidira combater. Com efeito, em dias anteriores chegara a dizer no conselho que o exército de César seria desbaratado antes mesmo que se ensarilhassem as armas. 2, E como essa afirmagio tinha causado surpresa em muita gente, Glsse: “Sei que estou prometendo algo quase inacreditivel, mas atentai Para o meu plano, para que possais caminhar para a luta com maior conflanga. 3. Convenci nossos cavaleiros —e eles me asseguraram que 0 fario ~a atacar a ala direita de César pelo flanco aberto, to logo se aproxime e, envolvendo pela retaguarda a linha inimiga, lir 0 exército, preso de panico, antes mesmo de lancarmos um projtil so. bre o inimigo. 4. Dessa forma, sem risco para as legides e quase sem baixas, acabaremos com a guerra. Dificil isso nao €, dada a tio grande superioridade da nossa cavalatia.” 5. Ao mesmo tempo, exortot-cs 2 que estivessem preparados para o dia seguinte e, uma vez que hes era dada a oportunidade de lutar, tantas vezes reclamada, nao viessem, a decepcionar a expectativa deles prdprios e dos outros. 2 Betum Civiue ~ Lisen Tearivs Pompel, hunc ese exerci qu Calla Germania peoels neque vemereincogaitam em pronto, Pe txerlus superes magna pars deperi, quod aciere tot proels a consump, mult dom 3 An non audits ex is qui per causam Caletudinisremanserunt cohorts ese Brundis facts? 4 Hae copia, quas udets, ex dlecubus horum annorum in eerie Calla sunt refecae, t Plerque sunt ex colons Trnspadanis. Ac tamen, quod roclis Dyrachinisinterit" 5, Hac com d ara non everourum elquosque dem erent horas es 6 Hoc laucans Pompets idem urait nec vero ex religls uk qoiaqua qui uae dubiaet. 4 itcc cum facta sunt in conti magia spe et latila alum discessum st ae am animo ulctotam praecipleban, quod dere tanta eta tam perto impentore ni fists conftest debate [88] 1, Caesas, cum Pompei castrs appropinquasset, ad hunc modum instructam animaduertit. 2. Erant in sinistro cornu legiones duae ‘quarum una prima, traditae a Caesate initio dissensionis ex senatusconusul a tertia appellabamur; in eo loco ipse erat Pompeius. 3. Mediam aciem jo cum legionibus Syriacis tenebat, conluncta cum cohortibus Hispanis, quas traductas ab Afranio docuimus, in dextro comu scatae. 4, Has firmissimas se habere Pompetus existimabat. Re interiecerat numeroque cohortes CX expleu Guerra Civit = Livro Tenceino (6711. Depois dele foi a vez de Labieno e, fazendo pouco das tropas de César, elevou as nuvens a estratégia de Pompeu. “Nao pen: ses, Pompeu ~ disse ele ~ que esse € 0 exército que submeteu a Galia xados na Itélia € na Galia, 3. Nao ouvistes dizer que se formaram coortes em Brundisio dos que ficaram na Itilia por motivo de satide? 4, Estas tropas sob as vossas vistas foram remanejadas com os recru- tamentos dos iltimos anos, feitos na Galia citerior, provém das colénias transpadanas. Demais, o que havia de vigor nelas, finou-se nos dois combates de Dirriquio.” 5. Tendo assim fala- do, jurou que no tornaria a0 acampamento senao vitorioso e exer. tou os demais a que fizessem o mesmo. 6, Pompeu, aprovando essa iniciativa, fez igual juramento; e, na realidade, de todos os outros nao houve um que hesitou em jurar. 7. Essas coisas se passaram no con- selho, ¢ de la partiram todos em meio a grande esperanca e al de tio larga experiéncia no podia dar garantias sem funda- ‘mento em questio de tal importancia. (88] 1. César, depois de se aproximar do acampamento de Pompeu, notou que a formagio do exército dele se estruturava da seguinte maneira: 2. no flanco esquerdo estavam as duas legides en- tregues por César, no inicio do desentendimento, atendendo a um decreto do Senado; uma delas se chamava primeira e a outa, terceira; af se encontrava 0 préprio Pompeu. 3. Cipiio ocupava o centro com as legides sitias. A legido da Cilicia, juntamente com as coortes hispa- nicas,trazidas, como dissemos, por Afranio, tinham sido dispostas no flanco direito. 4. Pompeu acreditava que estas unidades eram as mais fortes sob seu comiando. As restantes, ele as intercalara entre 0 centro efetivo de cento € dez cores. 5. mais cerca de dois mil reincorporados, beneficidrios de antigos exércitos que se tinham jun- tado a ele € que tinham sido distribuidos por todas as fileiras. As demais coortes, em ntimeto de sete, ele as tinha disposto como guar- das do acampamento e das fortificagGes vizinhas. 6. Um ribeiio com 281 Betum Civite~ ERtivs ‘cornu ius riuus quidam impeditisripis muniebat; quam ob causam cuncturt fequitarum, sagittarios funditoresque omnes sinistwo commu obiecerat. luehementer atenuata, et huic sic adiunxit octauam ut pac fficeret, atque alteram aleri praesidio esse lusserat. 2 Cconstitutas habebat, quae summa erat milium XXII; cohortes VIL castrs ps reliquerat. 3, Sinistro cornu Antonium, dexto P, Sullam, mediae Domitium praeposuerat. Ipse contra Pompeium constiit. 4 Simul sanimaduersis, quas demonstravimus, imens ne a multitudine equitum dextrum ‘cornu cigcumueniretur, celeriter ex teria acies ex his quartam in: ique oppos us diei uit ;rum cohortium virtute constare, 5. Sim Fed uellet, uexillo signum daturum. (00) 1. Exercitum cum militari more ad pugnam cohortaretur suaque in eum pespetui temporis officia praedicaret, in primis commemorauit testibus posse quanto studio pacem petisset, quae per Vatinium in. ‘per Aulum Clodium eum Scipione egisset, quibus modis ad Tibone de mittendis legatis contendisset. 2. Neque se umquam im sanguine neque rem publicam alterutro exercitu privare .e3, Hac habita oratione, exposcentibus militibus et studio pugnae ardentibus, tuba signum dedi (011 1. Brat C. Crastinus evocatus in exercitu Caesaris, qui superiore ‘anno apud eum primum pilum in legione X duxeret, uir singulari uirute. 2 Hic signo dato: “Sequimin’ me", quit, “manipulares mei qui fuists, ef uestro vel que num momento b anima © coragem dos soldados, ‘margens de dificil acesso protegia o flanco direito; em razto disso, ele deslocara para o flanco esquerdio toda a cavalatia, todos os arqueitos € fundibularios. a esta a oitava, a ponto de das duas quase se formar uma finha po: 3. A Ant6nio confiara 0 comando do flanco esquerdo, a Pél do direito, a Cneu Domicio 0 do centro. Ele proprio tomou frente a frente com Pompeu. 4. Assim que reconheceu os disp do inimigo acima mencionados, César, receando que © flanco direito fosse envolvido pela numerosa cavalaria adverséria, rapidamente ti- rou da terceira fileira uma coorte por legiio € delas formou uma quanta fileira, contrapondo-a 2 cavalaria; explicou-Jhes 0 que preten- dia e preveniu que a vitéria daquele dia dependia da bravura daque- las coortes. 5. Simultaneamente deu ordens & terceira fileira de nao investir sento sob seu expresso comando; quando ele o desejasse, datia o sinal com sua bandeira. (90) 1. Ao dirigir aos soldados palavras de estimulo & luta, de acordo com a pritica militar, e ao proclamar o que diuturnamente por eles fizera, lembrou antes de tudo que podia apelar ao testemunho deles sobre seu apaixonado empenho em procurar a paz, sobre as, as de negociagio entabulada por intermédio de Judio com Cipiaio, de que modo insistira com Libao em. Orico na necessidade de enviar negociadores. 2. Em nenhum mo- ‘mento tinha querido derramar inutilmente o sangue dos soldados, nem tinha querido privar a Repiblica de um ou de outro dos seus exércitos™®, 3, Terminado o discurso, diante da exigéncia ¢ ardor dos soldados, sofregos por lutar, fez dar o sinal com a trombeta [91] 1, Havia no exército de César um reservista de nome Crstino, que no ano anterior servira como primeiro centuriio na décima legiio, homem de extraordiniria bravura. 2. Dado o sinal, disse ele: “Segui-me, vés que fizestes parte do meu manipulo e prestai 283,

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