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UNIVERSIDADE DE COIMBRA Boletim da Faculdade de Direito VOL. LXXIV COIMBRA 1998 Doutrina ENTRE O «LEGISLADOR», A «SOCIEDADE» E O JUIZ» OU ENTRE «SISTEMA», FUNCAO» E «PROBLEMA» — OS MODELOS ACTUALMENTE ALTERNATIVOS DA REALIZAGAO JURISDICIONAL DO DIREITO 1. a) O poder judicial, a fisngio judicial ow, sobretude € melhor, a jurisdigao tornaram-se um tema e um problema centrais no universo jueidico dos nossos dias. E nio certamente apenas no Ambito estrito desse universo, pois que 0 seu relevo se projecta com uma importincia aguda € a muitas dimens6es no mundo global da pritica comunitdria, E vocagio do judicium exorcisar 0 poder s6 como poder € mais ainda a forga atbitriria impondo razdes de validade e criticas & acgio na inter- -2¢¢40, © 0 nosto tempo, que tem feito experiéncias cruéis, ¢ regressi- vas, desse poder e dessa forga, sente profindo e urgente 0 apelo & razio contra a ativica irracionalidade, Depois, se 0 nosso tempo é também tempo de mutagdes em todos os domfnios, nio sendo as do diteito, no sett sentido ¢ problematico relevo, 2s menos extensas, nem de menor importincia, néo ha que esttanhar, por tudo isto, que a recompreensio — e valorizagio, diga-se desde ji — do poder jurisdicional, da juris digio € do papel do juiz, avulte no nécleo da ordem do dia e se diga, justificadamente, que ao juiz hi que «dar-se-Ihe o poder 0 papel que ‘exige a nossa modernidade> (LENOBLE). Mas sob que pressupostos, em atengio a que dimensdes, com que sentido e com que consequéncias? E ao que gostaria de responder nesta minha exposig¢io, mas a vastidio da problemitica ndo me permitira sendo propor algumas coordenadas, alguns t6picos de reflexdo, E comecemos por reconhecer que a situagio se nos oferece, como Jf geralmente se observa, em termos paradoxais, na sua aparente con- cradigio. Por um lado, alarga-se 0 dominio € sobe a importincia da intervengio institucionalizada, ou pretendida, das instincias judiciais nna sua fungio interpretativo-integradora — tenham-se presentes, desde 2 bourenn logo, a jurisdigao dos tribunais constitucionais internos ¢, para nbs europeus, do Tribunal de Justiga da Unio Europeia, jurisdicio a que, embora constitucionalmente vinculada, compete determinar 0 con- tetido decisivo dessa mesma vinculagio ¢ dos seus desenvolvimentos integrantes; por outro lado, dé-se conta de uma inegivel, e de gravi- dade no minimizavel, insatisfagio, inclusive de uma critica generalizada (hi quem fale mesmo de eressentimento») de que a fungio judicial se tornou objecto. Nem é dificil dizer porqué: revelar-se-ia ela normati- vamente inadequada (nas respostas ou solugdes pedidas por novas questdes a que € chamada, respostas ou solugdes que ela verdadei- ramente nio daria) ¢ nio menos institucionalmente ineficaz (na sua estrutural funcionalidade e na propria capacidade de resposta, na sua judicativa capacidade decisoria ou sequer de absorcio dos contlitos). Dai os «circuitos de derivacio» que progressivamente se formam i margem e em recusa da jurisdicio. E como se proprio apelo e im- portincia atribuidos a jurisdig30 em geral viesse a revelar na jurisdi¢io existente a falta da jurisdigao para que se apela. E entio, se sio diversos 0 problemas que assim se suscitam ¢ se multiplicam, agudos ¢ comple- 4x05, fundamental é reconhecer que, importantes embora os problemas estruturais, o decisivo é todavia o problema do sentido, do sentido da jurisdigao hoje. Por isso se fala, € bem, de «crise do juize, de scrise da justca». E bem, porque cabe 4 situagdo referida, com as implicages a que se acaba de aludir, correctamente a conceitualizagio de arse. Desse conceito se tém ocupado muitos: THOMAS KUHN na epistemologia, EDGAR MORIN na sociologia, eu proprio (se me é permitida a auto-invocagio) no pen- samento juridico. Também a reflexio pés-modema quanto 4 propria razio — de ja miltiplas expresses, dentre as quais recordarei o ciclo de conferéncias realizado em 1996, no Rio de Janeiro ¢ em Sao Paulo, sob o tema justamente «A crise da raziov. E numa palavra, dir-se~A que 2 crise no traduz apenas 0 negativo ircunstancial, a quebra anémica que se sofre ¢ lamenta, mas sobretudo a consumagio histérico-cultural de um sistema, a perda contextual de sentido das referéncias até entio regulativas — o paradigma que vigorava esgotou-se, um novo paradigma se exige. E 0 essencial dos sistemas ¢ dos paradigmas nao est na estrutura, mas no sentido: a estrutura orga- niza e permite o funcionamento, mas s6 0 sentido fonda e constitutiva- BED 74 (2998, p14 ENTRE © AEGISADOR, 4 SOCIEDADE: £0 $UI2» 3 mente sustenta. Dai também que uma crise s6 possa ser superada por uma critica, i, €, por uma reflexio refundadora de um novo sentido. Pois bem; se assim &, hi que diferenciar os problemas ¢ distinguir © que sobretudo importa, by Isto nos obriga a uma suméiria ¢ selectiva anilise da problema- tica em causa. Ha, com efeito, que considerar: de um lado, os problemas estruturais ou eexternos»; de outro lado, v problema intencional ou #iti- terno» — e a por este o problema do sentido. @) Sao problemas estruturais, em primciro lugar, 0s problemas di- rectamente politico-constitucionais, seja © problema institucional (de ‘organizagio, de «governor € este, enquanto tematiza o autogoverno do poder judicial, a provocar uma polémica que no nosso pais neste momento, como noutros também, esti vivamente aberta), Seja 0. pro- blema da legitimagio deciséria, nio menos discutido, Em segundo lugar, © problema estatutirio— a referir 0 eestatuto dos juizess e em que avulta no primeiro plano a indole ¢ as garantias da sua independéncia (deste problema me ocupei também noutra oportunidade), mas igualmente ‘0s no menos actuais problemas tanto do seu contrle como da sua responsabilidade especifica, nas suas modalidades (disciplinar, criminal ¢ civil, mesmo constitucional) e na sua extensio (refira-s¢ como im- portante contributo para estes pontos as reflexes comparativas de ALESSANDRO GIULIANI € NICOLA PICARDI, La responsabilitd del gindice, 1987; também RUDOLE WASSERMANN, Die richterliche Gewalt, Macht und Verantwonung des Richters in der modernen Gesellschaft, 1985, 22, 85.5 ¢ B.C. BACELAR DE VASCONCELOS, Teoria geral do controlo juridico do poder priblico, 182, ss., 194, ss.). Em terceiro lugar, o problema que direi “funcional ad hoc, e que tem a vet com o modo como os homens e a ‘sociedade do nosso tempo (os «consumidores de justigas) esperariam que of tribunais funcionassem, com as expectativas culturais, politicas ¢ técnicas a que 0s tribunais deveriam corresponder, p. €X., 10 uso soft da autoridade, na transparéncia, na abertura comunicativa e 4 comu- nicagdo, Deste problema se ocupam preferentemente, como bem se compreende, os jornalistas, posto que cle exorbite sem divida esse nivel (v. R. WASSERMANN, ob. cit, 23, s8.; dele tem tratado também o nosso Procurador Geral da Repiiblica). De novo direi, contudo, que, se todos estes problemas sio eviden- temente de importancia relevante, nio deixam de ser externos 20 exer- BED 749908), p. 1-46 cicio da fangio jurisdicional qua tale: consideram 0 fe « poder, a organiza- sio, a responsabilidade e © modo desse exercicio, mas tia referem a intencionalidade material da propria jurisdigio como jurisdi¢io ¢ 0 sentido que ela assume ¢ realiza. Dizem-nos do poder, da responsabi- Saad, do sod a fae jurisdicional, nio nos dizem o que é esse fazer © que nele se faz. Pelo que, na verdade, s6 o problema i € do sentido é 0 problema sinterno». Seen E se quisermos considerar a relagio entre estes dois re estes dois tipos ou gru- pos de problemas, ter-se-4 de concluir que os primeiros So conde, condigSes de possibilidade da jurisdigio que se pretenda, mas no segundo estio os préprios momentos constitutives. Por isso reitero 0 que disce antes: $6 este dltimo € 0 decisivo, toca a easéncia io a forma. Assim como se havers também de reconhecer que, se a reilizagdo desa esséncia esti condicionada pela correcta ou adequada solugio dadas 20s primis problemas, esa solugio correcta ou adequada serd um correlato funcional do que seja ou se pret i ceaage que sej pretenda que seja a jurisdigao ‘Compreende-se assim uma opgio pelo problema interno, dei- xando em suspenso os outros, os externas. Jusificado fica, poit, que s6 daquele se va ocupar a minha exposigao a seguir, Nao poderia tratar de todos ¢ este é afinal o mais importante, aquele de que tudo, também os outros, dependerio. : 2. Ora, pensar o sentido da jurisdigio € pensar a sua relag diseito (iurisedicio): um diferente sentide do dreito implicaré correla. ‘tivamente um diferente sentido da jurisdi¢ao chamada a realiza-lo. Pelo gue é fundamental ter presente'a impossibilidade de compreendermos hhoje 0 direito pela perspectiva exclusiva de tum estrito legalismo, Nao ue 0 legalismo esteja de todo abandonado e nio se mantenha como uma referéncia comum ¢ vm modo da juridicidade ainda concorrente ou alternativo, como veremios, mas sio também j muitos os fenéme- nos juridicos da sua superagio ¢ com directa repercuso nas tarefas da fangio jurisdicional. Se dermos uma projecgao global a eses fen6= ‘menos na revisio critica do sentido actualmente pensivel do dieito no seri exagerada esta conclusdo, que tantos fazem sua: «0 positivismo juridico esta definitivamente morto devemos dar substincia a uma razio juridica alargadae (LENOBLE). BED 74 (1998), 1-44 Sgt gS regan ess RE perny © ALEGIADOR., A SOCUDADE £0 AU 5 a) Consideremos, efectivamente, ¢ num elenco sumirio, dentre esses fendmenos superadores, os seguintes: a) A recuperagio da autonomia normativo-intencional do direito perante a legalidode (a mera legalidade), através de uma renovada dis tingdo entre ius ¢ lex, referida a dois pélos principais. ‘Um primeiro polo € 0 actual reconhecimento da separagio dos direitos» (direitos fundamentais, especificamente) em relagao 4 lei ¢ da preferéncia juridica daqueles perante esta. Se 0 contratualismo moderno~ PTaminista n3o deixava de proclamar «direitos naturaise como pressu- posto ¢ ponto de partida fandamentante do mesmo contratualsmo, ¢ 2 perolucionsria eDédlaration des droits de Uhomme et du ctoyen» de 1789 cxpressamente of enunciava, 0 certo é que, além do seu relevo no asie~ tgurat a participagio na represeniagdo politica (que 0 voto censitério fio debearia todavia, uma vez ou outra, também de limitar), esses direi- tos se persavam assegurados attavés da lei (do direito-legalidade) con tratualisticamente constituida, Numa sua assimilagio pela lei que convertia 0 esubjectivismo» juridico em cobjectivismo» juridico ¢ assim de modo a, por um lado, o direito se identificar pura e simplesmente com 2 Iei €, por outro lado, 0 subjectivismo originirio se transformar fm aditeitos subjectivose que a propria lei, e apenas ela, reconheceria fe garantiria, Ora, 0 que hoje se verifica € a reafirmario de direitos jfundamentais, como projectio de proclamados direitos do homem» (na Declaragio Universal dos Direitos do Homem, de 1948, ¢ em todas as Declaragdes € Convengdes, quer gerais, quer regionais que se The seguiram), antes e acima da lei, em todas as constituigBes contem= porineas ¢ no pensamento juridico em geral. Nio € jé a ei a dar vali- Jade juridica a direitos, enguanto direitos subjectivos, sio os direitos, fs reconhecidos como fandamentais, a imporem-se 4 lei € a condicio- frarem a sua validade juridica (cfr, desde logo, 0 art. 18.° da Constitui- (Go da Republica Pormuguesa). Com 0 que nio fica certamente escla- Fecido o sentido, auténtico e-fltimo, desses direitos ¢ que se procura hoje atingir de duas perspectivas contrarias: a perspectiva originiria do individualismo liberal (do «liberalismo+ radical) que ainda persiste, que se pode mesmo dines em actual restauragio, e a perspectiva de wma ‘compreensio comunitiria, ou mediante uma dialéctica em que uma das dimensbes & a integrario comunitéria e segunde 2 qual os «direitos» tém adeveress como cortelatos de sentido ¢, isto, se no necessaria- 6 DOUTRINA mente nos termos da actualmente tio invocada antitese «comuni- tarismo» vs. dliberalismos, a exigir todavia a superagio do «individuo», como titular dos mesmos direitos, j4 por um «ujeitor que s6 poder assumi-fos no quadro de uma cidadania vinculante, ja pela «pessoa» com a sua constitutiva ¢ indefectivel responsabilidade comunitaria, coma veremos melhor sc devera sustentar. Um outro pélo temo-io no actual reconhecimento de princpios normativos a transcendetem também a lei, a legulidade, convacados ‘como fundamentos normativos da juridicidade e que a propria lei teri de respeitar € cumprit. Principios estes que se distinguem decisiva- mente dos «principios gerais de direito» que o positivismo normati- vistico-sistemitico via como axiomas jutidico-racionais do seu sistema juridico, pois sio agora principios normativamente materiais fonda~ mentantes de prépria jaridicidade (eprincipios de justigay), expresses normativas de +0 direitor em que o sistema juridico positive cobra © seu sentido € no apenas a sua racionalidade. £ assim que esses prin- cipios se impéem como um tema generalizado e insistente, e a suscitar ‘uma vasta problemitica, no pensamento juridico contemporineo. E se é certo que um problema de solugao nao linear se teri de por aqui, 0 do sentido dtimo da relacio juridica entre os direitos funda- mentais ¢ os principios, € esse um problema que agora deixaremos de Jado, pata chamar a atengio para um outro ponto em que a jurisdig3o & directamente convocada. EB que este outro sentido da juridicidade translegal implica uma intencionalidade concreta a sua normatividade teri de assumir-se de modo concretamente realizando na praxis hist6- rico-social, pois 0 seu sentido auténtico s6 se atinge realizando-se © na sua realizacao. A legalidade, com 0 normativismo que assimilow ¢ por gue doutrinalmente acabou por ser pensada, afirma uma juridicidade que subsiste no proprio sistema dogmatico-normativo da sua definigio — vé-lo-emos melhor adiante. O que justamente nio pode ser admi- tido pelo sentido axjolégico-normativo e material da juridicidade que se exprima nos direitos e nos principios: a titularidade daqueles ¢ os regulativos compromissos axiolégico-normativos destes postulam, res- pectivamente, ji uma titularidade efectiva, uma titularidade real no contexto social, jf uma projeccio determinante na pritica histbrica. Os direitos serio meros votos pios, se nio se afirmarem como efectivas condigdes da realizacio pessoal; os principios serio aspiragies vis, s¢ BED 76,1998), 9.146 ENTIRE 0 RGHLADORY, A SOCEDADE: EO que 7 nio impregnarem constitutivamente a praxis e nio obtiverem assim a sua decisiva determinacio mormativa, como referéncias axiolgico- ~Normativas para a pritica e fandamentos normativos para 0 juizo que esencialmente sio. A indole e a estrutura légico-formal das normas ‘enquanto tais — uma hipétese categorial-representativa implica certos tipos de efeitos, ou uma previsio hipotética implica uma definivel estatuigao, ma condicionalidade normativa se, entiorv — a admitizem in- lusive uma enunciagio apofintica e com esta um operar simplesmente ogico, possbilitam-thes ama autonomia que a si mesma se basta, € por isso a permitir que elas se tornem objecto de um conhecimento, jé her- menéutico (a «interpretagio da lei»), j4 dogmatico (que se manifesta no construtivismo juridico), jf sistemético (o que obteve uma expressio acabada no sistematicismo da eteoria pura do direitos). Enquanto que a auséncia de hipotese-previsio nos principios ou a sua indeterminacio referencial, ji que essencial para eles é 56 0 seu regulativo compromisso axiolégico ¢ pritico, nio impée apenas que a sua normatividade se de~ termine realizando-se, solicita ainda uma compreensio pritica (nio simplesmente dogmatica ou l6gica) dessa sua normatividade s6 possivel de atingir-se assumindo a dialéctica entre o seu regulativo, que convoca 4 realizagio, e a pratica (de acco e judicativa) em que encame € a ma~ nifeste realizada, Se as normas sio auto-suficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os princfpios sio fundamentos «para tomar posigio perante situacdes 4 priori indeterminadas, que venham a determinar-se concretamente» (G. ZAGREBELSKY). Em sintese: a8 nor- mas legais esperam a sa aplicacio e em dltimo termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsis- téncia abstracta; no assim os princfpios, j4 que 0 seu Verdadeiro sen- tido nio é determinavel em abstracto, ¢ s6 em concreto, porque s6 em concreto logram a sua determinagio ¢ se lhes pode atingir o sew aucén- tico relevo. E decerto que a essa sua determinagio em concreto seri chamada, numa responsabilidade iniludivel, a jurisdigao nos seus juizos decisérios em solugio das controvérsias priticas suscitadas pela invo- cagio dagueles mesmos direitos e destes principios. 8) De consequéncia aniloga, para 0 que sobretudo nos importa, io 0S limites normativo-jurfdices da lei, a abrirem um espago que 56 a jurisdigao na sua realizagio concreta do dircito, em necessiria intengio normativamente constituenda, pode preencher. Desde logo, limites fabs seek eo 8 ouTRINA normativos objeativas, de que damos conta quando reconhecemos que © direito legalmente positivado fica sempre aquém do dominio hjst6rico-sociaimente problemiético (na extensio e ma indole concreta dos problemas) a que se tera de responder juridico-normativamente —i. & quando reconhecemos, € a prOpria dinimica social o goma evi- dente, que o sistema juridico s6 pode: ser normativo-funcionalmente adequado 2 essa sua problematica social afirmando-se como um sistema Aaberto, que nenhuma legalidade pode fechar (posto fosve essa a preten- sao do legalismo sistematicamente axiomitico), ¢ concluimos assim pela necessidade, para além mesmo da integragio das lacunas no seu sentido tradicional, do auténomo desenvolvimento do diteito através da sua propria realizagio (através da sua jurisprudencial realizasio) ‘Uma segunda categoria de limites normativos, agora intencionais, impu- seram-se logo que a realizagio do direito assumiu um sentido norma- tivamente material (que nio apenas légico-dedutivo e formal). E que a redlizagio do digeito com este sentido, utilize embora como seu cri- tério a norma legal, teri de mostrar-se concretamente-adequada a0 mérito problemitico dos casos decidendos ¢ mio menos normati- vamente justificada em referéncia aos fundamentos axiclégico-norma- tivos (aos valores e principios) que dio sentido normative material 20 proprio direito. Porquanto, nio podendo deixar de ser essa normativo- ~problemitica realizagio pelo menos uma «coneretizacZox, com o espe- fico actus constituinte que esta exige, a insuficiéncia que ja por isso sempre se verificari nos disponiveis critérios juridico-formais que se utilizem obriga 2 ir normativamente para além deles, convocando os fundamentos normativos que déem sentido 4 juridicidade ¢ possam assim orientar constitutivamente essa problematica conctetizacio. E com maior evidéncia quando as proprias normas juridicas in- cluam acliusplas geraiss, enormas em brancor, conceitos indetermi- nados e de valor, etc. & deste modo € tendo tudo isto em conta que @ propria interpretag3o em fung5o concretizadora € sempre — digamo- -lo com ESSER ~ «uma conexio de lex sripta ¢ ins non scriptum», € toda a realizag3o do direito uma monodinimica constitutivo-inte- gradora que nio pode prescindir de elementos normativos translegais ¢ transpositivos — 0 que, contra 6 forrmal legalismo ¢ 0 seu unidimen- sional e pré-determinado normativismo, se pode considerar adquirido pelo actual pensamento juridico. Que tanto € dizer que, por urt lado, BPD) 74 (99, 9. 1h ENTE © dct DORs, A SOCIEDADES EO U2 9 2 comcreta € material reaizasio do direito faz com que as normas legais se vejam duplamente transcendidas, relativamente is possibilidades nor- mativas que objectivam, pela simnltinea € constitutiva referencia aos principios fandamentantes do direito enquanto tal (do normativamente incegral sistema do direito) e 20 comcretwn problemitico dessa tealizacio, € que, por outro lado, 0 direito que legalmente se realiza é ele proprio tum continuum constituende em fargo de uma dialéctica normativa que articula 0s principios normativo-juridicos com 0 mérito juridico do problema concreto através di mediagio das normas legais. Acresce que 1 autonomizacao, perante as normas legais, tanto dos principios nor- mativo-juridicos, como da tealidade juridica normacivamente inten- cionada (Normbereich, na expressio € conceito de F MOLLER), tem como corolério outros limites normativos para a normatividade fegal, 8 limites temporais. Também estes limites foram ignorados pelo tra- dicional legalismo normativista — 0 qual, 20 operar unicamente no plano de uma racionalidade logico-abstracta, revestia o normativo legal de uma subsisténcia atemporal a que unicamente um acto exterior {0 acto da revogasio formal) poderia pér fim. S6 que, sendo a norma legal apenas um critério que se insere, € como limitado mediador nor- ‘mative, num sistema de juridicidade em que concorrem, com 2 sua relativa autonomia constitutiva, aqueles principios e aquela realidade, a historicidade que & propria de uns e de outra ¢ assim a sua possivel alteragio, evolug3o ou mutagio, pode fazer com que a norma legal se veja ou perante uma realidade juridica que j@ no corresponde 20 seu objectivo intencional — 0 caso extremo desta hipétese serio da norma obsoleta — ou ultrapassada pelos Kundamtentos normativos que 2 devem sustentar — 0 caso extremo desta hipétese sera, por sua ver, 0 de caducidade normativa da norma {egal por altera¢io decisiva nos princfpios fundamentais do sistema. No primeiro caso, a norma vé © seu objecto modificado, pelo que deveri corrigit-se em conformi- dade, ou deixa sequer de ter objecto ou deixari mesmo de ter sentido a sua aplicagio; no segundo caso, & o proprio sentido de juridicidade da norma que se altera ou gue Ihe fica subtraido, pelo que haverd ela igualmente de corvigit-se ou de considerar-se de todo sem funda- mento — hipéteses que sempre justificario um decidir contra legem, invocando uma critica intengdo secundum ius (cfr. JORG NEUNER, Die Rechisfindung contza legem, 1992). E este o resultado afinal da dimensio BED 78,199,948 10 poureiva historica do direito e do seu sistema normativo relativamente 2 ele- mentos que neles 8m ama subsisténcia formal — como é 0 caso das normas formakmente prescritas e, portanto, da lei. E daqui somos remetidos ainda a um outro ponto. Com efeito, 4 medida que o sistema normativo histérico, ow a ordem juridica, se vai manifestando com os seus elementos normativos translegais transpositivos, manifesta-se também o seu fundamental sentido axio- logico-normativo € vemos dese modo a adguirir um determinado contetido intencional a «consciéncia juridica geral», nos seus valores, ptincipios e critérios normativos decisivos — jé gue ess consciéncia, se é uma pressuposigo, é simultaneamente um resultado constituido pela prética da sua hist6rico-social realizacio. Simultaneidade esta entre Pressuposigio € resultado intencionais que bem compreendemos se tivermos presente a invocivel analogia do scirculo hermenéuticor. E entio, nesta intencionalidade juridica fundamental, em que o sistema juridico € o direito cobram o seu verdadeiro sentido, encontra também a lei um dltimo limite normativo, um normativo limite de validade. Pois ssa intencionalidade com ser fundamental ¢ igualmente fundamen- tante, € em referéncia a ela é nio s6 possivel, mas licite ajuizar e con- trolar, em aome do direito ou de uma essencial intencio 20 dieito, © conteédo normativo-juridico das normas prescritas legislativamente. ‘Ons, se tivermos presentes todos estes limites normatives das normas legais e se reconhecermos que nesses limites vai implicado uma intengo de direito que as transcende, cambém compreendemios que s6 pela supe- ragio constitutiva desses limites, na concreta realizagio juridica, a propria legislagio e as suas normas concorrem afinal para a constituicio do direito enquanto tal. Constituigio que se revela na dinimica normativa da sua propria realizagio judicativa ¢ impée como necessérias duas conclusdes: Por um lado, que a lei continuari a ter decerto uma eprerrogativa, mas io ji 0 monopélio» (M. KRuELE) da criacio do direito, e ainda que essa prerrogativa se haja de entender também como «primado»; por outro lado, que para essa criago concorre a manifestagio € a objectivagio ine- aveis de um Ridhterrecht. A jurisdigao, afinal, nio cumpre apenas ¢ tio- ~36 uma estrita aplicagio da lei deverd antes considerar-se, para © dizer- mos com R. WASSERMANN (Die richtdiche Gewalt,cit., I), que uma sua actividade juridicamente criadora é uma situagdo evolutiva que nas sociedades modernas teri de ver-se como itreversivel BED 74 19) 9. 186 [BET © VLECISLADOR, A SOCIEDADE EO GUNZ " y) E a convocagio, neste sentido protagonista, da jurisdigio, da fungio judicial, impe-se ainda de outros modos. Chamaremos a aten- «io para mais dois, Desde logo, 0 que se oferece no particular relevo da jurisdi¢ao ‘constitucional ¢ nio menos no alargamento ¢ aprofundamento do con- ‘réle judicial da actividade administrativa, em que a referéncia & consti- tuigio est igualmente presente. Pode dizer-se que nestes termos se afirma com importincia especificidade crescentes 0 canine jutidice dos poderes politico © executivo ¢ que a palavra decisiva desse contrdle @ ado poder judicial, da fungio jurisdicional. E uma das dimensdes capitais, nada menos do que a dimensio realizanda, do que jé se afirma 2 passagem do «Estado-de-legislacao» (Gesetzgebungsstaat) para um Estado~de-Constituigio» (Verfassungsstaat). Com duas referencias: se cabe ao juiz, como acaba de dizer-se, decidir quanto 3 validade ou invalidade juridico-constitucional das leis, também a intencionalidade Juridica que assim se exige deixa de ser a intencionalidade de uma juri- dicidade formal (aquela que corresponde fundamentalmente 4 juridi- cidade legal) para ser a da juridicidade material do prindpio de justiga que a constituigéo assume, nos direitos fundamentais ¢ nos principios normativos expressos ou implicitos. © que suscita um problema iiltimo, um dos mais importantes ¢ capitais, que hoje se poem 20 pensimento juridico, mas que aqui ficara inconsiderado: referimo-nos 4 questio de saber se esse «principio de justigas ou a normatividade juridica material em que ele se traduz tem © seu fundamento normativo na constituigao politica — € nesse caso a juridicidade identificar-se-ia com a constitucionalidade — ou se +2 constituigo € dele simplesmente declarativa, a implicar entio que © fundamento sera transconstitucional, numa intengio de autonomia constitutivo-fundamentante ao direito como dircito. S6 acrescentarei que tenho tentado justificar a opgéo por esta segunda hipotese. 8) © outro dos dois modos a que aludimos tem a ver com o facto de 4 fangio judicial, ao juiz, se ter vindo progressivamente a imputar a responsabilidade da diltima palavra num espectro alargado de questdes. de validade quanto a comportamentos e interesses sociais. Este € justa- mente um dos pontos em que se reconhece que a «criatividade da Jurisprudéncia (da jurisdigao) se tomou mais necessiria e mais acen- BED 74 9998) p46 2 ounuNa tuada na sociedade contemporinear (CAPPELLET!). Se um dos factores desse fendmeno foi a Rewlt Against Formalism (MoRTON G. Write), de que vimos manifestacées relevantes nos pontos anteriores, 0 que agota queremos sobretudo convocar tem a ver com a transformacio do proprio sentido do direito no que se designa por direito social (F EwaLp) — aquele que tem na sociedade, no desenvolvimento social em todos 05 aspectos, © seu sueito reivindicativo e © seu partenaire de intervengio —, direito esse que esth ligado 20 Welfare State, sem toda~ via se esgotar nele, e que solicita a indispensivel participaggo da fungio Jurisdicional por formas diversas, Consideremos 56 algumas. Acrescentando esse direito social 208 objectivos juridicos tradicionais de garantia ¢ de repressio um objectivo promocional, © qual pela sua referéncia programitica ao futuro pouco pode ic além de prescrigzo de Sins e principios (como que num Zueck- programm), j& por isso mesmo exigira uma controlada determinagio concretizadora de que se desempenharé a fian¢0 judicial numa irre- ‘cusive) discricionariedade decisbria exigida pot uma necessiria flexi- bilizagio concreta do proprio direito — no dominio do diteito econé- mico, na concretizarao das cliusulas gerais dos contratos, na defesa dos direitos de personalidade, na integrario do direito do trabalho, etc A cla competira também de modo especial o juizo da responsa- bilidade no dominio das extemaliies, asim como a tutela des interesses colectivos, difusos, etc. E & a propria sociedade que reivindica essa inter- vengio judicial nas «acgdes populares», nas cactions collectivesr, nas «public interest litigations, nas eVerbandsklagen» (obre todos estes pon- tos, ¥. CAPPELLETTI, Giudici legislator; R. WASSERMANN, 0b, cit, 7, 5.) ¥) As implicagdes a sublinhar, neste diagnéstico sumario da actual situagio juridico-jurisdicional, sio varias e cada uma delas nio menos importante do que as outras. Sublinharei, em primeiro lugar e apenas numa alusio, a necessiria revisio dos problemas das fontes do direito ¢ da separagio dos poderes, Aquela, pela impossibilidade de continuar a identificar 0 direito com a legislagio; esta, pela superagio definitiva do poder judicial entendido como ede quelque fagon nulle», © a actuae como «la bouche de la loi» e os juizes «Etres inaniméss ernquanto apenas servidores da lei e aqui n'en peuvent modérer ni la force ni la rigueur» (MoNTESQUIEU), numa estrita tarefa exegético-aplicadora. A revisio BED 74 (198,146 DTRE © LEGILADORY A SOCIEDANE £0 JURE B esses problemas ¢ ainda a consideragao daquele que impGem o reco- ahecimento ¢ a definig3o de uma ordem juridica translegal». Ordem essa que © referido poder normativo-juridicamente criador da jurisdicao concorre a constituir € a manifestar, posto que também s6 desse modo no figue ela totalmente dilucidada em todas as suas dimensdes € na sta indole decisiva, e que acaba por nos remeter ao proprio sentido actual do Estado-de-Direito, longe jé de poder pensar-se nos termos s6 normativisticos ¢ garantisticos tradicionais. Em segundo lugar, ¢ neste momento o mais relevante, implica problema do sentido actual da fungio judicial, da jurisdigio e do Juiz. E 0 problema do sentido que comegamos por privilegiar e que ‘agora melhor compteendemos ter-se-nos tornado inevitavel. 3. E quanto a ele, hoje uma alternativa inelutivel se nos pe, que podemos enunciar mediante duas interrogagdes fundamentais, em que a perspectiva de uma evolugio possivel se abre a uma impositiva opgio. Acrescentemos, com efeito, & situagio que ficou descrita duas circuns- téncias particularmente caracterizadoras da nossa praxis actual, a saber: a tansformagio irreversivel do sentido das leis e a assunc3o delibera- damente programética de uma estratégia politico-social no todo da realidade social. Se a Jei iluminista (¢ revoluciondria) se podia identi- ficar com 0 direito porque nas suas racionalidade e universalidade os valores da liberdade e da igualdade se assimilariam ¢ garantiriam, e dese modo definia um status normative formal que enquadrava 0 comportamento social mas dele se descomprometia, hoje as leis no sio mais do que prescrigdes de certas forcas politicas, mesmo par- tidérias, que no quadto do sistema politico-estadual ou constitucional adquirem legitimidade para tanto e pelas quais se impSe um programa de acgio politico-social, em que uma politica se afirma e concreta- ‘mente se compromete com fins particulares — muma palavra, se as leis, de estrito estatuto juridico, passaram a «instrumento politico» (ego- verna-se com as leiss) —; também, por outro lado e numa evidente coeréncia com 0 ponto anterior, a praxis social radicalmente se proli- tizou, tomando-se objecto, o campo € 0 objectiva do que se diz 0 «Big Government» globalmente interventor ¢ transformador. Pelo que tudo converge neste problema: o problema da autonomia do direito ¢ da possibilidade institucional da sua afirmagio. BRD 74 (1998),p. 144 ut BOUTIN (Ou nio se renuncia 4 universaidade de certos valores e principios ormativos em que todos se reconhegam, contra a selectividade estra- tégica de certos fins © relativamente 4 qual necesariamente a partida- tizagio se manifesta em apoio ou em oposicio, e um poder eficaz se cer de mobilizat — ¢ sem que com isto se pretendam esclarecidos em toda a sua complexidade quer o sentido auténtico, quer o conceito do politico —, e entio, pata se garantir aquela universaidade axiclégico- normative em que se traduz a autonomia do direito, tera de reconhe- cer-se neste a «medida do poder, i. é, a sua validade critica perante © politico, e de imputar-se institucionalmente a sua possbilidade a uma instincia chamada exclusivamemte 2 iss0 niesmo, como contraponto 4 tendente unidimensionalidade, s¢ ndo totalitarismo, do politico, E instincia no poderi ser hoje, pelo que jf se disse, o poder legislative com a sua legislagio, dado 0 teu directo compromisso politico — impée-se hoje uma distingao, pelo menos uma tensfo, entre a lei e 0 direito, j6 porque a lei nao € s6 em si o diteito, jf porque pode mani- festar-se em contradigao com ele. Tera de ser esta insincia o poder ju- dicial, a jurisdicao: a indole politica (comprometidamente politica) ca fancio legislativa hi-de ter © seu contrapélo na indole juridica (auto- nomamente jutidica) da fangio jurisdicional. Neste sentido, mas apenas neste sentido, se poder falar da ewolugio «Vim Gesetzessiat zum Richter staat (R. MARIC). O que, desde que assim entendido, esta para além da uestio da legitimagio (democritica) da fiangfo jurisdicional, quanto 3s suas manifestagdes juridicamente criadoras, pois no se crata da disputa entre poderes, inclusive de atribuir «Alle Macht den Richtern» © assim da eventual emergéncia do «governo dos juizess, mas de afirmar o dircito a0 poder, da possibilidade em dltimo termo de reconhecer o direito como dimensio constitutivamente indefectivel do Estado ¢ assim 0 Estado verdadeiramente como Estado~de-Direito. ‘Ou se sobrevaloriza a estratégia politico-social, se assume o poli tico como © tinico protagonista — e & 0 outro termo da alternativa —, € ceramente que nesse caso a funcio judicial nfo lhe poders ser estra- ‘nha, numa qualquer autonomia intencional, ¢ converter-se-A no ope- ador tictico no terreno, com os meios insticucionais € normativo- -decisorios que Ihe caibam, da estratégia global praticamente definida Hipétese em que a jurisdigéo se funcionalizard a esta estratégia como seu instrumento ou longa manus. BED 76 (1998), 91-44 ENTAE © AEGISIADORG, A SOCHDADE: 0 Ju 15 E se € esta a alternativa, hi, na verdade, que perguntar: em que ‘ras queimaremos incenso, onde estio 0s nossos deuses? ‘0 que vai seguir-se estd Jonge de se propor uma resposta acabada, tentara oferecer apenas os modelos de juridicidade, com os correlativos modelos de jurisdicio, hoje possiveis ¢ entre os quais, assim penso, estari 0 caminho para a resposta. 4, A diferenciagio entre esses modelos que iremos oferecer nio se limitaré a ser descritiva, quer ser compreensiva. Pelo que nao se poderd prescindir da perspectiva e do horizonte regulativo de cada um deles Seri, pois, esse 0 primeiro ponto a considerar 4) Os modelos em causz so erés — julgo nio errar muito nesta conclusio. Sio eles 0 normativismo legalista, o funcionalismo jurtdico e 0 jurisprudencialismo. Dir-se-4, € certo, que quanto 20 primeiro deles te- mos falado na sua actual superago ¢ expusemos alguns elementos que ‘© comprovam. Mas nem por isso deixa de set urna referéncia indis- pensivel, como imediato antecedente historico que & nem se poderio ignorar 28 linhas de uma sua tentada recuperasio, jé pela atrés aludide restauragio do liberalismo radical, j4 pelo pensamento juridico analitico ¢ em alguns pontos pelo proprio funcionalismo sistémico. Por isso no 0 deixaremos de lado, comegande mesmo por éle 1) Trata-se de um modelo de juridicidade-jurisdigso perspecti- vado pelo individualismo moderno-liberal ¢ iluminista, Anotemo-to em duas palavras, jé que este é um terreno de todos bem conhecido. No fando de tudo esteve uma determinante antropolégica, jé que a com- preensio que’ ao tempo o homem de si mesmo teve levava implicito tudo o resto. E essa compreensio, que se constituiu do séc. XVI a0 séc. XXVIII, radicava na autonomia humana, em rupturs com 2 ordem (ou a presuposi¢io da ordem) teolbgico-metafisico-cultural transcendente, € para aceitar como fandamentos dnicos do seu saber e da sua accio, respectivamente, a razio (a razio em didlogo com a experiéncia empf- rica) € 2 liberdade. Em concomitincia, se nio como consequéncia, afirma-se a seculariza¢i0 (posto que ainda nio como secularismo) ¢ 2 emancipagio do econémico, ou a sua libertagio dos quadros ético- -religiosos (qualquer que tivesse sido a influéncia refigiosa para a for- magio do capitalismo) e que nio tardou a significar decisivamente BeD 74 1958), p. 1-44 16 ouTRINA ENTRE 0 sOSLADORs. A SOCHDADE: £0 SUR. 7 a emancipagao dos interesses, nos quais se via aliiés a condigao efectiva da realizaggo da liberdade reivindicada — 0 dominio da praxis social era o dominio dos interesses. Disse~o HELVETIUS nestes termos: «si univers physique est soumis 4 loi du mouvement, l'univers moral ne Test moins 4 celle de Vintéréts. Posto que a esses interesses, expressio Pratica da liberdade, se dissessem «direitos naturaiss. E se esses factores convergentes tiveram como consequéncia o individualismo (0 indivi- dualismo niodemo-iluminista), um outro factor se afirmou ainda com relevo nio menos fundamental. Aludimos 20 racionalismo, a expressig da ratio moderna que deixa de ser ontoligico-metafisico-hermenéutica como a razao clissica ¢ se volve na razio autofundamentante nos seus ‘axiomas (as suas evidéncias racionais) e sistematicamente dedutiva nos seus desenvolvimentos — a razio cartesiana. A razio como sistema, tal € a razio moderna. Todos estes factores, que uns aos outros se con- dicionavam ¢ potenciavam, postulavam uma particular consequéncia politica — exigiam a institucionalizagdo de um novo poder que estivesse na sua coeréncia. Sabe-se qual foi o sentido fandante desse novo poder que homens livres ¢ racionais, ¢ nessa sua liberdade tam- bém iguais, unicamente admitiriam — 0 que um contrato (contrato social) constituisse. E se desse modo se resolveria 0 problema posto por HoBBES — a preservagio da liberdade ¢ a atirmagio dos interesses individuais numa forma vinculante da vida em comam —, as regras dessa vinculacio, ou o direito a admit, s6 poderia ter um de dois fun- damentos, ou a volonté générale que 0 proprio contrato constituiria tsolugio de ROUssEAU) ou a universalizagio racional das liberdades (olugio de KANT). Sendo certo que a consequéncia para ambas as solugées seria 4 mesma, a constituigio de uma legalidade — 0 direito seria a lei, unicamente a lei. Da liberdade, a igualdade © os interesses, que se postulavam racionais € elevados a editeitos naturaise, chegava~ ~se pela mediagio do contrato social & legalidade, que convertia, nos termos ji antes aludidos, esses direitos naturais em direitos subjectivos. 2) J4 2 perspectiva do fincionalismo juridico é outra. O seu refe- Femte nio € 0 individuo, mas a sociedade como fendmeno especifico, sfenémeno social global» na formula de GURVITCH, ou a pensar nio simplesmente como uma associagio atomistica de individuos, mas com ‘uma estrutura, componentes e uma dinimica proprios. Heteronomia mactoscépica que se viris a teorizar como sistema socal — sistema de BRD 74,1998, 9144 uma indole particular que nem ComTe, nem DURKHEIM, nem mesmo Max WEBER haviam ainda pensado e se comecou a pensar com PARSONS ¢ LUHMANN. Tiata-se de am sistema funcional ou pen- sado funcionalmente que funcionaliza todos os seus elementos € as suas dimensées. E nestas 0 préprio direito — também ele funcionalizado @ estruturacio, a regulario e 4 organizagao operatoria global da socie- dade, numa consequente perda de autonomia intencional < material, pois que se converte num instrumento, de particulates caracteristicas prescritivas ¢ institucionais, a0 servigo das exigncias provindas das ins tancias e das forgas politicas ou simplesmente sociais, culturais, eco- nomicas, ete ‘Trats-se da politico-socializagio do direito que teve as suas mais proximas dererminagdes em duas linhas diferentes, mas também con- vergentes. Una delas politica, e refere certamente 0 aparecimento do Welfare State, do Estado-providéncia, a outra directamente social e tem a ver com a emergéncia do social enquanto o campo € © critério de todos os problemas humanos — e justamente pela conversio desses problemas em especificos problemas sociajs. Postula-se que todos os problemas humanos, do nascimento 3 sobrevivéncia, da educagio 20 ensino, da satide 3 habitagio, do emprego ao nivel de vida, etc., sio problemas que a sociedade devera assumir, de que seri respon- savel e a que € chamada a resolver, E assim, inclusive por corolirio final, que © Estado se volve em «Estado de direitos sociaise, que o desent- volvimento econémico-social hé-de garantir e a que tudo se fun- cionaliza ‘Um dos meios juridicos mobilizados continua a ser decerto a legis- lagio, 96 que também com uma outra indole. Deixou ela de se esgotar nas fungdes normativas j4 de garantia dos direitos e da seguranga Juridica, j4 de quadro e limite dos poderes — fungdes do tradicional principio da legalidade — ¢ tornou-se instrumento da propria accio politica, JA o dissemos: passou-a governar-se com leis. E assim fun- cionalizada politico-socialmente, nio tatdou que a lei assumisse outros tipos prescritivos, bem diferentes do tipo estrito de «norma juridica» (i. é, norma racionalmente geral e abstracta), tais como o da , de ‘um analitico desconstrutivismo, € «the purely instrumental use of legal doctrine t0 advance leftist aims» (R. M. UNGER). E assim ainda no «uso alternative do direitor, em que o fundamental das coordenadas ante riores igualmente se convocam, posto que numa directa inten¢ao da realizagio metodolégico-judicial do direito em que se haveria de «tomar partidos. Numa palavra, em que a atitude redutora implicita em todos estes movimentos claramente se afirma: a pritica humano- ~social seria exclusivamente pritica politica, Diference o fincionalismo social, nas suas duas submodalidades, tecnolégico estrito e econémico. Ao compromisso € militincia ideolo- gicos substitui a neutralidade tecnolégica ¢ ao finalismo programitico ‘© consequencialismo social — os seus modelos sio menos de transfor- maGio estrutural (¢¢ nio revolucionaria) do que estratégicos, sob crité- ios de funcional performance e secundo uma estrita Zweckrationalitat. © funcionalismo social de cariz teleolégico perspectiva © direito © 0 pensamento juridico como uma «social engineering» (expressio ¢ inten- 40 cunhadas, como se sabe, por R. POUND e que POPPER faz também suas) — estratégico-critico-racional no plano prescritivo (na legislacao, antes de mais), convocando 2 analitica «teoria da decisiow na realizagao concreta ¢ transformando correlativamente a fungio judicial, na sua bisica intencionatidade, nos termos a que nos iremos referir. No que se refere a0 funcionalismo social econémico, tal como © vemos a exprimir-se, p. ex., na «andlise econdmica do dircito» — com © seu entendimento da sociedade e de toda a pritica social, mesmo Politica (recorde-se a teoria da public choic), segundo a estrutura do mercado, com 6 seu utilitarismo (ainda que numa pretensa superago critica de BENTHAM), com o seu postulado do shomem racionaly {em que a racionalidade & apenas a inteligéncia dos interesses), com a sua tese behaviorista do comportamento humano-social — 0 direito s6 teria sentido na perspectiva da eficiéncia econémica (da emaximizagio da riqueza», segundo POSNER) ¢ para a realizar, acabando mesmo por reduzir-se a um papel residual na coeréncia do «teorema de COAsE> BRD 74.09%), 148 28 ours (competindo-the apenas diminuir os scustos de transac¢Zo» ¢ oferecer 2s condigdes para a resolugo convencional das cexternalidadess) — embora com possiveis e complementares intengGes também distributivas, se- gundo alguns (pense-se em CALABRES). E uma palavra também quanto ao funcionalismo sistémico, que renunciando 2 uma regula¢io material da sociedade (Seja finalistica, seja consequencial), dada a sua complexidade e a pluralidade dos seus pélos auto-oraganizatérios e auto-poiéticos, vé no direito s6 um, subsistema social, selectivo e estabilizador de expectativas, numa organizagSo estru- ‘turalmente invariante e de intencionalidade auto-referente, segando um cédigo binSrio licito/ilicito, legal/ilegal, que reduziria aquela comple- xidade em termos de um mero sistematizador da contingéncia con- tinuamente reconstruido numa circularidade recursiva. ¥) A consequéncia pata a funcio judicis? de tudo isto néo podia ser outra senio esta: o sew paradigm passa a ser, nio jé decerto a apli- casio que vimos propria do normativismo legalista, mas a decisdo, em sentido estrito e especifico. Afirma-te nela irredutivelmente uma velur- ‘as titulada, niio uma andnima necessidade légica, embora possa pre- tender-se controtada racionalmente, Numa particular racionalidade que se traduz na op¢do entre soluges alternativas com vista a um pres- suposto fim ou objectivo em fungio dos efeitos verificSveis nas circuns- tancias da decisio. Noutros termos, trata-se de uma racionalidade estratégica, no discursiva, orientada por um princfpio de optimizagio na realizagin de um certo objectivo, em que a escolha da solugio ou da acgio entre as solugdes ou acgdes possiveis se determina pelos efeitos, logriveis nas circunstincias, que melhor realizem esse objec tivo. Pelo que, no quadro da selectiva e programética transitividade dos fins, dos objectivos, das preferéncias, 0 critério imediato da decisio acabam por ser os efeitos — racionalidade, pois, estratégico-conse~ quencial. Dai também que a solugio nio possa pretender-se uma solu- ‘io Gmica, deduzida por uma qualquer necessidade, mas sempre milti- pla e variivel segundo as circunstincias e 0s efeitos delas, nio obstante 2 porventura constincia dos fins ou do objectivo. Ser correcta ou boa 2 decisio-solugo que, repita-se, no caso € nestes termos permita obter 68 efeitos que melhor realizem esses fins ou objective. O que implica decerto a atribuigio de uma ampla autonomia ao decidente, ainda que no respeito da programitica transitividade estratégico-selectiva dos fins BRD 74 (968) 1-48 FENTRE © WLEGISIADOR, A SOCIEDADE: F 0 gUIZ 2 ou do objective — que tanto & dizer que a decisio-solugio é um mo- ‘mento (0 seu momento tictico ou de realiza¢io concreta) de um Zweck- programm, nao 0 aplicador determinado de um Konditionalprogramm, com. © sentido que estas expresses tem em LUHMANN, E assim mesmo. quando o programa’se especifique em normas ou regras que determina tivamente € por tipificagio de hipéteses o imponham, pois que imposi- tivos serio s6 0s fins particulares prescritos por esas normas ou regras no © modo e indole concretos da decisio, posto que em vista delas (©, por todos, THOMAS W. WALDE furstiche Folgenavinaerung, 1979, W. KILIAN Juristische Entscheidung und elekeronische Datenverarbeitung, 1974). Considerar-se-d, por outro lado, que, ao propor-se © funcionalismo juridico ouvir as exigéncias ¢ as pretensdes provindas do contexto politico-social, da realidade social, e propondo-se actuar estratégico ~decisoriamente sobre ela em todos os casos que suscitem as decisses concretas mediante os efeitos que estas produzam, nio poderi certa- mente ver essa realidade segundo uma neutra analitica que a decom- ponha em meros «factos» para a légica aplicagio de uma abstracto- -racionalistica normatividade conceitualizada — como vimos acontecer no normativismo. Teré antes de consider-la na sua fenomenologica especificidade, como realidade de uma estrutura, de uma intencionali- dade, de um dinamismo proprios a manifestar-se simultaneamente como objective, como objecto € como condicionante dessa actuagio, € que, por isso mesmo, se ndo pode ignorar nessa sua autonoma espe- ‘ificidade. Verdadeiramente, pois, como realidade social enquanto tal, que a sociologia esclarecerd, € no apenas como um conjunto de actos discretos que possam ser correlatos reais de categorias logicas. Dai que uma das mais insistentes censuras 20 pensamento juridico dominante e 4 normatividade por ele referida seja justamente, numa formulacio de Th. WiscHELMSSON, «its isolation from social reality». © que, alias, nos permite compreender © apertado dialogo do funcionatismo juridico com a ciéncia politica, com a sociologia ¢ ou- tras ciéncias sociais, se € que nfo sio estas uma sua necessiria dimen- sio; e igualmente a pretensio do funcionalismo de uma interdisciplina~ idade ou de uma transdisciplinaridade no pensamento juridico, em que ele acabasse por assimilar as ciéncias sociais e Ihe conferisse tam~ bém o estatuto de «ciéncia social» — seria o direito, afinal, a ciéncia do «contrdle social». BED 7600958. p. 148 30 pournnsa Tudo © que nos permite compreender que 0 juiz que corres- ponde 4 judicatura deste modo pensada, e atentos o: objectives que assume © funcionalismo nas suas diversas modalidades, se diga iuiz politico» (no funcionalismo politico), «social engineer» (ao fancionalismo estritamente social-tecnolégico) ou, numa sintese paradigmitica, um ‘juge entrfneurs, nos termos seguintes, apoiando-nos no tipo que lhe define FRANGOIS OST (Juge-pacificateur, juge arbitre, juge entraineur — Trois moddles de Justice, 1983). A sua decis6ria actuacio seria «essen- cialmente fancional, teleologica, instrumental, evolutiva e pragmsticay, ¢ em que seria etida como justa a solucio mais adequada 2 objectivo Proposto pelo planificador social, sendo neste caso secundiria a con- sidetagio de valores materiais ou de regras formaiss. Seria este um «modelo post-liberal», que consagraria «0 declinio da nile of lav, ou onde «the rule interpretative model» — modelo de decisio de casos con cretos pela aplicacio de valores ou regras pré-estabelecidas — se supe- aria por wthe judicial-power model» (PH. SELZINIK), aquele em que © juiz seria constitutivamente interventor, criador auténomo das solu- {GOes exigidas pelos fins e interesses sociais. «Juge entraineur» que se substituirg a0 «juiz-drbitro» do sistema legalista-liberal, competindo- lhe «participar na realizago de politicas determinadas e assegurar, desse modo, a melhor regulagio dos interesses em causa». A sa énova missio» imporia 20 juiz que actuasse spara além do campo fechado dos direitos subjectivos determinados pela lei — ele é responsive! pela conservagio ¢ a promogio de interesses finalizados por objectivos s6cio-econmicos e regulados por sistemas de normas técnicas corres- pondentes», tomando-se «instrument dindmico» e de oportunidade que 0 afasta do saplicador passivo de regras ¢ principios pré-estabele~ cidow ¢ 0 faz scolaborar na realizagio de Gnalidades sociais e politi © seu papel consiste em comparar sistematicamente objectivos alterna- tivos com vista aos seus resultados respectivos e aos valores que Ihe estio subjacentess, 8) A distancia a que nos vemos assim situados relativamente 20 normativismo legalista e 20 seu juiz apenas aplicador de tei é abissal. Nio seria a resisténcia de um modelo dominante, que foi também novidade no seu tempo instituidor, que nos impediria de aceitar este ‘outro modelo que se Ihe ope to frontalmente — estamos na historia ¢ fazemo-la com a mudanga. Hi, porém, razdes mais sérias de critica BED 74 (1980). 1-44 LENTRE 0 sLEGISCADOR, A SOCIEDADE: E 9 gue 34 Desde logo, ¢ porque submetido a uma radical instrumentalidade, ‘© que vemos é que o direito é afinal puramente politica no funcio- nalismo politico, simplesmente tecnologia ou administragao no fancio- nalismo social e econémico. Ser4 porventura diferente no que toca a0 funcionalismo sistémico, j4 que a teoria dos sistemas sustenta justa- mente a relativa autonomia dos subsistemas, entre os quais se contaria © direito, no sistema global da sociedade. Hi, no entanto, que distinguir. ‘Ou a perspectiva sistémica € teoricamente metanormativa, segundo tum ponto de vista epistemologicamente externo e de cariz fundamental mente sociolégico, ¢ entio 2 autonomia do sistema jutidico € algo que se pressupde — € pressupde-se no sentido normativstico tradicional — para ser simplesmente descrito e analisado. Ou pretende ser uma teoria Juridica (no sociolégica) do direito ¢ nesse caso a autonomia do sistema jjuridico & pensada segundo um funcionalismo puro, em termos $6 for- ‘malmente processualisticos e com abstracgio (ou equivaléncia funcional) de quaisquer dimensies materia (fossem elas as dos valores, dos fins, dos interesses), que acaba por traduzir uma radicalizagio do normativismo positivista e da sua contingéncia deciséria: as normas sto agora genera lizadas expectativas contrafactuais reflexivo-processualmente seleccio- nnados, a dogmitica determina categorias estrutural-funcionalmente con- ceivuais da auto-referéncia juridica e assim das suas variacio e tolerincia possiveis, a aplicag3o do direito obedece a um Konditionalprogramm, os sujeitos de direito afivelam a méscara de epapéis» funcionais, ete. Depois, ha que ser consciente de que no fundo de tudo se impde uma capital opcio antropol6gico-cultural de que dependeri o sentido do direito e inclusive a sua propria subsisténcia autenticamente como direito. Com efeito, o homem dos nossos dias tera de perguntar-se que sentido se propée conferir 4 sua pritica e, através desse sentido, que ‘compreensio assimilara de si proprio na sua existéncia historico-comu- nitiia. Uma prética referida a uma validade, seja porventura pro- Dlemaética mas nio prescindindo nunca de interrogar por ela, a implicar um fundamento axiologicamente critico e o homem transcendendo-se assim a um sentido materialmente vinculante em que assuma 0 pro- jecto responsabilizante da sua propria humanidade, ou uma pratica determinada tio-sé por um juizo de oportunidade, a nao exigir mais do que programages finalisticas actuadas por esquemas de uma ope- rat6ria eficiente, e 0 homem reduzindo-se 4 imanente titularidade de 2 poureina estratégias de interesses que the permitirio uma existéncia formalmente calculada, e nada mais, Uma opgio entre 0 sentido e a efdca, entee a vali- dade © a utldade. E.filamos de opcio, porque caduca a pretensio das evi- déncias metafisicas de que se alimentou também o jusnaturalismo, hhomem teri de decidir-se a si proprio. O que nio seri diferente de ‘que radical no homem é a sua liberdade para se salvar ou para se perder numa responsabilidade de si para consigo. Com o paradoxo de 0 critério da opsio iltima neste mundo s6 poder ser o que de humanidade ou de imunanidade, de enriquecimento ou empobrecimento do homem que dai resultar — ou seja, ainda que no horizonte da Transcendéncia interrogada, pois unicamente cla pode conferir sentido & propria interrogacio dltima, a liberdade ¢ as suas op¢des aferem-se pelas suas proprias experiéncias hist6ricas, acabam por ter, € nisso esta o paradoxo, o critério nos resulta dos histéricos. Sera despropositado recordar-nos do pari de PASCAL? Devera, pois, perguntar-se se nio estamos na verdade, néo apenas Perante uma outra concepgao do direito, mas perante uma alternativa 20 direito qua tale pura e simplesmente. Seri, por outro lado, aceitivel um juiz que vacila entre © militante politico ¢ 0 administrador discricio- nario? E ainda, se sio renunciéveis os valores e principios, 0 sentido ¢ as garantias que se vinculam 20 Estado-de-Direito, 2 pretexto do empenho ‘numa nova ¢ melhor sociedade, de mais desenvolvimento, de uma maior atengio 208 resultados, de uma cientifico-tecnolégica eficiéncia, etc. Os beneficies parventura desse modo obtidos compensario as perdas capitais que serio 0 seu prego? — ¢ este argumento, notar-se-4, niio pode ser indiferente a uma perspectiva que tanto invoca a eficigncia, 3) S6 que, nio ficaram ainda consideradas todas as alternativas possiveis. Uma outra, que recusa os extremos dos dois modelos ante- riores, oferece-se com um todo outro sentido € temo-la designado por jurisprudencialismo, Nela net se trata da autonomia formal ¢ alienada do primeiro modelo, nem do instrumentalismo extraponenciado ¢ dis- solvente do segundo modelo, mas da autonomia de uma validade nor- ‘mativa material que numa pritica problemética ¢ judicanda se realiza, € se orienta por uma perspectiva polarizada no homem-pessoa, que é 0 sujeito dessa pritica. Jurisprudencialismo que significari a reafirmac3o ou mesmo a recuperagio do sentido da pritica juridica como iuris-pru- dentia: axioligico-normativa nos fundamentos, pratico-normativa na inten- cionalidade, judicativa no modus metodolégico. BRD 74 (1998). 1-44 ENTRE 0 sLEGSLADOR, A SOCIEDADES EO gue 3 @) Tem esse filtimo modelo, também ele, os seus, pressupostos. Em primeiro lugar, uma recompreensio do prdprio homem, com ‘uma mais profunda reflexio quanto ao sentido com que nos devere- mos compreender ¢ 3s exigéncias do nosso compromisso coexistente, ¢ sobretudo convivente, em projectada coeréncia com esse sentido, € que podemos ver a exprimir-se numa antropolagia axiolégica. Tanto 20 homo faber © também simplesmente laborans da sociedade técnica, como 20 homo ludens da sociedade do bem-estar @ outrance que esvaziow espi- ritualmente o homem, pretende-se opor a afirmacio do homem-pessoa, © com todas as implicagdes axiolégicas ¢ éticas do sentido de pessoa. Se no sentido de pessoa se postula a sua dignidade absoiuta a0 mesmo tempo que se nega a su2 identtificagio ao «individuo» ¢ se recusa 0 in- dividualismo deste, uma vez compreendido o pressuponente compro- misso ¢ reciproco reconhecimento comunitirios que aquela dignidade implica, significara também isso ndo apenas a responsabilidade ética ‘perante a pessoa em todo © universo humano (seja imediatamente pri- tico € de convivéncia ou no) como igualmente a responsabilidade Gtica da pessoa relativamente 2 esse mesmo nniverso. Tanto é dizer que a pessoa no & s6 sujciy de direitos, sejam eles fundamentals ou outros, mas simultaneamente sujeito de deveres — nao sendo os direitos simples teivindicagdes politicamente sustentadas ¢ os déveres exterioridades limitativas s6 pelo cogente cilculo dos interesses € sempre repudia- velmente sofridos, como acontece com a polarizagio pritica no indi- viduo, mas manifestagdes mesmas da axiologia respons4vel e respon- sabilizante da pessoa. Em segundo lugar, desse reconhecimento comunitirio da pessoa € da sua dignidade ética seguem-se irrecusiveis implicagées normativas ¢ téJo bem presente é para nés fundamental, Desde logo uma exigéncia de fundamento para todas as pretens6es que na intersubjectividade e na coexisténcia eu dirija aos outros € os outros me dirjjam a mim. Um fundamento é a expressio de uma ratio em que se afirma uma relidadte, € argumentum de validade, E a validade é a manifestagio de um sentido normativo (de um valor ou de um principio) transindividual: 0 sentido fandamentante que transcende os pontos de vista individuais de uma qualquer relagio intersubjectiva (pontos de vista individuais como sio, P. €X., 08 dos interesses, € pelos quais 0 que um exige de outre é sé ey DowTRINa © que Ihe convém, independentemente de qualquer reciprocidade ‘ou superadora inter-acgo com esse outro, e que este j& por isso ndo tem de actuar ou seguir, podendo inclusivamente opor uma sua convenién- ia oposta) ¢ os transcende pela referéncia e assungio de uma unidade ou de um comum integrante (em critério condivistvel por todos os membros do mesmo universe de discurso») em que, por um lado, 05 memibros da relagio se reconhecem iguais e em que, por outro lado, obtém uma determinagio correlativa que nio é o resultado da mera vontade, poder ou prepoténcia de qualquer desses membros, mas jus- tificivel pelas suas posigdes relativas nessa unidade ou comum inte~ grante. Um sentido normativo, numa palavra, que se imponha como uma justificag3o superior ¢ independente das posigdes simplesmente individuais de cada um e que, como tal, vincule simulkinea ¢ igual- mente os membros da relagio. E uma tal exigéncia de fundamento — que teri 0 seu contricio, ji no sic volo sic jubeo, j& no pro ratione voluntas — é decerto 0 que sem ‘mais vai implicado no postulado do sujeito ético, com a sua liberdade reconhecida enquanto pessoa e assim com a sua igualdade entre iguais. Pois esse postulado s6 pode admitir uma qualquer posicio ou pretensio com walidade; com um fundamento que nao pretira e antes satisfaca a dignidade ¢ a igualdade, que perante estas validamente justifique a posi¢ao ou a pretensio, Sé assim, com efeito, relativamente a essas, posicdes ou pretenses o atingido por elas se reconhecerd como sujeito € nio como simples objecto de uma qualquer prepoténcia. Com 0 que podemos concluir que o direito s6 0 temos verda- deiramente, ou autenticamente como tal, com a instituigio de uma vali- dade € nio como mero instrumento social de racionalizacio e satisfagi0 de interesses ou de objectivos politico-sociais, ‘Com o que estamos também em presenga de um outro sentido € de uma diferente importincia para o direito, Perante o normativismo, fandamentalmente orientado por uma intengio objectivo-analitica ‘que permitisse assimilar no juridico as caractetisticas formais e universais, da razio teérica e a implicar 0 direito to-s6 como um sistema racional de critérios normativos abstractos, convoca uma axiologia, postula 4 intengo de um social compromisso pritico em que a racionalidade ‘io € dada pot um te6rico universal sistemético, mas por uma pritica fandamentagio normativa material. Enquanto que perante o funciona- BED 74 (98), p. 1-48 ENTRE 0 ALGISLADORY, A SOCHDADE: £ 0 gules 38 lismo, na sua perspectiva¢Zo macroscépica da realidade social em que © direito é visto s6 como um elemento de organizagio ¢ de admi- nistrago-direccio gerais da sociedade considerando a propria deci- sio concreta inserida no quadro estratégico dessas organizagio e direc- cdo —, traz ao primeito plano de preocupagio 08 concretos problemas priticos, os conflitos ¢ as controvérsias pritico-problematicamente concretos, que naquela perspectivagio macro-social iam pura ¢ sim- plesmente omitidos. Os priticos casos concretos, nao titulados por meras variiveis subjectivas de papéis sociais em situagdes sociaimente tipificadas, mas titulados antes por sujeitos pessoalmente particulares de nome proprio ¢ referido: a situagdes também historico-socialmente concretas — ¢ no numa intengio de instrumental estratégia e de fun- cional eficiéncia, mas de juizo pritico-normativo e de axiolégico-nor- mativa validade (de pritica justeza). A pura racionalidade opée-se a axiologia ¢ 4 eficiéncia a validade. E o direito, nem € tdo-s6 objecto normativo para uma determinacio estritamente racional, nem mero instrumento ou meio de um heterénomo finalismo funcionalmente eficiente, mas um axiolégico-normativo fim em si — ele proprio um ‘ley na validade que exprime. 8) Essa validade convoca aormativamente os valores ¢ principios juridicos em que se manifesta 0 que temos designado, tentado carac- terizar, pelo nivel da consciénca axiolégico-normatioa da consciéncia juri dca geral da comunidade hist6rico-cultural (v. A revolugio e 0 dircito, in Digesta, 1, 208-222, e Justiga € Dirt, ibidem, 274-284). E em termos — ponto este para nés muito importante — de a alternativa jusna- turalismo/positivismo juridico no ter de considerar-se hoje uma akter- nativa absoluta. Se contra o jusnaturalismo ¢ a sua procura dos fanda~ mentos constitutivos do direito numa manifestagio ou modalidade do ser (snatureza»), seja numa metafisica ontolégica (numa geral ordem constituida dos seres onio rerum, ou numa qualquer pontualizada natura reyu), seja numa ontologia antropoligica (na enatureza do homem), se compreende, irreversivelmente, que o direito compete 4 autonomia cultural do homem, que, tanto no seu sentido como no conteédo da sua normatividade, € uma resposta culturalmente humana (resposta, por isso, so possivel, nfo necessiria e hist6rico-culturalmente condi- cionada) a0 problema também humano da convivéncia no mesmo mundo ¢ num certo espago histérico-social, e assim sem a necessidade 36 pouTuNa ou a indisponibilidade ontolégica, mas antes com 2 historicidade ¢ a condicionalidade de toda a cultura — nio & «descobertor em termos de objectividade essencial pela «razio teéricar e no dominio da filosofia especulativa ou teorética, & constituido por exigéncias humano-sociais particulares explicitadas pela «razio pritica» ¢ imputado 4 responsabili- dade poiética da filosofia pritica. Se contra o jusnaturalismo se pode dizer isto, também contra 0 positivismo juridico se tera de negar que © direito seja ti0-s6 0 resultado normative de uma voluntas simples- mente orientada por um finalismo de oportunidade ou a mera expres- sio da contingéncia e dos compromissos politico-sociais; pois a pritica histérico-cultural, ¢ particularmente a pritica juridica, com a sua tio especifica intencionatidade 4 validade e estruturalmente constituida pela distingio entre © vilido ¢ invalido, refere sempre no seu sentido € convoca costitutivamente na sua normatividade certos valores ¢ cer tos principios normativos fundamentantes que pertencem ao ethos re- ferencial ou 20 episteme pritico de uma certa cultura numa certa época. E que dese modo, sem se Ihes poder ignorar a historicidade e sem deixarem de ser da responsabilidade da autonomia cultural humana, cesses valores e principios se impdem justamente em pressuposicio fun- damentante e constitutiva perante a contingentes positividades nor- mativas que se exprimem nessa cultura € nessa época — sio valores © principios metapositivos dessa mesma positividade, como que numa autotranscendéncia ou transcendentalidade pritico-cultural, em que ela reconhece os seu findamentos de validade e os seus regulativo-nor- mativos de constitui¢io. Pelo que a exclusio da necessidade ontologica nio nos condena 4 mera continéncia politico-social, no dominio do pritico-juridico a posi¢ao exacta é a de um tertium genus referido a uma autopressuposi¢o axiolégico-normativa fundamentante e regulativa~ mente constitutiva. Autopressuposi¢ao essa que compreenderemos de ‘uma como que universalidade intencional no problema do sentido do direito — ou na resposta 4 pergunta sobre o seu sporquér — ¢ jé numa maior condicionalidade histéria no problema da sua fungo normativa também historica — ou na resposta a pergunta sobre 0 seu «para-qué>. S6 que a indeterminagZo normativa que é propria a essa funda- mentante validade, como o sempre em quaisquer dltimos fundamen- tos, exige uma determinagio de indole dogmitica a que sio chamadas as normas legais, com a complementaridade da reelabora¢io doutrinal BPD 141998), 1-44 ENTRE © 4EGIADOR. 3 ¢ dos contributes jurisprudenciais. Isto, por um lado; por outro lado, essa validade dogmaticamente determinada enfrenta umta concreta pro- blematizagio praxistica nos casos decidendos, a exigir, por sua vez, uma mediagio judicativa que realize a validade nessa pritica. As duas primeiras dimensSes manifestam-se num sistema normative, 25 outras duas sio convocados por um problema pritico — ¢ a dialéctica entre sistema e problema num objective judicativo de realizagio normativa @ a racionalidade juridica a considerar. E com duas intengdes que nessa dialéctica se implicam, tanto a intengao da justeza material referids 20 problema concreto como a intengio de concordincia normativa referida ao sistema da validade. Compreenderemos exactamente © que vai dito, se tivermos pre- sente 0 sentido dessa dialéctica, 0 seu modus operandi ¢ a indole da ‘mediagio que implica. Quanto ao sentido da dialéctica hi que considerar 0 seguinte. Se pode aceitar-se que o sistema juridico comega sempre por delimitar © pré-determinar 0 campo ¢ 0 tipo dos problemas no comeco de uma experiéncia problemitica — posto que, obedecendo a prohlemética, pelo menos neste dominio, 20 esquema de pergunta-resposta, os pro- bblemas possiveis comecam, de um lado, por ser aqueles que a intencio- nalidade pressuposta no sistema (com as possibilidades interrogativas dos seus prineipios) admita, e os modos de os pér serio, de outro lado, aqueles que sejam correlativos das solugées (respostas) que o sistema também ofereca —, jé nao € licita a unilateral sobrevalorizagio do sis- tema que se traduza no axioma de que os problemas a emergir dessa experiéncia serio unicamente os que o sistema suscite ¢ no modo ape- nas por que ele os aceite. Isto porque a experiéncia problemética, ‘enquanto também experiéncia historica, vem sempre a alargar-se ¢ a aprofundar-se, em termos de exigir novas perguntas (problemas) ¢ outro sentido para as respostas (implicados em novas intengdes que entrctanto, ¢ através dos novos problemas, se vio assumindo). E pe- rante cla, a normatividade sistematicamente prévia craduz apenas a assi- milagZo intencional (em termos de respostas constituidas) de uma certa ‘experiéncia feita ¢ é correlativamente limiada por essa experiéncia. (© que ocorre entio é que o sistema nio observe a nova problemitica — se tem ele os limites das suas pressupostas intengSes, € por estas necessariamente se demarca tanto a sua «capacidade do sistema» como 38 pours a sua possbilidade hermenéutica, o problema manifesta por isso a sua verdadeira autonomia, impondo 4 experiéncia da realizagio normativa uma outra dimensio. O problema deixa entio de ser a expressio inter- rogante da resposta-solucio jé disponivel, ou a pergunta que antecipa € nos remete a essa resposta-solugio, para ser uma pergunta que ainda no encontrou resposta, uma experiéncia problemitica que nao foi ainda absorvida por uma intencionalidade dogmitica acabadamente fundamentante. E daqui se tira uma primeira conclusio: se nesta dialéctica tem 0 direito realizando a sua dinimica de emergéncia, pela solucio dos problemas juridicos concretos que se vio desse modo suscitando, entio © direito nunca seri um dado, ou sequer um objecto, e sim verda- deiramente um problema — seri ele, como j& atrés tinhamos aludido, ‘um continuo problematicamente constituendo. Quanto ao seu modus operandi hé que comecar por considerar que a historicidade desta problemitica, 20 assumir-se em inten¢o nor- mativa, obriga o pensamento juridico a dar-se conta de limites objec- tivos, intencionais, temporais e mesmo de validade das positivas nor- mas juridicas (da propria lei) para cumprir a intengio do direito que © sistema juridico e a ordem juridica autonomamente implicam. Pelo que compreende ele a juridicidade (a intencional normatividade do sistema € do seu direito) a ultrapassar, tanto extensiva e intensivamente ‘como em normativas exigéncias constitutivas, aquele juridico positivo. © que obriga 4 continua referencia aqueles mesmos valores e princi pios normativos que, sendo os fundamentos regulatives do proprio sistema ou da ordem juridica, hdo-de ser também os iitimos e critérios da realizacio do diteito, Mais do que isso: a itredutivel abertura do sis- tema impée ainda que a realiza¢ao do direito interrogue continua mente ¢ se faca intérprete, no seu juizo normativo concreto, do con- sensus juridico-comunitario das intengdes axiologico-normativas da ‘consciéncia juridica gerals, com as suas expectativas juridico-sociais de validade ¢ justiga. Pois se as normas legais, enguanto manifestagdes de uma auctoritas imperativa, terio a sua imediata justificagio no motivo- fim que as determinou — na sua teleoldgica ratio egés—, no deixam de ser elas elementos de determinagio da validade juridica e portanto a inserir no sistema notmativo que 2 objectiva, no seu sentido € nos seus fundamentos dltimos e juridicamente decisives. Ou seja, os seus ENTRE 0 AEGILADOR. A SOCIEDADE £0 YU 39 fandamentos tetio de procurar-se na prépria normatividade fun- damentante constitutiva do sistema juridico — e da sua juridicidade, A teleologia imperativa teri de admitir a coeréncia dos jundamentos normativos da validade do sistema jusidico (nos seus valores e princi- pios constitutivos) nama transcensio da teologia por esses funda~ mentos. A significar isto, numa palavra, que ratio legis se dialectiza e se'vé superada pela ratio iuris — «a vinculagio 3 lei, di-lo também LUHMANN, nio significa vinculagio 4 legislagior (Die Stellung der Gerichte im Rechtssystem, in Rechtstheorie, 21 (1990), 470). Isto quanto ao diteito positive em geral ¢ a dizer-nos em que ter- mos se deverd orientar 0 seu interpretando sentido normativo-juridico. Mas este € s6 um momento a ter em conta. O outro momento tem a ver directamente com o concreturs decisendo, com o problema juridico conereto. E 0 que se verifica ai é também um dislogo problemético entre a norma (enquanto normativa solugio abstracta de um pres- suposto problema juridico tipificado) e as exigéncias normativas espe- Cificas do caso decidendo compreendido autonomamente (mediante uum juizo problemitico auténomo) como um problema analogo Squele que a nortna pressupde € tipifica. Pois, seja embora possivel uma pré~ via determinagio do sentido normativo da norma (sobretudo em fiangio do problema juridico que the vai pressuposta) e compreen- dendo normativamente a solugio que the é prescrita, imediatamente com fundamento teleol6gico na sua particular ratio leis, mas mediata € decisivamente com fandamento axiolégico-sistematico na ratio iris, © certo & que esse sentido tem apenas um valor hipotético e ir ser submetido como que a uma experimentagio problemitico-deciséria ‘em referéncia 4 relevancia juridica material do c2s0 concreto, E para se concluir ou por uma possivel assimilacdo dessa relevancia por aquele sentido hipotético (assimilagao por concretizario, assimilago por adap- tagio, assimilacio por correcgio), ou por uma possivei analogia teleo logico-normativa entre a solugio oferecida por esse sentido e a solucio exigide pelo problema concreto, ou afinal por uma inadequacio nor- mativo-juridica entre ambas — 0 que, recusando entio a norma como crtitério juridico para a decisio concreta, exigir’ uma aut6noma consti- tuigio da solugao juridica (v., sobre tudo isto, a nossa Metodologia Juridica, 155, ss), Conjuguem-se os dois momentos na unidade da sua dialéctica 0 pours ¢ uma secunda conclusio se impde: a de que é indispensivel uma par- tictilar mediacio judicativa a que o operador em concreto seré cha- mado ¢ de que seré o responsivel. Esse operador concreto-judicativo nio é outro, evidentemente, do que 0 juiz. ‘Assim como basta jé uma palavra quanto 4 realidade referida por esta perspectiva jurisprudencial, e que se poder dizer o seu referente normativamente problemitico. Nao se trata nem da realidade redutivel a 4factos» discretos ¢ apenas empiricamente determiniveis, nem da srealidade social» em termos especificamente sociolégicos, mas da rea- lidade correlativa 4 propria normatividade axiolégico-materialmente jjuridica — a realidade do encontro na inter-ac¢io ou da convivéncia ritica, que se vive em acontecimentos prético-sodais e de que emergem controvérsias ¢ mesmo conflitos a imporem-se juridicamente como casos de historico-concreta problematicidade pritica e a exigirem uma solugio de validade normativa. Ou, como vemos muito recentemente a dizer, no mesmo sentido, ANDREAS FESER (Das Recht im juristischen Denken, 20), 0s dados-objectos sociais a regular pelo direito «nio sio simplesmente quaisquer factos de vida a explicar empiricamente, mas acontecimentos humanos, inter-acgdes comunicativasy, 4) Estamos, pois, em condi¢des de compreender que o paradigma da jurisdi¢io préprio do jurisprudencialismo té-lo-emos no juizo (nio numa logica aplicagao, nem numa estrita decisio). E 0 juizo nao se identifica com um qualquer raciocinio, nem tem ‘uma indole puramente logica. Hi que distinguir do juizo puramente egico, e em todos os seus tipos légicos — 0 juizo enquanto inferéncia —, 0 juizo enquanto julamento — o juizo que realiza o sentido pritico de julgar ow 0 juizo da ponderagio pritica. Tenha-se também presente © sentido, decerto nio puramente légico, com que KANT pensou © guizor na terceira Critica (Kritik der Unieilskrafi), pois trata-se tam- bém af de um jufzo que gulgar, enquanto a «faculdade de juizo» competiria «conceber o particular como contido no universal, ji em termos «determinantes» (do universal para o particular), j4 em termos «reflexivos (do particular para o universal). E esse jufzo, e sobretudo nna sua modalidade reflexiva, que aqui quetemos especificamente con- siderar, reconhecendo que ele, se encontra num discurso 0 seu modus operandi e em raciocinios a sua estratura légica, 0 que tem noeticamente de especifico reside na sua particular indole pritico-argumentativa. BED 76,199, 9.146 ANTRE © ECISADOR., A SOCEDADE E 0 sJUtze 4“ Sabe-se que um argumento nao é uma premissa (proposi¢io pressuposta de uma inferéncia necesséria) — com ele constitui-se antes uma racional conexio e passagem de certas proposicdes ou posigdes a outras, proposicdes ou posigdes num sentido intencional e materialmente jus- tificativo ou fundamentante, em referéncia a0 contexto de pres- suposi¢io significante de numa situagio comunicativa e em termos de essa conexio racional se oferecer nessa situaio comunicativa como concludentemenite inovadora (eft. S. E. TOULMIN, The use of argument, 1974, J. Hasenmas, Theorie des kommunikativen Handelns, i, 44, ss.; J. Lapauens, Logique et argumentation, in MicHeL MEvER (ed.), 23, ss.). , tendo isto em conta, o que caracteriza aquele juizo é a tesolugio de uma controvérsia pritica — em principio a exprimir-se na con- vocagao de posigdes divergentes sobre 0 mesmo caso ou questio pritica (sobre a «controvérsias no pensamento juridico, v. M. A. Grutiant, La controvérsia, in Studi Giuridiche Sociali (Un. de Pavia), XXKIX, 77, s8.; € La logique juridique comme théorie de la controverse, in Archives d. Phil. du Drow, xi 966), 87, ss), mediante uma ponderacio argumentativa racionalmente orientada que conduz, por isso mesmo, a uma solugao comunicativamente fundada. Por outro lado, o seu critério sio fundamentos, em sentido préprio, € nesse sentido hao-de sustentar com intencional concludéncia nor- mativa a solugdo mediatizada do caso decidendo — critério como fandamento, nio como premissa, nem como efeitos. Aqueles fun- damentos em que a normatividade do sistema da validade se manifeste ¢ determine. O juizo que tem por critério um fundamento de validade submete-se a um eabsoluto» — a validade no o seria sem a pres- suposi¢io da sua incondicionalidade —, 20 contririo do juizo em que © critério sio os efeitos, 0 qual ji se orientar por um «relativo» e segundo uma contingéncia de oportunidade (de célculo e conve- niéncia). E no ponto que nos importa tenhamos presente que os efeitos sio ponderados em fungio da utilidade social que neles se alcanga, visando a intervengio na realidade social e a sua conformagio organizada ou pontualizada — pelo que a sua perspectiva programatica € heter6noma € © seu tempo o futuro. Enquanto que os fundamen- tos se referem a sentidos de validade que postulam valores, os valores constitutivos do sistema, ¢ com eles a uma intencionalidade regulativo- normativa com que se hio-de justificar, ndo acgdes logradas ou BRD 74 1999, p. 1-46 2 pouraina fracassedas, mas juizos de valido ou de invilido. Juizos axiolgico- -normativamente criticos sobre 0 objecto problemitico de resolugao ¢ cuja principal fungio social (ou comunitéria) esta justamente em afir- ‘marem nesses termos os valores de uma imanente intencio pressuposta € a respectiva intencionalidade normativa de validade, para ponderar garantir sancionatoriamente 0 seu concreto cumprimento — pelo que a sua perspectiva normativa é imanente e © seu tempo o presente. Pois podem esses fundamentos normativos estar j4 constituidos ¢ objectivados em critérios normativo-juridicamente positivos, ou oferecerem-se ape- znas enunciados na assungio de princfpios normativo-juridicos ou serem mesmo assumidos-constituidos no préprio momento em que se consi- dera um concreto problema decidendo ¢ como seu critério, que sempre a sua indole e fingio ¢ a de fundamentos de juizos de normativa vali- dade € enquanto estes jufzos se no confundem com juizos de politica ou tecnologica eficacia social. Qualidade essa de fundamentos que implica, asim, uma especifica pressuposigio intencional — a pressupo- sigdo intencional da validade regulativamente normativa —, mas nao, todavia, uma pressuposicio de objectiva constituigdo ¢ cronolégica: um fandamento normativo é intencionalmente pressuposto, como funda- ‘mento justamente, sem que por isso tenha de ser objectivo-formalmente antecedente, de ir jé dado ¢ constituido, pois é de todo compativel com uma criagio ou assungio constituinte (em termes de que aqui no cura mos) no préprio juizo em que é fundamento e critério, Nestes termos, © seu «presenter denota um tempo 15gico (0 prius de pressuposto) € no ‘um tempo cronologico (0 ave de antecedente). Distingao entre fimdamento e efeitos, desde logo, que se nio pode considerar apenas relativa ou metodologicamente reversivel, jf que nio 86 é verdadeiramente categorial, como nos remete, por cada um dos seus termos, a intengSes, planos e racionalidades diferentes. Tenham-se presentes as distingdes andlogas, na perspectiva axiol6gica, entre valor ¢ fim; na perspectiva epistemoldgica, quer entre sentido-fandamento € causa-efeito, quer entre significagio e técnica; na perspectiva socio- légica entre a relagio-2-valor € a relagio meio-fim. Trata-se de distin- Bes, todas elas, que diferenciam a intengio axiolégica da intengio tecnolégica, o plano da compreensio dos sentidos do plano dos esque- ‘mas ou modelos operat6rios, a racionalidade hermenéutico-dialéctica da racionalidade empfrico-analitica. AFD 14.99%), p. 1-48 ENTRE 0 dEGILADOR, A SOCIDADE: EO 4¥zs % juiz convocado 20 juizo nestes termos € 0 juiz do jurispruden- cialismo — e a sua jurisdigio a de uma validade problemitico-con- cretamente realizanda neste modo judicativo. 5. Conelusio. Estamos num tempo em que se joga 0 destino bumano-cultural do Ocidente. Ai onde se forjou a mais alta civilizagao da historia, com muitas tragédias ¢ muitas misérias, com muitas e execraveis inu~ manidades, como a inquisigo e a escravatura ontem, como Auschwitz ¢ Goulag hoje, mas nenburns outra foi maior nas possibilidades hama- nas, num aprofundamento cientifico-cultural que tocou 0 mistério € numa transcensio agénica que dialoga com o divino, Em que 0 con- traponto daquele negative de sonibra revelou (a que prego emboral) a tuz de um alto sentido ¢ da sua responsabilidade — posto nio saibamos, neste momento em que vivemos «uma hora magnifica € dramitica da histériay Joko Pauto II, Christi Fideles Laid, n.° 3) qual a sua evolugio € 0 seu fim, se o sublime, se a barbirie: nio foram ainda abertos todos 0s selos. Foi nessa civilizagio que o direito, tam- bém como em nenhuma outra, se fez dimensio constitutiva da humanizagio do homem. E em termos de se poder hoje dizer, como que numa consumagio que teve também os seus graves desvios, que 40 direito 20 direitor se deve proclamar, como 0 fez eloquentemente HANAH ARENDT, 0 verdadeiro, o éltimo ¢ decisivo direito do homem. ‘Mas, para isso, necessirio & que 0 direito se compreenda no seu sentido auténtico, nio mero imperativo do poder, nio simples meio técnico de ‘quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabili- dade do homem se manifestem. Para se assumir ¢ realizar esse direito, vimos como é indispensivel © juiz. Por isso mesmo é eminente a sua tarefa ¢ nobre o papel que dele se espera. E a sua uma responsabilidade ética de projecgio comu- nitéria. Negar-se~4 nesse seu sentido se for mero funcionirio, fi2- ionalmente enquadrado € nisso comprazido, servidor passivo de qual «quer legislador, simples burocrata legitimante da coacgio, $6 © seré verdadeiramente assumindo uma dimensio espiritual, ¢ responsabili- zando-se por cla, aguela mesma dimensio espiritual que radicalmente 4 pouTRINA constitui © direito como a expressio da humana coexisténcia, da humana convivéncia comunitiria. E nesse caso, afirmando-se 0 repre- sentante e intérprete «da soberania originaria, da soberania ainda nio Adclegada do povor, segundo a bela fermula de MARCIC, ¢ assim a vor em que a palavra decisiva da democracia, no seu sentido originario ¢ também auténtico, se faz ouvir, tem profunda significagio, posto que muitos 0 nio entendam, que a Constituicio portuguesa, no seu artigo 202.°, diga que tos tribunais 0 os Srgios de soberania com compe- téncia para administrar a justiga em nome do povor. Utépico tudo isto? Entio sio utépicos a Constituigio ¢ 0 pensamento vocativo — e devem sé-lo. ‘A. CASTANHEIRA NEVES FD 76 (1996), p. 1-64

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