Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 25
Rodolfo Mari Renato Basso ortugués da gente a lingua que estudamos a lingua que falamos editoracontexto 150+ o romuoues on cue Um uso de nis que exci terminantemente o intiocuce€ oe smigat do iteoctor & expresso ‘na exclamagao "NOs quem, cu pada Enure esses autores edo Swvet (1891) © Paul (ist), mais rcentemente, lembraiamos Halliday ‘G9s687) © Dane: G90, "As duas lens foram sueesio na vor do crtor Zen Paodino, as fentes que consslamos atibyem 2 primal a "ator desconhocido" e's sayunds » Serginho Mest, * Ver A. Scho, A olocagio pronominal do portugues Basie lingua itera, Sto Fao, Huanant, 2005. ' Dados reursdos de uma pesquisa ds Faculdnd de Educagto de Universidade de Sto Paulo _Acessado ea , 62800 6, mais preciamente, 0 rximero de verbees presenter ao dono que temanoe aqui como referencia, 0 Dciondro de sos do portugess de Bras (om, de FS. Botha (Disararo te {sos do pomugues do Bras, S20 Paulo, Aca, 5002). Rossa eccoita dese cicionino Wstiicate por ser um dielonfro de uson O.mimero de vetbctes de qualquer dciontnio refece decsbes aivas os propasior © 4 csrvtus do propio diconsrio: 1) de que fatorlngistios tata, 2) fue estrous adois para ov verbetes; 3) Como representa homonina e 4 poles dat Palavas ete or isto, para entender 9 que igen de fato 0 mimero que Fomnecemos ag, fanvem que 0 letoe folbee © 2m ° com © sentido de par de vero. ® Vina economia fnemente dependente do capil ings fet com que se mukiplcaser em virias segbes do Bras as agincis de bancos ingles, as fms de poraao inlesae até mesmo O: Clabes, hoepiais e cemtécoeingleses. Ver tie de exempl, Gaberto Frere Cnglses no Bes ‘Sspocos ds sstca rnin sobre ida, pazagem ects Co Brad, Ro de Jans, Joxé Olimpia, 1H, c, para mals informagbes, 0 ske p/n und got ° igi enrou ns lingua no séclo me, como wr eto tnico do sonoma incava uma uidade de ‘madida usada para eserever os edpse). O uso ea mena pals come temo de informs & da feginda meade do séewio ° Por exemple, no Auriio do siculo a ¢ no Houats, bo e Me sto verbetes 3 pane Sr HL Portugués do Brasil: a variagado que vemos e a ariagao que esquecemos de ver JA se disse varias vezes que 0 portugués do Brasil 6 uma lingua Uniforme. Sua uniformiclade foi afirmada e elogiada por pessoas de diferentes formacdes ~ escritores, historiadores e lingilistas. Mas a uniformidade do portugués brasileiro é em grande parte um mito, para o qual contribuiram 1) uma certa forma de nacionalismo; 2) ume visio limitada do fenémeno linguistico, que s6 consegue levar em conta a lingua culta; e 3) uma certa insensibilidade para a variacto, contrapartida do fato de que os falantes se adaptam naturalmemte a diferentes contextos de fala 'Nas proximas paginas, procuraremos mostrar que o portugués brasileiro ‘no € uma lingua uniforme; ¢ tentaremos convencer oleitor de que essa idéia, além de falsa, 6 pouco interessante, porque nos torna incapazes de lidar com situagdes que afetam correntemente o uso da lingua e seu ensisio. Partiremos do principio de que a vatiacao lingaistica € um fendmeno normal, que, por manifestar-se de varias Formas, leva os estudiosos a falar em variagao 152+ oromveutr a4 come diacrénica, variagao diat6pica, variagao diastratica ¢ variagio diamésica. Essas expresses sto & primeira vista estranhas, mas um pouco de etimologia mostrara ao leitor que elassZo, no fundo, bastante transparentes. Variagdo diacrénica Todas as linguas esto sujeitas a variagio diacronica (etimologicamente: aquela que se 64 através do temp). J4 vimos que as Iinguas tém uma hist6ria externa (que diz respeito & maneira como evoluem ao longo do tempo em suas Fangdes sociais € em suas relagbes com detemminada comunidade lingtistica) ¢ uma hist6ria interna (que diz respeito as mudangas que vao ocorrendo em sua gramética ~ fonolos morfologia, sintaxe — e em seu I&xico) No primeiro capitulo deste livro (Um pouco de hist6ria: origens ¢ expansio do portugués"), vimos um pouco da historia externa da lingua portuguesa a0 estudar sua formaco como lingua romanica e sua difusic pelas terras descobertas pelos portugueses, € vimos alguns detalhes de sua hist6ria interna quando estudamos as propriedades lingiisticas de textos de diferentes épocas. Tudo isso deve ter dado a idéia de que a variac3o diacrénica das Iinguas se dé sempre num espago de séculos. Nem sempre € assim. [A vatiagio diacronica € as vezes percebida comparando geragtes. Por exemplo, todos nés conhecemos girias que, embora compreensiveis, soam “antigas", e também € comum o caso de girias compreensiveis somente 2os ‘mais velhos ou aos mais novos. Assim, muitos paulistas de hoje simplesmente nao compreendem a expressio estar de bonde, que, no contexto do namoro 2 antiga, significava “estar com 2 namorada"; 20 mesmo campo semintico do namoro de outros tempos pertencia ambém o substantivo footing, que indicava a pritica dos adolescentes de passear a pé, em grupo, em local piblico, para ver adolescentes do outro sexo € ser visto por eles (elas). E, para ficar no capitulo do namoro, muitos pais que tinham filhos adolescentes na década de 1990 tiveram sérias dificu\dades para entender o significado do verbo ficar, que representava um modo de relacionar-se com 0 sexo ‘posto estranho @ sua experiéncia. Embora seja mais comum encontar inovagées na giria e em outras reas do léxico, € possivel encontri-las também no dominio da gramética € em outras variedades da fala ou da excrita. As construgdes “dar uma de sonso’ e “dar uma de Janio Quadros’ soavam estranhas quando apareceram hé cerca de meio século; uma variante mais familiar, mas nao rorryass 00 wast > 153 exatamente equivalente, era ent&o “bancar 0 sonso’, “fazer-se de sonso”, “agi como Janio Quadros’, Hoje “dar uma de.." & de uso corrente na fala coloquial haveria muito a dizer sobre os matizes de sentido que transmite Mais recentemente, outra construcao sintética, “amanbd vamos estar ‘mandando seu carido para o enderego que o senbor acaba de indicar’, chamou a atencio de muitos profissionais da linguagem (professores, jomalistas, escritores, gramdticos...). Sobre essa construcio ji se disse de tudo: que ela & desnecessaria; que ela & indispensivel; que ela foi criada elas telefonistas do telemarketing; que ela jf existia na Idade Média; que € mais um estrangeirismo, pois foi criada por imitacao do inglés; que é ‘uma construgao vemdcula, inteiramente previstvel no portugués do Brasil. Aqui, interessa simplesmente aponté-la como uma construgdo que se tomou corrente nos tikimos anos, ou seja, um fato de “variacio diacrénica” que percebemos sem voltar a0 passado. Um caso muito particular de variagao diacronica € @ grama- ticalizagao, isto €, 0 processo pelo qual uma palavra de sentido pleno assume fungSes gramaticais: um exemplo classico de gramaticalizagao em portugués é a formagao do pronome vocé como todos sabem, essa palavra remonta a Vossa Mercé, via Vosmecé. Era, na origem, uma expressio de tratamento, como Vossa Majestade ou Vossa Exceléncia; hoje um pronome pessoal, ¢ nessa fun¢ao suplantou o antigo pronome de segunda pessoa tu, numa grande rea do territ6rio brasileiro. O processo inverso & ‘gramaticalizagio € a lexicalizagio: cste iltimo processo acontece, por exemplo, quando dizemos que um trabalho apresenta virios sendes, ou quando pedimos a alguém que deixe de entretantos e passe aos finalmentes, Como todos saber, entretanto € geralmente uma conjungio € finalmente € geralmente um advérbio; mas no uso que estamos descrevendo aqui essas palavras significam respectivamente “consideragbes, ressalvas" € "conchusdes, decisdes". Essas palavras foram transformadas em substantivos que indicam as fases de um debate, como mostra, de resto, a aplicacdo do artigo € a desinéncia do plural. Seja come for, convém pensar na lingua no como uma forma que foi estabelecida em caréter definitive em algum momento do passado, quem sabe por decisfio de uma assembiéia de sibios, mas sim como uma realidade dindmica, que esti por natureza em constante mudanga. Nao 56 a lingua que falamos hoje € 0 resultado de muitas inovagoes covorridas em épocas diferentes; na lingua que falamos hoje convivem palavras € construgdes que remontam a épocas diferentes. As vezes, 0 uso de uma 154 + creams oa cose, lingua mais antiga torna-se a op¢io mais ou menos consciente de alguns Jalantes ou eseritores. Foi essa a opgo de escritores como: Enclides da ‘Cunha ¢ Alberto de Oliveira, que recorreram em suas obras a uma sintaxe € a um vocabulétio inspiredos em autores portugueses que haviam vivido dois ou trés séculos antes, como uma forma de enriquecer seu proprio estilo. Talvez porque sempre recorrem a exemplos buscados nos “grandes escritores", os graméticos também tendem a construir representacoes da lingua que apresentam uma defasagem considerével em relagao 20 uso corrente. Independentemente disso tudo, 2 lingua muda ‘em que foram escritos, por isso, se quisermos compreendé-los mais completamente, teremos que recuperar um contexto diferente do nosso, 0 do Brasil escravagista, ‘Além ce nos trazerem importantes informacdes histéricas sobre a época em que foram escrios, ancncios como esses nos dio também mutas informagtes sobre a lingua da época e 6 principalmente a esse aapecto que daremos atengo aqui ‘Sao Paulo, 1830 Hontem pela manhéa se me ewiou um negro do gentio ‘de Guind, muito bosal,e trajado & maneira dos que ven fem comboi, @ se me dice, fo\ pegado, vagando como Perdido. Por intérprete apenas pude colher que ainda no era baplisado, ¢ que saindo a lenhar se pordeu: |queira por tanto V.". inser este annuncio em sua folh fa fim de apparecer dono, sobre 0 que dactaro, que se ro apparocer por 18 das, centados da publicagtio da folha, heide remetobo 4 Proredoria dos Residuas; a quem pertence 0 conhecimerto das coises de que se cconhoce © done, ~ Sao Paula 9 de Abil de 1890. - O Juz de Paz Supplente da Freguezia da Sd ~ José da Silva Merceanna. (Fonte: © Faro! Paulstano, 24 de abr de 1830.) sce texto exemplifica um tipo de andncio que se publicou fartamente em todos os Jomais do pafs até ser aboldo 0 regime escravocrata, Nel, informa-se a captura de um negro fugido a fim de que o dono possa tomar as providéncias necessérias para. recuperislo. Outto tipo de antincio ainda mais comum no perfodo era equele em que roms sows. + 155, © roprietro informava a fuga de escravos e prometa uma recompensa a quem os levasse de volta ou informasse seu paradsiro, Hoje choca-nos a mansira como asses antinclos falam dos escravos: eles séo invariavelmente descritos pelas suas caracarsticas flsicas, com incicagéo de um genétno (& para isso que se cita no ncneio acima a origem no gentio da Guin) e uma aterigéc tuto exata a tages como clearzes, dade, vestimentas © grau de acuturagdo (a necessidade de um Intérprete mostra que 0 escrave nao sabe falerportuguds, © a qualilcagto de bogal indica por sua vez que ele néo assimilou a cultura dos senor, e & posciveimente rativo da Atria). Choca mais ainda, no texto, veriicar quo um dos destinos possivels para escravo é a Provedora de Residues, essa curssa repatgso pla quo cuida das coisas de ndo se sabe dono: nBo poderia haver manifestagSo mais signifcaiva 0 foto de que 08 escraves eram entéo tratados coro propriedades © coisas. Todos esses aspectos que nos chccam ro inicio do sécu fazer cesse tp de texto um Important mater histéco, sobre o qual havera muito mais a dizer ‘Aandlise lingietioa do texto lava resultados manos impressionantes, mas ro ‘menos signcaivs. Nao podemos fazer vistas grassas ao fo do que © andinclo fet ‘digo por um juz e que é um exempto tipico de lingua escita, E eno.com a ngua escrita de hoje que esse andncio de 1830 procisa ser comparado, mais, partcularmente com os nossos classficados. AS ciferengas sao considoravais. Nee, encontramos caracteraicas dos géneros joralisicos que hoje qualiicamos ‘como *notca, “carta do leit @ *comunicacdo/nfomacdo & praca’, @a sintexe do texto soa pesada dovide a um uso dos clticos que hoje sera evtado, Notem- pronunciado fmf], pronunciado {Ra'paifl, etc. rea: marca registrada da fala carioca, mas encontravel de fato a0 Espirito Santo, em algumas regides de Minas Gerais e em certos falares do Para, do Amazonas e também de Pernambuco (Recife). = realizagio de /s/ final como // mais pronunciado {majh) fea: regides do Nordeste ¢ do Rio de Janeiro, = realizacao de /v/ ¢// como /h/ em infdo de patavra < pronunciado thamb] - pronunciado thei] frea: regides do Nordeste, principalmente no Ceara. ‘+ diferentes realizagbes do /R/ (0 <> de carve: apical miltipla na regiao Sul (chumasco, espeto carrido e chimazrdo pa vor dos gatichos);, vuvular [s} na prontincia carioca (kaw); fricaiva velar surda (h] no resto do pat 168+ o rnructe on come ‘+ auséncia da palatizacao de /V € /di: 2 palatizagao ( pronunciados ['d8tf], Ipre'tfinul, MsiskuD € fendmeno generalizado em todo 0 territGrio brasileiro, com excecio do intetior de So Paulo e da regio Sul Gleite quente> pronunciado ete ‘kéteD; encontrado também em egies de Pemambuco, do Cearf, do Maranhiio e do Piaut. + palatizagio de /V, A/ antes de /a/€ /o/ por meio de um /j/ anterior: pronunciad llejte eéte) rea: regilo Sul ¢ interior de Sio Paulo. A no ser nesta frea, a ‘oposicto /e//i/ se neuiraliza em posigao pést6nica; idem para /o/-/a/ + “entonacio descendente”. Sei nfio> pronunciado com um ‘contomo descendente longo” rea: 0 Nordeste, acima do estado da Bahia ‘+ abertura das vogais pré-tGnicas: “ pronunciado {de'sétfi] rea: Nordest. ‘+ prontinciaretroflexa do //,ex. pronunciado pote rea: essa prontincia € uma das caracteristicas do “dialeto caipirs", ‘que costuma ser associado & regizo no costcira de colonizagio mais ‘antiga, em S20 Paulo. A prontindia retroflexa do /t/, como de resto ‘vites outras caracteristicas do dieleto caipira, alcangam de fato ‘algumas regides do sul de Minas Gerais, do Mato Grosso, do norte do Parand, de Goids ¢ de Tocantins. A mesma prontincia € dada no “daleto caipira” ao primeizo Il de €20 Ul de € de . + prontincia como tw ou fil do- que fecha silaba 2 primeira prondncia & generalizada pelo Brasil afora, o que leva & confusio de palavras como male mau, ¢ 2 grafias erradas como e . A segunda prontincia € encontrada no Sul. Outros falares regionais, entre eles o dialeto caipira, apresentam ‘uma terceiraalternativa de prondincia, que é 2 queda pura ¢ simples 0 WV final + queda do final dos infntivos verbuis/ queda do final dos substantivos: , , , pronunciadas respectivamente [3'da fo'ga fo}, Imora'do} ou fmom'do] frea: Minas Gerais, Sto Paulo e Espirito Santo. + prontincia do fonema /5/: reas: na regiio do “dialeto caipira® e em muitas outras, a prontineia € [jk “filho* Ifjol, “milho” {mijol; nesses regibes, uma reagio de hhipercomedao leva eventualmente a pronunciar desentuptdor de pia como desentupidor de pilba. Em cutras regibes (parte do Nordeste), a ‘proniincia € I mulher pronunciads lm! © Mato Grosso. soaruts po wan + 169 Observem-se ainda os seguintes fatos de caréter morfossintético: ‘= ws0 ov omiss8o dos artigos definidos antes de nomes préprios © dos nomes de parentesco: 0 assunto de que mais se falou na casa de mainba da mée foi o casamento de ddo Luis 4rea: a omissAo se dé acima da isoglossa de Nascentes (assim podernos ‘chamar 2 linha que liga a foz do Rio Macuri, entre a Bahia e 0 Espinto Santo, ¢ a cidade de Mato Grosso, na divisa com a Bolivia). + uso de tue vocé como pronomes de segunda pessoa: hd, no total, em ¥o, tr8s formas de expressar a segunda pessoa: () pronome 11 + verbo de segunda pessoa: tu é/ tu was, Gi) pronome tu + verbo de terceira pessoa: ix €/ tu ea; (i) pronome vocée verbo Ge terceira pessoa: voc® é/ vocé wat. Uima on outra das duas primeiras solugées prevalece conforme 2 regi2o nos ués estados da regiao Sol Na fala carioca, encontramos a segunda ¢ a teceira. Nas regides Norte @ Nordeste também encontramos () € (ii. A solugao com voc + verbo de 3* pessoa prevalece no restante do pais? ‘+ tendéncia 2 omitir 0 pronome reflexivo com verbos pronominais: Jétinbaaconiecido antes, porisordo preacupeiCem vez de mapasnctied) ‘rea: fenémeno que est ampltando sua érea, 2 partir de Minas Gerais® Allista de fendmenos que acabamos de apresentar é incompleta: haveria muito mais coisas a estudar, sobretuclo no campo da sintaxe, do léxico ¢ da fraseologia, e, aqui, 0 méximo que pociemos fazer € deixar claro que nosso Ievantamento nao vai além de um pequeno conjunto de fatos sempre lembrados. De resto, 0 leitor teri notado que, ao tratar da localizacao extensio dos fendmenos lembrados, o fizemos de maneira muito imprecisa. Como a maioria dos trabalhos que tratam de variaca0 diatépica, nao delimitamos com clareza a area geogrifica do fendmeno considerado. Seria desejivel ir além, mas, infelizmente, a localizacao exata dos varios fenémenos ‘que caracterizam variedades regionais do »s depende, ainda, de um esforso considerivel de pesquisa cotetiva. (Os atlas lingiiisticos do portugués do Brasil Demarcar érea em que acontece um determinado fendmeno linguistco, tragar no mapa as isoglossas, isto é, as divisas das éreas em que a lingua € vniforme com respeito a determinado fendmeno, € compara a ‘extensio geogrifica dos varios fenémenos sio tarefas que fazem parte de um programa bem mais ambicioso: a elaboraco dos atlas lingiisticos. Um atlas lingifstco tem, além disso, o objetivo de delimitar as variedades regionais de uma lingua, localizando suas divisas ao longo das principais isoglossas. ara algumas lingvas européis, existem atlas que dao conta de sua variacio em todo 0 territério em que sio faladas. E 0 caso, por exemplo, do francés, 170_ + o romuous os cone que ganhou seu primeiro atlas no inicio do século xx. Para a peninsula Ibérica, chegou a ser feito in loco todo o trabalho de pesquisa necessério para a elaboracdo do atv (Atlas Lingiifstico da Peninsula Ibérica), que abrangeri inclusive o portugués ¢ 0 galego. Mas a claboracio do arr softeu muitos percalgos, Somente 0 primeiro volume foi publicado, e @ continuago dos trabalhos precisou ser assumida por uma universidade canadense. SEO. aPeréceram 10 Brasil varios trabalhos que tratavam regional espectica do portugu8s brasieo: O efaleto caipira, do | Amadeu Amaral (sobre Sip Paulo - 1920/2. ed. 1953), Olinguaiarcarioca, de Antenor 'Nascentes (1922), A inguagem dos cantadores, de Clovis Monteiro (sobre © Ceard — 1934), A lingua do Nordeste, de Mério Marroquim (sobre Alagoas @ Pemambuco — 1938), Alguns aspetos da fonética sulviogranaense de Eipidio Ferrera Paes (1998), ( falar minero © Os estudos do dlaletologis portiguesa, de J. A. Tecra (sobre Gois — 1944). Foi numa dessas obras, a de Nascentes, que apareceu o primeito mapa das variedades regionals do portugués brasileiro de que temos conhecimento. 'No contexte do livro, o mapa visava apenas a locatzar geogralicamento 0 carioca, distinguide-o como uma varledade do fluminense, mas nem por isso 0 mapa é pobre ‘om surpresas. Note-se que: * hd uma separapéo principal entre Norte © Sul, estabelecida por uma linha (ou ‘mais pracisamante, uma faixa) que ve, de acordo com Antenor Nascentes, "da faz do tio Macus, entre 0 Espiiio Santo @ a Baia, até a cidade de Mato Grosso, no estado de mesmo nome, passando cerca de Tedflo Ottoni, Minas "Novas, Bocaitiva; Pirapora, Serra da Mata da Corda, Carmo do Paranaiba, rio Paranatba, rio S80 Marcos, Arrependidos, Santa Luzia, Pirendpols, Rio das Almas, Pilar, foz do rio dos Araés, Cilabé @ Mato Grosso”." As ‘caracterstioas da fala que jusiicam a divisdo so a prontncia das vogais protbnicas (abertas a0 norte, fechadas no su), ¢ @ Ycadéncia’; * 05 nomes de algumas variedades linghisticas evocam nomes de estados, ‘mas 2 rea dos dialetos no coincide com 0 teritério desses estad ‘amazonense 6 falado no Amazonas, Pard e Acre; © bakano, o fuminense @ © sulista ocupam grandes areas de Minas, resiringindo © minelo ao centro do estado otc.; + rd no centro do pals uma grande drea (aproximadamente do tamanho da Franga) qualiicada de “incaracteriscx"; ‘| no 88 fazem distingSoe no interior dc suista @ do nordestino.. Se Nascentes 0 fizesse hoje, 0 mapa seria com certoza muito diferente: as informagSes que temos desmentem a uniformidade do nordestino @ do suis, € 0 TTT rormente comes + 171 fendmeno que ele chamou Intuitvamente de “cadéneia" seria provaveimente expicado om tormos mais exstoo, por exemple, como uma dierenga no modo de bar iscronia na fata Mas o que realmente trrou desatuelizado o mapa de Nascentes foram as profundas rmudanjas ocoridas no pais: Fie, outos pontos ce releéncia seri usados para ‘agar a nha Macuri-Mato Grosso, que pasta a poscos quldmaties do Bresia; no ha mais “enitros incaractriscos", mas sim teralos que solreram répidas transtormagtes, e eram alvo de una migragéo interna ae vezes descottlada ‘Aguas das dvsérias tapadas por Nascentes coit-dem com as dvisas doe novos esiados de Tocantins ¢ Mato Grosso do Sue no 6 de Surpreender que assim sea: ‘22008 novos atade sao cterentos do Mato Grasso © Gos no 6 por suas caractriticas fsicas, mas também por razbes do colonizago,hstéria © culture, Néo € absurdo pensar que slgumas dessas diterengas terham tido retlexo na linguagem © que Antenor Nascontes, que percoreu © Bras "do Oizpoque a0 Xul, do Racte a Cuil, pesquleando as cleranges couvexcées e fla, tonha pereabiso tudo ies. Seja come fr, a cvedo proposta por Nascentes continua sendo um marco 1a Piatéia tngatea do rast: 1) por Starner ter fomecido um diagndstico imoorante da geogratia do portugues brabeio nos anos 1950; 2) gor serao mesmo tampo abrangore ect: ©) poraue fez geminar a idea de um atlas lingusco brastoin. , Nota: AS palaves protnicas © Xul foram oraladas cone No Brasil, a idéia de ur atlas lingtistico de abrangéncia nacional foi ‘cogitada pela primeira vez em 1922, quando o filélogo Antenor Nascentes langow 0 livro 0 linguajar carioca (ver 0 quadro “O primeiro mapa das variedades do portugués brasileiro”, na p. 170) A idéia reaparece na segunda edigio do mesmo livro em 1953. Trabalhando com os recursos da época (ou seja, fazendo do ouvido e da meméria seus principais instrumentos e recolhendo informagoes de maneira impressionista, em viagem pelo pais), Antenor Nascentes separou no Brasil dois grandes grupos de falares ~ 0s do Norte, compreendendo 0 amaz6nico e 0 nordestino, e os do Sul, 572. + o roms ox re compreendendo © baiano, 0 mineiro; o fluminense € o “sulista". Segundo Nascentes, a principal divisdo justificava-se por dois critérios: (1) “a cadéncia"™ € (2) “a existéncia de protonicas (sid abertas em vocabulos que nio sejam diminutivos nem advérbjos em -mente”? (© projeto de um atlas linguistico brasileiro €, portant, antigo, e sempre foi considerado prioritério pelos lingois:as brasileiros, mas esbarrou em dificuldades de organizacao e, sobretudo, de custos: para elaborar um atlas lingBistico € preciso estabelecer no teritérioa ser estudacio uma rede de pontos, ‘emcada um dos quaisas varias caracteristicas da linguagem que oatlas pretende representar serdo pesquisadas mediante entievistas& populacdo; €fcilimaginar 08 custos de deslocar equipes de pesquistdores que deveriam realizar suas entrevistas em mithares de pontos do temisério nacional Diante das dificuldades de um atlas lingifstico para o Brasil como um todo, o que prevaleceu na segunda metade do século passado em matéria de geografia lingiistica foram os atlas regionais. Entre 1960 € 2002 foram publicados os seguintes: Atlas prvo dos fares babiamos, Nelson Rossi, 1950-1962 (publicado em 1960; Bsboro de um atlas lingitstico de Minas Gerais, Mario Zaugati, 1977; Alas ingtitstico da Paraiba, Maria do Socorro Aragio, 1984; “Alas lingistico de Sergipe, Catlota Ferrera, 1987; “atlas ngitstico do Parand, Vanderci de Andrade Aguilera, 1990; Allas ingdstico e etnolégico da regido Sul, Walter Koch, 2002, Elaborados por equipes diferentes, 1um perfodo de mais de quarenta anos, esses atlas mio procuram responder de maneira exata as mesmas perguntas (por exempio, os Giltimos mostram a preocupagio de associar a descrigao lingifstica a descrigao da cultura da regio) e ndo usam exatamente as mesmas metodologias. S20, contudo, 2s fontes mais importantes de que dispomos para visualizar a distribuigao regional de muitos fenémenos lingiiisticos € trazem informagées altamente confidveis, € a5 vezes surpreendentes, para o tipo de problemas que se propuseram a equacionar. Hoje, a idéia de um atlas lingiistco de abrangéncia nacional esté mais viva do que nunca. Bssa iniciativa foi relangada com toda forga no seminério “Caminhos ¢ Perspectivas para a Geolingaistica no Brasil”, realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em novembro de 1996. Nesse semindrio, que contou com a participacio de dialetSlogos brasileiro ligados aos principais projetos de atlas linguisticos regionals e de dialet6logos estrangeiros interessados na geolingoistica das linguas romanicas, foi lancado © Projeto AB, que tem por objetivo “descrever realidade lingtiistica do Brasil, no que tange & lingua portuguesa, com romnssoe wan + 173 enfoque prioritirio na identificacio de diferengas diat6picas ~ fonicas, ‘morfossinaticas € léxico-seminticas’ A elaboragio de atlas linglisticos conta hoje com um aliado poderoso: a informatica; hii equipes de lingtistas trabalhando na elaboragio de atlas desse tipo nos seguintes estados: Acre, Amazonas, Ceara, Maranho, Pard, Rio Grande do Norte, Sao Paulo, Mato Grosso do Sul € Rio de Janeiro, € qualquer pessoa pode informar-se detalhadamente sobre o andamento dos trabalhos do Projeto ALiB, acessando o site www.alib.kit-net. Alias, foi nesse site que encontramos muitas das informacoes apresentadas nesta seco. F’veio a pibico em 1964 pelo Insituio Nacional de Livro, como resultado de uma pesquisa de véros anos, que envolvou uma equipe de 25 pescvisacores. Compéo- 86 de um lio de introdugdo e de cerca de 200 mapas de grande formato que doscrevem a realiade inghisca do termtéro estudado. (© Alias de Néison Rossi refere-se ao estado da Bahia e néo propriamente ao conunto os dialetos baienos que ~ de acordo com as obsenagées fellas alguns anos antes or Antenor Nascentes, so falados nio 66 naquele estado, mas também no nerte de Minas Gerais, em Tocantins e Alagoas. Para mapear lingbisticamento a area estudeda, Nélson Rossi e sua equipe selecionaram (evitando os grandes centros) um total de 50 pontos a serem pesquisados — povoados, vlas © cidades dstibuidas do modo a represetar todas as reas fsiogrficas do estado (sertio do Séo Frencisco, nordeste, Itorl norte, reconcavo, zona do cacau etc.). Nesses pontos, 05 pesquisadores realzaram entrvists euj objetivo era corhecer as denominagSes para ceras reakdades. Por ‘exempio, 0s entevistados deveriam cizor come ¢ chamado o bet de cor branca preta (carta 192), e deram respostas como pintado, maringa, pavanas, mestico, tingid, tnt, chuviscado, moure, coure de rapose, reposado, lavrado, pampo, ‘malhado, manchado, chitado © boraiho. © Atlas 6 extremamente cuidadoso no registrar pequenas diterencas de prontincia, éistinguindo, por exemplo as prondncias [pin], [psn] © {zs'ne] (as dierongas edo de necaizaglo). © Alas de Nélson Rossi reserva a seus letores uma série de surpresas: por ‘exempo, na carta dedicada aos nomes populares para Scuos, 6 possivel encontvar formas parecitas com pincené (que remonta & palara francesa, pince-nez) ¢ funota (que na lingua padrao descrove um tipo pequene ce telascdpi); na carta dedicada 1208 agaoahhos de inverno & possfvel encontrar as denominagSes cachind, cached, fehu e boa, que remontam 20 francés cache-nez,cache-col, fishy @ boa. Reproducimos a seguir as informagées de carta 65, uma das mes regulares, quo {raz as denominagdes da galinha-d'angola. Alguns detalhes tonéticos foram ‘omitdos para melhor vieuaizagéo do mapa. 174+ o romeo core evete or 2m © coc8 mm quenquém @ guine © galinha-d'angota + cage {Fas de lim didieto de transigior srtugués/espanhol imiediatamente no portunhol, que é uma dis‘orgéo deliberada mediante a qual 0s falantes de uma das duas linguas tentam aproximar-se da outra. O portunhol nao 6, esse sentido, 0 verséculo de ninguém. Hé, contudo, na regiao noroeste do Uruguai alguns falares vernaculares que combinam tragos das duas linguas ibéricas. Esses {alates sae conhacidos localmente camo carimbao, basa7ioou simplesmente brasilero. Nessa regido fi sempre muito forte a penetrarto de brasieitos vindos do Rio Grande, {do Sul, 0 ola fo a ttima a receber colonos uruguaics. No final da década de 1980, 0 lingtista uruguaio Adolfo Eizaincin e saus colaboradores (1987) descreveram aigumas dessas variodades. Do material que ele levanbu na época, transorevemes (utitzando 2 Alfaboto Fonético Internacional) 0 trecho cue segue, no qual 0 entrevistado, um adolescente, expica como ajuda o pal nos trabalhos do campo: - roreuts coma + 175 ‘6e'p08 ke ‘Jogo d isola vo pa u ‘kamou, agu'da meu paj alfudo @ Reco'Re ‘kampo. ‘este... ‘pongo alam'brado, alam'bremo, alfudo ‘ell elam'ora {des'po ‘kuando 'moRe al'gum ani'mal a'sudo ella kueri i le'yemo pra 2s, pra a ‘stansja des'pos tra'femos as ‘baka ke ro'sejn der.) "kria pa... pra orde!na i dos'po tra’Somos us terra {si pa as "kaza pa ‘otro ‘dia ¢ ma'pa orde's Depos que chego da escola vou para o campo ajuxiar meu pa. ‘Aludo a tecorrer campo. Isso. Ponho alamorado, alambramos, ejudo le a alarbcar. ‘depois, quando morre algum animal ajudo ele a courear © chegemos para as para a estnca E depois trazemes ae vacas que recém deram ctla pa... para Ordenhar e depois trazemos os temeios para as casa para outro dla. de manhaordenhar. gis Deixamos 20 leitor a tarefa de coy como muitos tragos do_gua for Variagio diastratica A principal conclusto da secio “Variagto diatopica” € que, no Brasil, no encontramos verdadeiros dialetos no sentido diat6pico do termo, Encontramos, em compensacao, uma séria diferenca entre 0 portugues falado pela parte mais escolarizada da populacdo (que, no por acaso, é também a parte mais rica ov menos pobre) ¢ pela paite menos escolarizada. E 0 fenémeno que os linguistas chamam de variagéo diastratica (etimologicamente: 0 tipo de variacao que se encontra quando se comparam diferentes estratos de uma populacio). Referida as vezes como “portugues subpadrao’ ou “portugues sub-standard’, a variedade de portugués falada pela populagio menos cscolarizada foi descrita por varios estudiosos, entre eles Castilho,® que enumera assim suas principais caracteristicas: Fonética + queda ou nasalizagio da vogal ona iniil: incelonga por exceléncia; + queda de material fonético posterior 8 vogal tGnica: /igo por flgado, igo por Cicero, eentimo por centimetr, + perda da dstincio entre vogale ditongo artes de palatal: pexe por petxe, + monotongacio de ditongos crescentes em posigto final: sustanga por substancia, + uso de {por if (fojel em ver de (fos) 176 + oromuaits cone Morfologia. ‘+ perda do -s da desinéncia-da prea pessoa plural nots cantamo, nis cantemo por nds cantamos, + anteposigao do advérbio de comparagao a adjetivos que J sto comparativos: mais mié em vex de melon Sintaxe: + uso de uma Gnica marca de plural nos sintagmas nominais complexos ce auséncia de marca de concordinda na 3* pessoa do plural do verbo, particularmente com sujeito posposto (os dace mais bonito sto / é ‘para as vista. Quando chegou es hombeiro {4 ndo tinba mais nada ra faze, + negag2o redundante com indefinidos negativos (ninguém nao sabia; + aparecimento de um segundo advérbio de negacio depois do verbo ce eventual queda do advérbio de nega¢ao anteposto: ndo vem ndo ou vem nao; + a oracio rclativa adota as construgées conhecidas como cortadora ou copiadora: @ casa que eu morei ou a casa qive eu morei nela (em vez a construgao padrio a casa em que mored; ‘+ uso dos pronomes do caso reto na posicao de objeto: eu of ele, a ‘mulber xingou au. Por razbes tanto pedagogicas come cientificas, é importante perceber que as formas e construgées do portugués sub-standard fazem parte de ‘uma variedade de lingua que tem uma gramética propria, e que essa gramdtica permite uma comunica¢o muito eficaz. No portugués subpadrio que se fala no Brasil, a conjugacao verbal reduziu-se, € verdade, a duas formas: fala ele /ela n6s/ a gente fala voces eles / elas Comparado com a representapio da gramética normativa, que traz seis formas € seis pronomes diferentes, esse paradigma verbal tem tudo para parecer pobre. Mas o inglés € o fraacés falado também usam s6 duas ‘ou trés formas, e ninguém se lembraria de dizer que isso € um problema para aquelas linguas. Note-se que a variante subpadrio que distingue nots cantamo de néis cantemo consegue distinguit morfologicamente dois tempos do verbo (© presente ¢ 0 pretérito perfeto), uma diferenca importante que © portugués brasileiro culto nao consegue marcar e que portugués europeu ‘marca por uma distingao de nasalidade. aes routs comme + 177 Em suma, quando tatamos de qualquer variante sub-standard do portugués brasileiro, estamos diante de outro cédigo, € nao de erros devidos as limitagdes mentais dos individuos que o empregam. Do ponto de vista pedagogico, € fundamental perceber que os alunos que chegam a escola falando uma variante subpadrao precisam aprender a variedade culta como uma espécie de lingua estrangeira; isso nao significa que ‘essas criangas devam ser poupadas do aprendizado da lingua padrao, cujo valor cultural € inegavel; significa apenas que a crianca que sempre falow calipe, para chegar a escrever , tera de aprender essa palavra como uma palavra nova e, portanto, tera de dar dois passos em ‘vez de apenas um. Infelizmente, muitos de nossos mestres de primeiras letras nao param para pensar nesse tipo de dificuldade; com isso, € possivel que acabern gastando muita energia no uso de estratégias pedagégicas equivocadas ou que tendam a subestimar a capacidade de seus alunos, quando o problema € outro. ‘As variedades subpadrio de uma lingua tém poucas chances de aparecer na escrita, por isso, se quisermos encontrar exemplos escritos de portugués subpadrio, teremos de procurélos ou em entrevistas feitas pelos linguistas, precisamente com a finalidade de registrar sua existéncia, ou em trabalhos de autores que a utitizaram para fins estéticos (por exemplo, para caracterizar determinados tipos humanos). Damos @ seguir um exemplo de cada caso: 0 primeiro € a transcrigiio de uma entrevista feita com um adolescente de Goifnia, que viu um colega ser baleado pela policia militar, durante uma batida na favela; no outro, aparecem as letras de dois sambas de Adoniran Barbosa Svisla sociolingDistica com menino de rua de Goidnia Antecedentes da pesquisadora: urbano Antecedentes do menino: ‘tubano"™ 3: Semimoniterado Evento de oralidade Pesquisadora: Voc8 quer contar como os policials rmataram 0 Adauto? ‘Menino: Nois tava dormino fa om casa, &s tres hora da ‘manha, i os pu chegaro, deu um tire na porta, pegé na. pera do “fulano” af em seguida 6z arrebent6 a porta, af eu oto tro, pegd na cabega do Adauto, ez vio que tinha, 178. + orm os cre acertado 0 Adauto.Falar: “Vamo sai fora que cert 0 merino aqui. sau tudo corero 08 potas, i desc de ‘ima do arma, comm na peta pa ve se eu va onmeco da vialura déze mas num consagui, volte ld o Adauto j& tava quase parano 0 coragio del, fz massage nel, consogui dix ole viveno mais um poco, oe. fot eu 6 ‘“Tuiano™ busca socoro pra oe asnuisadora’ E onde vocts foram? Mening: Néis fomo nu’a casa, 14 em frente, af o home du sstonga ra nde Pesquisacera: E? Levou o menino pro hospital? eninn: Lavou os dois ‘Besquisacora: An, e al? Manino: A eu fi doa tno hata, a ro oto da que eu vie aqui na Catedral © consi pro povo aqui af fui no hospital ia, af vio Adauto tna on * Esse toxto 6 a transcripao do uma entrovieta oral, utilizando 0 alfabeto © as cconvengSes arélicas correntes do portugués ascrito, por isso & mais faci ler es fales {da posquisadora, que se expresc2 na variedade padréo. Alguma coisa da fala do ‘menino se perde numa transcrigio desse tre, mas ainda assim as diferengas S60 notéveis. © quadro a seguir resume as diferencas que encontcamos numa ‘comparagéo ponto a ponte. Formas tipleas da variante-padiao | Formas tipleas da variante nlio-padrao| (fata da pesquisadora) {ata do menino) ‘05 infintivos terminem em =r ‘=F final dos Infinitive no € pronunciade: debxd viveno, bused s0coro @ desinéncia da &* pessoa do singular do pretérto perteito 6 —our levou a desingncia da & pessoa do singular dbo pretéro porto 8 (pegd, arebento 1 desingncia da & pessoa do plural 0 pretérito perteto § ~ararn: mataram 'a desinéncia da 9* pessoa do purl do protérito porfeito 6 ~arer falaro ‘aparece a contragéo {(preposigéo + artigo) pro ‘aparecem coma eontagtes: de preposigdes + artigos nua, {em + uma}, pro (para +o) cla (com+ a) "Notem-se ainda, na fala do merino, os sequirtes tragos,tipioos da fala nfo-padréo: ‘as formas tava, sistonga, of, massage home (8 gertindios terminam em ~no: dermino, viveno, ‘Samba do Arnesto ‘© Amesto nos convide rum samba ele mora no Bris Néis fumo mas nao encontiemo ringuém NNois vortemo cura baita de uma Da outra veiz nis num vai mais No outro dia encontremo co Amesto Que picsu descurpa mas néis no eceitemus, Isso ndo sa faz Amesto Nols nao se importa ‘Mas vocé devia ter ponhado um recado na porta ‘Um recado ansim 6 (por -) mostra & tendéncia a substtuir 0 som [4] por [J]. @ gfaia (por “) mostra que no advérbio de negagdo 0 ditongo nasal se reduziu & vogal nasal [0]. Também hé muito @ observar no quo diz respelto As formas das palavias: Imuilae so mals breves do que no Pe padria, como 6 0 caso de mé( = main, 16, tava (= estou, estava), ses (= vocds), pa (= para) elo: As formas prucéis (em vez de para vocés), né comédia (néo & coméala) contém contragSes quo no seriam ‘autorizadas em pa pad; em compensagio au fava ni um assallo evita a contrayao ‘onde 0 re padiio a aulorizaria (compare-se eu esiava num assaic). Uma forma digna {do teloréncia especial & encontrada na frase sm que o locutor conta como se safou ‘de mower recorrando & cobertura da imprensa exigindo a presenga de um conhecido repérter polcial: eu sé vou me entregar quardo...o Datena yim fmar. Nessa frase, Vim 6 nada mais nada menos que vier, © futuro do subjuntivo do verbo wr, teresira pessoa. No proceso pelo qual vim assune essa funggo, combinam-se dois fenémenos préprios do re néo-padrio: a terdéncla a formar futuros do subjuntivo usando 0 toma do presente @ nao do pretéito (que leva a se ele desfazer 0 contrat, val pagar uma muta) e 0 uso de vim por viz, como infritvo (ele no quis vim hoje, ele vai vin amanha}, A caracteritica sintética mais importante & 0 uso limitado do | limites do vero, o a et tings textos que comentaramos nests capitulo s¥o dois modelos de carta ‘comercial extraidos de um manual de redacao da década de 1940. Eles foram inclufdos aqui para lombrar que cada género textual tem uma dinamica propria, ‘evoluinde num rtme que pode ser mais lents ou mals répido que o ritmo médio da lingua. Isso 6 ébvio para quem tem tempo e Faciéncia para observar um pouco © que ‘acentace com a linguagom ao seu redor. Pensemos nas mudangas que afetaram ‘alguns géneros verbais nos bltimos anos, No Brasil contemporaneo, as décadas de regime militar e da abertura viram desaparecer os tiimos Iideres populistas, © 0s, ‘novos recursos técnicos disponives fzeram desaparecer 0 comicio em prapa pablica ‘© a passeata, que foram subsltuidos pela carreata, pelos debates televisionados e roma oo aus + 193 ‘sobratudo pela propaganda televsiva des horétios eletorals. E dbvio que alinguagom {a propaganda politica no é hoje a mesma que ja foi em outtos tempos, Exemplos igualmente impressionantes de mudanza da linguagemn de um género ‘podem ser encontrados na propaganda, Hojo, esperemos que uma boa propaganda, ‘os conte uma histria ficticia da qual participamos, ¢ isso leva a usar uma linguagom figurada, geraimente metafica. Nos andncios criados hd cem anos, encontramos, a0 lado de llustragées que procuram imprassionar por sua qualidade artistica (no ite, peta qualidade de uma foto do produto), textos que elogiam as qualidades do produto: no era comum entio quo 06 produtos de consumo fossem associados a fantasias de fuga do cotidiano; 0 texto da propaganda era mais voltado para porsuadit racionalmente © consumidar, do que para convencé-lo subliminarmente, e isso ‘moblizava outros mecanismos Ingdisticos, entre os quais tinha peso a descrigéo. nessa perspectiva da mudanga répida da inguagem de um género que gostariamos ue fossem Ids os modelos de carta que ansoroemos 2 sguit Rio, 7 do mos. Sie. Magalhies © Ci, Teresina (Piau)) Junto encontrarels amostras de tacidos dlversos de ‘nossa casa, devidamente coladas om catélogos, com os repos marcados et. Tudo & muito bem feito e de boa qualidade; ‘onfeccionames, porém, mals barato, mais bonito, mais urdvel e acessivel a todas as algibeiras, Assim, rogamos examinardes 0s nossos pregos ver- \adeiramente excepcionais © mandar as vossas ordens. Também nos obrigamos @ mandar artetatos de seda ‘tc. joalheria @ miudezas, mediante comissao minima Podeis cispor e dar orders aos vossos B, Antunes & Cia Estamos de posse da carta do 15 do més passado que nos fizestes a honra de esorover e vos agradecemos: | t | ! Rio. l | [08 graciosos oferacimentos que nos enviastes. | | I | | I | | | | | ! | I | Grados obrigados | —4 = | | | | | | i 1 ‘Temos 0 pesar de, no momento, nao nos podermos | utilizar detes; as condigées de venda, como nos | Propusestes, nos convém sem divida, © motivo porque | lomamos nota, © podeia crer “ecorreremos a vossa | | | cconceituada casa, logo que se nes depare ocasiao. ‘Saudamo-vos com a maior consideragao e ‘subscrevemo-nos atentes obrigados Livaria Quaresma, 1945.) Hoje, ninguém escreveria cartas comercias desse modo, O que toma obsoletos esses {dois “modelos" nao é apenas 0 vocabulérto (accessivel a todas as algberas,artefatas de sede, araciosos oferecimentos, subscrevenie-ics atentas), mas também a siniaxe {note-se 0 uso, hoje impensével, da 2* pestoa do plural vée, @ também o use ‘abundant de ciftcos), para ndo falar da escolha das formulas de introdugao e fecho. “Tudo isso para reafirnar que cada um dos diferentes géneros (aqui consider Totes varadase veh ery no 80 sondo oa pb O drama de encarar a variagio Nas tltimas paginas, procuramos ver o que ha de verdade na velha idéia segundo a qual uma das caracteristicas mais marcantes do portugues do Brasil seria sua grande uniformidade. Para isso, partimos da idéia de que toda lingua, a qualquer momento de sua hist6ria, esti imemediavelmente sujeita a variago 8 mudanga. Definimos quatro dimens6es principais de variagio (liacr6nica, diat6pica, diastratica e diamésica), que foram exploradas com a ajuda de ‘exemplos. Essa exploracio nos revelou que o portugués do Brasil apresenta variagio em cada uma dessas dimensoes. Que interesse tem essa descoberta? Fm primeirolugar, ela nospermiteafirmarque a velhatese da uniformidade do portugués brasileiro €em grande parte uma lusdo. Ela foi construida na década ‘de 1950 por autores que estucaram sobretude a maneira como o portuguésfalado ‘no Brasil muda na dimensio geogsafica e que tinham os dialetos europeus como termo de comparacao. & bem sabido que em algumas regiées da Europa (como a Itdia, 0 sul da Alemanha, o norte de Portugal ¢ até certo ponto a Franca e a Fspanha) a fragmentagao dialetal jé foi to forte a ponto de prejudicar a compreensio reciproca entre habitantes de regibes distantes entre si poucas centenas de quil6metros. Tomando essis situagbes como parmetro, 0 _ rorenssc0 mast + 195 portugues do Brasil (onde afinal o gaticho compreende © amazonense, que mora a milhares de quil6metros) aparece sem dtivida como uma lingua mais uniforme. Em suma, quando os autores da década de 1950 falaram na grande luniformidacle de nossa lingua estavam sobretudo ressaltando 0 fato de que o Brasil nao conhece dialetos no sentido europeu do termo, o que € verdade. Mas 0 portugués do Brasil, como qualquer outra lingua, apresenta variedades regionais (como procuramos mostrar na sego "Variaglo diat6pica’), Infelizmente, a idéia de que o portugués do Brasil é uma lingua uniforme tende também a nos fazer esquecer as ouiras formas de variago: as que denominamos aqui diastrtica, diacrOnica e diamésica, além de outras Formas de variaco das quais nao falamos neste livro, como a de registro (que corresponde 20 grau maior ou menor de formalidade da fala), a de sexo, a de idade, etc. Essas diferengas fazem parte da vida de todos os dias e afetam cada um de n6s, porque, independentemente de quem somos, € normal que mantenhamos algum tipo de interagio com pessoas de outras classes sociais, de outra idade, de outro sexo, assim como € normal para qualquer um de 1nds produzir textos escritos ¢falados que utilizam formatos diferentes. Nessas, varias formas de interacao, a lingua que utilizamos muda, em alguma medica, para adaptar-se ao interlocutor € a0 contexto ou situacdo. Portanto, variacao existe, quer gostemos disso, quer no. Mas hé muita «gente para quem esse fato € un problema: essas pessoas se sensibilizam com a variaao diastratica ¢ tendem a achar que falar uma variedade diferente da variedade padso € um problema sério para a sociedade e para quem o faz, talvez ‘um vicio, talvez um crime, alvez uma manifestagio de inferioridade. E, mais uma vez, a atitude que levou os gregos.a chamar de kdrbaros todos aqueles que no falavam grego € que consiste em desctassificar 0 outro, desclassificando sua lingua. Sempre que isso acontece, a lingua torna‘se um vefculo de preconceitos e exclusdes, uma funcio na qual, infelizmente, pode ser extremamente eficaz. Resta saber se, numa sociedade mais aberta, € desejavel cultivar preconceits, linguisticos ou outros. Pensamos que niio, ¢ isso deveria valer no 86 para os profissionals da linguagem, mas para todo mundo: 0 médico tem interesse em passar sem dificuldades da denominagio popular beijo de aranha 2 denominagio cientifica oncocircose, e vice-versa, 0 advogado tem interesse en saber que.o povo chama de rowbosos mesmos delitos quea Justica chama de furtos, e todos temos interesse emcompreendes que uma informacto dada em portugues sub-standard pode perfeitzmente ser correta e oportuna 5 profissionais da linguagem tém um interesse ainda maior em contar com a existéncia da variagio, levando-a em conta em sua atuaco, mas disso trataremos mais extensamente no capitulo “Lingiistica do portugués eensino". 196 + creme core ‘Umtiltimo comentario: as Formas discriminadas tém um uso muito mais freqliente do que se pensa, inclusive na fala e na escrita das pessoas que discriminam a Kingua dos outros: para dar apenas um exemplo, muita gente ficaria surpresa 20 ver quantas vezes usa, na fala, formas como océlpor vocal, nélpor ndoéA ou construgées como a casa que morei na infancialpor casa ‘em que morei na inféincial, vé se uecé me entende lem vez de veja se vocd mz entendd e assim por diante. Se € essa a realidade, a disposicio para apontaz cerros na fala de outros nito tem o propésito edificante de corrigi-los; € antes ‘uma forma de exchuiro outro € de reforcar uma desigualdade percebida. Notas * 0s dais anincos form exnides de Guede Bednek, Es pros erm commodos, So Paul, “mats, 200 2 Mobreza enum tipo edo de eds; meri era un spo de pine que mae: a pele dos carne “etaoe soup ea ipo detect (ab cones deere Ca, + oseremplos foram tindos de Miso Praia, Dcossa de PruguteSchfifecie-ebaissostadas, ‘Sto Paulo, labo, 1993 “Yor Mara lee Pacheco Altes, Atudes lghisicas de nendestinos em So Palo, Campinas, 1979, Dusoragio (lesindo), Unicap © Egle Panchy Eas esangas eam dels, Sto Paulo, Mains Foote, 1867 * Nasigto ditpics da 2 pena (eronont e vob) do re é bem mats compticda do que sugese toe parigaf, como nos Sesaios opernantrte © peel Cavak aria, 20 lembrar et povess Til o qs acontace nos tes enade dr rego Suna qlee tespevo 0 Parana, no Sudoese © fem pane do One, reps de colomagio gicho-lanetse, uatae formas fi ale ea, [e eaante do catce pelos o v0? En Sonn Ctra, ochamado Paral Cassin, dared te tempo do as das opts por ger i plana sariban,& tera de eck 0 orl 0 oes ‘Do eos do te © Rig Coane do Sl € em pane pane term of. horiceceras 20 pl arc Teron sled part exe smplfeio exces, que podesa dar ura inagetnerade 0 Telos ‘ tembramos 20 ior que of fentnenos lsadat da 4) 1 p) no so de orden excusvamente ‘fiona hitot caer disinguem pessoas de diferentes Hess econeaucas © eras Vero ste wewalpice * Anenoe Nascentes, O Hoguahe caro, 2 <3, Rio de Jane, Onganiato Sines, 1953, . 25 * Outoe autores, além de Nesceote, eshoraam mapas dis Seas calemis do ponueés brs ejase, por exemple, Siva Neo (Uns, cule cvitacio, Rio de feo, Académie, 1960, e262) ¢ Hin (97540) Ease proposas temetem a tabalos anions, nenhuina se pretende ‘hau, Aun mans, clas prepann 9 tone pa dussfomas, mas recente, de tar ‘Gains dpc ov ae reports 0 efedo da fais hana cis, baseado no levanamen Ge [gancee corre, Pa enter 4 musange de enfoque, vee Gillon e Marques, “Os estudos Gatsotepeas no fred e'o Projo de ado da Nowa Lingisice Cu’, in tier, w/8, 1973, pp. 001 heave Teter de Castine, “O ports do Bes, kn Rts, tanguisen comarca, Sto Palo, ‘ica, 1985. pp. 23568. © Autom Gide uso temo ‘bans’ pat leemanies que vem em ambiente utbane,reeniemente ‘hegades dem ambiente ria "Ver Boron Riad “Un modelo para anise teins do Romuputs do Bras, in Maras gna Lnghtsicn a Norma, S80 Paul, Loyl, 2002, pp. 33349 "op vlumee des colegio so indice ma bog: Canto Cor. 20023), a org. 202) Cabo (eng, 203) Carlo Beto orgs. 2002); Kate Cry, 2002); Koch Cog 2002, Abate e Rois (rg, 2002), Moura Neves (195) 36 Lingiiistica do portugués e ensino Nabreve introducto que abre este liv, prometemos falar do portugues do Brasil na perspectiva do ensino de Ifagua materna, Tudo aquilo que dissemos até aqui é importante nessa perspectiva, mas para que se possa entender mais fundo o que € lingua que se ensina nas escolas, seri preciso tratar de dois processos que, historicamente, foram decisivos para configurar ssa lingua: a estandardizagdo ¢ a fixacic de uma norma. Neste capitulo, falaremos desses dois processos. A idéia € mostrar que a estandardizago deu estabilidade & lingua ¢ que a fixaga0 de uma norma levou, em titima anilise, a valorizacéo de modelos antigos. Num terceiro momento, falaremos da representacao da lingua que se extrai das gramaticas, e procuraremos ‘mostrar que essa representacao é excessivamente estreita para ser aceltavel Por fim, descreveremos o modo de encarara lingua que nos parece correto para quem tem preocupagdes pedagégicas ‘A estandardizagio da lingua ‘Todas as grandes linguas de cultura que conhecemos hoje, a0 longo de sua histéria, passaram por um processo de estandardizacio. Por exandardizagao, entenderemos aqui o faio de que a lingua assume. uma

You might also like