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MARIOdeANDRADE aspecios da literatura brasileira Tom 334 iT | SBD- -US 0 MOVIMENTO MODERNISTA Manifestado especialmente pela arte, também com violéncia os costumes sociais e politicos, 0 movi- mento modernista foi o prenunciador, o preparador e por mui- | tas partes 0 criador de um estado de espirito nacional. A transformagéo do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a pratica européia de novos ideais po- liticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da conciéncia americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educagéo, impunham a criag&o de um espfrito novo e exigiam } a reverificagio e mesmo a remodelacio da Inteligéncia nacional.’ Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte\ Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. Ha um mé- | rito inegdvel nisto, embora aqueles primeiros modernistas... das cavernas, que nos reunimos em torno da pintora, Anita Malfatti e do escultor Vitor Brecheret, tenhamos como que apenas servido de altifalantes de uma forca universal e nacio- nal muito mais complexa que nés. Forca fatal, que viria mesmo. Jad um critico de senso-comum afirmou que tudo) quanto fez o movimento modernista, far-se-ia da mesma forma | sem o movimento. Nao conhego lapalissada mais graciosa. || Porque tudo isso que se faria, mesmo sem 0 movimento moder-/ | nista, seria pura e simplesmente... 0 movimento modernista./ } Fazem vinte anos que realizou-se, no Teatro Municipal de Sao Paulo, a Semana de Arte Moderna. & todo um passado agraddvel, que néo ficou nada feio, mas que me assombra um pouco também, Como tive coragem para participar daquela batalha! % certo que com minhas experiéncias artisticas muito que. venho escandalizando a intelectualidade do meu pais, po-- rém, expostas em livros e artigos, como que essas experiencias nao se realizam in anima nobile. Nao estou de corpo presente, e isto abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem mas manchando | | 232 mARIO DE ANDRADE dizer versos diante duma vaia tio bulhenta que eu ns Jeseuteva no paleo o que Paulo Prado me gritava da primeisy “fila das poltronas?... Como ‘pude fazer uma conferéneig sobre artes plisticas, na escadaria do Teatro, cercado de ang. |nimos que me cagoavam ofendiam a valer?. ae O meu mérito de participante é mérito alheio: jado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros:/ Apesar de confianga absolutamente firme que eu tinha na estéticg reno. vadora, mais que confianga, fé verdadeira, eu nio teria forcas nem fisicas nem morais para arrostar aquela tempestade de achincalhes, i E si aguentei o tranco, foi porque estava delj. rando.} O entusiasmo dos outros me embebedava, nao 9 men, Por mim, teria cedido. {Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentagao espetacular que foi a Semana de Arte Mo. derna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido, | {.A Semana marca uma data, isso é inegdvel. Mas o certo é que a pre-conciéncia primeiro, e em seguida a conviegao de uma arte nova, de um espirito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo no... sentimento de um grupinho de inte. lectuais paulistas. De primeiro foi um fenomeno estritamente- sentimental, uma intuigéo divinatéria, um... estado de poesia. | Com efeito: educados na plastica “histérica”, sabendo quando muito da existéncia dos impressionistas principais, ignorando Cézaune,io que nos levoy a aderir incondicionalmente a expo- sigéo de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos mos- trar quadros expressionistase cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelagao. | E ilhados na enchente de escdndalo que tomara a cidade, nés, trés ou quatro, delirévamos de éxtase diante de.quadros que se chamavam o “Homem Ama- relo”, a “Estudanta Russa”,a “Mulher de Cabelos Verdes”. E a esse mesmo “Homem Amarelo” de formas tio inéditas entéo, eu dedicava“um soneto de forma parnasianissima. . » Eramos assim. . 4 Poueo depois Menotti del Picchia e Osvaldo de Andrade descobriam o escultor Vitor Brecheret} que modorrava em Sao P aulo numa espécie de exilio, um quarto que lhe tinham dado gratis, no Palacio das Indistrias, pra guardar os seus calun- gas. Brecheret, nio provinha da Alemanha, como Anita ‘ fatti, vinha de Roma, Mas também importava ecoureaat a nos latinas, pois fora aluno do eélebre Maestrovic. EB fa ish Mos verdadeirag réveries a galope em frente da simbélica ¢ fui encora. ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 233 | perada e estilizagdes decorativas do “génio”. | Porque Vitor | Brecheret, para ‘n6s, era no minimo um génio. Este o mini- | mo com que podiamos nos contentar, tais os entusiasmos a que ele nos sacudia. E Brecheret ia ser em breve o gatilho ue faria “Paulicéia Desvairada” estourar, . . : Eu passara. esse ano de. 1920 sem fazer poesia mais, T nha eadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas timida- mente simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar, | Na minha leitura desarvorada, j4 conhecia até alguns futuristas de tiltima hora, mas s6 entio descobrira Verhaeren. E féra o deslumbramento. | Levado em principal pelas “Villes Tentu- culaires”, iconcebi imediatamente fazer um livro de poesias “modernas”, em verso-livre, sobre a minha cidade, Tentei, n&o veio nada que me interessasse. Tentej mais, e nada. Os meses passavam numa angistia, numa insuficléncia feroz. Se- ré que a poesia tinha se acabado em mim?... E eu me acor- dava insofrido. A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de varia espécie, foi ano de sofrimento muito. Ja ganhava pra viver folgado, mas na firia de saber as coisas que me tomara, o ganho fugia em livros e eu me estrepava em cambalaxos finan- ceiros terriveis. Em familia, o clima era torvo. Si Mae-e irm&os nfo se amolavam com as minhas “loucuras”, o resto da familia me retalhava sem piedade. E com certo prazer até: _ esse doce prazer familiar de ter num sobrinho ou num primo, um “perdido” que nos valoriza virtuosamente. | Eu tinha discussdes brutais, em que os desaforos mutuos no raro che- gavam aquele ponto de arrebentagao que... ‘porque serd que a arte os provoca!| A briga era braba, e si néo me abatia nada, me deixava em édio, mesmo ddio. \Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesso dele que eu gostava, uma “Cabega de Cristo”, mas com que roupa! eu devia os olhos da cara! | Andava as vézes a-pé por ndo ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que gastara seiscentos mil réis em livros a EB seiscentos mil réis era dinheiro entio. Nao hesitei: fiz mais conchavos finan eeiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a mi - mha “Cabega de Cristo”, sensualissimamente feliz. Isso a no- ‘ticia correu num 4timo, e a parentada que morava pegado, invadiu a casa pra ver. E pra brigar, Berravam, berravam, lo eva até pecado mortal! estrilava a senhora minha tia inatriarca da familia. Onde se viu Cristo de trancinha! t i 234 MARIO DE ANDRaApgE era feio! medonho! mesmo. Fiquei alucinado, palavra de honra, ii bater. Jantei por dentro, num estado ining oe era lho. Depois subi para o meu quarto, era noitinh ¢ de me arranjar, sair, espairecer um boeado, bo ba no centro do mundo. Me lembro que che; olhando sem ver 0 meu largo. Ruidos, luzes, bindo dos choféres de aluguel. mo, como que indestinado. Nio sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o titulo em que jamais pensara, “Paulicéia Desvairada”. O estouro chegara afinal depois de quase ano de angistias interrogativas, | Entre des. gostos, trabalhos urgentes, dividas, brigas, em pouco mais “de uma semana estava jogado no papel um canto barbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro (1). Maria Luisa, yosso filho é um “Perdido” estraga. a, na intencag tar uma bom. Guei a sacag, falas abertag su. Eu estava aparentemente eal. Quem teve a idéia da Semana de Arte Moderna? Por mim nfo sei quem foi, nunca sube, s6-possv garantir que nao fui eu. O movimento, se alastrando a0s poucos, ja se tornara uma espicie de escindalo piblico permanente. Ja tinhamos lido nossos versos no Rio de Janeiro; e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro Couto e Renato Almeida, numa atmosfera de simpatia, “Pauli- céia Desvairada”|obtinha o consentimento de Manuel Bandeira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros versos-livres, no “Car- naval”. E eis que Graca Aranha, célebre, trazendo da Euro- pa a sua “Estética da Vida”, vai a Séo Paulo, e procura nos |, conhecer e agrupar em torno da sua filosofia. N6s nos riamos |}, um bocado da “Estética da Vida” que ainda atacava certos “| modernos europeus da nossa admiraciio, mas aderimos acne mente ao mestre. E alguem lancou a idéia de se fazer um \\ semana de arte moderna, com exposigio de artes plasticas, con- (1) Depois eu sistematizaria éste processo de separagionitida a © estado de poesia ¢ o estado de arte, mesmo na composigao es ae poemas mais “dirigidos”. As lendas nacionais, por exemplo, o al reitagoes mento linguistico de combate. Escolhido um tema, por meio oe eeu 7 Psiquicas e fisiolégicas sabidas, preparar e esperar a chegada do jade Poesia. Si éste chega (quantas vezes nunca chegou...), cael dade” coagio de espécie alguma tudo o que me chega até a mio — area do individuo, E sé em seguida, na calma, o trabalho penoso,¢ lento dt arte — a “sinceridade” da obra-de-arte, coletiva ¢ funcional, mil vi importante que o individuo. ASPECTOS DA LiTERapy, SILE 3 SD, TERATURA BRASH EIRA 23 explicativas, Foj 0 importa era poder realizar essa idéi ids ene ener E o fautor verd ripen oderna foi Paul 6 aa ¥ 0 Prado. B 6 mesmo uma figura | ons aa ee : igura como ele | f n Tovinciana f riam fazer 0 movimento modernista e objetiva Tag Bode. 10 adeiro da Sem a : a el, principal- e qu \ re mais cuidadosos de equili- brio e espirito construtivo, formaram o grupo da ue “Festa”. Em Sao Paulo,| esse ambiente estético s6 fe tava em Guilherme de Almeida e num Di Cavalcanti! astelis, «. canti | pastel _ ta) “menestrel dos tons velados” como o apelidei numa dedi- | catéria esdriixula. Mas eu creio ser um engano esse levolucio- anes ee eet que lembra nomes de um Nestor Vitor ou és a ‘0 ‘elos precursos. Entio seria mais l6gico evocar Manuel Bandeira, com o seu “Carnaval”. Mas si soubéramos deste por um acaso de livraria e 0 admiravamos, dos outros, nés, na provincia, ignorévamos até os nomes, por- que os interesses imperialistas da Cérte néo eram nos mandar humilhados ou luminosos”, mas a grande camelote académica, sorriso da sociedade, util de provinciano gostar. ~--#Nio. O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um » abandono de princfpios ¢ de técnicas consequentes, foi uma re- volta contra o que era a Inteligéncia nacional. & muito mais | exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse pre- ' parado em nés um espirito de guerra, eminentemente destrui- / - dor. E as modas que revestiram este espirito foram, de inicio, " diretamente importadas_de_Burone. Quanto a dizer que ér: mos, os de Sao Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicio- nalistas europeizados, creio ser falta de subtileza critica. a esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em Sao Paulo e imediatamente antes, pela “Revista do Brasil”; 6 esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; € esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neo- colonial, nascidos em Sao-Paulo. Desta ética estavamos im- Menotti del Picchia nos dera o “Juca Mulato”, te tradicional brasileira e sobre ela escrevia- Jmente’a cidade materna o primeiro livro— mente nos que mais tarde, pregnados. lestudavamos a ar mos; e canta regional 236 MARTO DE ANDRADE do movimento. | Mas o espirito modernista foram diretamente importados da Europa. Ora Sfio Paulo estava maito mais “ao par” que 0 Ri Janeiro. E, socialmente falando, 0 modernismo 66 pod, “0 de mo ser importado por Sio Paulo e arrebentar na fateh Havia uma diferenea grande, J4 agora menos Sensive], ent Rio e Sio Paulo. (0 Rio era muito mais internacional, cae norma de vida exterior, Est4 claro: 1 ba sta do pais, o Rio possue um internacionalismo ingénito, tsa Paulo era cspiritualmente muito mais moderna porem, frute necessirio da economia do café e do industrialismo consequen. te. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espirito provinciano servil, bem denunciado pela sua politica, Sio Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comereja] e¢ sua industrialiagio, em contato mais espiritual e mais tie. nico com a atualidade do mundo. %& mesmo de assombrar enmo o Rio mantem, dentro da sua malicia vibratil de cidade internacional, uma espécie de rura- lismo, um eardeter parado tradicional muito maiores que Sio Paulo.| O Rio é dessas cidades em que nao s6 permanece in- dissoluvel o “exotismo” nacional (o que alias é prova de vita. lidade do sen cardter), mas a interpenetragiio do rural com 0 urbano. Coisa ja impossivel de se perceber em Sao Paalo., Como Belem, o Recife, a Cidade do Salvador :!0 Rio ainda é uma cidade folclérica. Em Sao Paulo o exotismo folclérico nao frequenta a rua Quinze, que nem os sambas que nascem nas caixas de f6sforo do Bar Nacional. : Ora no Rio malicioso, uma exposigéo como a de Anite Malfatti podia dar reagdes publicitérias, mas ninguém se dei- xava levar. Na Sio Paulo sem malicia, criou uma religifo. Com seus Neros também... © artigo “contra” do pintor Monteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiv uma populagio, modificou uma vida. a — Junto disso, 0 movimento modernista era nitidamente = toeratico. Pelo seu cardcter de jogo arriscado, pelo seu ne rito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo aa ade nista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuid antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma en eracia do espfrito. Bem natural, pois, que a alta e a ped que burguesia o temessem, ) Paulo Prado, ao mesmo eee uw ‘um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, Fi Ni das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. © 8S suas modes ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 237 da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais antiga, justificada no trabalho secular da terra e oriunda de qualquer salteador europeu, que o critério monarquico do Deus-Rei j4 amancebara com a genealogia. E foi por tudo isto que/Paulo Prado poude medir bem 0 que havia de aven- tureiro é de exercicio do perigo, no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura. | Uma coisa dessas seria impossivel no Rio, onde nao existe ; aristocracia tradicional, mas apenas alta burguesia riquissima. | E esta nao podia encampar um movimento que lhe destruia o | espirito conservador e conformista. A burguesia nunca soube | perder, e isso é que a perde.’ Si Paulo Prado, com a sua | autoridade intelectual e tradicional, tomou a peito a realizacdo da Semana, abriu a lista das contribuigdes e arrastou atris de si os seus pares aristocratas e mais alguns que a sua figura do- minava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espirito.| |E foi nd meio da mais tremenda/ assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna | abriu a segunda fase do movimento modernista, o perfodo | realmente destruidor, ( |Porque na verdade, o periodo herdico, fora esse ante- |: rior, iniciado com a exposig&o de pintura de Anita Malfatti e | terminado na “festa” da Semana de Arte Moderna. Durante essa meia-diizia de anos fomos realmente puros e livres, desin- teressados, vivendo numa- unio iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, cagoados, evita- dos, achincalhados, malditos, ninguém nao pode imaginar o delirio ingénuo de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos. OQ estado de exaltagio em que viviamos era incon-| | trolavel. Qualquer pagina de qualquer um de nés jogava os! outros a comogdes prodigiosas, mas aquilo era genial! { (EB eram aquelas fugas desabaladas.dentro da noite, na cadillac verde de Osvaldo de Andrade, a meu ver a figura mais caracteristica e dindmica do movimento, para ir ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas... | E os encontros & tardinha, em que ficdévamos em exposicio diante de algum rarissimo admirador, na redagio de “Papel e Tinta”... Ea falange engrossando com Sergio Milliet ¢ Rubens Borba de Morais, chegados sabidissimos da Europa... E nés tocdvamos com repeito religioso, esses Peregrinos confortiveis que tinham visto Picasso e conver- sado com Romain Rolland... E a adesio, no Rio de um 238 MARLO DE ANDRADE Alvaro Moreyra, de um Ronald de Cary Eo descobri. mento assombrado de que existiam em Sio Paulo muitos qua. dros de Lasar Segall, jé muito admira‘lo através das revistag { [alem’ Tudo génios, tudo obras-primas genia ‘nas Sergio Milliet punha um certo malestar no incéndio, com a gua serenidade equilibrada... E © filésofo da malta, Couto de Barros, pingando ilhas de conciéncia em nés, quando no meio da discussio, em geral limitada a batebocas de afirmacies peremptérias, perguntava mansinho: Mas qual é 0 critérig que vos tem da palavra “essencial”? ou: Mas qual é 0 con. ceito que voeé tem do “belo horrivel”?... ramos uns puros. Mesmo cereados de repulsa quotidia- na, a satide mental de quase todos nés, nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influéncia tinica e benéfica sobre nés. Ninguém pensava em sacrificio, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se ima- ginava precursor nem maitir: éramos uma arrancada de he- réis convencidos. E muito saudaveis. A Semana de Arte Moderna, ao mesmo tempo que coroa- mento légico dessa arrancada gloriosamente vivida (desculpem, mas, éramos gloriosos de antem&o...), a Semana de Arte Mo- derna dava um primeiro golpe na pureza do nosso~aristocra- cismo espiritual. Consagrado 0 movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreriamos aleum tempo ataques por vezes erueis, a nobreza regional nos dava mo forte e... nos dissol- via nos favores da vida. Esta claro que nao agia de caso pen- sado, ¢ si nos dissolvia era pela prépria natureza e o seu estado de decadéneia. | Numa fase em que ela nado tinha mais nenhv- ma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural pavlista sé podia nos transmitir a sua gratuidade. Princi- Piou-se » movimento dos saldes. E vivemos uns oito anos, até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a histéria artis- tica do pais registra, : Mas na intriga burguesa eseandalizadissima, a nossa orgia néo era apenas intelectual.:. © que nao disseram, 0 que nao se contou das nossas festas. Champanha com eter, vicios inventadissimos, as almofadas viraram “coxins”, eriara™ toda uma semantica do maldizer... No entanto, quando nie foram bailes pablicos (que foram 0 que siio bailes desenvoltos de alta sociedade), as nossas festas dos salées moderuistas eram aS mais, inocentes brincadeiras de artistas que se pode imaginat. ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 239 bey +z eee are tergas, a noite, na rua Lopes Chaves. ‘ » €Ssa reuniiio semanal continha exclusiva- mente artistas e precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna. (Sob © ponto-de-vista intelectual foi o mais util dos salées\ si é que se podia chamar saliio Aquilo. As vézes doze, até quinze artistas, se reuniam no estidio acanhado onde se comin doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcolzinho econémico. A arte moderna era assunto obrigatério e 0 intelectualismo t&o intransigente e deshumano que chegou mesmo a ser proibido, falar mal da vida alheia! As discussées aleancavam transes agudos, o calor era tamanho que um ou outro sentava nas ja- nelas (no havia assento pra todos) e assim mais elevado domi- nava pela altura, jf que no dominava pela voz nem o argu- mento. E aquele raro retardatério da alvorada parava de- fronte, na esperanga de alguma briga por gosar. t Havia o saléo da avenida Higienépolis que era o mais se-/ lecionado.| Tinha por pretexto o almogo dominical, maravilha | ¢ de comida lusobrasileira. Ainda ai a conversa era estritamen. te intelectual; mas variava mais e se alargava./ Paulo Prado com 0 seu pessimismo fecundo e o seu realismo, convertia sem-'. pre o assunto das livres elocubragées artisticas aos problemas; da realidade brasileira. | Foi o saléo que durou mais tempo e se} dissolveu de maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornan- do-se, por sucesséo, o patriarea da familia Prado, a casa foiy invadida, mesmo aos domingos, por um piblico da alta que. nao podia compartilhar do rojéo dos nossos assuntos. EH a conversa se manchava de poquer, casos de sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os intelectuais, vencidos, foram se arre- tirando. E houve o salio da rua Duque de Caxias, que foi o maior, o mais verdadeiramente salao,|As reunides semanais eram a tar- de, também as tércas-feiras. E isso foi a causa das reunides noturnas do mesmo dia irem esmorecendo.na rua Lopes Chaves. ‘A sociedade da rua Duque de Caxias era mais numerosa ¢ variegada, 6 em certas festas especiais, no salio moderno, construido nos jardins do solar e decorado por Lasar Segall, o grupo se tornava mais coeso. | Também af o culto da tradi- go era firme, dentro do maior modernismo.| A cozinha, de eunho afrobrasileiro, aparecia em almogos e jantares perfeitis- simos de composigio. E conto entre as minhas maiores ventu- yas admirar essa mulher excepcional que foi Dona Olivia Gue- "> des Penteado. A sua discregio, o tato e a autoridade prodigiosos 240 MARIO DE ANDRADE com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidao het génea que se chegava a ela, atraida pelo seu prestigi 0, ow | politicos, rieagos, cabotinos, foi incompardvel. 10 sou sal que também durou varios anos, teve como elemento princi ‘0, de dissolugio a efervecéneia que estava preparando 1939 Pal : fundagio do Partido Democritico, o animo politico erupti | que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-os wae extremismos de direita ou esquerda, baixara um malestar Ghee | as reunides. Os democraticos foram se afastando. Poy pai \Jado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre || pessoas da rodal; e ainda estava muito sem vicio, muito desin, | teressado, pra aceitar acomodagées. Sem nenhuma publicidade mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminay aos poucos o seu saléo modernista. O ltimo em data desses salées paulistas foi o da alameda Bardo de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsi Nao tinha dia fixo, mas as festas eram quase semanais. D, rou pouco. | E nao teve jamais o encanto das reunides que 1 fa- ziamos antes, quatro ou cinco artistas, no antigo atelié da admi- jravel pintora. ', Isto foi pouco depois da Semana, quando fixa- ida na compreensdo da burguesia, a existéncia de uma onda _revoluciondria, ela principiou nos castigando com a perda de alguns emprégos.) Alguns estavamos quase literalmente sem itrabalho, Ent&o iamos para o atelié da pintora, brincar de arte, dias inteiros. Mas dos trés salées aristocraticos, Tarsila conseguiu dar ao dela uma significagéo de maior independén- cia, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponéneia de rique- za e tradigio no ambiente, que nao era possivel. nunca evitar um tal ou qual constrangimento. No ‘de Tarsila}jamais senti- mos isso. | O mais gostoso dos nossos salées aristocratico | LE foi da’ protegio desses saldes que se alastrou pelo Brasil \ 0 espirito destruidor do movimento modernista. Isto é, 0 sel j sentido verdadeiramente especifico. Porqueembo: langando inameros processos e idéias novas, 0 movimento modernista foi ssencialmente destruidor. | Até destruidor de nds mesmos, | Porque o pragmatismo das pesquisas sempre. enfraqueceu a li- berdade da criagio. Essa a verdade verdadeira. Enquante nds, os modernistas de Séo Paulo, tinhamos incontestavelinel © uma repercussio nacional, éramos os bodes espiatérios dos assadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do Bonfim do+ ‘novos do pais todo, os outros modernos de entéo, que j& Pre ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 241 tendiam construir, formavam nucleos respeitaveis, nao tem |) divida, mas de existéncia limitada e sem verdadeiramente ne-/ nhum sentido temporfneo. Assim Plinio Salgado que, vivendo em Séo Paulo, era posto de parte e nunca pisou os salées. ‘Graga Aranha também, que sonhava construir, se atrapalhava muito entre nés;\e nos assombrava a incompreensao ingénua com que a “gente séria” do grupo de “Festa”, tomava a sério_ as nossas blagues e arremetia contra nés. Nao. | O nosso sep-/ tido era especificamente destruidor. A aristocracia tradi- cional nos deu mio forte, pondo em evidéncia mais essa ge- minacgéo de destino |— também ela j4 entio autofagicamente destruidora, por nao ter mais uma significagio legitimavel. Quanto-aos aristés do dinheiro, esses nos odiavam no principio e sempre nos olharam com desconfianga./ Nenhum salfo de rieago tivemos, nenhum milionario estrangeiro nos acolheu. Os italianos, alemiies, og israelitas se faziam de mais guardado- res do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais. . Mas nés estévamos longe, arrebatados pelos ventos da des-{ truigéo. E faziamos ou prepardvamos especialmente pela fes- ta, de que a Semana de Arte Moderna féra a primeira.| Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nés tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer.j E si tamanha festangca diminuiu por certo nossa capacidade de produgio e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos diver- timos. Saldes, festivais, bailes célebres, semanas passadas em grupo nas fazendas opulentas, semanas-santas pelas cidades — velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, che- gadas & Bafa, passeios constantes ao passado paulista, Soro- eaba, Parnafba, Itt... Era ainda o caso do baile sobre os vuledes... Doutrindrios, na ebriez de mil e uma teorias, sal- vando o Brasil, inventando 0 mundo, na verdade tudo consu- miamos, e a nés mesmos, no ealttea, amargo, quase delirante do | ie 4 Vy prazer, © yey Ting wn I agg Ht Ae O movimento de Inteligéncia que representaémos, a sua fase verdadeiramente “modernista”, nao foi o fator ‘das mu- dangas politico-sociais posteriores a ele no Brasil, Foi essen- cialmente um preparador; o criador de um estado-de espirito _ revoluciondrio e de um sentimento de arrebentagio, E si nu. ‘merosos dos intelectuais do movimento se dissolveram na S: litiea, si _vérios de nés participamos das reunides iniclaig Ap irtido Demoerftico, carece niio esquecer que tanto este cone i ico, 18 ; : os eram ainda destruigio, 10s movimentos espirituais prece- 242 MARIO DE ANDRADE | dem sempre as mudangas de ordem social. O movimento social ae destruigéo é que principiou com o P. D, e 1980. E no en. tanto, 6 justo por esta data de 1930, que prineipia para a Inte. |ligéneia brasileira uma fase mais calma, mais modesta e quoti- |diana, mais proletéria, por assim dizer, de construgio. ; 4 \espera que um dia as outras formas sociais a imitem. ins LE foi a vez do saléo de Tarsila se acabar. Mil novecentog \ e trinta....) Tudo estourava, politicas, familias, casais de artistas, estéticas, amizades profundas. |O sentido destrutivo ie festeiro do movimento modernista j4 nao tinha mais razfo. | -de-ser, cumprido o seu destino legitimo. Na rua, 0 povo amo- tinado gritava: — Getilio! Getiilio! Na sombra, Plinio Salgado.pintava de verde a sua megalomania de Esperado. No norte, atingindo de salto as nuvens mais desesperadas, outro aviéo abria asas do terreno incerto da bagaceira. Outros abriam mas eram as veias pra manchar de -encarnado as suas quatro paredes de segredo. {Mas nesse vulc&o, agora ativo e de tantas esperangas, jé vinham se fortificando as belas figu- ras mais nitidas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto Frederico Schmidt, os Otévio de Faria e os Portinari e os Ca- margo Guarnieri. Que a vida ter4 que imitar qualquer dia.) | { 4N&o eabe neste discurso de caracter polémico, o processo analitico do movimento modernista, Embora se integrassem | nele figuras e grupos preocupados de construir, 0 espirito mo- | dernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histérico da | Inteligéncia nacional desse periodo, foi destruidor. Mas esta | destruigio, nfio apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsio profundissima da realidade brasilei- / fra. O que caracteriza esta realidade que 0 movimento moder: \nista impés, é, a meu ver, a fusio de trés principios fun e \tais: O direito permanente & pesquisa estética; a atualizagio \e \ la “inteligéncia artistica brasileira; @ a estabilizagio de ume onciéneia criadora nacional. } aed " Nada disto representa exatamente uma inovagio e de tudo encontramos exemplos na histéria artistica do pais. A novida- | de fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugacie | dessas trés normas num todo organico da conciéncia coletiva. _, H si, dantes, nés distiguimos a estabilizagio assombrosa de || uma conciéneia nacional num Gregério de Matos, ou, mais na- }| tural e-eficiente, num Castro Alves: 6 certo que'a nacionalidis- | de deste, como a nacionalistiquice do outro, e 0 nacionalismo de | ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 243 Carlos Gomes, e até mesmo de um Almeida Junior, eram epi- | | sddicos como realidade do espirito. KE em qualquer caso, sem- I pre um individualismo. ' {Quanto ao direito de pesquisa estética e atualizagio uni- versal da criagio artistica, é incontestével que todos os movi- mentos histéricds das nossas artes (menos 0 Romantismo que comentarei adiante) sempre se basearam no academismo. | Com alguma excepcio individual rara, e sem a menor repercussdo coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no certo. \Repetindo ¢ afeicoando estéticas ja consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade. !| E foi dentro desse academismo inelutavel que se realizaram nossos maiores, um Aleijadinho, um Costa Ataide, Claulio Manuel, Gongalves Dias, Gonzaga, José Mauricio, Ne- pomuceno, Aluisio. E até mesmo um Alvares de Azevedo, até mesmo um Alphonsus de Guimaraens. . {Ora 0 nosso individualismo entorpecente se esperdigava no} | mais desprezivel dos lemas modernistas, “Nao hé escolas!”, e| | isso teré por certo prejudicado muito a eficiéncia eriadora do_ movimento. | E si n&o prejudicou a sua ago espiritual sobre o| « pais, é porque o espirito paira sempre acima dos preceitos como | . das proprias idéias... }.J& 6 tempo de observar, nao o que um ’ Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade tém de diferente, mas o que tém de igual.{iE o que nos igualavaj, por cima dos nossos dispautérios individua-|- listas,,era justamente a organicidade de um espirito atualizado, | | que pesquisava ja irrestritamente radicado a sua entidade eo- | letiva nacional, | Nao apenas acomodado & terra, mas gosto: mente radicad lade.{_O que nio se deu sem algu- ma patriotice e muita falsificagio. ut ‘ L Nieto as orelhas burguesas se alardearam refartas por debaixo da aristocratica pele do leéo que nos vestira... | Por- que, com efeito, o que se observa, 0 que caracteriza essa radica- géo na terra, num grupo numeroso de gente modernista de uma assustadora adaptabilidade politica, palradores de definigdes nacionais, sociélogos otimistas, o que os caracteriza 6 um confor- mismo legitimo, disfargado e mal disfargado nos melhores,’ mas na verdade cheio de uma cinica satisfagio. A radicagéo na terra, gritada em doutrinas e manifestos, nio passava de um eonformismo acomodaticio. Menos que radicagio, ‘uma canto- ia ensurdecedora, bastante académica, que nao raro tornouse MARIO DE ANDRADE um porque-me-ufanismo larvar. iA verdadeira conciéncia da | terra levava fatalmente ao nfio-conformismo € ao protesto, | como Paulo Prado com o “Retrato do Brasil”, © os vasqueiros “anjos” do Partido Demoeratico e do Integralismo, |/E 1930 ‘er tambsin mn pretesto! Mas para nm nitmero vasto de modernistas, 0 Brasil se tornou uma dadiva do céu. Um eéu \bastante governamental... Graga Aranha, sempre desacomo- dado em nosso meio que éle nao podia sentir bem, tornou-se 0 exegeta desse nacionalismo conformista,’com aquela frase de- testavel de nfo sermos “a cimara mortudria de Portugal”. Quem pensava nisso! Pelo contrario: 0 que ficou dito foi que nao nos incomodava nada “coincidir” com Portugal, pois o im- portante era a desisténcia do confronto e das liberdades falsas. Entao nos xingaram de “primitivistas”. i O estandarte mais colorido dessa radicagéo 4 patria foi a pesquisa da “lingua brasileira”. Mas foi talvez boato falso,! Na yerdade, apesar das aparéncias e da bulha que fazem agora certas santidades de altima hora,inés estamos ainda atualmente t&o escravos da gramatica lusa como qualquer portugués,’ Nao hé daivida nenhuma que nés hoje sentimos e pensamos 0 quaitum satis brasileiramente. Digo isto até com certa malin conia, amigo Macunaima, meu irm&o. Mas isso nao é o bas- tante para identificar a nossa expressio verbal, muito embora a realidade brasileira, mesmo psicolégica, seja agora mais forte ¢ inselivel que nos tempos de José de Alencar ou de Machado de Assis. E como negar que estes também pensavam brasi- leiramente? Como negar que no estilo de Machado de Assis, Juso pelo ideal, intervem um quid familiar que os diferenca verticalmente de um Garret e um Ortigio? Mas si nos romin- ticos, em Alvarés de Azevedo, Varela, Alencar, Macedo, Castro Alves, ha unia identidade brasileira que nos parece bem maior que a de Bras Cubas ou Bilac, é porque nos romanticos che- gouse a um “esquecimento” da gramética portuguesa, que permitiu muito maior colaboragio entre o ser psicolégico e sua expressio verbal, j “=| espirito modernista reconhecen que si viviamos ji de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento \ | de trabalho para que nos expressissemos com identidade. \ hk Inventou-se do dia pra noite a fabulosissima “lingua brasilei- it ra”. Mas ainda era cedo; e a forga dos elementos contrarios, \¥ 1 3 rincipalmente a auséncia de érgios cientificos adequados, re- duziu tudo a manifestagées individuais. E hoje, como nor- 245 ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA tamos em situagao inferior neia pessoal de varios fez com malidade de lingua culta e eser i de cem anos s./ (A ignor is que se anunciassem em suas primeiras obras, como padroes— exeelentes de brasileirismo estilistico. Era ainda 0 mesmo caso dos romanticos: nio tava duma. superagio da lei portuga, mas duma ignordncia dela.) Mas assim que alguns desses prosadores se firmaram pelo valor pessoal admiravel que possuiam (me refiro i geracio de 30), principiaram as veleidades de escrever certinho. | é eémico observar que, ho- je, em alguns dos nossos mais fortes estilistas surgem a cada passo, dentro duma’ expressio j4 intensamente brasileira, lusitanismos sintéxicos ridfeulos, | Tao ridiculos que se tornam verdadeiros erros de gramatica! Noutros, esse reaportuguesa- mento expressional ainda é mais precdrio: querem ser lidos alem-mar, e surgiu o problema econémico de serem comprados’ em Portugal. Enquanto isso, a melhor intelectualidade lusa, numa liberdade espléndida, aceitava abertamente os mais exa- gerados de nés, compreensiva, sadia, mio na mao. Teve também os que, desaconselhados pela preguiga, re- solveram se despreocupar do problema... Sao os que empre- gam anglicismos e galicismos dos mais abusivos, mas repudiam qualquer “me parece” por artificial! Outros; mais cémicos ainda, dividiram o problema em dois: nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas permitem que seus personagens, falan- do, “errem” o portugués. Assim, a... culpa nao é do escritor, é dos personagens! Ora nao hé solugéo mais incongruente em sua aparéncia conciliatéria. Nao sé pée em foco o-problema do erro de portugués, como estabelece um divércio inapelavel entre a lingua falada e a lingua eserita — bobagem bébada pra quem souber um naco de filologia. E tem ainda as garcas braneas do individualismo que, embora reconhecendo a legiti- midade da lingua nacional, se recusam a colocar brasileiramen- te um pronome, pra nfio ficarem parecendo com Fulano! Estes ensimesmados esquecem que o problema é coletivo e que, si ado- tado por muitos, muitos ficavam se parecendo com o Brasil! A tudo isto se ajuntava quase decisério, o interésse eco- * némico de revistas, jornais e editores que intimidados com algu- ma carta rara de leitor gramatiquento ameagando nfo comprai se opéem a pesquisa linguistica e chegam ao desplante de a i gir artigos assinados. Mas, morto o metropolitano Pedr, TL quem nunca respeitou a inteligéncia neste pais! oe 246 MARIO DE ANDRADE Tudo isto, no ehtanto, era sempre estar na mesa. {A desisténcia grande foi criarem 9 mites Problema naturalmente”, nféo tem divida, o mais feiticeiro prics No fundo, embora niio conciente e deshonro: a, era uma den nestidade como qualquer outra. Ea maioria, sob o ee a de escrever naturalmente (incongruéncia, pois a lingua es oe embora légiea ¢ derivada, é sempre artificial) se chaturdo Es mais antilégica c antinatural das eseritas. Sto uma listing Nenhum deles deixaré de falar “naturalmente” um “Esta vendo” ou “Me deixe”. Mas pra escrever... com naturalida, de, até inventam os socorros angustiados das conjungées, pra se sairem com um “E se esta vendo” que salva a patria da retoriquice. E é uma delicia constatar que si afirmam escre. ver brasileiro, nfo tem uma s6 frase deles que qualquer lus nfo assinasse com integridade nacional... lusa. (Se identifi. cam Aquele deputado mandando fazer uma lei que chamaya de “lingua brasileira” & lingua nacional. Pronto: estava re- solvido o problema!! Mas como incontestavelmente sentem e pensam com nacionalidade, isto é, numa entidade amerindio- -afro-luso-latino-amer icano-anglo-franco-ete., 0 resultado é essa linguagem ersatz em que se desamparam — triste moxinifada moluscoide sem vigor nem cardcter. Nao me refiro a ninguém nfo, me refiro a centenas. Me refiro justamente aos honestos, aos que sabem escrever e pos- suem técnica. Sao eles que provam a inexisténcia duma “lin- gua brasileira”, e que.a colocacéo do mito no campo das pes- quisas modernistas foi quase tao prematura como no tempo de José de Alencar.’ E si os chamei de inconcientemente desho- nestos é porque a arte, como a ciéncia, como o proletariado nao trata apenas de adquirir 0 bom instrumento de trabalho, mas impée a sua constante reverificagio. O operdrio néo compra a foice apenas, tem de afia-la dia por dia. O médico ni fica no diploma, o renova dia por dia no estudo. Ser& que a arte \ nos exime déste diarismo profissional? | Nao basta criar 0 des- | pudor da “naturalidade”, da “sinceridade” e ressonar & som- bra do deus novo. Saber escrever esté muito bem; nio 6 me rito, é dever prim4rio. Mas 0 problema verdadeiro do artista, nao é ésse: 6 escrever milhor. Toda a historia do profission | lismo humano o prova. Fiear no aprendido nio 6 ser natural: & ser académico; niio é despreoeupagdo: 6 passadismo. . . i: i 08 _A pesquisa era ingente por demais. Cabia a0s filler brasileiros, j4 eriminosos de tio vexatérias reformas ort08! ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 247 cas patrioteiras, o trabalho honesto de fornecer aos artistas uma codificagio das tendéncias e constancias da expresso linguistica nacional. Mas éles reeuam diante do trabalho util, é tio mais facil ler os classicos!/ Preferem a ciencinha de ex- plicar um érro de copista, imaginando uma palavra inexistente no latim vulgar. Os mais avangados vio até aceitar timida- mente que iniciar a frase com pronome obliquo nao é “mais” érro no Brasil. Mas confessam nfo escrever... isso, pois nao seriam “sinceros” com o que beberam no leite materno. Be- beram des-horménios! {Bolas para os filélogos! {Caberia aqui também 9 repidio dos que pesquisaram so- bre a lingua escrita nacional... Preocupados pragmitica- mente em ostentar o problema, praticaram tais exagéros de tornar pra sempre*odiosa a lingua brasileira. ) Bu sei: talvez neste caso ninguém venga o escritor destas linhas. Em pri- meiro lugar, o escritor destas linhas, com alguma..faringite, vai passando bem, muito obrigado. Mas é certo que jamais exigiu lhe seguissem os brasileirismos violentos. Si os prati- ticou (um tempo) foi na inteng&o de por em angistia aguda uma pesquisa que julgava fundamental. Mas o problema pri- meiro nfo é acintosamente vocabular, é sintéxico. E afirmo que o Brasil hoje possue, n&éo apenas regionais, mas generali- zadas no pais, numerosas tendéncias e constancias sintéxicas que lhe da&o natureza caracteristica & linguagem. Mas isso decerto ficaré para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmio. Mas como radicagéo da nossa cultura artistica 4 entidade brasileira,{ as compensagées séo muito numerosas pra que a atual hesitagdo linguistica se torne falha grave. {Como expres- sio nacional, é quase incrivel 0 avango enorme dado pela mi- sica e mesmo pela pintura, bem como o processo do Homo brasileiro realizado pelos nossos romancistas e ensaistas atuais. Espiritualmente 0 progresso mais curioso e fecundo é o esquie- eimento do amadorismo nationalista e do segmentarismo re- gional. A atitude do espirito se transformou radicalmente e talvez nem os mogos de agora possam compreender essa mudan- ga. Tomados ao acaso, romances como os de Emil Farhat, Fran Martins ou Telmo Vergara, ha vinte anos atris seriam classificados como literatura regionalista, com todo 0 exotismo ¢ o insoltivel do “caracteristico”. Hoje quem sente mais isso? A atitude espiritual com que lemos ésses livros niio 6 mais a da eontemplagio curiosa, mas a de uma participagio sem teoria 248 MARIO DE ANDRADE nacionalista, uma participagio pura e simples, nao dirigida, expontanea. { GH que realizfimos essa conquista magnifica da descentra. | lizagio intelectual, hoje em contraste aberrante com outras ma. nifestagées sociais do pais. Hoje a Corte, o fulgor das duag cidades brasileiras de mais de um milhfo, nfo tem nenhum sentido intelectual que nfo seja meramente estatistico. Pelo menos quanto & literatura, tinica das artes que j4 alcangou estabilidade normal no pais. As outras so demasiado dispen- diosas pra se normalizarem numa terra de téo interrogativa \riqueza piblica como a nossa. O movimento modernista, pon- do em relévo e sistematizando uma “cultura” nacional, exigiu da Inteligéncia estar ao par do que se passava nas numerosas Cataguazes. E si as cidades de primeira grandeza fornecem facilitagdes publicitérias sempre especialmente estatisticas, 6 impossivel ao brasileiro nacionalmente culto, ignorar um Erico Verissimo, um Ciro dos Anjos, um Camargo Guarnieri, nacio- nalmente gloriosos do canto das suas provincias. Basta com- parar tais criadores com fenémenos ja histéricos mas idénticos, um Alphonsus de Guimaraens, um Amadeu Amaral e os re- gionalistas imediatamente anteriores a nés, para verificar’a eonvulsio fundamental do problema. Conhecer um Alcides Maia,-um Carvalho Ramos, um Teles Junior era, nos brasilei- ros de ha vinte anos, um fato individualista de maior ou me- nor “civilizagéo”. Conhecer um Gulhermino Cesar, um Viana Moog ou Olivio Montenegro, hoje é uma exigéncia de “cultu- ra”. Dantes, esta exigéncia estava relegada... aos histo- riadores, A pratica principal desta descentralizagio da Inteligéncia se fixou no movimento nacional das editoras provincianas. E si ainda vemos 0 caso de uma grande editora, como a Livraria José Olimpio, obedecer & atragio da mariposa pela chama, indo se apadrinhar com o prestigio da Cérte, por isto mesmo éle se, torna mais comprovatério. Porque o fato da Livraria José Olimpio ter cultamente publieado escritores de todo o pais, nao a caracteriza. Nisto ela apenas se iguala As outras editoras também cultas de provincia, uma Globo, uma Nacional, @ Martins, a Guaira. O que exatamente caracteriza a editéra da rua do Ouvidor — Umbigo do Brasil, como diria Paulo Prado — é ter se tornado, por assim dizer, o 6rgiio oficial das oscila- goes ideolégicas do pais, publicando tanto a dialética integra- lista como a politica do sr. Francisco Campos. ASPECTOS DA LITERATURA’ BRASILEIRA 249 (Quanto @ conquiste do direito permanente de pesquisa ' | estética, creio nfio ser possivel qualquer contradigio: 6 a vité- ria grande do movimento no campo da arte. E o mais carac- | teristico é que o antiacademismo das geragées posteriores & da Semana de Arte Moderna, se. fixou exatamente naquela lei | estético-téenica do “fazer milhor”| a que aludi, e nio como um | abusivo instinto de revolta, destruidor em principio, como foi | o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente, o \ primeiro movimento de independéncia da Inteligéncia brasi- leira, que a gente possa ter como legitimo e indiscutivel. Ja agora com todas as probabilidades de permanéncia. | Até o Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial de um Vila Lobos, o Brasil jamais pesquisou (como conciéncia coletiva, entenda-se), nos campos da criagio estética. ' Nio s6 importévamos técnicas e estéticas, como 86 as importavamos depois de certa estabilizacéo na Europa, e a maioria das vezes j& academizadas. Era ainda um completo fenémeno de colé- nia, imposto pela nossa escravizagio econémico-social. Pior que isso: ésse espfrito académico néo tendia para nenhuma li- bertagio e para uma expresséo prépria.| } E si um Bilae da.! “Via Lactea” é maior que todo o Lecomte, a... culpa n&o é de Bilac. Pois o que éle almejava era mesmo ser parnasiano, senhora Serena Forma. js abingced A. Govdaclo \Essa mormalizagio do expiitf de pesquisa estética, anti} académica, porém n&o mais revoltada e destruidora, a meu ver, \ -6a maior manifestagio de independéncia e de estabilidade na- \ cional que j4 conquistou a Inteligéncia brasileira.|) E como os \ movimentos do espirito precedem as manifestagées das outras formas da sociedade, 6 facil de perceber a mesma tendéncia de liberdade e conquista de expresséo prépria, tanto na imposigio do verso-livre antes de 30, como na “marcha para o Oeste” posterior a 30; tanto na “Bagaceira”, no “Hstrangeiro”, na “Negra Ful6” anteriores a 30, como no caso da Itabira e a nacionalizagéo das indistrias pesadas, posteriores a, 30. / En sei que ainda-existem espfritos-coloniais (é tao ffcil.a erudigéo!) s6 preocupados em denionstrar, que-sabem mundo.a fundo, que nas paredes de: Portinari‘s6 .enxergam os murais de Rivera, no atonalismo de Franciseo Mignone 86: -percebem : Schoemberg, ou no “Ciclo da Cana de Agicar”, 0 roman-fleuve dos franceses... At 250 MARIO DE ANDRADE O problema nao é complexo mas seria longo diseutido agyi Me limitarei a propor o dado principal. | Nég tivemos no Be > sil um movimento espiritual (nio falo apenas escola de ee 4 que foi absolutamente “necessério”, o Romantismo, Tn nao me refiro apenas ao romantismo literfrio, tao académieg como a importagiio inicial do modernismo artistico, ¢ que poderé comodamente datar ‘de Domingos José Gongalves a Magalhaes, como o nosso do expressionismo de Anita Malfatti, Me refiro ao “espirito” romantico, ao espirito Tevolucionarig ‘Tomantico, que esté na Inconfidéncia, no Basilio da Gama do “Uraguai” nas liras de Gonzaga como nas “Cartas Chilenas”* de quem os senhores quiserem. {Este espirito preparou o esta. do revolucionario de que resultou a independéncia Politica, ¢ teve como padrio bem briguento a primeira tentativa de lingua brasileira. O espirito revoluciondrio modernista, tio necess4. rio como o romantico, preparou o estado revoluciondrio de 30 em diante, e também teve como padrao barulhento a segunda ‘| tentativa de nacionalizacaio da linguagem. A similaridade 6 |_| muito forte. ) : ~ ESath ~~ {Esta necessidade espiritual, que ultrapassa a literatura estética, 6 que diferenga’ fundamentalmente Romantismoe Mo- dernismo, das -outras escolas de arte brasileiras. Estas foram todas essencialmente académicas} obediéncias culturalistas que denunciavam muito bem o colonialismo da Inteligneia nacional. Nada mais absurdamente imitativo (pois si nem era imitacio, era escravidéo!) que a cépia, no Brasil, de movimentos estéti- cos particulares, que de forma alguma eram universais, como 0 culteranismo {talo-ibérico setecentista, como o Parnasianismo, como o Simbolismo, como o Impressionismo, ou como o ‘Wagne- rismo de um Leopoldo Miguez.!lj Sao superfectagdes online listas, impostas de cima pra baixo, de proprietario a ee “dade, sem o menor fundamento nas forcas populares), ue, uma base deshumana, prepotente e,.meu Deus! arianisante a 4 si prova o imperialismo dos que com ela dominavam, na a | SuJelgio dos que com ela eram dominados. Ora aquela ; humana e popular das pesquisas/estéticas é facilimo ae ; no Romantismo, que chegou mesmo a retornar cae { as fontes do povo e, a bem dizer, eriou a ciéncia do folel 5 + sm0, no. mesmo sem lembrar folclére, no ‘verso-livre, 20 cubist : 2 mitieds atonalismo, no prédominio do ritmo, no superre ane popu: nO expressionismo, iremog ericontrar essas mesmas gra ue lares humanas. E. até primitivas, como a arte 0° ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 251 influiu na invengio e na tematica cubista. Assim como 0 cultissimo roman-fleuve e os ciclos com que um Otavio de Faria . Processa a decrepitude da burguesia, ainda sio instintos e for- mas funcionalmente populares, que encontramos nas mitolo- ~ Gias ciclicas, nas sagas e nos Kalevalas e Nibelungos de todos 08 povos. j.J4 um autor esereveu, como conelusio condenatéria,' que “‘a estética do Modernismo ficou indefinivel”... Pois essa| é a milhor razio-de-ser do Modernismo! y{Ele nfo era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espirito revoltado e revolucionériojque, si a nés nos atualizou, sistema- tizando como constincia da Inteligéncia nacionalo direito antiacadémico da pesquisa estética e preparou o estado revolu- ciondrio das outras manifestagdes sociais do pais, também fez isto mesmo no resto do mund6, profetizando estas guerras de que uma civilizagio nova nascerd,_{} LE hoje o artista brasileiro tem diante de'si uma verdade \ social, uma liberdade (infelizmente s6 estética), uma indepen- déncia, um direito as suas inquietagdes e pesquisas que nao tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana, éle nem pode imaginar que conquista enorme Tepresenta,ii Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo de um Lourengo Fernandes, contra a arquitetura do Ministério da Educagio, contra os versos “incompreensiveis” de um Mu- rilo Mgndes, contra o personalismo de um Guignard?.... Tu- . do isto sio hoje manifestagdes normais, discutiveis sempre, mas que no causam o menor escfndalo piblico. Pelo contra- rio, sféo os préprios elementos governamentais que aceitam a realidade de um Lins do Rego, de um Vila Lobos, de um Almir | de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo das predestina- | goes. Mas um Flavio de Carvalho, mesmo com as suas expe- / riéncias numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas | um Camargo Guarnieri mesmo em luta com a incompreensio | que o persegue, um Otévio de Faria com a aspereza dos casos que expéde, um Santa Rosa,! jamais nfo poderao suspeitar o a que nos sujeitamos, pra que éles pudessem viver hoje aberta- tamente o drama que os dignifica, | A vaia acésa, 0 insulto ptiblico, a carta andnima, a perseguigiio financeira... Mas recordar 6 quase exigir simpatia e.estou a mil léguas disto. {Ee me cabe finalmente falar sobre o que chamei de “atuali- zagao da inteligéncia artistica brasileira”. Com efeito: nfio.se~* deve confundir isso com a liberdade.da pesquisa estéticar-Pois ta lida com formas, com a técnica e as representacdes am 252 MARIO DE ANDBADE Jeza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que isso, e tem uma funcionalidade imediata social, 6 uma profissiio e uma férea interessada da vida. /) A prova mais evidente desta distingéo é 0 famoso problema do assunto em arte, no qual tantos escritores e¢ filésofos se emaranham. Ora nao -hé daivida nenhum; que 0 assunto nfo tem a menor importancia para a inteligéitid ektética. Chega « ™mesmo a nao existir para ela. Mas a inteligéncia estética se manifesta por intermédio de uma express&o interessada da so- k 1 ,ciedade, que é a arte. Esta é que tem uma fungio humana, “imediatista e maior que a criagio hedonistica da beleza./ EB dentro dessa funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem im- | \ prescindivel. Ora, como atualizagio da inteligéncia artistica’’’ \é que o movimento modernista representou papel contraditério ~ le muitas vezes gravemente precario. / § fl Atuais, atualissimos, universais, originais mesmo por ‘vezes em nossas pesquisas e criagées, nés, os participantes do | periodo milhormente chamado “modernista”, fomos, com algu- mas excepgdes nada convincentes, vitimas do nosso prazer da vida e da festanga em que nos desvirilizamos. isi tudo muda- | Vamos em nés, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude \interessada diante da vida contemporanea. E isto era o prin- \ \¢ipal!:; Mas aqui meu pensamento se torna tao delicadamente ' confissional, que|terminarei ste discurso'falando mais direta- mente de mim, Que se reconhegam no que eu vou dizer os que o puderem. Nao tenho a minima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicacio feliz'a problemas do meu tem- po e minha terra.. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, amuita coisa! E no entanto me sobra agora a sentenga de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusio vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano,/chego no declinio da vida. & eonvicgfio de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. . Minhas intengdes me enganaram.. _Vitima do meu individualismo, proeuro em vio nas minhas obras, e também ‘nag, de-muitos companheiros, uma -paixdo mais ‘temporfnéa, uma dér, mais viril'da vida. Nao tem. Tem mais 6 uma antiquada-auséncia de realidade em muitos de nés,! Es- ton repisando 0 -que j4 disse a'um.mogo... Ei outra coise { ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 253 sino 0 respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fa- zendo, néo me levaria a esta confissio bastante cruel, de per- ceber em quase toda a minha obra a insuficiéncia do absten- cionismo. | Francos, dirigidos, muitos de nés demos as noe obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princf- \| pio. O engano é que nos pusemos combatendo lengois super- ficiais de fantasmas..' Deveriamos ter inundado a caduci- || dade utilitdria do nosso discurso, de maior angastia do tempo, |, de maior revolta contra a vida como esté. Em vez: fomos i quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutu- | car os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. / E si agora percorro a minha obra j4 numerosa e que representa | uma vida trabalhada, nfo me vejo uma s6 vez pegar a mas-| cara do tempo e esbofetea-la como ela merece. Quando muito/ | lke fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, nao me! | satisfaz. Né&o me imagino politico de agdo. Mas nés estamos \" vivendo uma idade politica do homem, e a isso eu tinha que | servir.) Mas em sintese, eu s6 me percebo, feito um Amador ! Bueno qualquer, falando “nfo quero” e me isentando da atua- lidade por detraés das portas contemplativas de um convento. Também n&o me desejaria escrevendo paginas explosivas, bri- gando a pau por ideologias e ganhando os louros faceis de um xilindr6é. Tudo isso nfo sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido de que deviamos ter nos transformado de especula- tivos em especuladores, H4 sempre jeito de escorregar mum { ngulo de visio, numa escolha de valores, no embacgado duma \ lagrima que avolumem ainda mais o insuportavel das condi- | “goes atuais do mundo. Nao. |Viramos abtencionistas absté- \ mios e transcendentes (1). } Mas por isso mesmo que fui sin- | cerissimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas as minhas cartas a vista, aleango agora esta conciéncia de que fomos bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade... j Tudo o que fizemos... Tudo o que eu fiz foi especial. | i mente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em que vivemos. & aliés o que, com decepgiio agucarada, nos explica histdricamente. Nés éramos og filhos finais de uma | Civilizagio que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do | \ Prazer individual represa as fércas dos homens sempre que | uma idade morre. E j4 mostrei que 0 movimento modernista | e. | (2) “Uns verdadeiros inconcientes”, como jé falei uma ver... 254 . MABIO DE ANDRADE foi destruidor. |Muitos porém ultrapassimos essa fase destrui- dora, néo nos deixiimos ficar no seu espirito e igualamogs nosso passo, embora um bocado turtuveante, a0 das geracgdes mais novas. | Mas apesar das sinceras intengdes boas que dirigiram a minha obra e a deformaram muito, na verdade, sera que niio terei passeado apenas, me iludindo de existir?... 1 certo que eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgragas dos homens. % certo que pretendi regar minha obra de orva- Thos mais generosos, suja-la nas impurezas da dér, sair do limbo “ne trista ne lieta” da minha felicidade pessoal. Mas pelo préprio exercicio da felicidade, mas pela prépria altivez sensualissima do individualismo, nfo me era mais possivel re- nega-los como um érro, embora eu chegue wm pouco tarde a convicgio da sua mesquinhez. A ‘mica observagio que pode trazer alguma complacéncia para o que eu fui, é que eu estava enganado... Julgava since- ramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei, ninguém nao imagina quanto, a minha obra — o que nao quer dizer que si nao fizesse isso, ela fosse milhor... Abandonei, traigaio conciente, a ficcéo, em favor de um homem-de-estudo que fun- damentalmente nfo sou. Mas 6 que eu decidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitario, um valor pratico de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficgaio, prazer estético, a beleza divina. Mas eis que chego a éste paradoxo irrespirdvel: \Tendo deformado toda a minha obra por um anti-individualismo diri- gido e voluntarioso, toda a minha obra nao é mais que um hiperindividualismo implac4vel!’ E é melancélico chegar as- sim no crepisculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu no posso estar satisfeito de mim. O meu passado néo é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado. Mudar? Acrescentar? Mas como esquecer que estou na rampa dos cincoenta anos e que os meus gestos agora j4 sio todos... memérias musculares?... Ex omnibus bonis quae homini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva morte. ce O terrivel 6 que talvez ainda nos seja mais acertada a discre- g&o, a virarmos por ai cacoeteiros de atualidade, macaqueando as atuais aparéncias do mundo. Aparéncias que levarao o ho- mem por certo a maior perfeigéo de sua vida. Me recuso & imaginar na inutilidade das tragédias contemporéneas. ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 255 Homo Imbecilis acabaré entregando os pontos a grandeza do seu destino. : {Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna nao devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos ser- vir de lig&o. { O homem atravessa uma fase integralmente po- liticea da humanidade. Nunca jamais éle foi tao “momenta- neo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois (1). (E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa nao ajudémos verdadeiramente, duma coisa n&o participamos: o amilhoramento politico-social do homem. E esta é a esséncia mesma da nossa idade, || Si de alguma coisa pode valer o meu desgésto, a insatisfa-) ¢&o que eu me causo, que os outros nfo sentem assim na beira do caminho, espiando a multidio passar. Facgam ou se recusem a fazer arte, ciéncias, oficios. | Mas nao fiquem apenas nisto, espides da vida, camuflados em téenicos de vida, espiando a multidio passar. Marchem com as multidées. | Aos espides nunca foi necesséria essa “liberdade” pela. qual tanto se grita. Nos perfodos de maior escravizagaéo do individuo, Grécia, Egito, artes e ciéncias néo deixaram de florescer. Sera que a liberdade 6 uma bobagem?... Seré que o direito 6 uma bobagem!... A vida humana é que 6 alguma coisa a mais que ciéncias, artes e profissdes. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens. A liberdade nao é um prémio, 6 uma sancfio. Que ha-de vir. (1) Sei que é impossivel ao homem, nem éle deve abandonar os valo- res eternos, amor, amizade, Devs, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar désses valores apenas e se refugiar neles em livros de ficgio e mesmo de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma polftica da sociedade é um valor eterno também.

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