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‘Tito: Button, Apologia de Serates, Cito Autor: Platio Bigtor Imprensa Nacional-Casa da Moeda Concepeao grfica: Branca Villon (Departamento Faitoral da INCM) Ting ata de ingress: 2007 ISBN: 978:972-27-1613.0 Depisito legal: 265 113/07 PLATAO EUTIFRON APOLOGIA DE SOCRATES CRITON Tradusdo, introducéo, notas e postécio de José Tranoave Sanros IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, LISBOA, 2007 BUTIFRON ou sobre a piedade, género peirastico 1. BUTIFRON Que hé de novo, Sécrates, para teres abandonado as con- 2 versas no Liceu e vires conversar agora aqui, no Pértico do Rei 22 Nao tens tu, como eu, um processo junto do Arconte Rei? SOCRATES, Os Atenienses, Eutifron, chamam-lhe processo, mas trata- -se de uma queixa. BUTIFRON Que dizes? Que alguém, ao que parece, apresentou uma queixa contra Hi? Pois nao suspeito que possas ser tu a acusar alguém. SOCRATES: Decerto que nio. * Um dos trés grandes ginisis fora ce ports, local habitualmente frequentado poe Sdcrates. ? Eaificio onde sediava o Arconte Rel, encatregado de instru os processos de eardcter religioso. 39 UTIFRON (Quem foi ele? SOCRATES. Nem eu proprio conhego mato bem 0 homem, Fut fron, parece-me ser um jovem desconhecido. Chamamlhe, creio, Meleto e € do demo Pito. Tens em mente algum Me- leto, de Pito, com cabelo comprido, no muita barba e nariz adunco? SUTIFRON Nao recordo, Sécrates. Mas que espécie de queixa apre- «© sentou contra ti? SOCRATES: Que queixa? Nao 6 vulgar, pelo que me parece, pois, sen- do jovem, terse decidido por tao grande tarefa, ndo é coisa insignificante, Diz ele que sabe de que modo os jovens so corrompiddos e quem sio os que os cofrompem. E receio que seja um homem sabedor pois, vendo a minha ignorincia cor- romper-Ihe os companheiros, vem acusar-me perante a cidade, ‘como perante uma mie. E parece-me ser o tinico dos politicos 4 a conduzir-se com correccao, porque & correcto tratar primeio dos jovens, com a finalidade de os tomar @ melhor posstvel, tal como um bom lavrador se ocupa primeira das plantas mais jovens e depois das outras. Por isso, talvez Meleto nos esteja. a 5 limpar, a nds, que corrompemos os jovens rebentos, como diz, Depois disto, 6 evidente que, ocupando-se dos mais velhos, se hhi-de tomar a causa de muitos e dos maiores bens para a ci- dade; como é natural que acontega em semelhante ocorréncia, ‘a quem comega pelo principio. 2, BUTERON Desejaria, Sécrates, mas temo que seja 0 contrétio, Pois, simplesmente, me parece que desde o inicio comega por fazer mal a cidade, a0 tomar nas mos acusaz-te. Mas conta-me como, por agires como ages, ele diz. que corrompes os jovens. 0 SOCRATES: Parece estranho, pelo que ouvi. Diz que sou um fazedor & de deuses. E, como invento novos deuses e nio acredito nos antigos, acusou-me por causa disso. EUTIFRON Compreendo, Sécrates, & porque estas sempre a dizer que te aparece um génio. Entio, por inovares nas coisas divinas, apresentou contra ti essa queixa ¢ vai a tribunal caluniar-te, sabendo como as caltinias nesta matéria sio bem reccbidas pela multidao. Pois até de mim, quando falo das coisas divinas na assembleia e predigo 0 futuro, se riem, como se estivesse lou ¢ co. No entanto, nenhuma das coisas que predisse e que acabo de dizer deixa de ser verdade. Tém inveja de n6s por falarmos estes assuntos, mas o que & preciso é no nos inquietarmos ‘com eles e irmos ao seu encantro, 3. SOCRATES Mas riremse talvez nto tenha importancia, Butifron amit yo. Os Atenienses, pelo que me parece, nao Se preocupam Iuito com alguém gue pensem ser hail, contanto que nfo esteja para ensinar a sua sabedoria, Mas, se pensamm que faz 08 outros como ele, irrtamse,seja por invejn, como ta dizes, soja & por qualquer outra razio. RUTIFRON Nao tenho grande desejo de experimentar que contra mim tenham nesta matéria, SOCRATES: Talvez julguem que te fazes caro, ao recusares-te a ensi- nar a tua sabedoria, Mas, pelo meu lado, temo que thes pareca que, por filantropia, eu seja capaz de falar copiosamente 2 qualquer homem, nao s6 sem qualquer salério, mas até pagan- do eu de boa vontade se alguém quiser ouvir-me. Se, pois, Ihes der para se rirem de mim, como eu ha pouco dizia e como tu izes que se riem de ti, ndo seria desagradvel passar o tempo “a no tribunal, rindo e gracejando. Mas, se levarem a coisa a sé- rio, € imprevisivel o gue venha a acontecer,sexcepto para vés, 08 adivinhos. : EUTIRON Mas nao hé-de ser nada, Séerates. Combate tu a tua ca sa, como pensas melhor, que eu combaterei a minha, 4. sOcRATES Mas, afinal, que queixa &a tua, Butifron? Bs réu ou autor? BUTIFRON Sou autor. SOCRATES Contra quem? BUTIFRON 4 Contra alguém que hé-de, uma vez, mais, parecer uma loucura acusar. SOCRATES (© qué? Acusas alguém que voe? BUTIFRON De muito precisa para voar, visto que € um homem bas- tante velho. SOCRATES: (Quem €? BUTIFRON Bo mes pr 2 SOCRATES © teu pai, meu caro? EUTIERON Sem duivida. SOCRATES: ‘Mas qual é a matéria da acusagio e de que espécie de queixa se trata? EUTIFRON De homicfdio, Sécrates. SOCRATES: Por Héracles! Decerto, Butifron, a maioria dos homens gnora onde possa estar 0 bem. Pois nao creio que aconteca a qualquer pessoa intentar uma coisa dessas, mas a alguém » ‘muito avangado no caminho da sabedoria! BUTIERON Bem avangado, Socrates, por Zeus! SOCRATES. Aquele que foi morto pelo teu pal é algum dos parentes? Mas, com certezal Pois no acusarias 0 teu pai de homicidio por causa de um estranho. EUTIERON E risivel, Sécrates, pensares que ha alguma diferenga em 6 morto ser um estranho ou um familiar e no apenas que hé ‘uma coisa por que & preciso zelar: ou 0 que mata, mata com justica ou sem ela. E, se for com justiga, devemos deixi-lo ir fem paz. Mas, se nao, temos de o acusar, mesmo que viva na ‘mesma casa ¢ coma & mesma mesa que nés, Pois a mancha é ¢ igual se a ele te associares e fores seu ctimplice sem te purifi- cares a tie a ele, acusando-o em justiga Ora, 0 facto é que este que morreu era um trabalhador assalariado que trabalhava para mim, quando eu era agricul- tor em Naxos. Embriagou-se e entrou em e6lera com um dos nossos escravos, estrangulando-o. Ent3o, 0 meu pai mandou-o| atar de pés e maos e atirow-o para uma vala, enviando depois, lum homem aqui a Atenas a informar-se junto do intéxprete da lei? sobre o que era preciso fazer. Durante esse tempo, no se inguietou mais com o preso e, como era um assassino, ndo $e Preocupou com ele, nao fazendo caso de que viesse a morrer, como, de facto, aconteceu. Morreu devido 3 fome ¢ ao fro e as amarras, antes que chegasse de Atenas o enviado ao exegeta E, por causa disto, 0 meu pai e os outros parentes intitam-se ‘comigo. Dizem eles que acuso o meu pai de erime em favor de lum homicida. Ainda por cima, nem 0 meu pai o matou, nem, mesmo que o tivesse feito, era preciso preocupar-me com isso, pois © morto era um homicida. E dizem-me que ¢ impio um filho acusar o pai de crime, mal sabendo o que para os deuses vale, relativamente ao que & piedoso e ao que ¢ impio, SOCRATES Por Zeus, Bution! Julgas conhecer assim tio exactamen- te as coisas divinas, de qualquer espécie que sejam, relativa- mente a0 que ¢ piedoso e ao que ¢ impfo? Proctdendo desta :maneira, nio temes, ao entregares 0 teu pai & justiga, que, a0 contrétio, te suceda estaes a cometer um acto impio? BUTIFRON De nenhum préstimo eu seria, Séerates, nem Futifton di- feriria da maioria dos homens, se néo conhecesse fais coisas ‘exactamente. 5. SOCRATES Entio, admiravel Rutifron, 6 melhor que me torne teu dis cipulo e que antes do julgamento provoque Meleto sobre este 5 Os exegetas eram trésintéspretes da Ii, sobretudo em matérias, religiosss assunto, Drei que no passado me esforcei maito por conhecer as coisas divinas, mas, visto que ele agora afirma que eu erro «ajo ierefletcamente, inovanclo nessa matéra, resolv tornar- me teu diseipulo. E dirlhesia: «Se concordas, Meleto, que futifron ¢ sabedor nestes assuntos, admite que me conduzo com rectdio € no me acuses, Mas, se nao concordas, acusa fentio esse meu mestre e no a mim de corromper os velhos mim e a0 pai dele —, a mim, ensinando-me ¢ a ele adver- tindo-o e punindo-o.» E, se nao se deixar persuadir, nem me livrar da acusagao, acusando-te a tiem vez de a mim, diel no tribunal aquilo mesmo com que © provoque BUTIFRON Sim, por Zeus, Sécrates! Se acaso tentasse acusar-me, acho que encontraria 0 seu ponto fraco e tenho para mim que have- ria no tribunal maior discussdo acerca dele do que de mim. SOCRATES. E eu, companheiro querido, desejo tornar-me teu diseipu- lo, por saber isso e por ter compreendido que nenhum outro, rnem esse Meleto, parecem conhecer-te. Pelo contrétio, a mim, com tal agudeza e facilidade me notaram, que me acusaram de impiedade. Ora, por Zeus, visto que ha pouco afirmaste sabé-lo com clareza, diz-me o que entendes por piedade e por impiedade, tanto no que respeita ao assassinio quanto a outras coisas? Ou nao 6 o haver em todos os actos uma mesma pi dade — ela propria, em si e por si, de todo contréria & impie- dade e igual a si propria e tendo um aspecto tinico— que fara com que uma coisa seja impia, pela impiedade? + EUTIFRON Sem drivida, Sécrates. E por esta comple eljusula que a nogio de Forma (ets) ¢ in- troduzida no dislogo. A exigéncia pretende expressar « unicidade © a identidade de cada Forma a sua oposigio & Forma que he & conteéia, 6 6. SOCRATES Fala, pois, e diz-me entio que espéciede coisa é a pieda- de e a impiedade? 4 EUTIFRON Digo que a piedade & 0 que eu agora faco: 6 perseguir os que cometem injustigas — por homicidio, roubo de coisas sa- geadas, ou qualquer outta falta dessas—, quer sejam pai, mie ou outro qualquer; e nao os perseguir & que é a impiedade. Além disso, Sécrates, contempla quio grande é a prova que te vou dar —e que ja a outros dei — de que assim € a lei e de que sera correcto proceder assim, nada permitindo ao impio, seja ele quem for. Pois os proprios homens a quem acontece reconhecerem Zeus como © melhor e © mais justo dos deuses concordam que ele aprisionou pai por devorar criminosamen- tw 08 filhos, concordando, por outro lado, que este mutilou © seu pai por semelhantes raztes. Comigo, irritam-se por acusar (© meu pai de cometer injusticas e assim eles proprios dizem por si coisas contrarias, ao falarem dos deuses e de mim. SOCRATES: Nio sors essa Button, a razio pela qual eu sou acusado: porque, sempre que alguém diz tais coisas sobre os deuses, eu 28 aceito com difculdade? Parece-me que € por causa disso que alguém dra que eu erro. Contudo, se a tite parecem bem es- tas coisas, que tao bem conheces, € necessiro, creo, gue con- cordemos agora. Pois que direi eu, que confesso nada saber sobre elas? Mas, diz-me, pelo deus da amizade, crés tu que realmente isto se possow assim? BUTIFRON Isto e outras coisas ainda mais espantosas que estas, S6- crates, que os homens nao conhecem. SOCRATES E acteditas, entdo, que houve, na realidade, uma guerra dos deuses uns com os outros? E édios terriveis ¢ lutas e mui- 4 tas outras coisas quejandas, que si contadas pelos poetas e pelos bons artistas, em ceriménias sagradas, como € 0 caso ¢ daquele véu cheio de pinturas que nas grandes Panatencias > é conduzido a Acr6pole? Havemos de dizer que estas coisas so verdade, Eutifron? £UTIRON Nao apenas estas, Séerates, mas as de que hi pouco fala- va. E, se quiseres, muitas outras eu te contarei, que, a0 ouvi- Alas, vais ficar pasmado. 7. SOCRATES Nao me espantaria. Mas has-de contar-mas com vagar, mais tarde. Agora, tenta explicar-me © mais claramente poss{- vel 0 que ha pouco te pedi. Pois antes, meu caro, no me ensi- 4 naste o bastante, quando eu te perguntei o que poderia ser a piedade. Disseste-me entio que a piedlade calhava ser o que tu agora fazes: perseguir o teu pai por homicidio. EUTIFRON E disse-te a verdade, Socrates. SOCRATES Talvez. Mas dizes que muitas outras coisas so piedosas, Eutifron. EUTIFRON Pais sto. SOCRATES Lembra-te, pois, que te nfo recomendei que me ensinas- ses uma ou duas das muitas coisas piedosas, mas te perguntei 5 As Panateneias eram fstas anuais em honra de Atena. De quatro fem quatro anos, clebeavam-se as grandes Panateneias, das quai fazia parte uma procisdo até 2 Acopole ” or aquele aspecto proprio sob o qual todas as coisas piedosas sao piedosas, Pois disseste-me, talvez, que todas as coisas pie © dosas eram piedosas © as impias eram. tmpias, sob um tinico aspecto; ou nao te lembras? © EUTIFRON Lembro-me. SOCRATES Ensina-me, entio, que aspecto é esse. Para que, olhando para ele e usando-o como paradigma, eu possa declarar se qualquer acgio conforme a este modelo, praticada por ti ou por qualquer outro, é ou nio piedosa 7, EUTIFRON Mas, se assim desejas, Sécrates, assim te explicare SOCRATES Mas decerto que desejo. BUTTON E, entio, a piedade o que é agradével aos deuses; o que 7 nio € agradavel 6 a impiedade. SOCRATES Perfetamente, Butifron; como eu procurava que respon- dlesses, assim tu respondeste agora, Se tespondeste realmente, ainda nao sei, mas é evidente que me explicarés que € verdade © que dizes. © sta segunda exigencia sublinha a causalidade formal que liga «ada Forma, una e idéntica, s suas instincis, multiples e mutéveis, 7 A passagem documenta a utlizacso diagncstica etildgica das Formas na investigagio das suas instincies, ry BUTIFRON Decerto, 8, SOCRATES: ‘Vamos, entio. Investiguemos © que dizes. O que & agra- vel aos deuses eo homem que agrada aos deuses é piedaso, ‘© que € desagradavel aos deuses e o homem que desagrada aos deuses 6 impio, Nao s4o uma e a mesma coisa, pois a piedade 6 0 que ha de mais contrario A impiedade; nao é assim? * BUTIFRON ‘Assim mesmo. SOCRATES: E parece-te que foi bem dito? EUTIFRON Pois parece. sOcRATES Entfo, porque se irtam os denses, Bufo: porque esto cm dissensso uns com o8 ottos e entre si se odeiam uns a08 ‘outros? Fo isto que diseste? BUTIFRON Fri SOCRATES: Porém, sobre que coisas é esse desacordo que produz os dios e os ressentimentas? Investiguemos, Se estivermas em * Cad Forms & absolutsmente oposta 8 sa conten, Tal came risticadistingwe as Formas das sas instineias, em que &temporaslamen> te possivel a coexistinca das conteirios. O argumento é decsivo para a refutagio das segunda e tercera definigtes. desacordo, tu ¢ eu, sobre qual é o maior nimero, 0 desacordo sobre isso faria de nds inimigos ¢ encolerizar-nos-famos um com o outro? Ou pensas que, recorrendd)ao calculo, haviamos de nos reconciliar? UTIFRON Certamente que sim. SOCRATES Portanto, se também estivéssemos em desacordo sobre 0 maior e © menor, e recorréssemos A medicfo, rapidamente ces- sarfamos o diferendo? BUTIFRON F isco. SOCRATES E do mesmo modo, recorrendo as balangas, decidiriamos, sobre o que é mais pesado e o que é mais leve. EUTIFRON ‘Como nao? SOCRATES. Mas ha algun assunto por causa do qual possamos ficar inimigos e entrar em célera um com 0 outro, se discordarmos € nao pudermos chegar a uma decisio? Examina 0 que te es- tou a dizer, pois talver nao esteja ao teu alcance uma resposta ronta. Ve se assim sucede com © que ¢ justo e o que é injusto, © que & belo e 0 que € fein, o que 6 bom e o que & mau, Nao ‘io estes os assuntos por causa dos quais nos tornamos inimi- _g08 uns dos outros, se estivermos em desacordo e nao pucler- mos atingir uma decisio satisfatéria? Se € gue nos tornamos inimigos, eu e tue todos o8 outros homens? 50 ‘BUTIFRON F, de facto, esse 0 desacordo, Séerates, ¢ acerca dessas coisas ‘SOCRATES © qué? Os deuses, Putifron, se discordam entre si, no seré por eassa disso mesmo? ‘EUTIFRON Necessariamente. SOCRATES Portanto, mew nobre Futifron, alguns dos deuses julgam ¢ justas e injustas coisas diferentes, segundo o teu dizer, e nao 56 bes, como feiase boas e mas. Pois suponho que no entra~ riam em dissensto uns com os outros se nio estivessem em desacordio acerca disso. E assim? EUTIFRON Dizes bem, SOCRATES Sendo assim, as coisas que cada um detes acha elas, boas fe justas, ama-as, e as coisas contririas a essas, odeia-as? EUTIFRON Cortamente, SOCRATES, Mas, como tu dizes, as mesmas coisas sto consideradas justas por uns e injustas por outros. Discordando acerea delas, § entram em dissensio e guerreiam uns com os outros, Nao é assim? BUTIERON E assim, St SOCRATES: Essas coisas ento, ao que parece, sfo odiadas e amadas pelos deuses ¢ as mesmas coisas seriam odliadas pelos deuses © ‘queridas pelos deuses? RUTERON Parece. SOCRATES E as coisas piedosas e as impias seriam as mesmas, Euti- fron, segundo o teu dizer? BUTIFRON Hi perigo disso. 9. SOCRATES Enflo, nfo me respondste ao que perguntel, admicéve Pois ao te persue! ist © que calha ser, n0 mesmo tempo, 8 piedoso e fnpie, 0 que, pelo que parce, € quorido pelos dew. ses e € odiado pelos deuses, De mado que, Euiron,o que ta agora fazes, 20 punires ote pai, nao de espantar se, fazen- do isto para ser, por um lado, querido por Zeus, por outro, te fazes inimigo de Cronos e de Urano; ow ainda, ao fazeres-te querido por Hefesto, efazes odiado por Hera. E, se algum dos outros deuses discorda de outro acerca de t, a dscordéncia periste sobre as meses coisas, eUTIFRON Contudo, Sécrates, acerca disto penso eu que nenhum dos, deuses discorda de outro: isto é, que nao deva ser castigado aquele que injustamente mate alguém, SOCRATES © qué? Certamente, Butifron, ouvistealgum homem sus- « tentar que aquele que mata ou faz alguma coisa dssas injusta- mente nio deva ser castigado? 2 FUTIFRON Nao cessam de discutir iss, ndo $6 nos tribunals como em todo 0 lado. Cometem injustgas em mutssimas coisas e tudo fazem e dizem para fugi 3 justca ‘SOCRATES Deverto. Mas concordam, Butifron, que cometem injusti- sas, embora, concordando, digam que se Ihes no deve dar castigo? ‘BUTIFRON Isso, de modo nenhum. SOCRATES: Entio nao fazem e dizem tudo, Pois penso que nao tem. coragem de dizer nem de contestar que, se, na verdade, come- tem injusticas, nao devem ser castigadlos, mas creio que dizem, ‘no as ter cometido. Ou nao? BUTIFRON Dizes a verdade. SOCRATES, Portanto, estas mesmas coisas acontecem aos deuses, Se € {que querelam sobre as coisas justas e injustas, como tu disses- te, € uns dizem que os outros cometem injusticas para com eles € 08 outros dizem que nio? Pois, sem cuivida, 6 admiravel, renhum, nem dos deuses nem dos homens, tem coragem de dizer que aquele que comete injusticas nao deva ser castigado. SUTIFRON Sim, Socrates, é mais ou menos isso. SOCRATES: Mas, penso eu, Butifron, que os cantestantes —ndo 86 ho- mens como deuses, se € que os deuses discutem — discutem, 4 53 cada uma das acgdes que foram praticadas, Os que esto em desacordo acerca de alguma acgio dizem,uns, que foi justa- mente cometida, ¢ outros, injustamente. Nao é assim? EUTIFRON Certamente. 30. SOCRATES Vamos agora, Butifron amigo, ensina-me, para que me tome mais sibio, ue prova tens de que todos os deuses pen- sam que foi morto injustamente aquele trabathador que co meter homicidio e, apés ter sido amarrado pelo senhor do morto, morzeu devido as cadeias. E isto antes que quem 0 Amarrou chegasse a informar-se junto dos intérpretes da let ddo que havia de fazer com ele. Portanto,€ justo que, por tal motivo, o filho acuse 0 pai e o persiga por assassinio. Vamos, tenia, acima de tudo, mostrar-me com clareza como podem todos os deuses achar correcta esta mesma acgio. E, se mo mostrares satisfatoriamente, nunca mais cessarei de elogiar a tua sabedoria RUTIFRON Nao serd pequena a tarefa, Socrates, embora eu seja capaz, de to demonstrar com clareza. SOCRATES Compreenclo que te parega que eu aprendo com mais di- ficuldade que 0s juizes, pots aqueles mostrars a evidéncia que estes actos so injustos e todos as deuses os detestam. BUTIFRON Com toda a clareza, contanto que me oucam falar. TH. SOCRATES ‘Mas hide ouvir se thes parecer que falas bem. Ocorreu- -me isto enguanto discorias. Ora ola ¢& para mim ase Fut 5 fron me ensinasse como 6 que todos os deuses pensam que tal morte ¢ injusta, qual era a coisa mais importante que eu apren- dia com ele: 0 que ¢ a piedade e a impiedade?» Poderia dizerse que este acto é dotestado pelos deuses, ras desta maneira a piedade e a impiedade nao pareceram hi pouco bem definidas, pois o que é detestado pelos deuses pa- rece querido por eles. Por isso, s6 te deixo iz embora, Eutifron, se me quiseres mostrar como é que todos os deuses pensam que a mesma coisa éinjusta e todos a odeiam. Bis, entdo, o que ora rectificamas na conversa: que aquilo que todos os deuses odiassem seria tmpio e o que amassem seria piedoso. F aquilo ue alguns amassem e outros oxliassem seria nem uma coisa rem outra; ou, entao, ambas? Queres que essa fique como a definigao ca piedade e da impiedade que damos? ‘EUTIFRON Qual é 0 obstaculo? SOCRATES: Para mim, nenhum, Mas vé tu, por ti, se, a0 supores que 6 assim, me ensinas © mais facilmente que possas © que é a piedade ¢ a impiedade. SUTIFRON Diria que a piedade é que todos os deuses amam, e 0 contrario —o que todos os deuses detestam — é a impiedade, SOCRATES. (Ora vejamos se iso esté bem dito, Eutifon, ¢ se 0 deina- ‘mos passa, dito por nds ou por outros. Se alguém afiemar que assim, concordamos que é, ou achas que devemos investgar 6 que diz quem afirma tal coisa? EUTIFRON ‘Temos de investigar. Mas ereio que isto que agora disse- _mos foi bem dito. 55 0 12. SOCRATES Dentro em breve, amigo, compreendéremos melhor; ora pensa nisto. Endo, a piedade & amada pelos deuses, porque & piedade, ou ¢ piedade, porque é amada pelos deuses? BUTIFRON [Nao compreendo o que dizes, Socrates, SOCRATES Repara; vou tentar explicar-te mais claramente, Dizemos que uma coisa 6 transportada e transporta, que é conduzida e conduz, que € vista ¢ vé. Entendes que todas estas coisas dife- rem umas das outras e em que & que sao diferentes? UTIFRON Parece-me que entendo. SOCRATES Portanto, do mesmo modo, uma coisa 6 © que é amado, outra o que ama? EUTIFRON Como nao? SOCRATES: Diz-me, entao: o que transportado & transportado por que alguém 0 transporta, ou por qualquer outra £4740? EUTIFRON Nao, Por essa, SOCRATES Eo que é condurido, decerto, porque alguém o conduz, € © que é visto porque alguém 0 ve? 56 BUTIFRON Certamente SOCRATES Portanto, nto é por uma coisa ser vista que, por isto, se v8, mas, a0 coniratio, € porque se vé que é uma coisa vista [Nem & por uma coisa ser conduzida que, por isso mesmo, al- gum a conduiz, mas € porque alguém a condiz que & ama coisa conduzida. Nem ¢ por tama coisa ser transportada que alguém a transporta, mas é porque alguém a transporta que ¢ tuma coisa transportada, Entio, & mais que evidente, Euifon, 1 que te quero dizer. O que eu quero dizer ¢ isto: se alguma ¢ coisa age ou € afectada, nio ¢ por ser agente que ela age, mas porque age que ela agente; nem é por ser uma coisa afec- tada que ela € afectada, mas & porque é afectada que ela uma coisa afectada, Concordas com isto? BUTIFRON Concordo. SOCRATES. Entio, 0 que & amado, ou age sobre algo, ou € afectado por algo? UTIPRON Decerto. SOCRATES: Portanto & como anteriormente: nao & por ser uma coisa amada que uma coisa é amada pelos que a amam, mas € por- que a amam que ela é uma coisa que ¢ amada. » Bata complexa passagem insiste no poder causativo das Formas, presente apenas nas Formas activas. Séerates demonstra que a investigar ‘glo da passividade nao conduz a uma Forma activa, nao podendo, por tanto, exprimir © fogos que descreve a sua realidade (112%) a EUTERON Necessariamente, : SOCRATES: Que dizemos, entio, acerca da piedade, Butifron? E algu- rma coisa diferente do que é amado por todos os deuses, como tu disseste? EUTIFRON E isso mesmo. SOCRATES ‘Mas, pot isso, por ser piedade ou por outra raz3o? EUTIERON Nao, por essa SOCRATES Portanto, ¢ amada porque € piedade, mas ndo é piedade porque a amam? EUTIFRON ‘Acho que sim, SOCRATES Mas, evidentemente, uma coisa que é amada pelos deuses 6 amada pelos deuses, porque os deuses a amam? EUTIFRON Como nso? SOCRATES Entfo, o que ¢ amado pelos deuses ¢ piedoso, Butifon, © rio éa piedacle que é amada pelos deuses, como tu dizes, mas tuma coisa ¢ diferente da oxta 38 BUTIFRON Como, entao, Socrates? . SOCRATES. Nés concordémos que a piedade 6 amada pelo facto de ser piedade ¢ ndo € por ser amada que é piedade, nao? EUTIFRON Sim. 13, SOCRATES Porém, concordamos que 0 que € amado pelos deuses & amado pelos deuses porque ¢ amado pelos deuses, pelo pr6- prio facto de ser amado; mas no 6 por ser amada pelos deu- ses que é piedade? ‘EUTIERON Dizes a verdade. SOCRATES Mas, se fossem uma e a mesma coisa —a piedade e o ser amado pelos deuses—, amigo Eutifron, se a piedade fosse amada por ser piedade, também 0 que é amado pelos deuses seria amado por ser amado pelos deuses, e, se o que é amado 11 pelos deuses fosse amado pelos deuses por ser amado pelos euses, também a piedade seria piedade por ser amada. Vé agora que ¢ 20 contririo, que cada um dos dois € completa- mente diferente do outro, Pois um é amaco porque é capaz de ser amado, enquanto 0 outro é capaz de ser amado porque & amado. E corres perigo, Eutifron, ao perguntar 0 que é a pie- dade —o que, porventura, ela é—, de nao me quereres mos- trar a'sua realidade, mas, pelo contrério, de-me falares de al- sguma sua afeccao, algo que, por acaso, a afecte: a saber, 0 Ser amada por todos os deuses. Aquilo que & ainda nao disseste Se, pois, te agradar, nao me escondas, mas diz-me, de novo, b desde 0 principio, 0 que acaso é a piedade, quer seja amada 59 ppelos deuses, quer isso seja algo que Ihe aconteca, pois mio 0 discutizemos. Diz-me de boa vontade o que é a piedade © a impiedade? EUTIFRON Mas, Sécrates, eu ainda nao sei como dizerte 0 que pen- so. Pols o que propusemos como que sempre anda 2 nossa volta e ndo quer ficar parado num lugar em que possamos assenté-lo, SOCRATES © gue dizes, Futiron, parece ser dito pelo mew antepas- sado, Dédalo 8 Se eu dissesse esustentasse esas mesmas coi- sas, farastalver poco de mim, pois, pelo parentesco com ele, as minhas obras em palavras poem-se em faga e nfo querem ficar no lugar em que alguém as ponha. Mas essa graca nao se aplica aqui, porque as hipoteses so fas e no querem ficar aquietas, como a ti mesmo parece EUTIFRON Pois a mim, parece-me que algo da tua graga se aplica a0 ‘que dissemos, ou pouco mais ou menos, Sécrates, pois este andar das palavras em torno de si préprias e © nao permane- ccerem ndo sou eu que 0 provoco, mas tu € que me pareces 0 Dédalo, ja que aquelas, por mim, ficavam quietas. SOCRATES: Corro entio o perigo, meu amigo, de me ter tornado mais temivel que Dédalo pela sua arte, pois, enquanto que ele fazia 2 Duss interpretaies sto possiveis: segundo uma, Sofronise, pai Ae Sorates, teria sido escultor e Socrates, set filo, pocera tambsnh ter praticado esse ofco; segundo a outra, Soorates considera que a sua fam lia remonta Dédlalo (ef. 1 Alcibiades, 12a). A graga de Sdcrates & justficada pela sa hablidade em fazer mover os fag. Do mesmo modo, 6 escultor Dédalo, 2 quem eram atibuidas as primeitasestétuss gu in fingiam a lei da frontalidade, parecia pir em movimento as suas obras. oo com que apenas as suas obras ndo ficassem quietas, eu, a0 que parece, também fago andar as dos outros além das minhas. E isso consistiria a maior subtileza da minha arte, porque re- cuso ser sébio. Preferiria que as minhas palavras ficassem se fixassem imdveis, a adquicir, além da sabedoria de Dédalo, as © riquezas de Tantalo. Mas, basta destas conversas! Como me ppareces indolente, eu proprio me esforcarei em conjunto con- tigo por mostrar como me has-de ensinar acerca da piedade. E no percas de antemao a coragem. Vé, pois, se te nao parece recessirio que toda a piedade seja justa, RUTIFRON Parece. SOCRATES. Mas, enti, toda a justica 6 piedade? Ou a piedade 6 toda a justiga e a justiga nao ¢ toda a piedade, mas alguma dela é 12 piedade e outra nao? BUTIFRON Nio te sigo no que dizes, Sderates. SOCRATES: No entanto, é tanto mais novo que eu quanto és mais sibio: mas o que eu digo & que te tornaste indolente pela ri- ‘queza de sabedoria. Contudo, homem feliz, esforga-te vivamen- te. Pois nem ¢ dificil compreender © que digo. Digo 0 contré- io do que disse o poeta Zeus, criador, ele que fez tudo 0 que cresce, ido queiras nomear, para que, onde hd 0 temor, [higja também 0 respeto. ’ ra, nisto eu divirjo do poeta. Queres que te diga em que? 1 Botisina, de Chipre, poeta épico do século vat 2), presumsvel, autor de um ciclo intitulado Cipria, 6 BUTIFRON Decerto, : SOCRATES [Nao me parece que seja: onde hé o temor, haja também o respeito. Pois parece-me que muitos, temendo nao s6 doencas como a pobreza e muitas outras coisas que tais, parece que temem, de facto, mas nao respeitam em nada aquilo que te- mem, Ou néo te parece? RUTIFRON Certamente. SOCRATES Mas, onde hé respeito, esteja também o temor. Pois hi alguém que, respeitando qualquer coisa, ou tendo vergonha dela, nao tenha detestado e ao mesmo tempo temido a reputa- fo de baixeza? BUTIFRON Decerto que temeu. SOCRATES Portanto, no € correcto dizer: conde hi temor, haja tam- bém o respeito», mas, onde ha respeito, haja também o temo, e nio, certamente, onde ha temar, haja também, por toda a parte, o respeito, Pois, além do mais, julgo que o temor pro- vém do respeito. J4 que o temor & uma parte do respeito, tal como o fmpar provém do ntimero, de modo que, onde nao hi niimero, af também nao hé impar, mas onde hé impar, af hé 0 iniimero. Segues-me agora? ‘EUTIERON Perfeitamente. SOCRATES: Era isso que eu te perguntava ao dizer: entao, onde hi justica, hd também a piedade, ou onde hé piedade, ha também ‘a justiga? Uma vez que em qualquer sitio onde hé a justiga, nao 14 também, por toda a parte, a piedade: pois a piedade é uma d pparte da justiga, Queres que digamos assim ou parece-te que & de outra maneira? BUTIFRON Nao, assim, Parece-me que falas com correcgio. 14, SOCRATES: Ve agora isto. Se a pieclade & uma parte da justica, ¢ pre ciso que nés, pelo que parece, descubramos que parte da jus- tiga sera a piedade. Se tu me perguntares alguma das coisas de 14 pouco, isto é que parte do numero ¢ o par e que nimero ‘corte ser este, diria que este 6 0 que ndo é fmpar, 0 que pode ser dividido em duas partes iguais, ou ndo te parece? EUTIFRON A mim, parece-me. SOCRATES: ‘Tenta agora tu ensinar-me que parte da justica € a pie ¢ dade, para que possa responder a Meleto sem errar nem ser acusado de impiedade, pois diret que fui instruico por t, no 186 quanto as coisas da piedade ¢ da devogio, mas também relativamente as que 0 no s’o. EUTIFRON Portanto, parece-me isto a mim, Sécrates, que a piedade ¢ a dlevogio so a parte da justica que respeita 20s cuidados com fos deuses. A restante parte da justiga € acerca dos cuidados ‘com os homens, 63 15. SOCRATES E parece:me que falas bem, Butifon. Mas eu ainda estou 18 carente de um pequeno nadat ainda nap compreendo a ue chaimascuidado. Pois suponho que, dos cudados que hi, no dlizes quais sto os relativos a outta cosas e qual 0 relative 4208 deuses, Talver afizmemos, por exemplo, que de cavalos rem toda a gente sabe tata, mas 6 o tatador, ox no? EUTIFRON Certamente, SOCRATES Entdo, talvez haja uma arte hipica, que inclua 0 cuidado dos cavalos? EUTIFRON ‘im, SOCRATES Ennem toda a gente sabe cuidar de cies, que no 0 cagador? EUTIERON Assim €, SOCRATES E a arte cinegéticainclui © cuidado dos caes? FUTIFRON 8 Sim. socRaTES E 0 euidado dos bois € a arte do boieieo PUTIFRON Muito bem. 6a SOCRATES Ea piedade e a devosio sto 0 cuidado dos deuses, Buti- fron, dizes assim? ‘BUTIFRON Digo. SOCRATES Entdo, todo 0 cuidado realiza uma e a mesma coisa? A saber, isto: ser de algum benefico e utilidade para aquele que é tratado? Certamente, vés que os caval, cuidados pela arte do tratador, colhem beneficios e tomnam-se melhores, Nao te parece? EUTIFRON Sim, SOCRATES: E 08 cies colhem beneficios dos cagadores; e os bois dos boiviros ¢ todos os outros do mesmo modo. F exés que & para ‘mal do que ¢ culdado que € 0 cuidado? ‘EUTIFRON Por Zeus, nao! SOCRATES: Mas para seu beneficio? EUTIERON Como nao? SOCRATES: Entdo, sendo a piedade o cuidado dos deuses, € util aos deuses ¢ fé-los melhores? Pois tu concordarias com isto? Que sempre que realizas alguma coisa piedosa fazes os deuses um pouco melhores? 6s UTIFRON Por Zeus, nio eu. SOCRATES ate Nem eu, Butifton, penso que ti 0 dizes, Jonge disso ppor causa de tal eu me interrogava sobre que espécie de cuida do para com os dewsesfalavas tu, no pensando que estvesses a falar em tal cuidado, UTIFRON F 6 correctamente, Sderates, que ndo falo de tal cuidado. SOCRATES Seja. Mas que espécie de cuidado para com os deuses sera a piedade? EUTIFRON Aquela, Sécrates, com que os escravos cuidam dos seus, senhores SOCRATES ‘Compreendo. Um certo servigo prestado aos deuses, pa- rece que seria isso? BUTIFRON Certamente, 16. SOCRATES O servico feito pelos médicos, com vista a realizagio de qualquer obra, 6 de facto, um servigo? Tu ndo pensas que sera com vista & saside? BUTIERON Sim 66 SOCRATES: servigo prestado pelos construtores de navios, com vis- ¢ ta A realizagio de certa obra, 6 um servico? BUTIFRON E evidente, Socrates, com vista & construgio de um barco. SOCRATES: E 0 servigo prestado pelos arquitectos 6 com vista & cons- trugio de uma casa? EUTIFRON Sim, SOCRATES Dizeme, meu caro, ¢ 0 servigo prestado aos deuses, com vista 8 realizagio de qualquer obra, seré também um servico? E evidente que sabes qual é pois dizes saber mais que os ho- mens acerca das mais belas coisas divinas. EUTIFRON E 0 que digo € verdade, Sécrates, SOCRATES Diz-me, por Zeus, qual poders ser essa obra perfeitamente bela que os deuses ralizariam, usando-nos como servidores? ‘BUTIFRON Muitas belas obras, Serato SOCRATES. Também os generais, meu amigo. Mas podias dizer-me 1 ‘mais facilmente que a sua finalidade principal era a de alcan- ‘garem a vitéria na guerra, ou nao? EUTIFRON Sem diivida. SOCRATES E também os agricultores realizam muitas ¢ belas obras, Contudo, a sua tarefa principal é a da producdo; isto 6, tira- rem 0 alimento da terra? PUTIERON Coztamente, SOCRATES. Como é, entdo? Das muitas e belas coisas que os deuses realizam, qual é a principal do seu trabalho? BUTIERON 6 antes te falei um pouco disso, Sécrates, de que a tarefa maior & como se pode com rigor aprender todas estas coisas, Digo-te simplesmente: que alguém que saiba fazer e dizer as coisas que sio agradaveis aos deuses, rezando e sacrificando, realiza actos piedosos, que salvam as familias e as cidades; a5 coisas contrdrias as que agradam sio impias: subvertem e destroem tudo, 17, SOCRATES Certamente. Mas, se quisesses, poderias, de modo muito ais breve, Eutifron, responder a0 ponto principal das coisas que te pergunte. E evidente que estis muito desejoso de me ensinar. Contudo, agora que estavas pert, foges, Se me tives- se5 respondido a isto, decerto eu teria aprendido satisfatoria- mente 0 que hi a dizer sobre a piedade, Porém, agora € forco- s0 que aquele que ama siga aquele a quem ama, onde quer que le 0 conduza. Em conclusto, o que dizes ser 0 acto piedoso & a piedade? Nao & necessério que seja uum certo confiecimento de sactificios e de preces? 68 BUTIFRON 6 SOCRATES Portanto, oferecer um sacrificio € dar um presente aos deuses e rezar 6 fazer stiplicas aos deuses? EUTIFRON E muito mais SOCRATES: Por esse raciocinio, a piedade seria entao o conhecimento a das preces e das ofertas aos deuses. BUTIERON Muito bem. Compreendeste 0 que eu disse. SOCRATES. E porque estou desejoso da tua sabecoria, amigo, e volto © mew espirito para ela, de modo que nao venha a cair por terra qualquer coisa do que dsseste. Mas diz-me que especie de servigo prestado aos deuses & esse? Dies que ¢ rezare fa- zerthes ofertas? BUTIERON Eu digo, 18, SOCRATES 0 rezar correctamente nao seria pedir aquelas mesmas coisas de que precisamos dla parte deles? EUTIFRON Que outea coisa? 6 5 SOCRATES E, pelo contrisio, fazer correctamente pfertas — aquelas de due eles precisam de nbs —, isso & fazer cidiva em troca aque- les? Pois nao seria de um conhecedor fazer ofertas, dando a alguém coisas de que para nada precisa, BUTIFRON Dizes a verdade, Socrates. SOCRATES: Acaso seria a piedade uma arte do comércio dos homens dos deuses entre si, Eutifron? BUTIERON De comércio, se assim te agrada mais chamar-lhe. SOCRATES: Mas nada € para mim mais agradavel do que uma coisa ser verdadle. Explica-me que beneficio conseguem os deuses, resultante das ddivas que de ns recebem? As coisas que eles dao sio a todos evidentes, pois no hé nada de bom para nés naquilo que aqueles ndo nos derem. Porém, daguilo que rece- bem de nds, que beneficios tiram? Ou somos tio superiores a les, no que diz respeito ao comércio divino, que pelo comér- cio recebemos todos os bens e eles de nés nada recebern? RUTIFRON Crés, Socrates, que os deuses beneficiam das coisas que recebem de n6s? SOCRATES: Mas de que espécie serio essas dadivas nossas para os deuses? EUTIFRON, Que outra coisa que no a honra, o privilégio e a gratidao a que hi pouco me referia? 7 SOCRATES Entio, a pidade &, portant, qualquer coisa de agradivel, futifron, mas ndo € dtl nem amada pelos deuses? ‘EUTIFRON reio bem que é amada mais que tudo. SOCRATES Paroce que &entio isso, a piedade, o que agrada as deuses. UTIFRON Sobretudo. 19. SOCRATES Espantar-tesds por eu dizer isto ¢, se te parecer que as tuas palavras nto permanecem, mas andam, acusar-me-is a mim, ‘como a um Dédalo que as fez deslocar, sendo tu proprio mais artista que Dédalo no fazé-las andar em efrculos? Ou nao sen- tes que as nossas palavras, andando a nossa volta, chegaram de novo a mesma? Lembracte, pois, que ha pouco a piedade e ‘© que é amado pelos deuses nao nos pareciam uma e a mes- ma coisa, mas coisas diferentes uma da outra. Entdo, ndo te Iembras? BUTIFRON Eu lembro-me. SOCRATES Entio, agora, no percebes que dizes que o que é agrad- vel a0s deuses 6 piedoso? F isto nio ¢ diferente daquilo que se torna amado pelos deuses? BUTIERON Decert. n SOCRATES Portanto, ou hé pouco nfo estivemos fem do mesmo pa- recer ou, ¢ entéo estivames no bom cattinho, no pusemos agora bem a questio. EUTIFRON Parece. 20, SOCRATES Devemos entio investigar de novo desde o principio o que a piedade? Visto que eu, antes de aprender, nto desistirei de 41 bom grado. Nao me desprezes, mas de toda a maneira tornan- do o few pensamento 0 mais acessvel que possas, dime ago- aa verdade. Tu conhece-a bem, se & que algum outro homem 4 conhece e, como a Proted, nio a deves deixar livre antes de ter falado Peis, se no soubesses com elareza o que era a Piedad e a impiedade, nao vejo como explicar que empreea- das acusar de homicidio o teu pai, homem mais velho, por causa de um servo. Mas também nao é possvel que nao temas correr perigo de no agies correctamente para com os deuses fou que nao tenhas vergonha dos homens. Mas agora sei bem que pensas saber claramente 0 que é a piedade © 0 que nio é « Diz, portant, excelente Eutifron, e no me escondas isso mes- mo que pense BUTIRON Noutra altura, Sderates, agora tenho pressa de ir para ‘outro lado e é tempo de me ir embora, SOCRATES: Que fazes, companheito? Vais-te embora, derrubando-me da minha grande esperanca? Como aprenderei contigo 0 que "Servidor de Posidon, capaz de assumir variadas formas, mas que, quando agarrado, até voltar & verdadeiraresponde as perguntas que Ihe fizerem (Homero, Odiseit, WV, 385 e segs.) 72 80 € 0 que nio sto as cosas piedosas? Como me ie livrar da queixa de Meleto? Como mostraei Aquele que, junto de fu- tion, me tornetsibio nas coisas divinas © que, nem por igno- rane, improviso, nem inovo, acerca das divindades, mas que viverei uma outra vida melhor?

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