Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 10
ORGANIZADORES: LUIZ ROBERTO SALINAS FORTES MILTON MEIRA DO NASCIMENTO Pee aU Lis nyt LUIZ ROBERTO SALINAS FORTES MILTON MEIRA DO NASCIMENTO ORGANIZADORES DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL A 21000004980 A CONSTITUINTE EM DEBATE COLOQUIO REALIZADO DE 12 A 16/05/86, POR INICIATIVA DO DEPTO. DE FILOSOFIA DA USP "TOMBO : 118920 Th Sociedade de Estudos e Atividades Filos6ficos SEAF — ( J CTLs 4 2>Consetho Editorial Francisco Benjamin de Souza Netto, Franklin Leopoldo e Silva, Gerd A Bornheim, Henrique Nielsen Neto, Hilton Japiassu, José de Anchieta Cor- rea, Leda Miranda Huhne, Milton Meira Nascimento e Olinto A. Pegoraro, Presidente do Conselho: Ol to A, Pegoraro, Diretor Executive: Henrique Nielsen Neto, Copa: Paulo Lima Reviséo: Neusa Maria Fernandes dos Santos @ Maria Apparecida Neves Blandy Enderecos. ‘Seat — Nacional Largo Sao Francisco, 1 - sala 425-8 CEP 20.050 - Rio de Janeiro - Ry -Telef. (021) 252-7020 Seat — Sao Pavio Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Giéncias Humanas — USP. Cidade Universitérla, CEP 05508, Caixa Postal 8105, So Paulo - SP., Telef, 210.2122 - R. 641 Dados de Catalogagdo na Publicagao (CIP) Internacional (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) A Constituinte em debate : coléqulo realizado de 12 a 16/05/86, C778 por iniciativa do Depto. de Filosofia da USP, sob a coorde: nacio dos Prof. Luiz Roberto Salinas Fortes @ Milton Meira do Nascimento, — Sao Paulo : SOFIA Editora SEAF, 1987. 1. Assembiéia Constituinte — Brasil 2. Brasil — Direito constitucional 3. Direito constitucional 4. ‘Poder constituinte 5. Politica — Filosofia |. Universidade de $80 Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas. Departamento de Filo: sofia. Il. Fortes, Luiz Roberto Salinas, 1937 — Ill. Nascimento Milton Meira do, c0p.342.4(81) 342, 342.4 87-1240 320.01 Indices para catélogo sistematico: Brasil ; Assemblélas constituintes : Direlto constitucional 242.4(81) Constituintes : Direito constitucional 342.4 Direito constitucional 242 Filosofia politica 320.01 Politica : Filosofia 320.01 Obra publicada com a colaborugao das INDUSTRIAS NARDINI S/A No grande debate que hoje se realiza entre nés, sobre os caminhos para a construgdo de uma ordem democrdtica, 0 Coléquio sobre a Constituinte realizado pelo Departamento de Filosofia da U.S.P. parece ter trazido uma contribuicdo das mais significativas. Torna-se_necessério que esta discussdo ampla, avisada e plural alcance foruns maio- res, seja da sociedade civil; seja da represen- tacdo politica. Assim, associamo-nos, com prazer, a esse empreendimento, colaborando efetivamente na publicagdo deste livro. Bruno Nardini Feola SUMARIO APRESENTACAO 1.4 PARTE — COMUNICAGOES 1. A Constituicao contra a Constituinte — Renato Janine Ribeiro . . Democracia, liberdade e igualdade — Luiz Roberto Sali- nas Fortes Democracia, socialismo e anticapitalismo — Emir Sader Universidade e Constituinte — José Arthur Giannotti A Cultura na Constituigao — Jorge da Cunha Lima O processo politico da Constituinte de 1987 — Jodo Almino de Souza 7. Os trabalhos da “Comisséo Afonso Arinos” — Bolivar Lamounier 2* PARTE — MESAS-REDONDAS 1. AS FORGAS ARMADAS NA CONSTITUIGAO “Consideragdes em torno do contencioso” — Fausto Castilho “As Forgas Armadas na vida politica nacional” — Almi- rante Mario Cesar Flores “A corporagao das Forcas Armadas” — Oliveiros S. Ferreira " ar a 51 55 7 EX} 103 115 125 “As Forgas Armadas na ‘Nova Repiblica’” — Jodo Quartim de Moraes 133 "As Forgas Armadas e a democratizagao da sociedade brasileira” — Hélio Jaguaribe 143 MOVIMENTOS SOCIAIS ‘O ceticismo sobre a Constituinte — Marilena de Souza Chaui : 157 “Uma politica ambiental para a futura Constituicao bra- sileira” — Aziz Ab’Saber ....... 167 “Estado e Sociedade na Constituinte” — Sérgio Cardoso 189 PODER CONSTITUINTE E DEMOCRACIA “Poder constituinte e democracia no Brasil hoje” — Eder Sader 197 “Poder constituinte e democracia” — Maria Lucia Montes 205 “Constituinte e crise do poder” — Francisco Weffort .. 233 “Uma Constituinte ‘lenta, gradual e segura’ — Tércio Sampaio Ferraz oa veeeeees . 2a Debate ...... 283 DIREITO A INFORMAGAO “O segredo na politica e os direitos & informagao e & privatividade" — Jodo Almino de Souza 265 “Direito a informacao e liberdade de imprensa" — Rolf Nelson Kuntz 289 ‘A QUESTAO SINDICAL "A liberdade de organizago sindical” — Orlando Mi- randa : 301 ‘Comissao de fébrica ¢ sindicato" — Eder Sader 303 ‘O papel das comissées de fébrica"” — Lucio Anténio Belentani 307 A CONSTITUIGAO DO PODER POLITICO "A constituigao como idéia e designio histérico em Kant" — Ricardo Ribeiro Terra 337 “Legislagdo, constituicdo e legislador em Platao” — Mario Miranda Filho 349 "A democracia como realizagéo do desejo de governar — Espinosa" — Marilena de Souza Chaui ceo 387 “Do legislador 4 Constituinte” — Milton Meira do Nas- cimento : 369 “Rosa Luxemburgo e a Constituinte de 1917 — Luiz Roberto Salinas Fortes 375 Debate cones sees 378 APRESENTAGAO Realizado na semana de 12 a 16 de maio de 1986, no Depar- tamento de Filosofia da USP, 0 coléquio A Constituinte em De- bate, cujos textos das comunicagées e mesas-redondas apresen- tamos agora sob a forma de livro, teve um caréter pioneiro nao apenas no Ambito da Universidade de So Paulo. Reunindo basi: camente estudiosos em Ciéncia Politica e Filosofia, os debates revestiram-se de grande originalidade. Além de enfrentarem a questa das matérias constitucionais sob difirentes angulos, desde o papel constitucional das Forgas Armadas até o proble- ma sindical, permitiram uma elaboracao particularmente refina- da dos conceitos de Constituicéo e Constituinte. Se os textos 86 agora $80 publicados, 0 tempo transcorrido néo Ihes retira a atualidade e 0 peso critico. Realizado num clima de completa democracia e reunindo defensores dos pontos de vista mais va- rlados, os debates constituiram-se numa rica experléncia inte- lectual e politica. De todas as comunicagées apresentadas ou das interven- bes ocorridas, apenas trés ndo se acham aqui transcritas: as dos professores Jodo Paulo Monteiro (““Constituicao e Contrato Social”, proferida no dia 13 de mato), Paulo Arantes (debatedor 7 PODER CONSTITUINTE E DEMOCRACIA NO BRASIL HOJE Prof. Eder Seder Prof. do Dapto. de Cléncias Sociais do FFLCH da USP Fiz uma op¢do de angulo de abordagem, que pode néo ser dos mais agradaveis. Mas ao verificar quais as outras pessoas que iriam falar e imaginar 0 que poderiam expor, quis tentar trazer algo diferente. Pois, pelo menos, com relagéo a ciéncia politica ou direito constitucional, eu nao teria muito mais adicionar. ‘A questdo que eu me coloco — ja para entrar no tema 6 a seguinte: diante do processo constituinte ai dado, o que nos 6 dado propor? Pelo que nés podemos lutar? O que é colocado na ordem das possibilidades? E, portanto, 0 que significa “po- der constituinte e democracia” hoje no Brasil? E eu entro jé refletindo um pouco sobre algo que escutei do Giannotti na palestra de ontem & tarde, que eu acho que merece discusséo. Ele se referia a uma enorme ilusao idealista, que estaria pre dindo todo o clima da Constituinte, através de (ndo vou repro- duzir todas as palavras dele, nem me lembraria) um viés inte- lectualista. As pessoas imaginam que, como nés estamos num processo constituinte, ha um lugar em que cada um elabora o melhor dos mundos possiveis e depois nés ficamos discutindo qual a melhor forma de organizar as empresas, a universidade 197 ou 0 que quer que seja, qual o melhor mecanismo da demo- cracia e dai por diante. Mas, enquanto estamos fazendo isso, na verdade existe um processo constituinte real, baseado numa relagdo de forcas real, que se desenvolve e vai tendo efeitos praticos na sociedade. A partir dessa sua visdo, ele desferiu uma critica cerrada a proposta do Fabio Comparato, comparado @ Solon, que se retira da Pélis para elaborar uma “otima consti- tuigéo”, esquecendo-se das condigées concretas nas quais esta- vam vivendo os cidadaos (e possivelmente também os escra- vos) na Cidade. Acho que a reflexdo do Giannotti é importante porque efe: tivamente eu estou de acordo que existe um forte viés idea lista na discusséo geral sobre a Constituinte. Viés esse, no entanto, que eu imagino que é dado pelo préprio tema. Penso que a questéo “Constituinte” nos remete, queiramos ou nao, a uma situagdo ideal na qual refunda-se o poder da organizacao social, que é remetido a sociedade, onde ele ¢ discutido € refeito. Quando eu digo que é algo inevitavel, é€ porque mesmo se o tema nao é discutido nisso que ele sugere, ou seja, que a sociedade esta refundando o poder, essa idéia, de qualquer modo, vai perpassar por toda a sociedade e vai ser o elemento de legitimagao do poder refundado. De um modo ou de outro, ‘© tema da Constituinte nos esté falando disso. Entéo, nds nao podemos simplesmente ignorar a questéo. Temos que discutir as condigdes da realidade desse tema e dessa proposta. Te- mos que discutir seu significado, do qual néo podemos nos furtar. [40 podemos nos furtar’ nao significa entrar simples- mente na disputa de idéias sem saber qual a sua materia- lidade. Mas, se digo entdo que a questdéo 6 um pouco mais complexa, é porque penso que existem também, como contra: ponto do idealismo constitucionalista, algumas outras atitudes, até mais fortes, na sociedade brasileira. De um lado, um ceti- cismo popular, que olha a lei a partir também da experiéncia que tem da lei imaginada como burla, manipulacao, mistifica- Go etc, e imagina que nada disso na verdade vai valer @, por- tanto, nao the dé muita importéncia. No entanto, esse ceticismo popular 6 absolutamente compativel, na verdade 6 apenas a outra face do profundo conformismo: “isto 6 assim, vai per- manecer assim, na verdade estéo fazendo leis para nos enga- 198 narem uma vez mais", Esse tipo de ceticismo, eu acredito que faz parte do préprio pensamento que nao intervém para alterar © que € dado. E um aspecto mais requintado do ceticismo é 0 pragmatico. Trata-se do realismo politico das elites, de certo modo, expresso em afirmagdes do tipo: "Bem, vocés nao estéo imaginando que nés vamos fazer uma revolugéo através da Constituigo". E entdo a feitura da lei se reduz a uma acomo- dagao de interesses dominantes A Constituigao se enfrenta com realidades dadas, interes- ses estabelecidos, relagdes de forgas. A postura pragmatica implica a busca de propostas compativeis com a correlagao de forgas dada, Mas essas escolhas aparentemente sensatas ino- centes, realistas e pragmaticas vém junto também com uma retdrica que fala da Constituinte como esse grande poder no qual a sociedade se encontra, vem todo 0 discurso politico que funda a legitimagaéo da nova ordem no fato de que esta expres- sando as aspiragdes nacionais etc. Por que isso? Eu nao acho que € por algum mecanismo particular de perversidade de al- guns individuos. € que a Constituinte e a Constituigao nos pro- podem uma relagao na qual o povo esta delegando a determi- nados representantes a expressao de sua vontade para fundar um outro mecanismo de organizagao social Isto tudo estou falando pelo seguinte: vejo a importancia da referéncia ideal (quero depois qualificar esse ideal) para uma determinada proposta constitucional, porque, como a Cons- tituigdo e a Constituinte nos remetem a essa situacdo, acredito que uma das tarefas, uma das quais que esté em jogo 6 escla- recer em que condigdes uma Constituinte tem efetivamente po: der constituinte e € expresso da soberania popular. Acho fun- damental a discussao dessas condigées, nao para ficar no mun- do das idéias, mas justamente discutir em que condigdes isso poderia se dar e em que condicdes esta se dando no Pais. En- t80, 0 objetivo nao é, a partir disso, elaborar uma Constitui¢éo ideal, mas verificar 0 que esté em jogo @ até que ponto esse processo constituinte corresponde a um efetivo poder consti tuinte livre, soberano, democrético etc. Isto significa dar algu- ma importéncia para o debate da questéo da Constituinte e, portanto, também, enfrentar mecanismos de pura mistificagao ideolégica que acho que devem ser enfrentados. E ai, para con- 199 cluir sobre a importante reflexdo do Giannotti na abertura da fala dele de ontem, achei boa a questdo que ele levantou, mas ficou-me um problema: depois de constatar que a Constituinte que vamos enfrentar e a Constituicéo que sera elaborada é algo que nao tem nada a ver com “soberania popular” © com “re- fundagao da sociedade”, o que eu gostaria de saber é se entao vamos simplesmente entrar no jogo e fazer uma propostazinha menor e participar disso sem questionar sua legitimidade. Sem discutir quando nos falam de Constituinte: “Bem, mas de que constituicdo vocés estdo falando, de que constituinte se trata?” E se, a partir dessa visdo, vamos ter uma postura critica diante desse processo. Acho que isso, ainda que néo diga respeito ao que pode ser aprovado na Constituicao, é extremamente impor- tante por algo que vou retomar no final da minha fala. Quero antes referirme brevemente a esse poder consti- tuinte realmente existente. Porque, na verdade, j4 ha um poder constituinte em curso, poder este que ¢ a expresso das lutas politicas no Brasil, do modo como efetivamente esta se dando a transigao da ditadura militar para isto que chamamos de Nova Republica. Hé uma transigéo em curso, Ha um poder constituin te que esté efetuando transformagdes significativas. Acho que se fossemos nos expressar, em termos de um emblema da mudanga, poderiamos talvez dizer que o Estado Militar fundava sua legitimidade no fato de que ele assegurava a “ordem e o desenvolvimento’ “desenvolvimento e seguranca” (é claro que isso era expresso ideolégica de um processo concreto um Pouco mais complicado, isto é, uma certa prosperidade na ex panséo capitalista, de um lado. e do outro, uma ordem man- tida, de um modo ou de outro, para alguns setores, através do siléncio de outros). De qualquer modo, a obtencao dessa situa- G40 de ordem e desenvolvimento permitiu a legitimacdo e a estabilidade desse regime durante um certo tempo e teve seus mecanismos politicos para responder a isso. Esse sistema se esvaziou pela aco de varios movimentos sociais, através de varios mecanismos, desde os mecanismos de expressdo mais ireta desses movimentos até os de representacdo indireta, como o MDB, que foi expressao institucional disso. Bem, o resultado concreto dessa transi¢ao Implicou que, no meu enten: der, a massa da populagdo, dos movimentos sociais que desle- gitimaram e combateram esse regime, se manteve numa situa 200 go de combater, reivindicar seus direitos, protester, rechagar a ordem dada, sem chegar a se constituir como forga politica, com uma proposta alternativa para a sociedade. Isso implicou que processo de transico fosse levado por um poder poli- tico que foi expressao da dissidéncia do regime militar, aliada com os setores expressos na oposigéo parlamentar. © MDB apareceu como representacdo do descontamento popular sob a forma do voto de protesto, Ndo ha uma identificagdo entre essa populagao e os que foram representantes do seu voto, mas que dispuseram entao de um poder para efetuar a transigao, eles dispuseram de um certo poder constituinte que ja esta em mar- cha, poder este entéo que, de algum modo, também recolhe aspiragdes populares difusas e as transforma no que seria 0 pressuposto de uma vontade geral de democracia e justiga so- ial, Esses intermediarios politicos déo sua expressao particular a vontade geral da democracia e da justica social reelaborando aspiragées difusas, exatamente porque aqueles que tém essas aspiragdes nao o fizeram por voz propria. Isto aliés acontece por voz prépria. Existe sempre algum processo de elaboracao que junta aspiragoes diversas. De qualquer modo, o processo concreto, como se da agora, como chama a refundagao de uma democracia, ndo péde deixar de recolocar na ordem do dia a questo da Constituinte, mas, para aqueles que dirigem o pro- cesso politico, visa simplesmente legitimar ou dar acabamento a uma ordem cuja constituigao esté em curso. Bem, ndo vou entrar em detalhes da discussdo das carén- cias da democracia real desse processo constituinte, que tem condigdes de refundar a soberania popular. A minha preocupa- 0 agora é colocar para debate o que, afinal de contas, esté ‘em jogo nisso tudo. Penso que é possivel, de qualquer modo, neste processo constituinte, alargar varios direitos, alargar as possibilidades de intervengdo da populagao no sistema politico. Isso ainda esta dado como possibilidade. Pelo menos esta é a batalha. Até onde avancaremos, até onde seremos derrotados, qual 0 resultado final, ainda nao sao coisas decididas. Esta é pelo menos uma das batalhas e provavelmente a mais impor- tante da atual conjuntura politica. E, nese aspecto, acho que deveriamos retomar, na questéo da democracia e do poder cons- tituinte, a discussio ndo apenas dos mecanismos para que 0 processo constituinte seja o mais democratico possivel, mas de 201 um outro aspecto que me parece ainda mais importante, pelo menos na fase atual, que seriam temas substantivos colocando ‘em questo o tema da democracia. Temas substantivos que efe- tivamente poderiam trazer a populacdo para mais perto desta discussao constitucional. Retomar os temas que estao preser tes nas movimentagdes sociais, que receberam uma elaboragao particular pela atual equipe dominante e que podem receber outra formulagdo. $6 vou me referir a um deles e depois nomear outros dois, que me parecem igual mente importantes em termos de temas gerais. Acho que um tema € 0 da relagao entre o Plblico € o privado. Digo isso porque penso que, no bojo das lutas democréticas havidas exatamente contra o regime militar, houve algo muito, nao diria estranho, mas significativo, no modo como se identificou o Estado Opressor. A luta contra a face estatal enquanto opressora recebeu uma formulagao, hoje he- geménica, que é a seguinte: “contra esse Estado, temos que reforgar a face privada, a iniciativa privada como alternativa ao Estado pensado como expressao do puiblico”. Entao, o que vemos hoje no processo constituinte? Assistimos uma enorme dis- cussio que vem no bojo da luta contra o Estado Militar e que assume hoje, através da hegemonia burguesa, a forma de uma oposicéo entre a iniciativa privada e o estatal que seria o pu- blico. Bem, acho que se trata aqui de uma outra elaboracao, que estd presente em vérias movimentacées, expressées, movimen- tos, forcas politicas etc, mas mal elaborados, precariamente elaborados. E 0 fundamental é exatamente mostrar a oposicao entre 0 piblico e 0 privado, apontando exatamente para este Estado como, de um lado, aquela instituicao que concede favo- res, concede privilégios e fundamentalmente abre recursos pi- blicos para fins privados. © outro modo, portanto, de pensar a relagéo entre 0 publico @ 0 privado, questo que foi colocada em toda luta contra o Estado opressor, que fol reelaborada pelo pensamento privatista, que esconde o fato de que os interesses privados foram muito bem aquinhoados por esse Estado. (A ltima dessas concessées que leio no jornal de ontem: “José Sarney vai dispor de um canal de televistio até antes da copa do mundo". O que implica, independentemente de ser 0 perso- nagem o presidente da Republica, que o que nés temos é um Estado que tem monopélio de uma série de recursos publicos e 08 concede, sob a forma de privilégio, para interesses privados.) 202 Nada disso 6 publico. A discussao sobre recursos publicos, que devem servir a necessidades publicas e definidas publicamente (ou seja, democraticamente), constitui um tema fundamental, através do qual se retoma a questo da democracia, de um modo que esté presente, ainda que difusamente, nas movimentagoes sociais. Acho que ai colocamos a questao substantiva da de: mocracia hoje Eu retomaria para duas outras questées que esto presen- tes nos movimentos socials e que tocam a questéo da demo- cracia, da soberania popular, que se vinculam aos direitos dos trabalhadores, desde o direito dos trabalhadores no local de trabalho, até as relagdes de trabalho, até os direitos sociais do tipo habitagao, sade etc. Quero dizer 0 seguinte, entdo, a0 mesmo tempo em que valorizo propostas muito pragmaticas, ou seja, conquistas muito localizadas que se podem obter ainda dentro do quadro atualmente dado — li ontem, por exemplo, a aprovagéo de um projeto de lei na Assembléia Legislativa do Rio, que vai ter de enfrentar certamente resisténcia do gover- nador e de outras forcas, ele assegura o direlto de todo cidadao ter acesso a toda informacéo que qualquer reparticdo estatal dispuser a seu respeito, inclusive informacdes presentes nos 6rgaos policiais e militares. Esta é uma proposta passivel de ser levantada, defendida e aprovada em qualquer constituigao. No entanto, penso que 0 erro de um pragmatismo estreito este ria em ignorar exatamente o que a lei representa no Brasil. € gozado isso, porque 0 pragmatico pareceria ser 0 tipo que teria mais sensibilidade para saber que uma nova lei, para vigorar, tem que vir acompanhada de uma alteracao nas vontades coleti vas e na legitimidade. Existem leis “que pegam e leis que nao pegam”, como lembrava 0 Weffort no seu livro sobre a democra- cia. Se no Brasil, mals ainda do que em outros lugares, a ques: tio de uma lei “pegar ou nao” esté relacionada com forgas so- ciais em movimento, com conquista da opinido publica, com 2 legitimagao social, com forgas que efetivamente assumam al- guns direitos como seus e, portanto, assumam a sua defesa, isso exige que, com o debate para aprovagao de uma lei, exista um debate politico fundamental, que ¢ 0 debate politico em tor- no de grandes principios da organizagdo da sociedade. Quer dizer, se nos, de cara, legitimamos 0 poder constituinte ja dado @ vamos querer apenas no varejo aprovar uma ou outra lei, estas 203 leis que eventualmente aprovaremos serdo ignoradas se nao tivermos alterado 0 padrao dos principios que legitimam qual quer lei em particular. Entéo, uma das questdes fundamentais é exatamente essa discussie mais geral sobre poder constituin- te, sobre o que € piiblico e o que € privado, e qual deve ser a soberania popular sobre esses elementos. Se essa batalha nds nem dermos, qualquer outra conquista que fizermos, no varejo, teremos perdido, porque teremos perdid rdido ant atacado. P ntecipadamente no 204 PODER CONSTITUINTE E DEMOCRACIA Maria Lucia Montes Profa, do Departamento de Ciencias Soclais do FFLCH da USP ‘Queria inicialmente expressar minha satisfacao em tomar parte hoje neste debate, e agradecer aos colegas do Departa mento de Filosofia que tiveram a gentileza de me convidar para dele participar, apesar de que com isso me encontre numa posi- go incémoda, como “filésofa renegada” que sou, entre mestres de hoje que foram meus colegas ontem, e colegas de hoje que acabaram sendo meus mestres, quando a vida e suas circuns tancias me converteram mais uma vez em aprendiz, agora da Ciéncia Politica. Eis-me aqui, portanto, em “sanduiche”, entre aqueles junto aos quais aprendi a importancia do rigor do pen- samento e da reflexéio critica, e aqueles que me ensinaram — nao sei se com muito éxito — por assim dizer a ancorar pensamento e a reflexao, na decifragao de um real que nao fala ‘a céu aberto nem se desvenda pela légica da pura razao. mas exige a paciente investigagao da ciéncia, alicerce necessario & reflexdo critica, se se quiser que ela possa distinguirse da mera especulagdo. Assim, entre os dois campos do saber, 86 exponho minhas miltiplas fraquezas, abrindo os flancos em mi- nha variada incompeténcia, numa posigao que seria insustenta- vel se néo fosse voluntaria. De fato, creio que todo debate comporta uma dimensao de provocagao, e por isso gostaria de 205

You might also like