Privação Cultural e Educação Compensatória - Uma Análise Crítica

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PRIVACAO CULTURAL E EDUCACAO _ COMPENSATORIA: UMA ANALISE CRITICA® ‘Sonia Kramer a Pontificia Universidade Catblies do Rio de Janeiro, De- partemento de Educaeio ~ BRASIL As idbias apresontadas neste texto encontram-e mais desen- voWvidas em "“A Politica do Pré-Escolar no Brasil; a arte do disfarce”, Ed. Achiomé, 1982, trabalho orig santado como tese de Mestrado na PUCIRS: 54 INTRODUGAO © fracasso escolar de parcelas significativas cas criangas oriundas das camadas populares nos anos ini: Ciais da escolaridade, constitui trago marcante do siste- ma de ensino brasileiro e latinoamericano em geral. No Brasil, a partir da década de 70, a politica educacional tem dado grande destaque a necestidade de oferecer a essas_criangas, experiéncias que as levem a compensar suas "deficiéncias”. O pressuposto dessa politica é 0 de que o fracasso acontece porque as criancas nio es tariam suficientemente preparadas para tirar proveito satisfatério da escola, ‘As experiéncias compensatorias mencionadas deve iam ocorrer na escolarizago formal, mas sobretudo no periodo imediatemente anterior ao ingresso no sistema de ensino regular, ou seja, na pré-escola. Esta altima pas sa ento a ser proclamada como a resposta que ird solu- cionar os problemas da escola de 19 grau. A atual proposta da politica educacional brasileira em relagao as criancas de 0 a 6 anos, encara e defende a educacdo pré-escolar como compensatéria, atribuindo Ihe verdadeira funcio terapéutica para as “caréncias cul turais" das criangas provenientes das classes sociais domi nnadas. Assim compreendida, a educacdo compensatoria deveria corrigir a5 supostas defasagens que provocariam © fracasso das criangas. Por esse motivo, o discurso da Privagdo cultural encontra-se presente, também, nas jus: tificativas oficiais quanto a faléncia da escola de 19 Grau: a evasio e a repeténcia so explicadas como resul tado da “falta de cultura” e de habitos das criangas, ou 8 sfo culpabilizadas pelo fracasso. 0 objetivo desse trabalho é analisar as origens e os fundamentos tedricos dos programas compensatérios, desenvolvendo uma série de criticas as faldcias da abor- ddagem da privaedo cultural, e ao mesmo tempo apontan- do possiveis equivocos aos quais radicalizacéo dessas criticas poderia conduzir... © estudo tem algumas premissas, bésicas, que se interrelacionam: 19) O chamado “problema da crianga’" ndo é en tendido de forma isolada, mas, inversamente, no enfoque adotado, procuramos percebé-lo dentro do contexto de uma sociedade dividida om classes. Nossa concepeao de infancia implica na necessida- de de conhecimento das diferentes formas de inseredo social das criancas e de sua relagéo direta com a produ: cdo da vida material. Nesse sentido, entendemos que ido existe "a crianga, mas sim, pessoas de pouca ids- de afetadas de maneiras diferentes pela sua classe social 29) Reconhecemos a premente necessidade de de mocratizagio da educagio pré-escolar e de 19 grau, con: ccebendo tal democratizagio no somente enquanto aces- 80 escola, mas sobretudo como garantia de que o tra: balho pedagégico nela desenvolvido atue no sentido de efetivamente beneficiar as criancas a que se destina. 39) Concebemos a educacio e sua democratizacao ‘como estreitamente vinculados ao processo pol tico-so- cial © & propria democratizagao da sociedade, a diviséo social do trabalho e, portanto, a distribuigio das riquezas Cad. Pesq. So Paulo (42): 54-62, Agosto 1982 is. Entretanto, se destacamos tais fatores, isso ndo significa que a educagao esteja despoj dda de sua autonomia de ado. Existe, no nosso entender uma atuagio politica ao nivel da prética pedagégica, ¢ tal atuacdo ¢ que pode determinar o seu papel como 0 de contribuigg0 para a conservaggo ou a transformago da realidad ‘Com base nesses premissas e diante da andlise da abordagem da privacéo cultural, nossa maior preocupa 80 6 buscar diretrizes alternativas para o desenvolvimen: to de préticas pedagdgicas drigidas as criancas das classes dominadas, @ que estejam a servigo delas, a0 invés de funcionarem como mecanismos de discriminacdo e ex- clusio, com menor ou maior precocidade, seja na pré escola, eja na escola de 19 grau. AS ORIGENS © Remotas © estabelecimento das origens da educacio com- ensatéria coincide com a da propria pré-escola, jé que & esse nivel de ensino que a tOnica da compensacso de ossiveis caréncias se faz mais explicita, Desde 0 seu surgimento, em meados do Século XIX, a educago pré- escolar foi sempre encarada como uma espécie de antl- doto para a privacdo cultural e como forma de promo- ver a mudanga social". ‘Assim, a8 origens remotas dos programas compen satérios podem ser encontradas em Froebel, e nos pri meiros jardins de infancia fundados nas favelas alemas, em pleno advento da Revolucdo Industrial; em Montes sori e suas “Casa dei Bambini” em favelas italianas; em ‘McMillan ~ contemporénea de Montessori — ¢ na énfase que dava & necessidade no $6 de assisténcia médica © dentétia, mas também de estimulagdo cognitiva, para que as deficiéncias das criangas fossem compensadas”. © Recentes Pordm, apenas depois da 28 Guerra Mundial é que 4 pré-escola, com tals caractersticas, passou a ser valo- rizada nos Estados Unidos ¢ na Europa. Na década de 60, expandem-se programas nitidamente de educaggo compensatéria®. Que fatores teriam determinado 0 reconhecimento e a ampliacio do atendimento pré-esco- lar, naqueles parses, com um enfoque compensat6rio? A literatura apresenta 5 conjuntos de fatores simultaneos: ~ 08 de ordem sanitéria ealimentar (campanhas): ~ fatores relacionados & asssténcia social, jé que a pr escola desempenha papel fundamental na liberacio da mulher para 0 trabalho; ~ a influéncia da teoria psicanalitica © das teorias de desenvolvimento infantil, ressaltando 0 papel do profes sor face &s necessidades afetivas da crianga e face 8 sua evolucdo (dai terem sido redescobertos, nessa época, os trabalhos de Montessori Piaget © Vigotsky); — estudos antropologicos e sociotbgicos que destacavam (0 efeitos da classe social, do background educacional e cultural e da etnia sobre o desenvolvimento da perso nalidade e no auto-conceito da crianga; Privagdo cultural e educag&o compensatéria — pesquisas sobre o pensamento da crianga e sobre a in- terferéncia da linguagem no rendimento escolar. Essas esquisas tiveram papel preponderante nas anélises so- bre o desempenho escolar insuficiente das criancas consideradas “privadas” educacional e culturaimente*. Em nosso entender, porém, existem outros fatores determinantes na expansio e institucionalizagao da edu cago compensatéria tanto 20 nivel pré-escolar como ‘num sentido mais geral, e que no encontramos explici- ‘tados na literatura. Quais seriam esses fatores? Os programas compensatérios derivam da idéia de ‘que 0s pais ndo conseguem dar aos fithos ("“carentes”” culturalmente) a base para que tenham sucesso na escola @ na sociedade. O pré-escolar, neste caso, constituiria uma forma de sobrepor as barreiras existentes entre as classes sociais. Atribui-se, assim, a esse nivel de ensino, a funedo de realizar a mudanca social, sem colocar em discusséo @ necessidade de modificacdo das condicbes de vida que determinam a caréncia material e cultural. A proposta de elaborar programas de educacdo pré-escolar no sentido de transformar a “sociedade no futuro” é uma maneira de responsabilizar 0 passado pela situacSo presente e de alocar no futuro quaisquer possibilidades de mudanea. Fica-se, assim, isento de realizar agées sig- nificativas que visem a solucionar os problemas socials atuais. ‘Além disso, concebe-se a democratizacio da educi 80 exclusivamente enquanto acesso 2 vagas, sem levar em conta o conflito existente entre “igualdade de opor- tunidades e igualdade de condicdes"®. Em sintese, a expanséo da pré-escola compensatéria reflete uma pro: Posta de “mudanga social” que no coloca em questo 2 estrutura social que gera a desigualdade. Cabe, por- tanto, expressar algumas de nossas preocupacdes bési cas: 0$ programas compensat6rios esto contribuindo pa- ra qué? A quem eles beneficiam? ‘A abordagem da privagio cultural possibilita a de- ‘mocratizacao do ensino ou, ao contrério, a dificulta? ais indagardes apontam para a necessidade de analisar os pressupostos da abordagem da privagio cul- tural e as criticas que Ihe sio dirigidas. 1. Ver: Dowiey. — Perspectives on Early Childhood Educs- tion; Shane, H. G, — The Renalszance of Early childhood Education Lazerson, M — Social Reform and childhood Educetion: Some Historical Perspectives, todos in Anderson, FH. @ Shane, H. G, — As the twig is bent: Readings in Early childhood Education, Houghton Mifflin Company, Boston, 1971, 2. Encontramos tais dados em Dowey, E. op. cit. pg: 14,€em Braun, S.J. © Edwards, EP. — History and Theory of Early Education, Wadsworth Publishing Company, Belmont, 1972. 3 0 Head Start surglu nos Estados Unidos em 1965, no governo Johnson, fazendo parte, assim como outros programas com pensatérios “guerra contra a pobreza" 4 Uma sintese dessas pesquises foi encontrada em Dowley.E. 0p. cit. 5 Mello, G.N. Fatores Intra.Escolares como Mecanismo de Sele ‘ividage no Ensino de 19 grau, in Revista EducarSo e Socie dade Cortez @ Moraes, Ano |, n 2, jan 1979, pg. 25, 55 ‘A ABORDAGEM DE PRIVACAO CULTURAL Os programas compensatorios no se apresentam, de forma homogénea, variando na énfase quanto aos fatores que pretendem compensar, na metodologia que adotam @ no perfodo do que privilegiam para atuagio® Da mesma forma, a abordagem da privardo cultural, que 0s fundamenta, no se constitui em um corpo tebrico estruturado, fixo. Podemos, no entanto, detectar clara mente as tendéncias comuns aos diferentes programas ¢ seus pressupostos bisicos. Um primeiro pressuposto consiste na crenca de que as criangas provenientes das classes dominadas fra cassam na escola por apresentarem ““desvantagens sécio- culturais", ou seja, elas detém caréncias de ordem social e cultural. A principal intengo dos programas compen: satbrios € a de, através da intervencdo precoce, reduzir ou eliminar as desvantagens. Nao encontramos uma defini¢éo clara para a “des- vantagem cultural” (caréncia): ora ela é entendida como um atraso intelectual, ora como uma distorgéo emocio- nal, provocados ambos por ambientes privados de est/- mulos ou por ambientes com estimulacgo excessiva © desorganizada. Quando as caracteristicas de tais ambien: tes so muito acentuadas, supde-se que acarretam nas ingas em idade pré-escolar caréncias irreverstveis. importante ressaltar_que a abordagem da priva cdo cultural postula a existéncia de uma relacao direta entre o desenvolvimento da crianca e sua origem sécio: econdmica. Assim, as causas de variaggo no desempe- ‘iho escolar, se encontrariam na propria familia e, con- seqiientemente, no meio social de origem, 0 que nos re- mete ao segundo pressuposto: 0 determinismo sociol6: gico. E inegével que @ abordagem da privago cultural supera o determinismo biolégico, que atributa as diferen- 8 existentes no comportamento e no rendimento esco- lar a defeitos genéticos. N3o obstante, essa abordagem instala um fatalismo de caréter social: 0 desenvolvimento nndo seria mais determinado por aptides inatas, mas por influéncias do ambiente. Se a abordagem da privario cultural teve, entéo, ‘um papel politico positive ao mostrar que o fracasso es colar no se deve a desigualdade biolégica individu ela estabeleceu um fatalismo sociolégico, culpando 0 meio. Serviu as pedagogias da compensagio, que pre- tensamente buscavam (buscam) corrigir a desigualdade social através da a¢do pedagégica, negando, dessa forma, propria desigualdade social. Mas que caréncias estabelecidas pelo meio seriam responséveis pelo insucesso na escola? A resposta se rela- ciona ao terceiro pressuposto: 0 da deficiéncia lingirs- tica. ‘As criangas provenientes das classes dominadas se- riam portadoras de defasagens na linguagem que dificul- ‘tariam sua adaptagao & escola e a assimil dos por ela transmitidos. Como as criangas das classes médias t8m melhor desempenho escolar, seus hébitos de fala so considerados os necessérios para que haja apren- dizagem. Além disso, as diferencas nas formas gramati- 56 cais sdo identificadas a lise légica, 0 que leva os adeptos da abordagem da pri vago cultural a concluirem que, como as criancas das classes dominadas tem aéficit verbais, sua capacidade de pensar logicamente é também deficiente. (© que poderia garantir 0 melhor desempenho des sas criangas? A aprendizagem dos padres formals da fa- la, obtida através da compensacdo de deficiéncias na lin- guagem & no pensamento das criangas “privadas cultural- mente”. Estas soriam, com maior ou menor aquieseéncia, as, tendéncias bésicas da abordagem da privagSo cultural e dos programas compensatérios: a existéncia de caréncias. culturais determinadas pelo meio sécio-cultural e que determinam, por sua vez, efeitos drésticos no que se re- fere & linguagem e ao rendimento escolar das criancas. Retomamos esses pontos, a seguir, apresentando as criticas que Ihe so dirigidas, bem como as contra-cri cas hoje formuladas. ANALISE DOS PRESSUPOSTOS DA ABORDAGEM DAPRIVACAO CULTURAL. AS CRITICAS Modelo abstrato @ tinico de inféncia? Para Lureat’, a pedagogia da compensagio desen- volvida nas pré-escolas parte de um “modelo Gnico de fem funcao do qual o filho do isto como uma crianga burguesa incompleta. Ora, Aries demonstra que a idéia de infancia nfo existiu sempre, e da mesma maneira®. Ao contrério, ela ‘aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que muda a insergo e o papel social de- sempenhado pela crianga. Ao invés de ter um papel pro- dutivo direto, a crianga passa a ser alguém que precisa ser escolarizada e preparada para a atuacdo futura. Este conceito de infancia foi, portanto, determinado Ficamente pela modificagdo das formas de organizac3o da sociedade. ‘A forma de organizagio da sociedade capital instituiu classes sociais diferentes, no interior das quais 0 Papel da crianca é também diferente. A idéia de uma in- 6 Para, uma andlise dos programas preventivos ¢ remediativos ver Patto, MHS. Privecdo Cultural @ Educapdo Pré-Primdria, Ed. José Olympia, RJ, 1873 — A diversidade existonte entre fio do Conseil de Cooperacion Cult Educacion Compensatbria — Seleccion de Estudios. 7 Lurgat, L, — Le Moternelle: une école différente? Des Edi- ‘ions du Gert Pars, 1976. 8 Para um estudo sobre 2 evolueso histérica do Sentimento de Inféneia (da consciéneia da particularidade infantil) ver Aries, P., Historie Social da Crienga e de Familie. Zshar, RJ, 1979. ‘Sobre as diferentes significapSessocais da crianca ver Charlot, B. — A Mistficeréo Pedagdgica, Zahar, RJ, 1980. Com rala- ‘cio a perspectiva histbrica no Brasil ver Costa, J. F. Ordem ‘médica ¢ norma familiar, Ed. Graal, FJ, 1978. Cad, Pesq. (42) Agosto 1982 ‘ancia universal esté, assim, baseada em um modelo de infancia que se pauta nos critérios de idade e dependén- cia do adult, caracteristicos dos tipos de inserei0.so- cial da crianga no interior das classes dominantes. ‘A abordagem da privagdo cultural supe que exis ta esse padrio “médio”, “tinico” de comportamento in fantil: as criangas das classes dominadas so considera. das como “carentes”, “deficientes”, “defasadas”, “infe- riores” por no corresponderem a0 padro. A crianca que corresponde a0 modelo nico é capaz da aprender nogées e atitudes que a carente “no consegue’’. O co- hecimento 6 reduzido a um processo puramente psi- colégico, a0 invés de ser compreendido como resultan- te da prética social. Dois preconceitos relatives a pré-escola tém origem nessa abordagem, denotando uma incoeréncia interna & Prépria educaeio compensatoria: a “precocidade”” ¢ 2 “"idade critica’. De acordo com Lurgat® a “‘precocidade” estabelece certa confuséo entre inteligéncia u capaci dade de aprender, na medida em que a segunda 6 ave liada por critérios da primeira (critérios que so mesmo muito questionéveis, dada a influéncia da postura ideo- légica do pesquisador). Mas 0 preconceito da “idade critica” que traz uma dubiedade maior. Por que? Porque a educaco compensatoria pretende, de_um lado, supe- rar as caréncias existentes enquanto, de outro lado, acre- dita que se a crianca no aprende até determinada idade ela ndo aprenderé mais. Caréncias culturais? deficiéncias verbais? ou diferencas? Uma das principais criticas, pois, a nosso ver, dirk sgidas 8 abordagem da privaedo cultural e aos programas de educacdo compensatéria, refere-se @ falta de cultura atribuida as criancas das classes dominadas. Neste sentido, o modelo biolégico e o da patologia social (que considera o meio como doente e culpado pe- las “falhas"” das criancas) so similares, pois implicam numa auséncia e, em ambos, esta auséncia caracteriza um comportamento inferior. Ao invés de descrever as especificas dos meios populares, suas atitudes, lingua gem e cultura s80 comparadas com as normas culturais estabelecidas pela escola, que so, em ultima andlise, as das classes dominantes num certo momento histérico da sociedade. Faltariam a essas criangas, “privadas cul turalmente", determinados atributos, atitudes ou con- tetidos que deveriam ser nelas incuitidos. No lugar do modelo da patologia social, os eriti cos! propdem 0 modelo da diferenga cultural, segun: do © qual os modos de agir, os valores e costumes, os jogos e brincadeiras, as formas de compreensio da rea: lidade, etc., seriam diferentes dos padres cons “corretos”, Da mesma forma, a linguagem das criancas no é encarada como deficiente. Ao contrério, a escola e a pré-escola & que nao levam em conta seu universo lin- Giifstico. Na medida em que os curriculos e a propria inguagem escolares so determinados a partir dos crité- rios da classe dominante, as criancas das classes domi: ‘nadas séo discriminadas, rotuladas como incapazes ¢ fa: dadas ao fracasso. Pesquisas de cardter sécio-lingi/stico, especialmen: Privag&o cultural e educagao compensatoria te de Labov'!, tiveram papel preponderante nessa andli- se critica, destacando 0 papel representado pelos testes que “provam” a inferioridade das criancas. Perguntam: © que medem os testes? As possibilidedes reais de d sempenho da crianga ou sua capacidade de, to soment resolver testes? Em que padrdes se baseiam? Esses estu- ddos apontam, ainda, que & necessério levar em consi racio as influéncias do préprio momento de testegem sobre a crianca, na medida em que ela se detronta com ‘uma situaeo que Ihe 6 hostl, diante do poder do obser vador/pesquisador, em geral, da classe média. Assim, com base nos testes no se pode concluir que as criancas ‘no falam bem, nem que estejam privadas de pensamen- 10 lbgico Para Labov, existe grande desconhecimento por parte de professores e pesquisadores, sobre 0 proceso dia linguoger. Suasandliestiveram importéncia acentua da no sentido de destacar a necessidade de pesquisas de ccunho antropolégico @ s6ciolingistico, onde o compor: tamento verbal das criangas soja conhecido realmente & ro comparado, Enfim, 0 modelo da patologia social tem como fundamonto a tee da varabilidade lingifstica: nfo existe uma Gnice linguagem ou cultura padrlo @ que est80 su bordinadas outras culturas inferiores, Inversemente, hé varias linguagense culturas diferentes que nio sio, entre- tanto, passvels de hierarquizaco. E 0 papel da escola na sociedade de classes? ‘A abordagem da privaeo cultural deixa de lado as relagdes existentes entre a instituigo escolar e as classes sociais. Considerando a escola neutra e apolitica, propde- se a superar diferencas devidas & classe social por meio da educagdo compensatéri Se a “pedagogia elitista” impedia o acesso das clas- ses dominadas 8 escola, a “pedagogia liberal” dé as mes ‘mas oportunidades para todos, mas patologiza os proble- ‘mas pedagégicos, individualizados, e culpa os alunos ou © seu meio social-cultural. A escola nfo é jamais coloca- da em questdo! Pela abordagem da privago cultural, fica justifica- da 2 posiggo da escola num sistema em que se ensina a ccrianga a fracassar e se espera previamente o seu desem: 9 Lureat, L. ~op.cit. 10 Podemos citar, entre outros: Baratz, S. ¢ Baratz, J. — Early Childhood Intervention: The Social Science Bose of Insti: tional Racism in Anderson, -H. e Shane, H.G. op. cit: Keddie, N. The Myth of Cultural Deprivation, Penguin, Balt: more, 1975; Stambak, M. ~ Examen Critico de la Nocion de Desvantaja Socio cultural in Consejo de Cooperacion Cultural, 0p. cit; Lureat, D. — Desvalorizacio @ Auto-desvalorizario na escola e Vial, M. — Um desatio » democratizaeso do ensi- no, ambos em Brandéo, Z, Democratizerdo do Ensino: Meta ‘ou Mico? Francisco Alves, RJ 1979; Campos, MIM. ~ Assis téncia a0 Pré-Escolar: uma abordagem critica, in Cadernos de Pesquisa da Fundacéo Carlos Chagas n° 28, msio de 1979, ps. 53/61 11 Labov, W. — The Logie of Nonstandard English, in Kedet, N. =op. cit 57 penho “fraco”. Os pardmetros dessa avaliagio so os valores das classes dominantes, menosprezando, subes- timando e eliminando os valores culturais das classes do- ‘minadas. Sua vida real fica do lado de fora da escola. Esse autoritarismo esté presente na escola que, simplesmente, reproduz a estrutura social de classes da sociedade capitalista: a recoloca¢o dos filhos no lugar dos pais ¢ entendida como conseqiiéncia “natural” do desempenho escolar ¢ no da posigo ocupada por estes na estrutura das relacdes de producio, Se os alunos por- tadores de padrées culturais “adequados” progridem no sistema escolar, isto se deve a seu esforco e mérito. Simultaneamente, aqueles que ndo possuem tais padres falham e aprendem, ainda, a assumir a responsabilidade do fracesso seja como uma culpa individual, seja como resultado das caréncias de seu meio, Nesse sentido, 0 pprocesso de discriminacgo que se desenvolve dentro da escola é camuflado como se fosse natural, e no co: ‘mo socialmente determinado. Por trés dos programas compensatérios, percebe- mos @ conceprao de democratizacdo da ideologia liberal, propondo'se # dar as mesmas oportunidades para crian- a8 que jé as tém diferentes. Atribuindo as causas dos altos indices de evaséo e repeténcia observados na 18 série do 19 grau & privacdo cultural das criancas das clas ses dominadas, a extensdo da escolaridade é idealizada 1na forma de atendimento préescolar. Assim entendida, a pré-escola compensaré as caréncias, ou a discrimina. ‘680 e 0 ensino do fracasso comecaro mais cedo? AS CONTRA.CRITICAS (OU: “SACODE, LEVANTA A POEIRA, DA A VOLTA POR CIMA”) Retomamos, em seguida, trés pontos de criticas feitas 8 abordagem da privagdo cultural, discutindo suas conseqiiéncias em relacdo a pratica pedagogica e politica Pensamos que essa reflexio é fundamental, ja que acre- ditamos na necessidade de submeter nosso conhecimento & uma andlise dialética. Quais so esses pontos? A tese variabilidade lingiifstica, a no¢do de caréncia ou “handicap” sécio-cultural, e a idéia da pratica escolar co- ino pratica de inculeagao ideologica. Diferengas verbais ¢ culturais? Apenas? ‘A tese da variabilidade lingivstica contém algumas ambiglidades, na medida em que se recusa a considerar a crianga burguesa como norma e reduz 0 problema a per- ‘cep¢do social do aluno e as formas de avaliagio. A ques {Bo central, segundo Charlot!? ¢ a existéncia do fracasso escolar socialmente determinado. Nesse sentido, 0 autor considera falsa @ afirmago de que as classes burquesas ¢ Populares {e suas criancas) tém possibilidades concel tuais Tingiifsticas idénticas, e falsa, ainda, a crenga de que as diferencas observadas so criadas pela propria si: tuacio de avaliacdo. Por outro lado, Snyders nega o postulado segundo (© qual as linguagens culta e popular so blocos separa dos. Reconhecendo a importancia extrema da denuncia feita 30 tipo de linguagem usada na escola, ele critica a idéia de que ndo existe superioridade da linguagem esco- 58 lar (burguesa) sobre a linguagem esponténea das criangas, do povo: “7 lingueger populer tem valor, mas néo excans a de- ficitncias, 9 uma fraquezae pobreza que ¢ precisamen- tea dos pobres, ou sea, dos explorados” Nesse sentido, Snyders ressalta a necessidade de que a linguagem popular seja valorizada, no por si mes: ‘ma, mas para que a partir dela as criangas tenham possi: bilidade de acesso a0 nivel da linguagem escrita e cul: tal? Com relacdo as criticas dirigidas a nocSo de carén cia, handicap ou privacéo cultural, Charlot e Figeat!®, discutem trés aspectos. O primeito diz respeito a0 fato de as criancas das classes populares estarem privadas de ontatos freqiientes com discursos conceituais ¢ forma lizados. O segundo se refere a existéncia de handicap cultural, jé que a ideologia dominante é imposta as clas ses populares, dificultando a construgao de sua conscién: cia de classe. © terceiro aponta para a existéncia de handcap social, pois a formalizacao do discurso se consti- tui, na sociedade de classes, em fator de privilégio social. O eixo central dessa contracritica esté na concep: ‘$80 de que essas caréncias ndo se dever & auséncia de saber nas classes populares nem, tampouco, a deficién: cias individuais das criancas, 0 que significa privilegiar a relagdo burguesa com o saber em detrimento da rela: cdo popular. Muito 20 contrério, elas se devem justa mente a0 fato de as classes populares no terem acesso & cultura dominante, Esse ponto diz respeito as estratégias que podem ser adotadas contra o fracasso escolar, ou seja, as formas de garantir a instrumentalizagdo das classes populares no sentido de adquirirem o saber dominante. Quando as caréncias s80 entendidas como retardo no desenvolvimento, procura-se compensar essas falhas fornecendo as criancas, através de treinamento e adestra- ‘mento, uma carga de conceitos, palavras e habitos que elas no dominam. Quanto a essa estratégia, hé dois as Pectos ~ jé analisados aqui ~ que precisam ser levados em consideracdo: por um lado, ela deixa de lado aqueles conhecimentos e formas de agir caracteristicos das crian: 628; por outro lado, tal postura discriminatoria aumenta as possibilidades de fracasso das criangas, ao invés de dirimi-las. Adota-se 2 pedagogia da compensacio, refor gando 0 modelo escolar atual. Quando se entende que as diferengas existentes entre as classes sociais interferem nas formas de com: Preenséo, a luta contra o fracasso escolar consiste em Proporcionar as criangas a aquisi¢ao de conhecimentos sisteméticos e cientificos. Como? Tendo como base do trabalho pedagégico os comportamentos e conhecimen: 12 Charlot, B.¢ Figeat. L'Ecole aux enchéres. L'Ecole et le div son sociale du travail, Petite Bibliotheque, Payot, 1979 13 Snyders, G. Escola, Classe @ Luta de Closes, Ed. Moraes, Lis boo, 1977, pg, 358.359. 14 Snyders, G. op. cit, pag. 350-366. *5 Charlot, 8. e Figeat,M, op. cit., pg. 232293. Cad. Pesq. (42) Agosto 1982 tos concretos, reais, das criangas a que se destina, e visan- do, ainda, permitir seu acesso progressivo a0 saber domi: nante. Nao se trata, pois, de treinar as criangas mas, in: Versamente, de favorecer o estabelecimento de pontes entre 0 que jé conhecem e o que passam a conhecer. Nesse processo thes so oferecidas possibilidades de cod ficar sua pratica endo somente de praticar os cédigos”."6 A escola: 86 reprodutora? Entio, vejamos: as eriticas & abordagem da priva eGo cultural levantam questées cruciais, reagindo contra 2 patologizacio e culpabilizacdo das criancas e relat zando os critérios e as normas escolares consideradas ab- solutas. Entretanto, essas mesmas eriticas contém riscos sérios, pois ao responsabilizar apenas a escola e ao cons derar as criangas to somente como diferentes, elas Podem levar & conclusio de que a modificacdo desse qua dro néo 6 urgente. ‘Assim, as criticas radicals & pedagogia da compen- ago acabam reforcando os arumentos de seus defenso- res, pelo imobilismo que sugerem. Snyders analisa como a indiscutivel exploraclo so- frida pela criancas do proletariado — suas condigées de sade, alimentagdo, moradia, etc. — néo se origina na es: cola, E 0 autor coloca uma indagaedo, da qual partilha- ‘mos: de que forma se pode entender as contradicdes int rentes a essa desvantagem, sem desvalorizar as classes Populares, mas também sem escamotear as conseqiién Cias da exploragdo a que so submetidas?!” Se 0 fracasso e a discriminagdo existentes na escola provém da divisdo da sociedade em classes, nds, educado- Fes, precisamos aproveitar os aspectos positives aponta- dos pelos criticos. Como? Através da valorizacéo da cultura de origem da crianga, favorecendo sua compreensio gradativa da do: ‘minago que sofre, e seu questionamento, Trata-se, pois, de fornecer os instrumentos para que a crianca atue nessa sociedade desigual, injusta e competitive que a tor- nna carente. Essa reflexio nos leva a desenvolver algumas consi deragées quanto a possiveis diretrizes alternativas de nossa prética pedagégica. Antes, porém, fazemos uma breve andlise das conseqiéncias que a implantacio de programas compensatorios pode acarretar. ADOGAO DA ABORDAGEM DA PRIVAGAO CULTURAL E DOs PROGRAMAS ‘COMPENSATORIOS: CONSEQUENCIAS ‘Ao lado da discusséo critica quanto a seus pressu: postos teéricos, que ve sendo feita internacionalmente, 05 resultados dos programas compensatérios se mostra: ram insatisfat6rios,!® a despeito dos vultosos investi- ‘mentos empreendidos. Ora, enquanto nos altimos 20 anos, verdadeira po: lémica vem sendo desenvolvida sobre esse tema, no Bra: sil a educagio compensatéria & defendida (basicamente a Partir de 1975) como a grande solucio para os proble ‘mas do 19 grau,'® Ingenuidade? Desconhecimento dos estudos e das pesquisas? Intengo explicita de "vender gato por lebre"”? Privacéo cultural e educago compensatéria Quaisquer que sejam as justificativas para o discur 0 oficial & preciso levantarmos um alerta. Por que reto- ‘mar propostas ultrapassadas, diante da premente necessi: dade de educacdo da populacdo brasileira e das verbas e- x(guas que Ihe é direcionada? Que conseqiiéncias tal pos tura pode acarretar? ‘Se fracassarem os programas? Temos sérias preocupagSes quanto aos rumos que Pode tomar esse processo. De um lado, porque, 20 se Proclamar que a pré-escola resolver os problemas de ‘evasio @ repeténcia do 19 Grau, no se prope nenhuma reestruturacdo de base para a escola de 1° Grau. De outro lado, porque, se os programas fracassarem, as pré- prias eriancas e suas familias sero responsabilizadas, na ‘medida em que se considera que thes foram dadas as ‘oportunidades educacionais e, como néo progrediram, slo mesmo incapazes. Esse tipo de andlise explicativa efetivamente ocorreu nos paises em que se originaram os programas compensat6rios: os resultados insatisfatorios foram utilizados de maneira a reforcar 0 preconceito ¢ 2 discriminaggo em relagdo &s criancas das classes domi nadas, e serviram de justificativa para a sua pretensa in- ferioridade. “Pacotes” pedagégicos? Qutra conseqiiéncia que pode advir da adogio da abordagem da privacio cultural é © desenvolvimento de Programas educacionais a serem implantados nacional- ‘mente, com contetidos e estratégias determinados a prio- ri, idealizados e elaborados em centros “‘meis adiante- dos” @ distribuidos para as zonas “mais atrasadas". Hé diversos programas desse tipo — com contetdos uuniformes, estruturados como verdadeiros Pacotes — direcionados a niveis de ensino variados (su- Pletivo, 19 e 29 graus, aperfeicoamento de professores, ‘treinamento de professores leigos, etc). Pensamos que subjacente a proposta de atender, com um mesmo programa, a situacdes extremamente diversas, esté uma viséo Unica de infancia e de professor, em que ambos so entendidos enquanto categorias uniformes e des- vinculados de suas condicdes objetivas de existéncia Além, € claro, dos objetivos ideolégicos de “integracdo nacional” que no caberia analisar aqui. 16 Charlot, 8. € Figeot, M, op. cit, pa. 234, 17 Snyders, G. 0p. cit. pa. 379. 18 Ferrari, A.R. e Gaspany, LB.V. ~ Distribuiggo de Oportuni dade de Educagio Pré-Etcolar no Bratil in Revista Eaucagio «@ Sociedade, Cortez Ed. Autores Associados/CEDES, Ano I, 195, jan. 1980 pg. 62.279, 19 Anallsamos diversos documentos, encontrando neles a ex: plicit recomendacdo de adotar a educacSo compensator BRASIL/MEC/DEF/CODEPRE. Atendimento a0 Pré-Escoler, Brasilia, 1977, vol. |; Ingicago CFE n® 45 de 4/6/74, que trata do artigo 19 da Lei 6692; Perecer CFE 2018/74 referen- te a essa incleagio; Parscar CFE 2521 de 2/7/75 e Parecer (CFE 1038 de 13/4/77; XII Reunido Conjunta dos Conselhe- ros de Educapso Brat lia, 1976, todos in BRASILIMECISEPS/ SER — Legislopdo e Normas do EducaeSo Pré-Ezcoler, Brasi- Ni, 1979. 59 No entanto, essa critica néo pode redundar no ex- ‘tremo aparentemente oposto que caracteriza os progra- mas como “adaptados” as culturas locais das diferentes “comunidades”. Esse localismo pode derivar naquela po- sigo imobilista — analisada no item sobre as contra criticas — que afasta a possibilidade de acesso a cultura dominante, ‘A énfase & regionalizagao das ais camufla a divisio da sociedade brasi sociais, na medida em que situa as diferencas sécio-eco- némicas e culturais como regionalmente determinadas. Bem, se descartamos os programas de tonica mass: ficante e nacional, como também as solucdes de caréter regional ou comunitério, fica recolocada a questo da direcdo que os programas deve tomar a fim de benefi ciar as eriangas. ‘A determinacéo do fracasso na escola de 19 grau* Se a abordagem da privago cultural tem sido a td- nica da educacéo pré-escolar, ela néo the & exclusiva. E aqui é necessério estabelecermos uma distinggo entre os programas que, explicitamente, se dizem compensatérios @ aqueles que ngo 0 afirmam, mas atuam de acordo com seus pressupostos. Estamos nos referindo especificamente pritica pedagégica desenvolvida nas escolas de 19 grau e, em es pecial, nas primeiras séries, onde existe um verdadeiro estrangulamento devido, sobretudo, & evaséo e repetén- cia. Ora, 0s professores aprendem (nas escolas normais, @ nas faculdades de educacdo) a escola como ela nio é, esperando encontrar modelos — de crianca e da propria escola —que no encontram. © que fazem? Procuram en- caixar ou aplicar os modelos didéticos e metodolégicos, baseados em alunos @ escolas “abstratos”, nas criangas cescolas reais. A aprendizagem e a alfabetizacdo no acon- tecer. Por que? A forma de ensinar 6, em geral, repetiti va, fazendo uso de exercicio. mimeografados e da cpia. Os assuntos trabalhados so propostos pelas cartilhas a0 invés de serem retirados da vida das criancas. Analoge- mente a0 processo que sofrem durante sua formagdo, os professores falam, na teoria, de uma prética que no 6 real para aqueles alunos. O atendimento nio 6 individu izado nem coletivo, mas generalizado, nfo havendo in- Ccentivo 8 coopera¢do. A énfase do trabalho recai na “for- macio de hdbitos e atitudes” em detrimento da aprendi zagem e da transmissdo de um saber. Os conteddos esto permeados pelo “modelo do bom aluno" (carente pode ser bom aluno?) sendo a disciplina autoritéria e imposta arbitrariamente. A atitude do professor é discriminatéri fem relacdo 20s “‘carentes”, “imaturos”, “‘perdidos” (os sistemas paralelos sio instalados: turma de AES, classes, de adaptacdo, turma de repetentes, e por af vai). O fra: casso esperado acontece: 0 desénimo aumenta. Caracte- rizase, assim, a concepeo da privagdo cultur * Esse (tom ¢ boseado numa confertncia por née proferida na Faculdade Tsolada de Campos, durante 0 19 Encontro de Educadores do Norte Fluminense, em outubro de 1981. 60 fessores culpam os alunos “carentes”; o sistema escolar culpa os professores considerados, também, como caren- 105.20 Néo concordamos, em hipétese alguma, que os professores sejam os culpados, e reconhecemos seus (nos 808) baixos saldrios, as condigdes precérias de trabalho, a falta de assisténcia técnica, de supervisio, de aperfeicoe mento, de participacdo nas decisBes quanto a problemas educacionais. Mas reconhecemos também a sua (nossa) responsabilidade, identificando a necessidade de que al- ‘guma variével interfira no cfrculo vicioso da determina ‘go do fracasso para que possamos dar corpo/voz/vida tanto dimenséo sécio-politica do trabalho pedagogico quanto & propria dimenso educativa. Ou soja, a fim de que as criancas aprendam, se alfabetizem, e possam uti lizar os conhecimentos transmitidos a seu favor. DIRETRIZESPRATICAS De posse das criticas e contra-criticas e conscien: tes quanto as conseqiiéncias que a adoro dos programas compensatérios podem originar, procuramos, nessa citi- ‘ma etapa do trabalho, desenvolver algumas consideracdes. sobre possiveis estratégias préticas para a pré-escola e os primeiros anos da escola de 19 grau, Apresentamos as diretrizes seguintes como suges- t6es para debate, sem termos, contudo, qualquer preten- so de esgotar 0 assunto ou aprofundé-lo em todos os seus matizes. Nosso objetivo 6, justamente, o de suscitar discussio, esperando que as incoeréncias ou inconsis ‘t8ncias — provavelmente existentes — seiam apontadas. Acreditamos que esse processo 6 que nos faré avancar e descobrir novas alternativas, ampliando 0 conhecimento dispontvel e colocando nossa prética pedagégica cada vez mais a servigo das criangas. Reiteramos que 0 alcance dessas propostas é limi tado e que as entendemos no ambito do trabalho escolar, sem ilusGes ou pessimismos exacerbados, como procura: ‘mos expor no decorrer do texto. Tomar @ realidade das criangas como ponto de partids ‘para o trabalho escolar Ao invés de procurar “suprir” aquilo que falta as criangas consideramos essencial partir do que sabem & fazem, As atividades pedagégicas sSo estruturadas, entio, com base: (I) nos conhecimentos que as criangas pos- suem e nos tipos de atividades que realizam (tais como: jogos e brincadeiras, trabalhos, mdsicas, historias, dan- 628, etc); (II) nas formas de socializagdo existentes entre as criangas e sua integracdo com os adultos; (II!) nos va- lores, normas (preconceitos, tabus), e costumes (Festas, ‘comemoragSes) transmitidos pelas familias e classes so- ciais de origem; (IV) na forma de comunicacéo utilizada inguagem); ©, enfim, em suas condicdes objet vida (satde, alimentagdo, moradia). 20 Obeervages resizadae durante pesquisa feita om escoles ‘municipais do Rio de Janeiro, ¢ que #9 encontram detalhades ‘em "Da pritica pedogbaica e do comportamento da crianca (Sintese ‘dae Observagdes em escoles publicas: CAD, 1? 6 22 sdries), Nepe/PUC, 1980 (mimeo). Cad, Pesq. (42) Agosto 1982 ‘Ao lado das teorias de desenvolvimento infant colocamos, entio, como igualmente importante 0 co- nhecimento da realidade de vida das criancas. Assim, en- fatizamos a necessidade premente de estudos e pesquisas de cunho antropolégico e sociolégico que descrevam as ‘especificidades das criangas, caracterizando as diferentes opulagGes infantis e suas formas de insergio social. Pes- quisas que nos digam como as criangas sfo, a0 lugar de apontarem o que “ndo so’ © Obsorvar as atividades infantis Para caracterizarmos as criangas com que trabalhi mos, um tipo de atuago pois 6 essencial em nossa prét ‘ca como educadores. Diz respeito a observacao constante das realizages infantis, no sentido de conhecer as crian- ‘gas e detectar aquilo que sabem, conhecem, fazem; em suma, quais seus reais interesses e necessidades. Essa ob- servaciio se faz necesséria tanto fora dos muros da escola, naquelas situacdes que 80 familiares 8s criangas, como também no seu interior, identificando as formas de ativi- dades. desenvolvidas, os amigos procurados, o tipo de relacionamento estabelecido, e assim por diante. © Confiar nas possi vverem e aprenderem idades das criangas de se desenvol- A terceira diretriz — diretamente ligada as primei- ras — se refere & aceitacio das criancas como elas so, @ simultaneamente, & credibilidade nas suas possibilidades de se desenvolver, de se superar, de aprender. Partindo do que as criancas conhecem, dominam, vivem, as préti- cas escolares precisa propiciar entio, a ampliago ¢ 0 enriquecimento das experiéncias infantis, ou seja, 0 seu aacesso aos conhecimentos da cultura dominante. © Propor atividades com sentido: para o professor, para ‘os alunos Com tal finalidade, as atividades pedagogicas pas- sam a ter um significado verdadeiro na vida cotidiana das criangas. Antes de se decidir pelas técnicas ou métodos que adotaré, 0 professor se pergunta sobre os objetivos do que prope, e se pergunta, também, se os alunos s2- bem “por que fazem alguma coisa?”, @ “para qué?” Essa estratégia nos parece muito importante, na medida em ‘que constatamos que as atividades escolares sf0, em ge- ral, mecénicas, ocas, vazias de sentido. Contrariamente 208 conteidos ensinados de forma estanque, entendemos ue devem ser trabalhados de maneira integral, pois que a realidade & dinamica, e no estratificada, eesté sempre em movimento. © Relativizar as teorias de desenvolvimento infantil Outra diretriz se relaciona as contribuigées da psi- cologia do desenvolvimento, Como aproveité-las sem ccorrer em dogmatismos, sem procurar “encaixar” as criangas concretas em escalas (pretensamente universais) de desenvolvimento? E claro que reconhecemos a vali- dade dessas teorias, mas consideramos necessério rela- tivizar as informagdes que nos trazem, colocando uma interrogaedo quanto a0 seu suposto caréter cientifico Privagao cultural educagao compensatoria neutro, Pensamos ser fundamental indagar: em que crian- as se baselam 0 modelos de desenvolvimento? Que cri- trios so estabelecidos para avalieedo do desempenho “adequado"? Esse aspecto nos leva a analisar a questio da “me turidade"" @ da “prontiiio” para a litura. ‘© Favorecer 0 processo de alfabetizacso © que significa alfabetizar? Seré, to somente, ini ciar as criangas naqueles rituais mecanicos de adestré mento em sons, sflabas ou letras? Pensamos que a alf betizagio tem inicio no momento da propria expresso, sob as mais diferentes formas, onde as criancas falam da sua realidade e identifica os objetos que esto 3 sua volta. E isso 0 que pretendemos dizer, quando falamos em “‘codificagdo da pratica”: 6 verbalizar (e, posterior mente, refletir) sobre sua prética, comunicando-a e len- do-a, de diversas maneiras. Concebemos a alfabetizacdo, portanto, como um processo de representaco que envolve substituicdes gra- dativas ("ler um objeto, um gesto, uma figura ou dese- ‘iho, uma palavra) onde 0 objetivo primordial é a apreen- séo e a compreensio do mundo, desde 0 que esté mais préximo a crianga a0 que Ihe esté mais distante, visando ‘a comunicago, 2 aquisigio de conhecimentos, a troca. © Condigdes para efetivé: © respeito & linguagem da 3n¢a; 0 incentivo & sua ampliaco. Pode-se perceber, pois, que o processo de alfabeti zaco no tem data marcada para iniciar, j4 que no con- sideramos a leitura como exercitagio em letras ou sons, em como mera repeticso de cédigos impostos. Dessa forma, as atividader realizadas na pré-escola e na escola, se partem da vida da crianca e a aceitam como é, se favo- ecem 0 enriquecimento das experiéncias infantis e se ossuem um significado concreto para a crianca, necessa- riamente tero conseqiiéncias favordveis & sua alfabetize- Gio. © Valorizar o trabalho infantil ‘Ainda com relagio as influéncias da psicologia do desenvolvimento, pensamos ser necessério questionar a idéia hoje tio divulgada — e tomada como absoluta — de que 0 jogo espontineo e natural na crianga, e ndo 0 trabalho. Todas as “pedagogias modernas"” encontram no jogo a forma progressista e nova de desencadear as atividades. Perguntamos: e as criancas que trabalham? Nao so completamente criancas? E se so a maiotia da populago infantil brasileira? O jogo se contrapde a0 trabalho? Em que medida? A que tipo de trabalho? En- ccontramos em Freinet uma discussio bastante esclarece- dora quanto a falsa dicotomia estabelecida pela socieda- de capitalista, onde tanto o trabalho quanto o lazer so atividades alienadas. Ndo 6 nossa intencdo defender, aqui a Pedagogia Freinet enquanto proposta metodolégica, ‘mas apenas basear nela a diretriz prética de valorizagdo do trabalho das criancas. Nao s6 ““deveres de casa’ ou os exercicios repetitivos impostos e sim, a sua producao, enquanto alguma coisa que tem valor para a prépri 61 crianga, se reflete uma vontade sua de realizé-lo, enfim, se tem para ela um sentido real, concreto, objetivo. Iss0 quer dizer que, como educadores, nos preocupamos com © proceso vivido pelas criancas nas suas atividades, reco- nhecendo e admitindo, porém, que o resultado, o produ- to das atividades infantis tem, para elas, significagdo e valor imediatos. © Recuperar a Fungio Pedagogica da Escola Se a escola ndo est exercendo sua fungo educati va, visto que as criangas provenientes das classes domina- ddas que nela agora tém ingresso no aprendem, hé que se recuperar esse espaco pedagégico, com o que tem de politico. Deixar de lado a preocupacgo com a formacdo de “hébitos ¢ atitudes” (com os aspectos de carter mo- ral) e direcionar @ prética pedagégica a transmissSo dos conhecimentos necessérios seria, a nosso ver, a diretriz fundamental. Para que se supere a énfase eminentemente psicolégica e médica com que a escola e a pré-escola s80 encaradas, & preciso, pois, que as identifiquemos como espaco social e educacional, de caréter politico, lutando pela efetiva contribuicéo que podem dar as criancas, 30 invés de estigmatizé-las, discriminé-las, exclut-las, mai cedo ou mais tarde. PALAVRAS FINAIS A abordagem da privagdo cultural é a base dos pro- ‘gramas compensatérios, que pretendem corrigir as defi ciéncias das criancas, praticando os cédigos, treinando habilidades, ensinando a obedecer, discriminando a cul- tura de origem, culpando a crianga, a familia ¢ o meio, pelas faltas existentes. Analisamos essa abordagem, mostrando dois nivei de critica que Ihe s80 direcionados. A partir dessa anéli se, apresentamos para debate algumas diretrizes praticas iniciais para uma acdo pedag6gica que pretenda redundar em beneficio para as criangas. (© que nos incentiva a desenvolver esse estudo (e a nos propor a continué-lo) é a tendéncia que constatamos 1no discurso oficial de defender os programas compenga- ‘térios como solugéo para os problemas do fracasso esco- lar das criangas, enquanto se tornam explicitos seus re- sultados insatisfatorios e as faldcias de seus pressupostos. Onde esté a safda? Localizé-la na reestruturacéo sbcio-econdmica da sociedade brasileira ndo pode sign ficar imobilidade dos educadores, enquanto a transfor- ago nio ver... Pensar alternativas ao nivel da prética pedagégica se constitui em desafio que consideramos valido enfrentar. Ndo podemos, no entanto, perder de vista que a discussio travada quanto & democratizacgo da educacdo se coloca em dois niveis. De um lado, é necesséria a luta pelo acesso de todos as oportunidades escolares. De outro, pela garantia de que o trabalho Pedagégico desenvolvido atue a favor das criangas das classes dominadas, a0 invés de submeté-las a mais uma dominagéo, além daquelas que nossa sociedade desigual injusta se encarrega de thes impor. 62 Cad. Pesq. (42) Agosto 1982

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