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(7 A Técnica B na Psicandalise ES, Mi Intantilt @ A.. F E R R OO A criangaeo afi sta: ' da relag ao i) = Fe eee | Ta) Or SECO AS MALLET. DA TROcHa BA ! A Técnica na Psicanalise Infantil Antonino Ferro A Técnica na Psicandlise Infantil se apresenta como uma tentativa de re- ver Os orincipais aspéctos da teoria e da técnica da psicandlise infantil, 4 luz dos desenvolvimentos kleinianos e particularmente a luz da “mudanga catastréfica” derivada do pensamento de Bion, cuja obra 6 considerada como uma expansdo dos modelos kleinianos ¢ freudianos, dos quais toma a origem ea vilalidade, O autor tenta realizar o proprio projeto, valendo-se sobretudo das situagées clinicas, que nos mos- tram em primeiro plano o analista e 0 paciente trabalhando. Sdo considera- das as principais modalidades expres- sivas da crianga no Ambito da andlise (o desenho, 0 jogo, o sonho, o didlo- go), dentro de uma otica que, partindo da relagéo e transitando através dos conceitos de “campo” e de “nao sa- » turagao”, chega a uma nova concei- tualizagéo dos personagens e dos fatos da sesso, considerados em sua qualidade de “holografias afetivas”, ou seja, como expresso sincrética e dinamica da interagao entre o funcio- namento mental do paciente e do ana- lista, durante o trabalho —- vértice que oscila com aqueles mais cléssicos que consideram og personagens como pertencentes a historia ov ao mundo interno da crianca. Rak ao ——— A TECNICA NA PSICANALISE INFANTIL < Livraria do Psicanalista 94) 3227.6008 Antonino Ferro A TECNICA NA PSICANALISE INFANTIL A crianga e o analista: da relacgéo ao campo emocional Te ae DA PSICANALISE DIRIGA ELIAS MALLET DA'ROCHA BARROS Traducao MERCIA JUSTUM. Revisdo Técnica RENZO BIROLLINI Imago Titulo original: La tecnica nella psicoanalisl infantile © 1995 Antonino Ferro Capa: VISIVA COMUNICAGAO E DESIGN: CIP-Brasil. Catalogagiio-na-fonte ‘Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Ferro, Antonino A técnica na psicandlise infantil; a criangae 0 analista da relagdo a0 campo emocional / Antonino Ferro; traducio, Mercia Justum, ~ Rio de Janeiro: Intago Ed., 1995 228p. Traduca de: 1.a tecnica nella psicoanalisi infantite Inclul apéndice e bibli ISBN 85-312.0407.0 1, Psicandlise infantil. 1. Titulo, CDD ~~ 618,928917 9461451 CDU ~ 159.922.7 Reservados todos os direitos, Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida por fotoc6pia, microfilme, processo fotomecnico ou cletronico ‘sem permissio expressa da Editora, IMAGO EDITORA LTDA, ‘Rua Santos Rodrigues, 201-A ~- Esticio 20250-430 ~ Rio de Janeiro — Ry Tel: (021) 293-2092 Imptesso no Brasil Printed in Brazit SUMARIO Apresentac4o (Giuseppe di Chiara) Prefacio (Luctana Nissim Momigliano) Capitulo 1 Um Rapido Zoom sobre os Modelos Tedricos Capitulo IL Pequeno Mapa de Orientagdo Capitulo HL O Desenho Desenho do paciente O desenho como emergéncia As palavras como “desenho” na relacdo, na anélise dos adultos O desenho de palavras no campo Algumas reflexdes Capitulo IV O Jogo Introducdo Jogo ¢ psicandlise Observacao e interpretagio O jogo ea relacao Capitulo V O Sonha Alguns pontos de vista sobre o sonho Sonho e narragoes As reveries durante a sessao Patologia da fungdo onirica Sonhos de contratransferéncia Capitulo VI O Didlogo: Personagens e Naracdes Para um “aprender com a experiéncia” Capitulo VIL A Crianga e o Grupo Familiar Apéndice A Mente do Analista ao Trabalho: Problemas, Riscos, Necessidacdes A salvaguarda do paciente A salvaguarda do analista A salvaguarda dos familiares Bibliografia A todos aqueles que comigo foram pacientes APRESENTACAO Os livros de psicanalistas que praticam a psicandlise com criangas ~ como o autor deste volume —- suscitam sempre um interesse particular io mundo dos leitores, pelo claro motivo que, j4 h4 tempo, estamos acostumados a encontrar em suas paginas, algumas das melhores coisas que a clinica ¢ a teoria psicana- Iiticas nos podem oferecer. E supérfluo relembrar os nomes dos autores aos quais devemos grande parte do progresso da disciplina psicanalitica; mas é importante relembrar que a relagao com a infancia permanece como uma exigéncia funda- mental na psicanilise. E por isso, creio, que entre os que se ocupam de criangas ~ dos educadores aos neuropsiquiatras — e a psicandlise fluem, com maior freqiéncia que em outros ambitos profissionais, boas relagées, quer dizer, relagées leais e reciprocamente produtivas. O autor deste livro, psicanalista de adultos ¢ de criangas, colocou a disposi¢ao esta sua vasta competéncia, na composicado deste trabalho de clinica, teoria e técnica da psicandlise. Aestrutura do modelo de referéncia fundamental do psiquismo é a de uma rede cujos nés foram esclarecendo-se e enriquecendo-se no decurso da pesquisa. Noés estes feitos durante a tramitacdo dos percursos pulsionais, em sets encon- tros com as relacées histéricas; nés da afetividade que conduz ao encontro ¢ que, a partir deste, volta a emergir, enriquecida e modulada ou coartada e exasperada; nés de uma rede de relagdes intrapsiquicas e nés de wna rede narrativa interpessoal. De Freud até Bion, é um percurso de enriquecimento ¢ de desenvolvimentos sobre a qual, ja ha algum tempo, vim refletindo. No ajuste de um modelo compreensivo da situagdo psiquica, segundo a éptica da psica- nalise — portanto de um ponto de vista que leve em contra primeiramente o inconsciente — Ferro utiliza, em particular, a pesquisa biontana ea dos Baranger, De Bion, vem a tonica sobre a modalidade originaria da relagdo entre duas mentes — e na vida entre a mente da crianca e a da mae, em primeiro lugar, mas junto com todo 0 “mental” que esta dispontvel no ambito do relacionamento/de- A. Ferro senvolvimento regulado pelos fendémenos da intercomunicacdo, através da iden- tificagdo projetiva e da réverie, e da interacdo destas no sentido de assegurar a metabolizacao mutativa que edifica 0 pensamento — sugestivamente indicavel como a alfabetizacao primaria. Dos Baranger, junto com Mom, a colocagdo da experiéncia do encontro no tabuleiro especifico do “campo” psicanalitico. No lastro dos autores relembrados, tantos outros trabalhos somados aquele feito em relacéo aos mesmos, ¢ particularmente na Itélia, com os quais, j4 ha muitos anos, © proprio Ferro contribui ativamente. Assim, colhe-se de modo significativo, ¢ nao ecleticamente, mas num processo de desenvolvimento e continua revisio critica, o trabalho clinico e teérico de geragées de analistas. Um fruto significative do modelo proposto € 0 desenvolvimento de uma critica convincente sobre a rigidez reificante da assim chamada interpretacdo direta da fantasia inconsciente, variagéo mais avancada da interpretacdo selva- gem, porque feita quando o cendrio interpretacao nao est4 no “campo”, mas alhures. Isto bem em continuidade vital com a licdo freudiana, E € também exemplo evidente da evolucdo do conhecimento 4 compreensao — muito bem colocado em evidéncia, recentemente, por Lussana ~ como caracteristica salien- te da pesquisa pos-kleiniana. Pelas indicagdes sumarias ja fornecidas, evidencia-se bem no livro a centra- lidade do tema da “relacdo psicanalitica”. Este tema, muito presente no trabalho dos psicanalistas da Itélia, ¢ tratado amplamente ao longo de todo o volume. Particularmente o encontramos desenvolvido no interior da reflexdo sobre o modo de encarar o sonho, A intervengdo interpretativa do psicanalista sobre 0 texto do sonho contextualiza o contar onirico naéo somente na decodificacdo guiada pelos significados relacionais, mas sustentando ao mesmo tempo o proprio movimento racional em si. O sonho desvela a trama da relagdo pacien- te-analista e a dupla historia do paciente ¢ do analista sobre o tear precioso do sonho, que constitui ¢ transforma a relagdo entre eles: verdadeiro desde sempre, s¢ quisermos, mas agota muito mais claro, tao mais claro a ponto de evidenciar o sonho como a “religido da mente” (Mancia, 1987). Oanalista nao ¢ s6 chamado a participar como supervisor do processo, mas como 0 oficial que combate, dividindo com seus soldados as fadigas da batalha — Ferro relembra esta imagem de Bion. O destino da andlise é portanto o destino do par empenhado na anilise. Naturalmente tudo isso 6 0 produto do vigoso desenvolvimento que teve a pesquisa sobre a contratransferéncia. Estaria por- tanto realmente fora de cogitagdo a possibilidade de uma cura, como ponto de chegada da andlise? Bastara para definir o fim da andlise o fato que ela deva terminar um dia? E que aquilo que conta é ter feito o melhor que se podia fazer com aquilo que se €? Certamente precisaremos fazer o melhor. Mas acredito que se deva ter consciéncia de que uma cura, uma transformagdo, néo basta, sio 10 A técnica na psicandlise infantil necessarias duas: uma que, interessando ao par em anilise, pertenca tanto ao paciente quanto ao analista, Nao devemos esquecer que a contratransferéncia se torna operagio significativa para a andlise, a partir do momento em queo analista foi, por sua vez, capaz de uma transformacdo analitica suficiente ¢ continua a ser capaz de uma suficiente auto-andlise - mesmo que seja dentro de seus limites pessoais. E € desta maneira que o traco pessoal do analista, aquele que muitas vezes é indicado como seu estilo, perde a permissao de ser o arbitro inquestio- navel da situacao analitica: € quando se restitui o valor a competéncia afetiva do analista que esta € chamada a se unir ao seu conhecimento e responsabilidade na estruturacio do campo emocional, afetivo ¢ lingitistico — gostaria de subli- nhar — no quadro de wma técnica reproduzivel ¢ transmissivel. E é para responder a essa exigéncia que o autor inseriu neste volume um capitulo dedicado ao tema especifico sobre a qualidade da mente do psicanalista no trabalho. A contratransferéncia nao é portanto a indicacao digital daquilo que acontece na mente do paciente, é mais wn sinal complexo, e 0 analista, enquanto a andlise se desenvolve, se observa com vigilancia critica e nestas paginas ele se relata. Mas qual seria orelato da psicandlise? Certamente nao é0 relato da literatura, nem aquele da narratologia. Ferro ja tinha esclarecido o sentido psicanalitico do relato, em colaboragdo com outros eminentes autores, em Psicandlise ¢ fabulas, uma obra de 85, na qual, com interessantes ensaios experimentais-observacio- nais, mostrou a importéncia para a mente das criangas da contextualidade dos contos em fabulas. Tema que é recuperado e desenvolvido num capitulo deste volume, com o aprofundamento do estudo da contempordanea “presenga de dois textos vivos que interagem continuamente entre si ¢ se transformam” (Cap. VI, nota 1). Este volume nos conta o que quer dizer praticar a psicandlise apés seis, oito geracées de analistas e de seus trabalhos. Antes de mais nada, na clinica, que ¢ o trabalho principal do analista, sem o qual nao existe a possibilidade de legitimizacao da pesquisa, teoria ¢ identidade psicanaliticas; e portanto da cura psicanalitica dos distibios psicéticos assim como as pesquisas sobte sua natureza, formagao e transformacées terapéuticas, acoplando o interesse pela cura ea paixdo da investigagdo que formam o esqueleto da psicandlise, de Freud até hoje. A estratificacdo produtiva das contribuigées cientificas sucessivas ao longo dos anos torna-se evidente em livros como este: leia-se a respeito o Capitulo II, como wma notavel tentativa bem conduzida e bem-sucedida de integrar as contribuigdes da diferentes investigacdes. Empreendimento bem-sucedido, a medida que seu autor, reconhecendo — porque as conhece e lhes é grato — as outras contribuicdes, ndo se deixa seduzir pela comoda mas restritiva e empo- aR} A. Ferro . brecedora adesdo a uma contribuicdo parcial, sustentada ideologicamente. Per- manece livre para desenvolver e cultivar a propria investigacao clinica e teérica. Leia-se, para que se possa perceber o que estou querendo pér em foco, a extraordinaria seqtiéncia da andlise de Francesca, no Capitulo Hl! De resto, as historias dos pacientes, dos encontros psicanaliticos do autor com seus pacien- les, numerosas ¢ bem-apresentadas, fazem do livro um verdadeiro atlas de técnica psicanalitica, gracas a riqueza da experiencia clinica ¢ a capacidade de transmiti-la de maneira muito vivaz, peculiar do autor. Poderia ainda dizer que se trata de um livro com belissimas ilustragdes. Nao 86 aquelas dos pacientes criangas, mas também aquelas desenhadas pelo relato do. analista-narrador. Temos assim uma extraordindria galeria de desenhos muito vivazes, uma verdadcira exposi¢ao de quadros muito significativos, talvez obras-primas da experiéncia psicanalitica. Com a particularidade de que o publico, o leitor, é convidado a conhecer as modalidades interiores, segundo as quais 0 analista ¢ seu paciente vivem, reconhecem e relatam a sua experiencia. Giuseppe Di Chiara PREFACIO No momento em que Ferro libera para o prelo o seu livro, solicita-me uma apresentacao “afetiva” para flanquear a respeitavel e “cientifica” apresentagdo de Giuseppe Di Chiara; sou de fato a mais antiga testemunha do seu inicio como candidato a Sociedade Italiana de Psicandlise. A inesquecivel “professorinha”, portanto? Ou quem sabe uma celebragao do tipo festa em familia? Mais que afetiva, esta apresentacio corre o risco de se transformar em sentimental, entio prefiro falar do quanto me parece importante a investigacdo que Ferro esta levando adiante, desenvolvendo de forma original e muito convincente o discurso que alguns de nés tinhamos comegado ha anos no Centro de Psicandlise de Mildo (que sera apresentado no volume intitulado O espaco compartilhado), e do prazer que se pode obter da leitura deste livro, especialmen- te daquelas paginas particularmente felizes onde se pode observar o analista trabalhando. Aqui nado sabemos se devemos admirar a habilidade do autor enquanto colhe, com ouvido finissime e treinado, observagées e associacSes do paciente, que poderiam ser casuais, e que se revelam indicacées preciosas sobre o andamento do trabalho, ou a sua capacidade de comunicé-las, convidando-nos a participar com ele, seja dos momentos de jabilo pelo encontro havido entre as duas mentes seja dos de reflexdo sobre as proprias incompreensdes € cercea- mentos. Pergunto-me porém que impressao pode causar esta maneira nova de fazer psicanilise, tao leve endo pantanosa, a um leitor, competente que seja, mas ainda ligado as concepgoes tradicionais da psicandlise, ou melhor, a alguns dos “clichés” ainda amplamente difundidos. Convida-lo-ia entdo a saborear as belis- simas “ilustragdes” ou vinhetas que Ferro nos expée com tanta sinceridade, tendo presentes alguns pontos fundamentais do seu discurso, tais como: a escuta acurada do que diz o paciente “assumindo como ‘verdadeiro’ o seu ponto de vista”; a conceitualizacao do “campo”: “ndo é somente o paciente que influencia 13 A, Ferro o analista com todos os relativos problemas de contratransferéncia, mas ¢ também o analista que influencia o paciente”, a interpretacgdo pensada como “algo construido a duas vozes”, onde portanto, “a decodificago do significado cede lugar a construgdo de um sentido”; o trabalho absolutamente original sobre os “personagens” (do didlogo, do desenho, do jogo, do sonho), cujo compareci- mento testemunha “a elaboracao feita pelas duas mentes” etc. Algumas das ilustragées clinicas se tornarao entéo inesqueciveis, por exem- plo, a emocionantissima historia de André e das tarantulas, ou as coisas extraordinarias que as criancas sabem dizer a quem as sabe escutar, como os sdbios comentarios de Marina, aqueles transparentes de Laura, ou a admoesta- cdo amargurada de Carlos, quando diz ao analista “Nao é assim que vocé deve falar quando estou mal; zango-me ainda mais. Vocé deve dizer-me algo seu, que me faca compreender que nao estou s6... assim eu sorrio e me acalmo...”. Nao quero me estender mais. Jé esta claro para todos que esta maneira de trabalhar analiticamente, colocando-se continuamente no jogo, me entusiasma € me comove, € que portanto aconselho calorosamente a leitura deste livro as pessoas que, através de varias especializagées, escolheram encarregar-se profis- sionalmente do sofrimento humano. E também clara, acredito, a minha convicgdo de que o candidato promissor de alguns anos atras, transformou-se hoje num pesquisador em pleno desenvol- vimento, caminhando no sentido de aprofundamentos cada vez maiores, naquilo que ocorre, quando duas pessoas estdo juntas no consultério de anilise ¢ almejam conseguir uma communica¢ao entte si, apesar dos numetosos obstacu- Jos, internos e externos, que se interpdem constantemente. O meu augiirio o acompanha. E da mesma forma, como em cada vez que ‘uma pessoa querida pot mim se destaca para seguir 0 préprio caminho e 0 proprio destino, também a Nino Ferro oferego, como viatico para uma feliz navegacao, os delicados versos de “Cos! fan tutte”: “Soave sia il vento/tranquilla sia l’onda/ Ed ogni elemento/Benigno risponda/Ai nostri desir. Luciana Nissim Momigliano UM RAPIDO ZOOM SOBRE OS MODELOS TEORICOS Diversos so os autores (Money-Kyrle, 1968; Meltzer, 1978; De Bianchedi, 1991) que, em relagao a psicandlise dos adultos, propdem, radicalizando, distinguir trés modelos fundamentais: o freudiano, o kleiniano e um modelo inspirado em Bion. Sou do parecer que tal triparticdo possa valer também para aanilise das criangas. Considero também que outros autores, ainda que de primeirissimo escalao, no fundo, nao constituem um modelo unitério préprio, mesmo tendo dado contribuig6es muito relevantes, mas se colocam como “variagdes sobre o mesmo tema”; talvez com trajetorias evolutivas complexas, como a de Meltzer que, tendo partido de posicées estritamente kleinianas, nos ultimos anos assume de manei- ra original posigées radicais do pensamento de Bion (percurso este nao diferente daquele de Rosenfeld). Nem considero que exista uma especificidade particular da analise de criancas, pela qual existiriam autores ¢ problemas de psicandlise de adultos ¢ autores e problemas de psicandlise de criangas: penso a psicandlise como “una”, com diferentes situaces clinicas onde podemos encontrar uma “realizagao”,’ com modelos diversos ¢ talvez diversos objetos; por outro lado, sublinhando as diferengas, cada encontro analitico € tmico e nao se repete. Nao ha nenhuma intengdo de objetivar ou de exautir, nos poucos pontos que vou expor para caracterizar estes modelos: falarei somente de como eles vivem dentro de mim, e de como eu os percorti até hoje. 1 Natwralmente nao ponho em discussio as necessérias diferencas de setting ou de modalidades expressivas, faco referéncia ao fato de que o funelonamento mental do anslista € 0 mesmo nos vvarlas situagées. Para um aprofundamento, remeto a Flegenheimer (1983) e Wallerstein (1988). Alem disso, falo de renlizagao e nfo de aplicagdo, enquanto estou convencido de que a assim chamada lente psicanalitica ¢ uma lente de contato que se realiza somente no contato emocional entre paciente ¢ analista no interlor de tm seiting rigoroso. 15 A. Ferro Antes de mergulhar nesta tentativa, gostaria de sublinhar como chegamos igualmente a uma tripartigao, se tentarmos caracterizar, sempre radicalizando, os diyersos modelos dependendo da maneira pela qual séo considerados os personagens da sesso (Ferro, 1991a; Bezoari, Ferro, 1992). Num primeiro modelo de escuta, os personagens sao entendidos “prevalen- temente” como nds de uma rede de relagdes historicas; os fatos narrados sao, por sua vez, ocasiao de sentimentos, conflitos, estratégias emocionais, sempre em relacdo aqueles personagens, ou fatos, que mesmo atualizados na dindmica intrapsiquica receberéo quase que o crédito de uma existéncia “propria”. De resto, € 0 que vemos acontecer nos estudos sobre personagens em literatura, antes da revolucdo proppiana.' Num segundo modelo (que encontramos maximizado com clareza em Klein e seus seguidores), os personagens sdo nés de uma rede de relacdes intrapsiqui- cas; os fatos nartados, no fundo, sao um disfarce comunicavel da realidade interna do paciente, considerada porém como ja “dada”, a espera de uma interpretacao que esclareca o seu funcionamento, reenconirando suas taizes nas fantasias inconscientes. De grande interesse ¢ estudar, por exemplo na andlise de Dick, a forma com que Klein entende os personagens que tomam corpo na sesso, ou os fatos narrados, sempre reconduziveis a fantasias inconscientes do pequeno paciente.” No terceiro modelo, e nos referimos a Bion (e aos desenvolvimentos que deste poderao derivar), os personagens séo “nos” de uma rede narrativa inter- pessoal, ou-melhor, intergrupal, que nascem como “holografias” da inter-relagao emocional atual analista-paciente. Na sesso, estéo em jogo emogées, ou melhor, estados de espirito muito primitivos, que nao tiveram ainda acesso a possibilidade de serem pensados ¢ que estéo aguardando que o analista e o paciente, usando todos os meios disponiveis, saibam recolhé-los, ndo permanecam neles submersos, ¢ possam narré-los um ao outro. No fundo, 0 par analitico (e as grupalidades que ativa) esta substancialmente buscando comunicar (verbalmente, mas ndo s6 verbalmente) as emogées que 0 invadem: freqdentemente os personagens sao “criados” ali, no encontro e do encontro das mentes; sio um dos meios possiveis de compartilhar, narrar e transformar, gracas as funcdes psicanaliticas da mente do analista,’ estes estados LNT: ~ adj, ref. a Vladimir Prop. 2. No Cap. V vou propor mais detalhadamente 0 comentario de uma sessto de Dick. 3. Di Chiara (1982) se deteve nas fungdcs da mente do analista, que individualiza na “qualidade do contato € da separagao, da dependencia e do desenvolvimento”, e da “atencao”, alcancadas por meio da andlise do analista que o instrumentaliza com “uma estrutura do carater analisada’, vide também Hautmann (1976), Carloni (1982) e Grenson (1967). 16, A técnica na psicandlise infantil primitivos da mente. Por exemplo, na famosa passagem de Bion (1962) do ice-cream/sorvete (também emogoes geladas) que € transformado no novo e dramatico personagem “I scream” ~ © grito que visivelmente ndo pode deixar de nos lembrar aquele de Munch —, é 0 desespero que encontra expressividade narrativa, Voltemos agora as trés modelizaces de que falava no inicio, Do modelo de Freud, 0 que me parece caracteristico é 0 alto indice de referenciabilidade historica atribuido as comunicagées do paciente: o que este diz ¢ considerado, mesmo se com oscilagées diversas, como um fato que teve, de qualquer maneira, muito a ver com a realidade por ele mesmo vivida; quer se trate de realidade externa, quer de realidade psiquica ativada em diferente medida com o concurso dos fatos externos: como na célebre questao da seducéo infantil. Podem ser indagados fatos que conservam, de todo modo, um alto grau de histoticidade: os fatos sao reconstruiveis, subtrainda-os ao espesso véu da repressao; varios mecanismos de defesa se opdem a atividade cognitiva do analista que devera, de alguma maneira, forcélos a fim de chegar a uma verdade a ser reconduzida a luz: trata-se de uma arqueologia, mesmo que seja uma arqueologia viva, para dizé-lo com Greeen (1973). O paciente pode vir a ser conhecido, indagado em seu funcionamento e cardter enquanto tal; € um modelo, como dizem os Baranger (1969), que embora tenha sido elaborado em termos relacionais ¢ dialégicos, comporta que a maioria dos conceitos que 0 constituem, 0 edificio tedrico, seja formulado em termos unipessoais. Retornemos a algumas notas do modelo, Geniais intuigées de Freud foram a introdugdo do método das associacdes livres em substituicdo aos da hipnose e da sugestéo, a descoberta do intenso vinculo que se cria entre paciente e analista, a transferéncia, entendida como repetigao do que ndo pode ser lembrado e que se atém a situagées da primeira infancia, e a utilizacado da interpretacdao como operac¢ao que torna consciente 0 que foi reprimido, permitindo assim um alargamento dos limites da consciéncia, E£ sabido como Freud remanejou seguidamente 0 seu dispositivo tedrico, acrescentando novas elaboracées teéricas sem nunca eliminar completamente os contetidos precedentes; permanecem no entanto centrais 0 conceito de “trauma”, de “pulsdo” ¢ de “sexualidade infantil”, o desenvolvimento através de “fases” (oral, anal, félica ¢ genital) cada uma delas acompanhada por aspectos particulares do funcionamento psiquico ¢ do carater.? 1 Deve-se poréin sublinhar como existe uma tencléncia a buscar em Freud a existéncia de tendéncias diversas (Chianese, 1988; Muratori, Cargnelutti, 1988; etc). 2 Encontraremos alguns derivados destes estados na sucessiva formulagio de PS ¢ D de Klein, entendidas de inicio como estagios evolutivos em seqtencia temporal, caracterizando “etapas” do 17 A. Ferro Uma ulterior teorizagao genial diz respeito aos sonhos: é gracas A Traumdeu- tung eA rentincia de Freud a outros modelos mais do tipo neurofisiolégico, que se tornou possivel “explicar 0 psiquico com o psiquico”, Sao individualizadas, portanto, modalidades especificas seja na formagao do sonho (realizacaio aluci- natéria de desejos, condensagao, censura, deslocamento, simbolizacdo, restos diurnos), seja na subseqiiente operagao de interpretacdo, em que o sonho sera decodificado com a contribuigéo do sonhador, o que consentiré encontrar o significado latente, oculto por tras do texto manifesto do sonho; texto que devera ser decomposto, para que se consigam as livres associagées para cada subuni- dade do mesmo, seja em teferéncia 4 vida atual ou as experiéncias infantis. Permanece no trabalho de Freud, sempre central, 0 conceito de repressdo! que “torna inacessivel e contemporaneamente conserva algo de pstquico...” (Freud, 1906), com a idéia de alguns eventos a serem desenterrados, como na cidade de Pompéia ~ lembra Freud — mesmo se tal trabalho de escavagao transita através do momento atual emocional da terapia, que permite tornar os fatos enterrados “materiais vivos da narracdo” (Petrella, 1988). De qualquer forma, esta preservada a idéia de um nitcleo historico de verdade pertencente ao paciente, ¢ que pode ser reconhecida, fato este que ¢ considerado como um fator de cura, Enfim, sao imprescindiveis as descriges do aparato psiquico com a primeira topica (inconsciente — pré-consciente — consciente) e a segunda (as instancias constituidas pelo Id, Ego, Superego). Naturalmente estes acenos so somente vestigios e seria interessante ver as implicagdes deste modelo no que diz respeito ao simbolismo, as cefesas, a interpretagao, & transferéncia, A contratransferéncia e assim por diante, mas nado € este o momento em que podemos fazé-lo. Nao podemos porém deixar Freud sem acenar a um de seus casos clinicos, que para ele (e para quem se ocupa de andlise de criangas) foi de maxima importancia. Refiro-me, naturalmente, ao Caso clinico do pequeno Hans (1908), de grande relevancia para Freud, pois lhe consentia “ver” ao vivo todas as teorias desenvolvimento mental, Sucessivamente Klein as entenderd como posigées, cada qual com uma constelacao caracteristica de angastias e defesas, Posicdes que posteriormente serao consideradas por Bion em continua oscilagiio PS ¢ D, caracterizando todo o decurso da vida mental de cada individuo. 1 A mesma centralidade que, no modelo de Freud, tem a repressiio, tera em seguida, em Klein, 0 conceito de cisto; a operagdo necessiria para cumprir as primeiras operacées mentais de discrininagho, mas que, caso supere um certo nivel, comporta a perda de partes do Self. No modelo de Bion, central seré a inter-relaco continente/contido (Q OJ que implica a ceneralidade da relacéo com o outro, come lugar onde toma vida 0 proprio aparelho para pensar os pensamentos, operagio esta que comporta uma exitosa introjecdo da relacdo com a outra mente, que abre as portas a propria pensabilidade: isso através da repetida experiéncla comunicativa do jogo entre identificagdes projetivas e operagdes de reverie. 18 A técnica na psicandlise infantil sobre 0 desenvolvimento, sobre a sexualidade infantil, Edipo e assim por diante, que tinham sido inferidas a partir da andlise de adultos e que podiam agora ser estudadas status nascendi, fornecendo a confirmagao direta das proprias teorias; muito relevante para nds, enquanto nos fornece o primeiro modelo de andlise infantil, com a possibilidade que abre de se ter acesso a linguagem paraverbal de wma crianca (semelhante as associagées livres), ao desenho, aos sonhos, as fantasias que lancam as bases cle uma técnica da psicandlise infantil. Como é sabido, trata-se da fobia por cavalos, que desenvolveu de improviso em Hans, 0 qual nao sera analisado diretamente por Freud, mas através do pai, que estabelece com Freud 0 que hoje chamariamos supervisdo. Freud encontra em Hans a confirmagao da existéncia de uma neurose infantil ¢ estigmatiza como acontecimentos traumAticos a angistia de castracdo (as ameagas da mae de que omédico lhe cortaria os genitais se continuasse a tocé-los), o nascimento da irma Hanna (ou melhor, os enganos a que Hans foi submetido naquela ocasiao, em contradigaéo com o que ele mesmo via), as dificuldades ligadas 4 evacuagio e, também, a-descricdo inexata das diferencas existentes entre os sexos. Aberastury (1981) da vivo destaque também ao trauma da amigdalectomia, ao qual remonta a fobia particular a cor do cavalo “branco”, coligada a bata do médico, assim como o medo de que os dedos fossem mordidos (“os dedos do médico que operou”; os “dedos da masturbag4o”) e afirma que esclarecimentos sexuais adequados teriam talvez evitado a fobia de Hans; enquanto as angustias de castracdo receberam confirmacdo pela amigdalectomia, que induzia a pensar que as mutilacées reais do corpo seriam possiveis. Passo a passo, naturalmente, Freud pde em evidéncia os nexos entre a fobia, 0 processo edfpico, a realidade dos impulsos sexuais, o complexo de castragao e assim por diante. Genial a tirada de Hans, ao propor ficar com a mae para si, oferecendo ao pai, em troca, aavé, com a esperada paz para todos. A medida que os aspectos conflitantes e os temores de Hans encontram explicitacao e esclarecimento, chega-se ao desaparecimento da prépria fobia. A leitura deste caso clinico nao termina nunca de pasmar ¢ fascinar, também, quando nos mostra Freud trabalhando, com extraordindria delicadeza, em seu tmico encontro com o pequeno paciente. Mais realista que o rei, ¢ também freqiientemente julgaclo por Freud exces- sivo e até intrusivo, aparece o pai, que muitas vezes invade o pequeno Hans com perguntas ¢ investigagdes ao ponto de, certa vez durante um desses interrogaté- rios, A enésima pergunta sobre o que estaria pensando, Hans responder: “No xarope de framboesa e numa espingarda para atirar nas pessoas”, como se quisesse dizer: “Num pouco de dogura e em dar um tiro em quem me atormenta desta maneira”. Seria demasiado facil mover criticas, hoje, as interpretag6es e explicagdes 19 A. Ferro fornecidas a0 menino, ou nao entender como Hans estaria se sentindo “amassa- do como a girafa” pelos esclarecimentos freqiientemente niio solicitados, mas nao podemos nos esquecer de que estavamos em 1908, nos primérdios da psicanilise e que é assombroso que se dessem sentido ¢ ouvidos as palavras, fantasias, aos sonhos de um menino de cinco anos. E também verdade que, no caso descrito freqientemente, h4 um esforco na tentativa de encontrar nas palavras de Hans uma confirmacdo daquilo que se buscava; por outro lado, era uma ocasido unica para verem-se confirmados os fundamentos teéricos da nova ciéncia. “Mas se ¢le ja sabe as coisas sem que eu as diga, é Deus?” — pergunta ao papai um Hans assombrado depois do encontro com Freud que o ilumina sobre alguns aspectos do complexo edipico. Meltzer (1978) diz que hoje naturalmente nao seriam pensaveis, sem correr graves riscos, nem uma exploracdo tao direta da vida mental de uma crianga, nem a estimulacdo das suas fantasias inconscientes, e sublinha a diferenca entre o trabalho reconstrutivo e destinado a encontrar a confirmagdo da neurose infantil feito com o pequeno Hans e aquele de Klein com seus pequenos pacientes, que desde 0 inicio tem um carater evolutivo, interessada que esta no desenvolvimento da crianca. Obviamente, infinitas foram as exercitacées feitas sobre este texto de Freud, na busca de novas verdades, pontos de vista que as vezes beiram o “descontru- tivismo”', onde todas as interpretag6es se tornam possiveis. Porém a grandeza de Freud nao esté somente em sua monumental obra teorica e clinica, esté também no fato de termos deixado “um método” de trabalho € de investigagdo (Tagliacozzo, 1990) para a compreensto dos fendmenos psiquicos, o que vale também para a anilise infantil. Depois de Freud, a tentativa de analisar criancas foi levada adiante por Hugh-Hellmuth (1921) que porém nao nos legou uma sistematizagao do seu modo de trabalhar por meio do jogo. Chegamos portanto a Sophie Morgenstern, que trabalhava na clinica de Heuyer na Franga, ¢ que nos deixou um livro sobre psicanalise da crianga (1937), onde percebemos que ela privilegiava 0 uso dos desenhos, depois que estes se tinham tornado necessdrios para o tratamento de um menino de dez anos, afetado por mutismo, que no entanto desenhava muito: o sucesso obtido a encorajou a continuar nesta dire¢&o, Rambert (1938) na Suica, introduziu o uso de marionetes com personagens tipicos (a mae, a tia, o pai, o médico etc.) animando os contos. Foram Anna Freud (1927) ¢ Melanie Klein (1932) que publicaram os 1_N.T; tendéncia flosefica que ganha seu espaco na psicanalise. 20 A técnica na psicandlise infantil primeitos dois livros de técnica que iriam permitir a sistematizacao da andlise de eriangas. Anna Freud considera necessario um periado de preparacao a anilise e yaloriza a utilizacéo do sonho, das fantasias diurnas e dos desenhos, ¢ limita a utilizagao do jogo. Veremos mais adiante porém, como a utilizagdo do jogo, no interior da situacdo analitica, assim como 0 introduziu Melanie Klein, constituiu a grande revolucdo da anilise infantil. Antes de tragar as linhas deste segundo modelo, gostaria de acenar com algumas tomadas de posi¢ao ja historicas, e com algumas teorizacées de Anna Freud que, como veremos, se distanciam muito das de Klein, apesar de terem sido, sucessivamente, bastante reelaboradas e modificadas (Aberastury,. 1981). Anna Freud afirmava que as criancas nao tém a capacidade de transferéncia por nao terem ainda desatado as suas ligacdes externas originais; nao pode haver uma segunda edicdo enquanto a primeira nao se tiver esgotado; as criangas necessitariam de um periodo preparatorio para aceitarem o tratamento e da manutencdo continuada de uma situacdo positiva, enquanto que as situacées negativas emergentes se resolveriam por meios no analiticos; seria necessaria uma acdo pedagogica constante do analista, por ter a crianca um Superego imaturo; as associacées livres ndo poderiam ser substituidas pelo jogo, ou melhor, 0 jogo livre corresponderia as livres associagdes, enquanto 0 jogo na sala de andlise seria equiparavel as resisténcias, em fungdo das continuas interrupgdes e mudangas que encontra, Posteriormente Anna Freud renunciar4 a fase preparatoria, introduzindo a crianga diretamente na situagdo analitica, mas, em muitos outros aspectos de sua teoria, nao avancar4; de qualquer forma, ndo é minha intengdo aprofundar neste texto a vivacidade de outras contribuicdes de Anna Freud, entre as quais nao posso deixar de citar as que se referem aos mecanismos de defesa do Ego, que permanecem fundamentais até hoje e para toda a psicandlise. E com Melanie Klein que se realiza uma auténtica revolugao e uma formu- lacao plena e exaustiva de um modelo de anilise infantil: mas falando em Klein, nao é possivel referir-se exclusivamente as criangas, visto o aporte geral, para toda a psicanilise, do seu modelo. Klein torna plenamente possivel uma efetiva andlise infantil, isenta de qualquer intencdo pedagégica, gracas a genial introducgao do material do jogo (vide Cap. IV), ¢ a igualmente genial intuicdo da contmua atividade de personifi- cagdo (1929) desenvolvida pela crianca, com o uso dos brinquedos na sessao, atividade semelhante em tudo e por tudo as associacées livres. Klein, ouvindo as criangas, tomou consciéncia da extrema importancia que tém pata elas os “espagos” no interior do corpo, seja o corpo da mae, seja o seu proprio corpo: deriva dai uma revolucdo da “geografia da mente” (Meltzer, 1979) al A, Ferro que se torna, assim um “lugar” onde existem presengas e acontecem [atos. E justamente o uso de uma imaginacdo prevalentemente visual (Meltzer, 1979) que permite a formagao de um modelo “teatral” da mente, descritivo dos acontecimentos que se verificam nos espacos internos, modificando assim o precedente modelo reconstrutivo freudiano.' A translagéo se torna, agora, a situagdo observavel por exceléncia, a tnica da qual se pode ter certeza: a relagdo atual analista-paciente é esclarecida pela compreensdo das identificagées proje- tivas, que enriquece a compreensao da contratransferéncia; isto.ao lado de uma extrema atengdo para com os fatos da vida externa do paciente, mesmo sendo as comunicagdes de realidade externa vistas em conexdo com as fantasias inconscientes que subentendem, Para Klein, portanto, adquire bem mais importancia 0 peso dado ao funcio- namento do mundo interno e aos [atos psiquicos que nele se passam: toda vida psiquica aparece como dominada pela atividade fantasmatica, isto 6, pelo jogo das fantasias inconscientes e das defesas a elas conectadas. Adquirem relevancia as angastias mais primitivas, ligadas a agressividade, ao instinto de morte, a destrutividade, ao sadismo, a voracidade, a inveja, ¢ as retorgdes fantasmaticas do objeto agredido: uma boa experiéncia com 0 abjeto real externo, mediada pelas interpretacdes, € o que permite gradualmente abrandar estas angistias e diminuir a distancia entre o mundo dos fantasmas inconscientes ¢ o da realidade externa: os fantasmas mais primitives, positivos e sobretudo os negativos, devem ser assumidos, ¢ sobretudo interpretados, imediatamente na transferéncia; sendo a idealizagao ou a persecutoriedade se deslocam para pessoas externas 4 andlise, com grandes riscos de atuacao (Aberastury, 1981). Torna-se, portanto, compreensivel (basta olhar a andlise de Richard) o privilégio absoluto dado ao significado das comunicacées prevalentemente do vértice do significado transferencial na atualidade. A interpretacdo destina-se, seja a tornar contatavel este mundo interno com as distorgdes, os subentendidos, as cegueiras, os ataques etc. que nele tém lugar, seja a tornar possivel o contato com as fantasias corporais mais primitivas, seja a abrandar, pelo “sentir-se compreendido e aliviado” (Lussana, 1983), a angistia de morte subjacente. O trabalho do analista parece-me, nesta optica, semelhante aquele de um “enviado da ONU” que intermedeia a relacdo-do paciente com os fantasmas do seu mundo interno: 0 paciente distorce, ataca, cinde, projeta, enquanto 0 analista, assumindo aqueles fantasmas, deve tornar 0 paciente consciente destas 1 Que se bascava nao sobre a atualidade dos fatos descritos como acontecimentos do mundo interno, mas como reconstrugao dos fatos historicos; dai o diferente significado da transferéncia como projecdo para o exterior de fantasmas atuais (Klein) ¢ como repeticao (Freud) do que nao pode ser lembrado. 22 A técnica na psicandlise infantil opetagdes que ele vai realizando e, em tltima instancia, mostrarhe a distancia entre estes seus funcionamentos ¢ a realidade externa da qual, no fundo, o analista 6a testemunha e o depositatio. Neste modelo existem inovagdes de extremo interesse (Bleandonu, 1985; Bott-Spillius, 1983; Corti, 1981; De Simone Gaburti, Fornari, 1988; Lichtmann, 1990 etc.)}: a) aimportancia dada a realidade interna, t4o “real” quanto a externa (dai a necessaria especificacdo a propésito de qual realidade se fala, se da externa ou da interna), b) o reconhecimento de um espaco interno do individuo, onde, verdadeira- mente, acontecem “os fatos das fantasias inconscientes”, c) a retrodatagao dos conflitos (em pasticular do Edipo e da formagao do Superego, cuja violéncia ¢ sadismo séo assinalados), e o ampliar a visdo para as. angtstias mais primitivas, ligadas as vicissitudes com o seio e com os outros objetos parciais; d) mais do que qualquer outra, 140 importante a ponto de tornar-se uma aquisicao de toda a psicandlise, mesmo fora da area kleiniana, a descrigao da identificacdo projetiva, como mecanismo, para livrar a mente de angistias proprias (ou partes), evacuando-as para fora ¢, ds vezes, dentro de outro que se torna receptor deste processo.’ A propria Klein parece ter-se quase assustado diante das enormes perspec- tivas que a intuigdo, ligada & descrigéio da identificagéo projetiva abria, ¢ recomendava cautela na utilizacao da contratransferéncia (no funda, o aparelho radar preposto para a interceptacdo das identificagses projetivas) e a maxima atengdo ao interpretar o que se observa no paciente até fornecer, em tempos diversos, quase que un manifesto da propria maneira de observar (vide Cap. IV). Em tal modelo, o paciente me parece visto ¢ descrito no “seu” modo de funcionar conosco como imagina que somos.” Oanalista interpreta na atualidade, (posteriormente retrodatando na historia ¢ deslocanda na realidade fora da andlise) uma relagdo transferencial entendida 1 Com Bion, dé-se uma radical mudanga de perspectiva no que diz respeito as identificacdes projetivas, das quais se colhe «.caracteristica de serem a atividade basal cla mente humana para comunicar emogées. “Acredito que o paciente faca algo ao analista e que o analista aga algo ao paciente” (Bion, 1980). . Com Bion, com os Baranger, com o conceito de “holografia afetiva” (Ferro, 1991a), ou “agregado fancional” (Bezoati, Ferro, 1991b), este ponto de vista foi derrubado: o paciente sabe com quem esté lidando, e 0 nosso modo de funcionar, de usar as defesas, de sermos mais ou menos permedveis ds suas identificagdes projetivas, estrutura o campo tanto quanto a sua maneira cle colocat-se, permanecendo o conceito de que “€ fiuncamental para.o tabalho psicanalitico” dispor de um instrumento suficientemente aperfeigosdo para poder ser empregado com “sucesso” (Di Chiaya, 1982): a mente analisada do analista, 23 A, Ferro como projeco para o exterior dos fantasmas e de modalidades internas de funcionamento do paciente; interpretara angustias ¢ defesas; permanece firme a idéia de uma neutralidade do analista (Saraval, 1985) que, se por acaso vier a se perder por causa das identificagées projetivas violentas ¢ evacuativas do pacien- te, devera ser recuperada o quanto antes.' O analista se torna local de projecio das mais antigas fantasias inconscientes do paciente e as respostas que este fornecer4 as interpretagdes serao, por sua vez, interpretadas como novas fantasias inconscientes e como testemunho das distorgées que encontrou a recep¢ao da interpretacao (Joseph, 1984). Gostaria de salientar ainda como neste modelo a projegito do que o paciente dig na atualidade da transferéncia (entendida como externalizagio do que acontece no mundo interno) permanece como eixo de sustentacdo. Duas linhas evolutivas me parecem presentes nas sucessivas modelizacées Kleinianas: uma insiste prevalentemente sobre a evidéncia da fantasia corporea subjacente, a outra privilegia a descricdo das qualidades do fato observado, num. plano de funcionamento mental, mas sempre como algo que concerne o mundo interno do paciente, mesmo que seja na “ficcdo verdadeira” da transferéncia: a modalidade de interpretacao da masturbac’o anal (Meltzer, 1965) cobre toda a gama de possibilidades desde a descricdo visual do evento até a interpretagdo das caracteristicas psiquicas que a acompanham, Permanecem, nas sucessivas evolucées do modelo kleiniano, alguns pontos absolutamente centrais: a elaboracdo exitosa da posicdo depressiva® é a garantia da satide mental e portanto da prevaléncia dos mecanismos neuréticos sobre os psicéticos. A interpretacio voltada para material profundo escolhido com base na urgéncia € wma interpretacdo de transferéncia referente a atualidade da relacéa ¢ “dali para fora e para tras”. Segal (1979), ao tentar definir as caracteristicas da andlise kleiniana, acres- centa “rigidez do setting”, para permitir aos fantasmas mais profundos se manifestarem sem contaminacdo, e “capacidade de atencéo” para com todas as formas, inclusive as identificagoes projetivas, com as: quais 0 paciente pode tentar “influenciar” a psique do analista. Outro fulcro € o de fantasia inconsciente, delineado de maneira completa por Isaacs (1948) no primeiro ensaio de As discussdes sobre as controvérsias, e definida 1 No fimdo, no modelo Kleiniano, a identificagao projetiva € aquele fato perturbador, como o era a contratransferencia no modelo freudiano: uma perturbagto de que nos deversamos livrar e que dizia respeito a algo que nao estava indo como deveria; a violencia da identificagao projetiva nfo € relativizada com a fragilidade ou estabilidade do continente que ao assumi-la pode romper-se, ou ser capaz de transformé-la. 2 PD éentendida como uma estrururacdo de angiistias ¢ defesas em que prevalecem o interesse e 0 atnor pelo objeto. 24 A técnica na psicandlise infantil como “expressdo psiquica das pulsdes”, pulsdes que nao podem ser percebidas a nao ser pelo seu representante psiquico: enquanto domina o principio do prazer/dor as fantasias sdo onipotentes, ¢ ndo existe diferenca entre as expe. “™- cias de realidade externa c as de fantasia; na mente do lactente, o desejo de cou. se torna a fantasia onipotente de ter incorporado o seio ideal que nutre, enquants o desejo de destruir se transforma na fantasia onipotente de ter destruido o seio e de ser perseguido por ele,' mesmo que a onipoteéncia dessas fantasias nunca seja completa, pois é enfraquecida pelas experiéncias da realidade externa. Remeto 0 Jeitor a Gaburri, Ferro (1988) para-um aprofundamento das principais linhas evolutivas dos desenvolvimentos kleinianos. Menciono somente como a escola kleiniana se apresenta de forma completa por intermédio de dois trabalhos coletivos: Developments in Pscychoanalysis, de 1952 (publicado por Klein com suas colaboradoras mais proximas), que com- pleta o modelo kleiniano do ponto de vista tedrico, e New Directions in Psychoa- nalysis, de 1955, que testemunha, por sua vez, a riqueza conceitual do modelo, a sua fecundidade clinica e a sua aplicabilidade em outros campos do conheci- mento. As principais linhas de desenvolvimento clinico do trabalho de Klein (a andlise das criancas ¢ a andlise dos psicéticos) conflutram no sentido de tornar posstvel um aprofundamento cada vez maior da andlise dos pacientes “neuroti- cos”, permitindo desvelar as angustias de base, ¢ no sentido de permitir uma extensio da aplicabilidade clinica da andlise em paciente, e areas de pacientes, que antes eram considerados inatingiveis. Amudanga de vértice a respeito de pacientes tradicionais influira de maneira notavel na definic¢ao de novos modelos nosograficos ¢ metapsicolégicos, e a ampliacdo do conceito de analisabilidade permitira estruturar novos modelos da mente. O desenvolvimento de continuas trocas de idéias entre Klein ¢ os seus alunos e entre eles mesmos (como um tear tecido por varias mos) determina uma verdadeira revolucdo conceitual no panorama da psicandlise, seja na aplicagdo clinica, ou fora dela, estendendo-se a estética (Segal), A dimensto politico-filosé- fica (Money-Kyrle), aos grupos (Bion), a politica ea guerra (Fornari), a vida social ¢ institucional (Elliott Jaques e Salzberger-Wittemberg). Deve-se salientar ainda que justamente a fecundidade do modelo kleiniano permitiu o transito e o uso de conceitos nascidos dentro do proprio modelo, por analistas que nao se declaravam Kleinianos, até se tornarem patriménio comum 1 JA encontramos estes conceitos em Klein em Psicandlise das criancas (1932) e mais sistematizados em O nosso mundo aduito (1959). 25 A, Ferro do movimento psicanalitico como um todo: isso vale primordialmente pata a identificacao projetiva (Ogden, 1979). Chegamos assim ao terceiro modelo e a Bion que, apesar de algumas tentativas (Bott-Spillius, 1983) de considera-lo um continuador de Klein, na realidade provoca uma ruptura com seu modelo, semelhante aquela que ela havia provocado com o modelo de Freud. O maximo divisor comum de toda a obra de Bion estaria, a meu ver, no valor absolutamente difetente atribuido 4 vida mental do analista durante a sessdo; Bion reescreve a metapsicologia segundo modalidades que incluem, no campo da observagio, a experiéncia observacional do analista (Vergine, 1990); depois de Bion, torna-se necessatio considerar a continua interagdo entre analista e paciente, ao determinar todo e qualquer desenvolvimento e resultado de um percurso analitico (Bordi, 1990). Ebom salientar que estas linhas evolutivas so criticadas por quem “gostaria de seqitestrar a atividade psicanalitica Aquela que continua compreensivel no modelo freudiano de 24, ou ... Aquilo que de qualquer maneira possa encontrar justificativa e expressdo teérica na obra de Freud” (Di Chiara, 1991). Neste ponto, tornar-se-ia riecessario um breve excursus' pelo pensamento de Bion ¢ pelas mudancas de teoria e de técnica que o seu modelo comportou, mas para isto remeto novamente a Gaburri e Ferro (1988), tanto para que se vejam as implicagées do pensamento de Bion em relagdo ao modo de entender o simbolismo, a identificacdo projetiva, a contratransferéncia, a intepretacdo, a linguagetn interpretativa, quanto para urna discusséo em progressdo cronologica das suas obras, nas quais vai se delineando, pouco a pouco, um novo modelo da mente, de pensamento e dos seus distarbios. Remeto também aos trabalhos de compéndio e comentario como o de Grinberg ¢ colaboradores (1972) e ao mais recente, de Neri e colaboradores (1987), além, naturalmente, da leitura direta de Bion e, em particular, de seus semindrios, fonte inesgotavel de aprendizado e inspiracio. Além disso, espero que varias formulagées de Bion possam ser esclarecidas nos capitulos seguintés, por meio do material clinico que nele se inspira continuamente, pelo menos nas minhas intengées. No entanto, existe algo que eu gostaria de apontar e que, como dizia, constitui 0 que acredito ser o motivo comum de toda a obra de Bion; refiro-me 4 maneira totalmente nova com que a mente do analista, o seu funcionamento as suas disfungées entram em campo. Para Bion, o analista esta presente com todo o peso atual da sua vida mental; as identificagées projetivas ndo sdo somente as evacuativas ¢ perturbadoras do 1 Nf em Latim no original, A técnica na psicandlise infantil paciente em diregao ao analista, mas sfio também uma modalidade normal das mentes dos humanos para comunicar; serdo, portanto, reciprocas e cruzadas. A historia que se desenrolara ser absolutamente nova, e “par especifico”, tanto nas evolugées criativas quanto nos resultados cicatriciais e nas mutilagées. O que conta nao é tanto a atividade interpretativa decodificadora, mas a real operacao de transformacao das identificagdes projetivas do paciente, que a mente do analista saber realizar, levando em conta que ele préprio € parte ativa no determinar os fatos que, enquanto observador, j4 contribui para determinar tdo-somente com a sua presenga, e ainda mais com a propria ordem defensiva ¢ com as prdéprias identificacdes projetivas. As defesas do analista, a sua maior ou menor permeabilidade em acolher as identificag6es, projetivas do paciente, as verdadeiras operagoes de alfabetizacdo dos elementos beta provenientes do paciente (¢ também as proprias), que ele souber realizar, constituirdo a redacdo da outra metade da historia da anilise. Gostaria mais uma vez de grifax como Bion se ocupa, antes que dos contedados do pensamento, do apatelho mental necessario para poder pensar. Isto inverte toda e qualquer aproximacdo com o paciente (e com as partes psicoticas de cada paciente), porque nao mais estaré em jogo o trabalho sobre a repressdo (Freud) ou sobre a cisdo (Klein), mas ser necessério um trabalho em direcdo a fonte: aquele sobre o “lugar” para pensar os pensamentos, sobre 0 continente antes que sobre o contetido. Isso é esclarecido por um belo exemplo de Gaburri (1992b), segundo o qual, se Freud trabalhava sobre o que tinha sido apagado do bloco magico, Bion colaca © problema do ajuste ou da construcdo do proprio bloco magico: isto ¢, do “aparelho para pensar os pensamentos”. Esta é antes de mais nada, uma operacao afetivo-emocional: a que se realiza na telaco (Q G) mie-crianca através das operacées de réverie, e com o paciente através do estar em unissono com ele, o quer quer dizer nao estar com ele em busca de verdades objetivas ou historicas, mas na mesma tonalidade afetiva, oferecendo-lhe um modelo de relacdo mental que ele possa introjetar, e que nao passa pela aquisicio de dados, mas pela aquisicao de “qualidades” (paciéncia, paixdo etc.) (Gaburri, Ferro, 1988; Di Chiara, 1990; etc.). Nao encontramos em Bion a idéia de algo a descobrir ou a interpretar, mas de algo que deve ser construfdo na relacdo e por meio daquele “unissono” que permite uma expanséo da mente ¢ da possibilidade de pensar. No que concerne a técnica da andlise, De Bianchedi (1991) observa que Bion “propde uma atitude sem memoria e desejo... uma atitude disciplinada em que a capacidade de tolerar 0 desconhecido est ligada 4 confianga em algo que vai desenvolvendo-se por meio do contato emocional com o paciente, e que este algo poder ser posto em palavras, produzindo a possibilidade de uma mudanca 27 A. Ferro xu catastréfica no paciente”. Mudanga catastréfica que implica um salto abrupto no crescimento mental (Corrao, 1981a). Mantido o conceito de que Bion sucede Klein, e de que os dois modelos podem ser considerados como estando em oscilacao, ja que cada um deles permite que nos aproximemos de certas aparéncias a certas verdades, gostaria de retomar um tema j4 apontado em Gaburri e Ferro (1988) ou seja, o das profundas diferengas existentes entre 0 modelo kleiniano ¢ o de Bion, além do ponto de vista tedrico, do operacional; isto ndo para desmerecer 0 modelo kieiniano (sem cujas aberturas, devemos lembrar, nao existiriam nem a psicana- tise das criangas, nem a dos psicoticos e de todos aqueles estados mais primitivos da mente com que estamos habituados a lidar), mas para mostrar se chegou com Bion a uma ruptura com o modelo precedente, e a formulacdo de uma nova, coerente modelizacao na qual muitos de nés acteditamos que esteja o futuro de toda a psicanilise. No modelo kleiniano o analista se encontra numa posicdo de grande privilégio em relacao ao paciente e, no fundo, tem sempre uma teoria muito sélida como ponto de referéncia; j4 no modelo bioniano’, o analista tem consciéncia de que “na sesso analitica devemos lidar com dois animais ferozes e perigosos” (Bion, 1978-1980) cuja poderosa natureza emocional esta distante de qualquer civili- zactio. No primeiro dos modelos acima referidos, o analista se encontra tenden- cialmente ancorado em D e ajuda o paciente, que ndo est em D, a dela se aproximar, progressivamente, numa seqiténcia cujas fases estado, no fundo, codificadas, bastante lineares, definitivas e de forma tal a conduzir progres- sivamente 4 plena satide mental: nesta Optica, o analista preside o desenvol- vimento de um processo.? No segundo modelo, o que conta ndo é o quanto possa fazer o analista ou o analisando, mas 0 quanto pode fazer o par (Bion, 1983). O analista est na mesma posi¢do do oficial no campo de batalha: vive e experimenta os mesmos sentimentos de medo, angéstia e terror dos seus homens (no fundo, as oscilagdes PS ¢ D da mente do analista durante a sessao), mas tem a responsabilidade do comando; sao sentimentos que nao pode deixar de experimentar (de outra forma estara ausente, longe do campo de batalha, como veremos a seguir) mas dos quais deve ser também patréo, Esta em perigo, como o paciente, consciente dle 1 Bion costumava dizer que néo se pode ser bioniano, exatamente porque isto comportatia a rentincia a propria originalidade, em fungdo da adesao a um modelo; s6 a liberdade ea unicidade do analista s80 garantias de fertilidade (Bion, 1983; Bion Talamo, 1987). 2A propésito, ¢ interessante o percurse proposta por Meltzer (1967) em O processo psicanalitico, onde estao descritas as etapas deste desenvolvimento; da “relagao de transferéncia” as “confusces geograficas”, destas as *confusdes zonais”, em seguida “no limiar da posigto depressiva”e por fit © “processo de desmame”, 28 A técnica na psicaniilise infantil que o “pensar é uma fungio nova da matéria viva" (Bion, 1978-80); em perigo pela violencia catastréfica da “verdade” dos fatos mentais que compartilha, Esta em perigo, se estiver disposto a ir exatamente ali (“estar em unissono”), onde est4 o seu paciente, segundo uma modalidade de encontro grupal das duas mentes em sessdo: aquilo que num grupo ¢ uma pessoa ou um carater “distri- buido no espaco” (Bion, 1983), numa mente é a condensacao de uma grupali- dade espaga-temporal, Nao pode estar em jogo uma cura, como ponto de chegada, mas a consciéncia, também para o analista, de ser por sua vez “um mau negocio”, de “nao poder ser completamente analisado”, do fato que, um dia ou outro, a andlise dever4 terminar, depois do que ndo restara mais que fazer “o melhor que se pode com aquilo que se é” (Bion, 1980). No primeiro modelo, o paciente projeta, distorce, ataca ou adere, age sutilmente na transferéncia,.. e o analista, no fundo, esta benevolentemente consciente de tudo isto, em parte distante, mas também nao responsvel pelo que o paciente diz ou faz (desde que o analista se atenha as linhas de uma ortodoxia técnico-clinica). No segundo modelo, a0 contrario, ¢ 0 paciente que observa e¢ comunica ao analista como este se relaciona com ele (Bion, 1983; Rosenfeld, 1987; Meltzer, 1986a), pois ele é considerado como o “melhor colega que se possa ter” (Bion, 1978-80, 1983), mas também porque descreve ao analista o seu distanciar-se ou a sua intolerancia ao que ele, paciente, diz, Num passo de extraordinaria fecundidade emocional dos Semindrios Italia- nos (1983), Bion mostra como significa uma revolucdo constatar 0 quanto “nos ndo podemos nos tornar mentalmente ausentes, quando o que © paciente esta dizendo nao nos agrada” e, mais, como o paciente grave “sabe sempre quando o analista se tornou mentalmente ausente”, Se o paciente diz: “O Sr, foi embora”, sera grande a tentacao de uma interpretacdo racionalizante que remeta as angustias de separagao pelo fim de semana, ou pelo término da analise, porque seria muito mais dificil constatar simplesmente: “O Sr. sente que eu nao estou realmente prestando atencio”. Isto coloca o problema do quanto de verdade em torno do paciente, ¢ em torno de si mesmo, a mente do analista € capaz de tolerar: “daquele analista”, com “aquele paciente”, “naquele momento”. O analista se cansa porque é mantido constantemente sob observacao pelo proprio paciente, na qualidade e autenticidade do proprio .funcionamento mental, € isto é, “o tributo que paga... pelo fato de ser um analista” (Bion, 1983). O paciente funciona, assim, também como espelho do distanciamento do analista, e Ihe permite ndo sé recuperar-se na relagdo, mas também observar o que “nao quis ouvir” ou “nao tolerou ouvir”, as emogdes que nao foi capaz de suportar e as suas zonas de escuridio, defendidas ou com resultados cicatriciais 29 A. Ferro por demais dolorosos, nisto nao diferindo de um sonho contratransferencial do analista (Barale, Ferro, 1987). No fundo, no primeiro modelo, o kleiniano, permanece uma espécie de meda da transgressao (Gaburri, 1982), e prevalece a necessidade de uma teoria firme a ser desenvolvida linearmente, mas a qual se deve permanecer “fiéis”; no segundo, ao contrario, o inspirado em Bion, existe a consciéncia do risco até mental de uma investigagdo que s6 pode continuar a ser modelizada de modo extremamente rarefeito, justamente para ndo determinar encapsulamentos ted- ricos; existe também a consciéncia de que trabalhar demasiadamente proximos da “propria teoria em sesso” determina um funcionamento mental em “pressu- posto de base”, sem espessura, correndo-se o risco de uma traducao simultanea do que o paciente diz para o correspondente na teoria utilizada, e no fundo, o risco deuma identificagao adesiva, por um lado em relacdo ao modelo, por outro Jado em relagao ao paciente, No modelo bioniano, parece-me nao existir mais uma énfase na hermenéu- tica, por mais profunda e precoce, mas o relevo dado ao campo bipessoal (ou grupal: “grupo de dois” de Meltzer) da analise, onde o que conta é que duas mentes estéo em relagéo, as modalidades desta, e os fatos emocionais que ocorrem; assim, por exemplo, a alfabetizagao de elementos beta nao sera somente fruto de interpretagdes verbalizadas, mas também das sucessdes de movimentos emocionais e relacionais entre os dois membros do par, ambos envolvidos em se defender da eventualidade de que o perigo se transforme em terror sem nome, ambos empenhados no crescimento da propria mente. Crescimento que nao é mensuravel pela quantidade de aquisigses, mas pelo aumento da disposigdo de acolhé-las (Gaburti, Ferro, 1988). Constitui-se uma relacéo nova que, em parte, transforma modalidades precedentes, que em parte vem se justapor a delas: € o funcionamento mental do analista ali, na relagao com o seu-paciente, ali, no seu modo de interpretar ou ndo interpretar, a sua capacidade de modificar o proprio esquema mental interpretativo, a rentincia a interpretagdes saturadas e o reconhecimento de uma plena atividade ao paciente (por exemplo, consentindo-lhe preencher com significados proptios uma trama aberta, como aquela das “interpretacdes narra- tivas"' ou do “tipo grupal”) que determinam a possibilidade de um novo funcionamento mental para o paciente. Para cada problema clinico,’ havera um vértice novo referente as psicopato- logias, as reconstru¢ées, aos fantasmas precoces: a questao poderd ser abservada 1 “Qual hist6ria € preciso contar”, pergunta-se Bion (1987) a respeito das interpretacdes, 2 A revolugao devida so pensamento de Bion é de tamanha importancia a ponto de gerar uma “mudanga catastrofica” em toda a psicandlise, sem distingao possivel de andlise das crianeas ou dos adultos. 30 A técnica na psicandlise infantil prestando atengdo ao reciproco modo de funcionar e de aproximar-se das duas mentes na sesso; por exemplo, para a homossexualidade, masculina ou femi- nina, estara em jogo o tipo de acasalamento das duas mentes em sessdo: homossexual se improdutivo do tipo OC como um analista que force interpre- tacdes um paciente ndo pronto ou nao disposto a acolhé-las, ou um paciente que fala a um analista nao receptivo; ou entao do tipo 9 Q fusional, em diregdo a indiferenciagdo sem a penetragdo das palayras (¢ das identificacdes projetivas de um para o outro), sem que acontega na relagdo nada de produtivo portanto, nada de transformativo, sem que nascam pensamentos (ou criangas da cena priméria), justamente porque o funcionamento das duas mentes CO’ (0 analista yeceptivo que acolhe as palavras e as identificacdes projetivas do paciente, transforma-as, devolve-as numa “temperatura” e numa “forma” supartaveis para © paciente, o qual as retoma dentro de si, integra-as por sua vez com outras preconcepcoes, ou expectativas, para tornar a dé-las ao analista) implica uma modalidade mental de acasalamento (ou uma cena priméria) da qual nascam pensamentos novos, frutos da boa unido reciproca, sem que ciime, inveja, ou qualquer forma de -K de ambos tenham impedido 9 fecundo funcionamento do par mental. Por outro lado, j4 Freud esrrevia na carta a Fliess: “Cada ato sexual um processo no qual estao implicadas quatro pessoas’, isto é, trata-se “de uma relagdo.., que implica o simulténeo e reciproco ser sujeito ¢ objeto, ativo ¢ passivo de ambos os parceiros da relacdo...”, como define com precistio Fornari (1975). A novidade est4 no vértice a partir de onde se olha tudo isto, nao como historia que se repete, ndo como fantasmas arcaicos, nem como remetimento ao corporal ou:ao sexual, mas exclusivamente ao “mental”, como tnico objeta de interesse e de conhecimento posstvel para a andlise (Alvarez, 1985), e portanto como interesse para a atualidade do funcionamento das duas mentes na sessio. Ao chegar a este ponto, considerarta iricompleta esta breve resenha sobre os trés modelos basicos, se ndo tentasse recuperar os desenvolvimentos que ocor- reram, entre os mais vivos e significativos, na América Latina: para ser breve, posso lembrar somente os nomes de Racker (estudos sobre a contratransferén- cia), Pichon-Riviére (estudos sobre grupos operativos; ligagdes entre psicanalise ¢ psicologia social), Bleger (trabalhos sobre a parte psicotica da personalidade e nucleo aglutinado), Libermann (estudos sobre a comunicagdo), Aberastury (psicandlise infantil), Etchegoyn (teoria da técnica), Raskovski (vida psiquica fetal ¢ infanticidio), Alvarez de Toledo (didlogo analitico) Grinberg (contra-iden- tificacdo projetiva; culpa e depressdo; patologia da migragio), Gear e Lendo (aplicagao da teoria da comunicacao e estruturalismo a psicandlise do casal e da familia), Chiozza (psicossoméatica), Cesio (hipocondria e psicossomitica), Bada- racco (estudos sobre sonho ¢ “objeto psicotizante”) etc, Autores que tiveram o 31 A, Ferro inérito de conjugar linha de pensamento de matriz kleiniana com fildes da psicandlise francesa ¢ americana, dando vida a desenvolvimentos muito originais e férteis, que esto ha varios anos contrilbuindo com os mais interessantes ¢ vivos desenvolvimentos da psicanalise atual. Em conclusao, vou me. deter em dois autores que desenvolveram uma teorizagdo que, em muitos aspectos, tém pontos de contato significativos com Bion, embora com marcadas diferencas, as vezes inconcilidveis: refiro-me as” conceitualizacées de Willy e Madeleine Baranger (aos quais se juntou posterior- mente Mom) referentes a sua caracterizacdo da situagdo analitica como “campo bipessoal”. Partirei do artigo-chave dos Baranger de 1961, onde estes, conjugando os conceitos de campo (como o tinham derivado da fenomenologia, em particular de Merleau-Ponty) com os conceitos-chave da psicandlise kleiiana, definem a situagdo da andlise como a de um campo bipessoal no qual se conhece somente a fantasia inconsciente de par, que se estruturou a partir das duas vidas mentais e das identificagées projetivas cruzadas que se desenvolveram entre analista e paciente: certamente com a expectativa de que o fluxo das identificagées proje- tivas seja maior do paciente para o analista. Periodicamente ¢ fisiologicamente se constituem, por causa da soma de identificagdes projetivas cruzadas, algumas zonas de “resisténcia” do par (nao do paciente!) que necessitariam de uma atencdo particular por parte do analista, que com o proprio segundo olhar devera reconhecer e interpretar esta area cega {que se opée ao progresso da andlise), definida como “bastides” (Baranger, M., Baranger W., 1961-62, 1964; Baranger, M., Baranger W., Mom, 1983; etc,). A vitalidade de uma tal concep¢4o me parece de enorme importancia, nao s6 pela superacdo das fantasias inconscientes como atinentes unicamente a0 paciente, mas sobretudo por reconhecer assim, “de pronto”, o funcionamento mental do analista como sendo estruturado também pelo do paciente, mas sendo por sua vez estruturador deste ultimo. O analista deve merguthar continuamente, ser envolvido, capturado pelas identificagées projetivas do campo, até quase assumir papéis (Gear e col., 1976), para depois poder, atrayés do segundo olhar, tomar consciéncia das mesmas ¢ interpreté-las para o paciente. Estamos préximos de muitas conceitualizagdes de Bion, quando este diz que 9 paciente sabe sempre em que esta pensando o proprio analista, como funciona mentalmente, chegando até a ser o seu melhor colega, pelo menos no sentido de que devemos sempre recolher os seus pontos de vista, a nosso respeito e sobre os fatos de analise como aquilo que mais nos pode ajudar a alcangé-lo ¢ estar em unissono com ele. Existe porém wma profunda diferenga: se por um lado, as duas vidas mentais 32, A téinica na psicandlise infanttl (de analista ¢ paciente) nos Baranger aparecem em certos aspectos mais intrica- das, mais unidas na formagao de fantasias inconscientes de par, por outro lado, é ainda a interpretacdo “forte” que o analista faz da fantasia inconsciente de par, no seu ponto de emergéncia, que permite superar o bastido e criar a possibilidade de um novo caminho até o proximo bastiao e assim por diante.,. Portanto existe ai ndo somente a interpretacéo que podemos chamar de “forte”, completa, proveniente do analista, ou melhor, do seu segundo othar, mas também a concep¢ao de que, sessio por sesso, ou varias vezes na mesma sessdo, é sempre possivel conhecer, em pouco tempo, o ponto de emergéncia da angistia, ¢ comunica-lo (Baranger, M., Baranger W., Mon, 1983). Com Bion, também estas certezas séo abandonadas em favor de uma apcdo pela nao saturacdo das interpretagdes (vide “interpretagées fracas” de Bezoari, Ferro, 1989), da continua formacao (e nunca decodificagao) de um sentido novo e¢ da consciéncia tanto dos transitos e das transformagées necessarias antes que seja possivel colher 0 ponto de emergéncia da angistia, quanto dos tempos nevessdrios para que as interpretagdes possam ser dadas... “Talvez seis dias, ou seis meses mais tarde” (Bion, 1987). Este conceito de “campo” amplia de modo notavel aquele de relacao, pois o estende a toda a situacio analitica, conseqiientemente ao setting e as regras, fornecendo também a possibilidade de um olhar mais amplo do que aquele sobre a relacdo. Isto ¢, muitos fatos podem ser pensados antes que sejam veiculados na relacio... numa espécie de Area intermediaria, onde podem viver, em que tomam corpo cenas e personagens que de outro modo permaneceriam enjaula- dos numa precoce explicitacao de movimentos relacionais (Manfredi Turilazzi, Ferro, 1990). O conceito de campo foi muito enriquecido por Corrao (1986), que o define “como uma fungao cujo valor depende da sua posigdo no espaco- tempo: sistema de infinitos graus de liberdade, dotados de infinitas determina- ges possiveis, que este assume em cada ponto do espaco e em cada instante no tempo”. Do encontro entre a “ndo saturagdo” de Bion, a “personificagdo das partes cindidas” (Klein), o “campo” (Baranger, Corrao) como espaco-lugar do encontro das identificagdes projetivas do analista ¢ do paciente, a atencdo a micrometria do didlogo na sessdo (Libermann, Nissim), por intermédio do constituir-se, do mudar, do transformar-se dos personagens e das narragées (Gaburri, Di Chiara), nasceu 0 conceito de “agregado funcional” (Bezoari, Ferro) ou “Holografia afetiva” cujo desenvolvimento veremos no curso dos capitulos que se seguirao, Quando se fala de modelos diferentes, cada um com suas préprias verdades (ou melhor, aproximacdo da verdade), torna-se dificil colher analogias e diferen- as: certamente seria interessante colocar-se o quesito dos nexos existentes entre 0 jogo das identificagdes projetivas cruzadas em sess4o (Baranger), as partes 33 A, Ferro cindidas das mentes em sessdo (Klein, Rosenfeld), as personificagées de tais partes (Klein, Bion) ¢ o papel das reciprocas grupalidades internas (Meltzer) ¢ dos supostos basicos (Bion), em relagéo aos bastides (Baranger); mas acredito que um excessivo trabalho de bisturi e de microsc6pio roubaria a estes conceitos aquele halo de insaturacdo que lhes permite um progressivo desenvolvimento. Também merece um lugar especial, naturalmente, Winnicott, pela riqueza, a originalidade e a clareza das suas contribuigdes; basta pensar, entre todas, na rea e no objeto transicional, aos conceitos de holding, de mae suficientemente capaz, de verdadeiro ¢ falso Self, mas desta forma, este capitulo seria outra coisa, mais uma reflexio sobre os modelos que uma simples introdugio a teoria da técnica do analista ao trabalho. PEQUENO MAPA DE ORIENTACAO Gostaria agora de tentar, mesmo que brevemente, definir em linhas gerais a modelo tedrico que viverd, e que eu espero poder mostrar em funcdo nos capitulos que se seguem. Kum modelo que deriva daquele que me pareceu um encontro fecundo, uma possivel confluéncia entre muitas conceitualizacées de Bion ¢ dos Baranger. A idéia mestra poderia ser expressa assim: entre paciente ¢ analista consti- tui-se um campo relacional ¢ emocional (Baranger M., Baranger W., 1961-62, 1964; Baranger M., Baranger W., Mom, 1983; Corrao, 1986, 1988) no interior do qual se criam 4reas de resistencia da dupla, que somente um trabalho de working-through do analista pode desfazer, mas isto freqiientemente ndo basta, exatamente porque a contratransferéncia é inconsciente; mas se é verdade que o paciente “sabe sempre o que o analista tem em mente” (Bion, 1983), ele capta e descreve os seus movimentos de distanciamento e aproximacdo: o resultado & que o brotar dos personagens da sessdo se coloca como um desenvolvimento de contratransferéncia do analista por parte do paciente, “melhor colega”, que adquire a fungdo de assinalar continuamente tudo 0 que acontece no campo, desde vértices para ns absolutamente desconhecidos, que devemos assimilar ¢ elaborar para consentit uma auténtica transformagdo das forgas emocionais presentes e que constituem o proprio campo (Ferro, 1991a). Naturalmente este ¢ s6 um vértice da escuta, ¢ se fosse o tinico, causaria uma relagAo que se dobraria esterilmente sobre si mesma; é um vértice de escuta em oscilagdo com aquele dotado de maior referencial externo (“histérico”) em relagao as comunicacées do paciente, ¢ com aquele dotado de maior atengdo para com o mundo interno do paciente com as suas fantasmatizagées. Deste modo se completaria todo um ciclo oscilatorio entre as Transferéncias’ 1 Naturalmente também a do analista. A. Ferro (entendidas como repeticdo e como exteriorizaciio) ¢ a Relacao, entendida como reescrita feita dos fatos emocionais pelas duas mentes juntas; no fundo as Transferéncias se colocariam analogicamente a PS como depésito a ser alcancado para as elaboracées transformativas da Relagdo, a qual continuaria sempre a necessitar das Transferéncias para alcancar emogées ainda nao pensadas ¢ transformadas, as Transferéncias entram na modalidade de funcionamento de dupla muitas vezes com modalidades subterrdneas, cujo aspecto mais significa- tivo sdo as identificagdes projetivas. A decodificagao de significados cede lugar a construgao de sentidos; novas historias se apresentam ao par para serem pensadas, historias que voltam depois a se depositar na “Historia”, depois de elaboradas ¢ transformadas (Bezoati, Ferro, 1992; Ferro, 1991b; Barale, 1990). As primeiras reflexdes que gostaria de propor, neste ponto, dizem respeito 4 importincia da identificacdo projetiva, entendida de modo fortemente relacional (Bion, 1959, 1962; Baranger M., Baranger W., 1969; Ogden, 1979, 1982; Sponitz, 1969; Manfredi Turilazzi, 1985; Di Chiara, Flegeiheimer, 1985; etc.), como algo que permite uma continua troca de elementos emocionais, que encontrardo, pouco a pouco, na possibilidade de acesso as palavras, uma modalidade privilegiada de expressio. As identificagdes projetivas estabelecem o estatuto emocional especifico e subterraneo do par, que devera encontrar a capacidade de narrar com sonhos, desenhos, anedotas, tudo © que acontece nas profundezas da troca relacional. A interpretacdo nao é considerada como algo que, estabelecido um cédigo, permite a extragéo de um significado (como um modelo kleiniano, com as continuas referencias 4 fantasia inconsciente “do” paciente, corre 0 risco as vezes de permitir), mas como a proposta de um sentido sempre ndo exaustivo, em vir-a-ser, como diria Bion insaturado, que retira das emagées do par o impulso para novos, mais complexos ¢ articulados significados que veiculam afétos (Bezoari, Ferro, 1989, 1990, 1991c; Meltzer, 1986a; Abadi, 1986). Os personagens do didlogo, do desenho, do jogo ou do sonho (nao importa por qual porta entram na sesstio) so testemunhas da “elaboragdo”, feita pelas mentes, das identificagées projetivas reciprocas, ¢ sio o modo pelo qual se pode comunicar em imagens ¢ em historias compartilhaveis tudo o que esté aconte- cendo no par, neste sentido os personagens brotam como necessidade do texto relacional de exprimir emocées e afetos. A interpretagao € pensada como algo construido “a duas vozes”, fruto da relacdo da qual participarao, de modo diferente, as duas mentes (Bezoari, Ferro, 1991b). As intervencdes do analista terao uma potencialidade semantica alta- mente insaturada, que podera permitir uma contribuicao ativa por parte do paciente, Neste sentido, Bezoari e eu (1989) falamos de “interpretacdes fracas” ~ extrapolando este termo das tematicas filos6ficas do “pensamento fraco” 36 A técnica na psicandlise infantil (Vattimo, 1983) — emi contraste com as interpretacoes “fortes”, exaustivas, que determinam uma cesura. O lugar da assimetria, a tao enfatizada dependéncia do paciente, desloca-se no working-through do analista (Brenman Pick, 1985), no continuo trabalho de assumir, de transformar, de “nomeat” (dar um nome) as identificacées projetivas do paciente, de modulagao interpretativa, de escuta da modalidade de recepcao das préptias intervengées (Langs, 1978; Joseph, 1985; Nissim Momigliano, 1984; Molinari Negrini, 1985; etc.), de atencdo aos personagens que entram na sessio como resposta verbal do paciente, ¢ no assumir responsabilidades no que concerne continuamente o campo, inclusive a contratransferéncia. Sob esta optica, o analista “depende” da capacidade de funcionamento mental do pacien- te, e deve fornecer-lhe os elementos de crescimento “trabathados” da forma em que o mesmo é capaz de assumi-los, enquanto sera o paciente a depender da capacidade de elaboracao e de réverie do analista. Sera tarefa do analista transformar os elementos beta provenientes do paciente, assumindo-os, digerindo-os, narrando-os e permitindo uma simboliza- cdo que seja, para usar a expressdo de Meltzer (1981a) “nascimento de criancas no compartilhado tilamo analitico”; além, obviamente, de proteger o paciente dos préprios elementos beta. O vértice da escuta proposta, que implica uma plena receptividade em relacdo a uma funcdo de monitoragao do campo, isto é, de atencao as transfor- mages das figuras do didlogo analitico, permite que vejamos a nés € ao paciente iluminados a partir do seu vértice, e que néo se reduzam todas as operacoes a interpretacdes na relacao, permitinde o uso direto dos personagens evocados como pegas que se podem mover, embora com a consciéncia da sua plena acepcio relacional. Além disso, a “textualidade” da interpretacdo é garantia de que todo o halo semantico proposto pelo paciente sera assumido, e nasce da consciéncia de que areal operacio de alfabetizagéo dos elementos beta do paciente é 0 pressuposto para toda simbolizacao (Ferre e col., 1986b); se a decodificagdo de significado pode ter (ou ter tido) sentido para as partes neuréticas da personalidade, para aquelas partes psicéticas, é somente uma real operacdo de alfabetizacdo que permite d sud transformacdo. E é pontualmente o paciente quem nos descreve continuamente etn que medida isto acontece ou é evitado, O paciente nos conta continuamente como somos para ele, a partir de vértices que nos sao completamente desconhecidos; devemos porém ter consciéncia de que ele nos forga a ser de tal modo que o “seu” problema possa entrar no campo muitas vezes justamente por nosso intermédio. Quando funcionamos com boa disponibilidade e permeabilidade, assumimos em 37 A, Ferro grande parte, ¢ freqiientemente interpretamos, as identificacées projetivas do pacien- te. As modalidades, quaisquer que sejam, de assumir ou ndo tais identificagdes projetivas de todo modo nos sdo contadas de novo pelo paciente. Os personagens que exprimem ou comunicam tudo isto podem, por sua vez, ser “escritos” por meio de mundos diversos: pelas lembrancas infantis, pelos fatos atuais, pelo sonho, pelas fantasias ¢ assim por diante. Entdo, se um paciente, apos uma sessdo em que eu pensava ter feito wna boa coleta, sonha que foi ao campo onde o pai tem quatro cerejeiras, ¢ que la encontrou muitas pessoas, todas amigas para dizer a verdade, mas que ja tinham calhido todos os frutos, ¢ se ele contar também que ficou desgostoso, no sonho, nao tanto porque nao tinham sobrado cerejas para ele, mas porque aquele fato Ihe tirava o prazer de leva-las ele mesmo aos seus colegas de escola, penso que © paciente me esta sinalizando um meu excesso de atividade interpretativa, que Ihe tira 0 gosto da colheita, do trabalho ¢ sobretudo da partilha (Winnicott, 1971b). E sao estes sentimentos, o prazer de “ser ele a levar os presentes aos amigos”, “a desilusdo” etc., que deverei tocar, renunciando a toda explicitagao posterior, que mais uma vez faria com que eu mesmo fizesse toda a colheita das cerejas. Torno a reafirmar que este vértice de escuta néo pode ser constantemente o tnico, pois se incorreria numa relacdo voltada para si mesma, enquanto se deve poder realizar uma continua oscilagdo dos vertices de escuta, da historia, do mundo interior, das fantasmatizagoes ¢ deste vértice que considero privilegiado entre todos, espectfico, e de maior espessura psicanalitica, isto é, volto a repetir, a escuta do que 0 paciente diz (ou ndo diz) como algo que narra continuamente 0 que acontece entre as duas mentes na sessdo, vértice que devemos compartilhar para alcancar 0 paciente onde estiver, Trata-se de orientar-se, como acontece em narratologia para os personagens, através de “uma hierarquia de codigos simultaneamente ao trabalho” (Hamon, 1972). , Outra oscilacdo que gostaria de evidenciar é a que concerne a alternancia de um olhar ampliado e de um focalizado: ¢ 0 jogo de luzes diferentes que pode iluminar, algumas vezes, o campo na sua totalidade (portanto os mavimentos derivados da interacdo entre os grupos internos do par, os “personagens da sess4o” no seu entrar em cena, movimentar-se, aparecer, sair, transformar-se) ¢, outras vezes, um dos pares ou das relacdes do campo, assumidas, naquele momento, como as mais significativas; este Ultimo fato causara uma cesura € uma transformacao de todos os fendmenos relacionais de campo, que se agregarao de modo diferente. O efeito “forte” de transformacao do campo € descrito de modo muito sugestivo em O Caso Kingelmass, um conto de W. Allen: um homem do século 38 A técnica na psicandlise infantit XX que mora em Nova York consegue, com a ajuda de um mago, “entrar” em Madame Bovary de Flaubert, e vive uma hist6ria de amor justamente com a protagonista; isto porém acatreta efeitos extraordinarios tanto no romance, porque os criticos que o estudavam de repente encontram pela frente um novo personagem ¢ novas historias que quebram o texto codificado, quante no quotidiano do senhor Kingelmass, de cuja vida passa a fazer parte Madame Bovary, quando esta lhe pede para ser levada para Nova York. Somente uma definitiva intervencao do mago permitiré a cada um “retornar ao proprio mundo eas proprias historias”. Outro exemplo dos diferentes niveis existentes entre didlogo dos persona- gens, texto narrativo, possiveis novas historias ¢ entrelagamentos, ¢ encontrado em Jacques le fataliste de Diderot, onde 0 didlogo dos dois personagens principais é interrompido quer por acontecimentos reais externos, quer por terem que vigiar continuamente onde levam os cavalos que eles montam, ou sobretudo pelas intervengées do autor dirigindo-se ao leitor, que, a cacla vez que aparece um novo personagem, acena a todas as tramas e historias que cada um deles tornaria possivel narrar. Mas voltando a nos, as narracdes do par através dos personagens servirao para transformar as emogdes subtensas e para consentir novas aberturas de sentido (mais do que decodificagdes de significado): a sessdo sera assemelhavel aum sonho de contratransferéncia' que ajudard o analista a regular o proprio arranjo mental e interpretativo (Barale, Ferro, 1987, 1992) para encontrar as fungées especificas de que o paciente necesita. E depois de uma rigida interpretacao de transferéncia que Maria me fala da av6 que “a obrigava a usar o colete apertado”: uma interpretagao decodificadora €um engaiolamento da comunica¢do, e faz assumir um sentido de maneira forte, excluindo todos os outros. Enquanto a insaturagdo em construir os sentidos, junto com o paciente, € garantia de fertilidade, se uma crianga me fala de “Henrique”, este pode ser 0 irmao do paciente (historico referencial)/uma parte cindida do paciente/ o modo de chamar o analista na transferéncia/ uma parte cindida do analista etc., mas se o deixo “Henrique” e 0 considero um agregado funcional, é tudo isto acrescido da indicacéo de uma particular modalidade de funcionamento do par, que 1 No sentido cle que somente o paciente pode continuamente sinalizar-nos onde estamos ¢ onde vamos, somente ele pode ajudar-nos a desbloquear os “bastides” (Baranger, 1961-62) ¢ tornar-nos consclentes da contratransferéncia através da apresentacdo da que acontece ao par, fornecendo © ponto, como faz 0 parceiro secreto do horhdnimo livro de Conrad, com o langamento do chapést (Gaburti, 19872), [A cltada obra classica de Joseph Conrad foi publicada pela Imago Editora no volume Mocidade ¢ 0 Parceito Secreto, Colecdo Lazuli, 1994] 39 A, Ferro ‘ comporta a entrada em cena de “Henrique para ser explicitada: pocleria tratar-se, por exemplo, daquele clima mais quente ¢ intimo no fancionamento de par que € “nomeado” justamente por meio da entrada de “Henrique”. Tinhamos entendido, Bezoari e eu (Bezoari, Ferro, 1992), o agregado fun- clonal! como 0 brotar, no didlogo analitico, de imagens, personagens e seqitén- cias narrativas que com 0 seu aparecimento, modificagdo e dissolugdo, visualizam verdadeiras holografias? animadas, as mutaveis modalidades de relacdo em sessiio. O seu estatuto, andlogo ao de uma producdo onfrica de par, confere a tais figuras do didlogo o valor de um primeiro nivel de simbolizacéo compartilhada, em que encontram representacaéo o campo emocional € os elementos que nele se movem: destas experiéncias emergirao, por transformagdes sucessivas, afetos e significados mais bem definiveis. Se visto a partir de um vértice, o par analitico fala so e sempre de si mesmo ¢ do reciproco funcionamento; todos os outros possiveis niveis, que de outros vertices € dbvio € necessdrio que existam (fantasmaticos “do paciente”, miticos da historia, reais da historia etc.}, ¢m pleno valor enquanto depésito de uma tercialidade em relagdo ao par, nao obstante essa mesma fungdo esteja ja libertada do setting e dos “personagens” da sessio. Nao posso deixar de lembrar o que ja foi dito a respeito da necessidade de uma hierarquia de cédigos (¢ de modelos?) contemporaneamente ao trabalho, para ajudar-nos na compreensao da sesso, ‘Um tiltimo comentario para ver qual o lugar a designar respectivamente para a “historia” e para a “narracdo”. Se as micro-histérias que se desenvolvem em cada sesso concernem, como quer que acontecam, A comunicacao do paciente e as réveries do analista, no hic et nunc da sesso, as mesmas se organizam numa historia que deve poder ser compartilhada e construida em conjunto. A “historia” (entendida como historia referencial ou como historia do par) se coloca como garantia de separacao e dualidade e, se de um lado 60 depésito (mitico) onde se inspira a transferéncia, de outro lado 6 também o lugar em que 1 Agregados enquanto as figuras do texto manifestado, ¢ em geral as Gestalten que emergem no campo analitico, sio constituidas pela sintese de elementos heterogeneos (verbais, emocionais, corporais) provenientes seja clo analisando seja do analista, Fuacionais porque as formas desta varlivel geométrica combinatoria s4o corelatas ao funcionamento mental do par e as necessida- des comunicativas do momento (Bezoari, Ferro, 1991b), 2 Holografta: a hotografia ¢ uma técnica Optica que, valendo-se de fontes luminosas coerentes, permite seja o registro fotografico tricivensional de um objeto sobre uma tinica ckapa, seja a sticessiva reconstrugio sempre tridimensional do mesmo objeto. A aplica¢do com petspectivas maiores ¢ aquela voltada para a realizacdo de um cinema holografico tridimensional: criar-se-ta uma stiuacio que produz uma ilusdo completa da cena representada com todos os efeitos devidos auma real presenca de objetos (Denisjk, 1979). 40 A técnica na psicandlise infantil esta, transformada pela relagdo, volta a redepositar-se e a estruturar aquela continuidade mitica que esta nas bases do sentido de identidade. Como as cisoes e os “personagens” respondem as necessidades de espacializar os afetos e os eventos psiquicos, assim a “historia”, verdadeira atividade distribuidora dos afetos no eixo do tempo, permite “datar” fatos mentais e emocionais. Também para o analista ela se apresenta como “depdsito de bagagens” onde pode deixar decantar e sedimentar fatos psiquicos do hoje, pesados demais pelas implicagées relacionais. ¢ contransferenciais ainda nao resolvidas: € 0 que acontece cada vez que dizemos ao paciente “vocé com sua mae tinha este tipo de relagio”, esquivando-nos de procurar no hoje, talvez sem sabé-lo, aquele tipo de funcionamento que descrevemos... por outro lado, Michel Strogoff de Verne também precisou mostrar-se cego, para poder continuar a ver. Todorov (1971), a propésito do género policial, examina sucessivamente: 0 romance de enigma (0 policial), o romance noir eo romance de suspense. O romance de enigma caracteriza-se pela presenga de duas historias: a do crime e a das investigacées... os personagens da segunda historia néo agem, limitam-se a adquirir informagées; além disso, postos para fora da primeira historia, ja acontecida, ndo Ihes pode acontecer nada... dificilmente se poderia pensar que o investigador possa ser ameagado, ferido ou mesmo morto. Tém-se duas historias pela frente, uma das quais esté ausente mas ¢ real, enquanto a outra estA presente mas nao é significativa. Em forte oposigao a esse modelo encontra- mos, explicitado por Todorov, o romance noir: policial em que as duas historias se fundem, ou melhor, a primeira é cancelada em favor da segunda. O delito'a ser investigado nao precede a narracdo, uma vez que acdo e narragao coincidem., Neste nado h4 um mistério, um enigma, o suspense substitui a curiosidade, a situacdo se constrdi... tudo é posstvel, e o investigador arrisca a incolumidade, se nao a vida... assim a segunda histéria, a do presente, ocupa o espaco de mdaxima importancia. Todorov descreve também uma terceira categoria: 0 ro- mance de suspense, que mantém do romance de enigma o mistério e as duas historias, uma passada e uma presente, mas nao reduz a segunda a uma pura aquisicao de dados. A segunda historia, de fato, tem um maior relevo, existe a curiosidade a respeito do passado, mas prevalece o suspense sobre o que acontecera: 0 mistério é somente um ponto de partida, ¢ o interesse principal fica a cargo da segunda historia; ademais, quem investiga perde a sua imunidade, pois se expde a todo tipo de perigo. E esse tiltimo o modelo que, transposto a questao da “historia” em psicanilise, considero o mais criativo; diferente seja da assepsia de uma psicandlise monopessoal, feita de reconstrucdes, de estruturas investigadas, descobertas pelo analista-Poirot, seja de uma fusionalidade que negue a separacdo e a diferenciacdo, mais do que das historias, das vivéncias, dos afetos das mentes. A, Ferro \ Falo de uma “historia” verdadeira do ponto de vista afetivo e por isso passivel de continuos remanejarmentos é transformacdes (como nos lembra Barale, 1990, ao referir-se as micro-historias a espera de pensabilidade, ou de outras possibili- dades de sentido obstruidas pela historia dominante, jacentes como potenciali- dades insaturadas do mundo interno). E claro que a “historia”, ria sessdo, entra em oscilagdo com a “relagdo”: assim como respeitamos as cisées de um paciente, respeitamos também os seus deslocamentos no tempo, sempre consclentes de que existem somente sentimen- tos do presente, e que se pode saber somente sobre eles, como nos lembra freqdentemente Bion; actedito porém, que os “escudos térmicos” das cisdes e do tempo devem ser respeitados como avalistas do universo afetivo do paciente (e do analista); renunciando a eles nos acharemos na situagdo ou de dois nicleos sincréticos e incomunicaveis, ou na indistingdo de um sincicio. Podemos obter um exemplo do diferente lugar ha “historia” de uma “lembranca” de um caso clinico citado por Miler (1981), a propésito de pacientes que invadiam a vida privada dos préprios analistas com continuos, irrefreaveis telefonemas notur- nos; em vez de assinalar ao paciente uma insuficiente tolerancia a frustragao até a hora da sessao seguinte de andlise, ou outros defeitos (modelo estruvural), a autora sugere a utilidade de ser capaz de perceber, no comportamento dos pacientes, a encenacdo ativa de um destino suportado passivamente por seus pais, citando como, apés uma dessas interpretacées, foi verbalizada a antiga recordagdo traumatica: o pai da paciente era um artista de sucesso e voltava para casa tarde da noite, quando a filha ja estava dormindo; gostava entdo de tird-la da cama, fazer com ela brincadeiras belissimas ¢ excitantes, até que ele ficava com sono, ¢ colocava novamente a menina na cama, pretendendo que voltasse a dormir. Mas por que — me pergunto — nao inverter o vértice de escuta e nao repensar esta cena como uma descricéo pontual do modo pelo qual a paciente vive a hora de andlise, e do funcionamento das duas mentes durante a sessdo: existe, isto é, a vivéncia de um artalista que chega tarde e que se coloca de modo excitante demais, como se ele necessitasse descarregar, tanto que depois de ter acordado e “excitado” a menina/paciente, deixa-a novamente sozinha e desilu- dida. Por que ndo extrair Gteis ensinamentos no hoje sobre como aproximar-se da paciente, sobre como interpretar para obter um efeito diferente, até mesmo pressuponido que o efeito de um analista tao excitante poderia derivar justamente da sua prépria disponibilidade para assumir as identificagées projetivas da paciente que o tornam daquela maneira; maneira que necessita, porém, ser repensada e transformada no working-through do analista, para poder escrever uma histéria nova e diferente. Mas voltarei a tudo isto a propésito do didlogo, dos modelos da mente e do estatuto dos personagens na sessdo de anilise. 42 Tl O DESENHO Devemos a Balconi e Del Carlo Giannini (1987) um rico e articulado volume sobre o desenho infantil, ao qual remeto tanto para as noticias historicas quanto para o aprofundamento das modalidades em que se entrelagam e se desenvol- vem, nos casos clinicos descritos, a atencdo ao desenho ea evolugio das relagoes terapéuticas. Gostaria no entanto de acenar a alguns marcos no que concerne o desenho na anilise infantil, o primeiro dos quais é o que o pequeno Hans (Freud, 1908) acrescenta a girafa desenhada pelo pai, o “faz xixi” da propria girafa; depois os desenhos da analise de Richard, conduzida por Klein (1961); ¢ por altimo o extraordindrio livre de Winnicott (1971a) sobre os rabiscos, que sanciona ante litteram tanto 0 estatuto de um campo bipessoal, quanto a criagado de micro-his- torias compartilhadas com os pequenos pacientes. Neste capitulo prescindirei de todos aqueles trabalhos que consideram o desenho como teste, ou com modalidades de abordagem altamente formalizadas, pata os quais remeto as numerosas obras ricas e completas sobre o argumento (Dolto, 1948; Widlocher, Engelhart, 1975; Widlocher, 1965; etc.). Também fora de niveis de leitura muito formalizados, sio diversas as modalidades pelas quais pode ser visto o desenho. Uma primeira modalidade poderia ser a de considerar o desenho como uma representacao do tipo de relagées presentes no mundo emocional da crianga, numa certa medida aproximando-se também da realidade externa, tal como acontece em algumas modalidades de leitura do desenho da familia. A figura 1 € 0 desenho de uma gémea, Franca, que acabou de se separar da irmé para ir a escola em classes diferentes; no Ingar da gémea ha uma mancha, uma espécie de buraco. Se considerado dentro de uma sessdo de anilise, 0 mesmo desenho poderia sinalizar um “buraco de compreensdo”, uma mancha cega, algo a espera de “pensabilidade” (Tagliacozzo, 1982). 43 A, Ferro Figura 1 No desenho quase igual, (fig, 2) que faz a outra gémea, Lisa, amesma mancha parece pesar sobre 0 plano de apoio, quase catapultando Lisa do contato com o mesmo. Numa sesséo, 0 mesmo desenho poderia ser pensado como as palavras excessivamente (gravosas) e pesadas do analista, que fazem perder o contato e isolam a crianga do plano do contato relacional. Toda aproximacao interpretativa do desenho depende, pois, do vértice de leitura ¢ do contexto: considero que dentro da relacdo analitica, e é exclusi- vamente deste vértice que olharei o desenho, ¢ assemelhavel a uma “fotografia onirica da vigilia” que, enquanto tal, fotografa por um vértice desconhecido uma verdade relacional e afetiva do par e do campo, a espera, porém, de um. desenvolvimento narrativo; isto é, algo que ndo estd ali para ser decodificado {ndo porque néo seja possivel fazé-lo, mas porque devemos perguntar-nos para que serviria), mas que ¢ um conjunto de ingredientes para historias possiveis de serem contadas, um promotor de historias, um “pré-texto” a espera de réverie e narracdes, Diria quase a pausa de imagem de uma gravacio - de video, a espera de que recomece a desenrolar-se o movimento, ¢ a retomar corpo uma historia. Mas voltemos um pouco atrés: como dizia, ¢ possivel considerar 0 desenho como uma brecha no mundo interno da crianca, capaz de fazer visualizat o que esteja acontecendo nele, conforme os movimentos de transferéncia do hic et nunc, Naturalmente foi Klein quem indicou de modo completo esta maneira de ver 44 A técnica na psicandlise infantil Figura 2 o desenho (como de resto o jogo) na andlise infantil, em tal dptica, € necessario observar a técnica utilizada por Klein ao interpretar os desenhos de Richard. Esta modalidade de considerar o desenho se estabilizou ao longo de dois eixos, Um deles continua prevalentemente a colocar em evidéncia a fantasia inconsciente, com a sua referéncia corpérea, subtensa no desenho! (mesma madalidade usada nas interpretacdes do material verbal, onde pode sempre ser buscada e explicitada a fantasia inconsciente profunda do paciente), como algo que se atém a crianca enquanto tal, e ao seu mundo fantasmatico que encontra, na folha de papel, uma possibilidade de exteriorizacao e, na transferéncia, uma possibilidade de projecdo. Tal modalidade enriqueceu-se ao considerar os “simbolos” contidos no desenho como o tecer, a trama do funcionamento mental da crianga. O outro eixo, por sua vez, desenvolveu-se mais centrado na mentalizacio das fantasias de transferéncia da crianca, prescinde da referéncia corpérea, portanto o que sera interpretado é 0 tipo de funcionamento mental existente naquele momento, entendido porém como uma proje¢gio dos fantasmas da crianca sobre o terapeuta, que permanece substancialmente neutto, ¢ cujo peso da vida mental nao entra no campo que contribui para criar, conforme as defesas que pde em aco e, sobretudo, através do gradiente de permeabilizacéo (Rosen feld, 1987) as identificacdes projetivas provenientes do paciente. O desenho sera usado com um sonho em relacdo ao qual se pode solicitar 45 A, Ferra associacGes, que serdo pensadas como do paciente sobre o desenho, para poder colocar em palavras, 0 mais completamente possivel, aquilo que j4 esta na imagem do desenho a espera de um intérprete. . Modalidades, poderiamos dizer com Todorov (1971), que implicam a refe- réncia a um cédigo que consinta uma tradugao, com a constituicdo de um canto e de contracanto que correm paralelos um ao outro. Lembrando sempre que nos encontramos todos sobre os ombros do peque- no Hans ¢ de Richard, valorizaria outras possibilidades de abordagem em relacdo ao desenho: refiro-me em particular aquelas que, deixando ao fundo uma referéncia Kleiniana, inspiram-se quer no conceito de “campo”, definido pelos Baranger com Mom (1961-1962, 1.983) e por Corrao (1986) (e que implica, peta situacdo analitica, como ja foi dito nos capitulos anteriores, em set concebida como uma Gestalt da qual o analista faz parte e que concorre para determinar com a propria historia, o proprio mundo interno, o proprio funcionamento mental, o proprio arranjo defensivo; campo dinamico que se estrutura por meio do jogo cruzado das identificaces projetivas, no respeito do acordo e do contrato analitico), quer em Bion quando reconhece ao paciente a capacidade de assinalar ao analista o seu funcionamento mental (do analista!): assim concebi- do, o desenho faz referéncia as modalidades atuais e efetivas do funcionamento mental do par, da situag4o bipessoal em jogo, da forgas emocionais do campo pertencentes a ambos os membros do par; ndo mais como fantasias de transfe- réncia, mas como verdadeiro fotograma ontrico do funcionamento mental de par naquele momento, mesmo se de um vértice particular e freqtientemente desco- uhecido para nés, que devemos compartilhar e assumir para alcancar o paciente onde ele esta (Ferro, 1992). ae Essa modalidade permite ndo sé reconhecer no desenho a presentifi- cacgéo dos movimentos emocionais do par, mas, derrubada a ilusdo de poder encontrar imediatamente o ponto de emergéncia da angastia, con- sente poder construir todos os desenvolvimentos narrativos possiveis junto com 0 paciente. Exatamente como na anilise dos adultos, as interpretagges “fracas” (Bezoari, Ferro, 1989) permitem, gracas justamente 4 sua insaturacao, a formagao pro- gressiva de um sentido, compartilhado, O desenho, de estatico e nevessitado de vim n cédigo e de uma tradugdo, anima-se como uma espécie de teatro afetivo e pode tornar-se um teatro “gerador de significado-sentido” (Meltzer, 1984), no desenvolvimento construtivo que as duas mentes saberao fazer com ele. . Nesta Optica, os. personagens, as coisas, os lugares do desenho serao verdadeiras holografias do funcionamento mental do par, semelhantes nisso ao conceito de “agregado funcional”, como definimos (Bezoari, Ferro, 1991b) o 46 A técnica na psicandtise infamtil Figura 3 brotar visivel por meio da narragao do funcionamento mental do par analitico durante a sessio. Considero, pois, o desenho como algo que remete ao funcionamento mental do par naquele momento, a um problema presente, e que se coloca como “bastido” (Baranger) que € também o ponto de partida para solucdes transfor- mativas e criativas para o par. DESENHO DO PACIENTE O desenho ¢ a construcdo de uma historia: Francesca Uma menina, filha de pais que desde logo me parecem “frageis”, apresenta um estranho sintoma, causa de muitas consultas e investigagdes diagnésticas que porém ndo levaram a nada, Francesca, que tem dez anos, durante varias horas ao dia grita desesperadamente, sem interrup¢do; isto Ihe acontece somente quando est4 em casa, mantendo um comportamento adequado e “normal” nas outras circunstdncias de vida. Nem ela nem os pais sabem explicar tal fendmeno, No seu primeiro encontre comigo, Francesca faz um desenho (fig. 3). 47 * PLES AOR merit yey) POA CHER Fico incerto diante de tantos possiveis significados do bosque onde nao ha pessoas (como o define a menina), populado por drvores, raposas, serpentes, peixes ¢ assim por diante... Penso em posstveis interpretagdes, mas me pergunto que uso Francesca poderia fazer delas, ¢ nenhuma me parece satisfatoria. Enquanto isso, sinto crescer dentro de mim um progressivo mal-estar por nao saber encontrar palavras adequadas, e sinto o impulso de sair do impasse dizendo alguma coisa, qualquer coisa. Francesca parece vir ao meu socorro fazendo um segundo desenho (fig. +), que mostra uma menina de peril, sem espessura, vestida de rendas e crochés, muito formal e comportada. Mas também — ou, talvez, por isso mesmo — diante desse desenho, no sei decidir-me a intervir. Vém a minha mente pensamentos sobre a bidimensionali- dade do desenho, sobre a sua faita de profundidade. Fico tentado a dizer alguma coisa, utilizando também as minhas vivéncias de angustia, desencorajamento, paralisias que certamente — penso — tém a ver justamente com Francesca, com 4B A técnica na psicandlise infontil Figura 5 a sua historia, o seu sintoma, o seu funcionamento mental. Mas 0 que dizer-Ihe e.como dizé-lo, de modo que possa Ihe ser ‘til? Prolonigando-se o meu atormentado siléncio (a percep¢do do tempo que me parecia dilatar-se hem além dos poucos instantes realmente transcorridos), Francesca, num momento, justapde o segundo desenho ao primeiro: a “menina bidimensional” ao “bosque sem pessoas”. Neste ponto, tenho uma espécie de iluminacdo e pergunto a Francesca, antmando-me: “Me diga, o que faz uma menina sozinha num bosque sem pessoas?”. “GRITAI”, é a clara resposta de Francesca, que logo depois comeca a desenhar uma outra menina (fig. 5), desta vez vista de frente, com efeito tridimensional e com um olhar intenso. O desenho fica incompleto porque termina a sessdo, mas também porque ser necessario ainda um longo trabalho antes que as angistias de Francesca possam encontrar a sua completa expressdo, antes que possain ser traduzidas em palavras (note a auséncia da boca, que permanece naa desenhada, mas que encontrara no tempo e nos desenhos seguintes um lugar proprio). Esta breve seqiiéncia clinica, tirada de Bezoari e Ferro (1991c), parece-me ilustrar, de forma simples, alguns aspectos do entrelacamento dinamico entre experiéncias afetivas € cognitivas que caracteriza 0 campo analftico (Corrao, 1988), e sobre os quais gostaria de concentrar a atencao. Em presenga de Francesca ¢ do seu primeito desenho, desde logo se me oferece a possibilidade de reconduzir a mensagem da paciente — cujos elemen- tos graficos e verbais aparecem bem estruturados — a um universo de significa 49 A. Ferra dos que me é familiar, restituindo, pois, a Francesca uma interpretacdo-tradugdo. Mas isto nao me parece adequado nem ao meu desejo de aproximar-me do.pento de vista da menina, nem 4 minha responsabilidade para com ela (o que faria Francesca com um manual de botanica e zoologia que lhe explicasse os contei- dos do bosque?). Afrouxando os lacos com os meus referenciais tedricos, comeco a sentir, por minha vez, o risco de perder-me. Modelos (e pais) “fracos” nos expsem, pois, ao medo de pensar e de nos encontrarmos “sozinhos” no bosque, onde modelos “fortes” fariam com que nos sentissemos seguros, mas que nos deixariam ver do bosque somente o que ja estivesse prefigurado por eles. O segundo desenho aguga em mim o contraste entre o fervilhar de emocoes cada vez mais inquietantes ¢ um pensamento formal incapaz de conté-las e exprimi-las. O drama da “dupla vida” de Francesca esta se atualizando dento de mim, no espaco-tempo da sessao. Mas € justamente essa avizinhacdo, em sintonia com o gesto da menina que avizinha os dois desenhos, que da partida a uma nova organizagao do campo da experiéncia. No “bosque sem pessoas” da turbuléncia emocional aconteceu um encontro, € ndo estamos mais sds. As emocdes dispetsas € sem nome, que podiam somente ser gritadas para fora, esto agora incluidas num espaco compartilhado ¢ transformadas numa experiencia que se pode comecar a contat: uma micro-historia toma corpo no hic et nunc e permitira, através da integracao das micro-historias das sess6es seguintes, construir uma “histéria” compartilha- da, Esta narrard ¢ tornara pensdveis e comunicaveis emocdes e afetos antes mudos ou incontidamente “gritados” para fora de forma desorganizada, e privados de sentido compartilhavel, A construcdo de um sentido afetivo: Marco Marco € um garoto de oito anos; no nosso primeiro encontro faz um desenho “(Big. 6) em branco e preto, sem nenhuma cor, assim como Marco me aparece como que “apagado” no seu terninho cinza. Experimento a sensacdo de estar perdido, Sou tentado pela “oralidade devoradora” do tubario e por outros possiveis significados “simbélicos”, mas me contém a idéia de que tais interven- g6es somente aumentariam a sensacdo de estar perdido. Guiado pelo penoso sentimento do “estar perdido”, penso que encontrarmo- nos, estabelecermos um contato, seria j4 alguma coisa, ¢ Ihe digo que-o desenho me parece apropriado a nossa situacdo, que na realidade pouco sabemos wm do outro, como pouca é a parte do desenho sobre a 4gua, muita, ao contrario, é a parte submetsa, como as coisas a serem descobertas. 50. A técnica na psicanilise infantil A. Ferro Em resposta ao meu comentario, acrescenta ao desenho o escafandrista ¢ 0 navio. Digo-lhe que esta se animando numa aventura em que ser possivel descobrir coisas, ¢ acrescento, olhando o navio,, que “aqui talvez haja um tesouro”, pensando, em nfvel consciente, em alguma coisa escondida no mesmo. E Marco que me sinaliza ter apreendido a implicagao afctiva da minha frase: anima-se improvisadamente, colore vivamente todos os animais, constréi um seméaforo que, alternando os sinais vermelhos e verdes, me indicaré o acerto das hipoteses que proporei em seguida. Estou estupefato, mais do que pela transformagio em technicolor do nosso filme de aventura, pela reviravolta de vértice que me sugere em relagéo ao tubardo: ha algo que procura sair, libertar-se, embora ainda retido pelo tubardo.... Gostaria de sublinhar que nao hé nenhuma decodificagdo de significado “do” desenho, mas uma historia emocional-afetiva que comega, no par, a partir da ativacdo de emogées e afetos através das identificacées projetivas que tecem “aquele tesouro” que adquire vida durante a sessio. O que conta nao é a explicitagao de necessidades mas, com Bion, a “realizagio” de “pré-concepeses” a espera de serem experimentadas numa atualidade relacional. Tudo isso pode acontecer se se realiza uma experiéncia emocional significativa, nica e irrepetivel, que adquira através do trabalho mental (réverie) no interior do par, fora de todo esquematismo ou codigo que assinalariam somente, disponibili- dade de “instrumentos”, mas ndo de espacos mentais e emogoes, O desenho como despontar narrativo: Mariella Mariella € uma menina de oito anos, profundamente marcada por um trauma: a mde teve um acidente vascular cerebral que a paralisou ¢ em seguida a tornou violenta, impulsiva, sem con'role, de tal modo que foi necessario separé-la do marido e da filha. No nosso primeiro encontro Mariella parece esténica, forte, segura de si; substituiu, assim o parece, a mae pela nova companheira do pai e pela irma maior... na escola obtém resultados brilhantes. Faz um desenho (fig. 7) que me impressiona pela falta de graca, lembra-me a vaca Clarabela, percebo que me conta 0 modo como nos comportamos, nos primeiros didlogos do encontro, num falso registro, pseudo-adulto, nao sei ainda como dizer isso tudo, quando me dou conta de que falta o nariz a figura do desenho. Chamo-the a atengdo para isso, Mariella responde que ¢ “para ndo sentir cheitos desagradaveis”, Nao posso deixar de colher ¢ de colocar em palavras o seu medo cle uma Nossa rentincia a “sentir” algo de desagraddvel; imediatamente me conta uma 52 A técnica na psicandlise infantil Figura 7 historia dilacerante “...que a cachorrinha daquela menina tinha sido envenena- da, ¢ um trauma em seguida tinha-lhe fraturado a coluna vertebral... foi curada... mas nao poderé ter filhos, sendo morre...”. Uma estiipida obtusidade era a defesa que tinhamos acionado para tomar distancia de algo “excessivo” em relagdo a capacidade das mentes de tolerar o softimento. A obtusa Clarabela, a obtusidade dos adultos, a propria obtusidade do “campo” nos primeiros momentos do nosso encontro, nada mais eram do que as defesas, ou melhor o “bastiao” que nos protegia do sentimento de que ela tivesse sido envenenada na propria parte mais viva e natural, “a cachorrinha’”, e que ela também fosse uma “menina fraturada”, com o terror de nfo poder dar a luz pensamentos ou emocées sendo morreria (de dor): foi a realizacdo de tudo isso, junto com Mariella, que nos permitiu programar a necessidade de uma anilise. Oworking-through como lugar de assimetria: Franco Franco, de nove anos, no comeco da sesso desenha um avido; descreve-o a medida que desenha os particulares, ¢ comega a colori-lo (fig. 8). 53 Figura 8 Pergunto-me de que me fala aquele avido, como posso pensé-lo e interpret- lo, mas, além de interpretagées baseadas num cédigo de leitura de contetidos, nada me vem em mente; sou entao tomado por um sentimento de mal-estar ao ver as linhas feitas no avido, para colori-lo de modo mimético, e penso: “Mas aquelas Sao rachaduras da fuselagem, das asas, eu nunca subiria num aviao com tais rachadura: E somente nesse momento que me lembro de uma minha incontinéncia interpretativa da sessdo anterior, quando nao tinha sido capaz de “manter dentro” algo que necessitava ainda de tempo para ser dito sem que tivesse efeitos traumaticos sobre ele. Ligo os dois fatos e penso que Franco esta me falando de como, estando bem no inicio do nosso trabalho, ele sente rachar a sua confianga no nosso “vetculo”, ¢ de como procura ao mesmo tempo mimetizar, esconder de si mesmo, essa crise de confianga. Decido que tudo isso ndo pode ser comunicado diretamente a Franco, porque seria “demais” para as atuais capacidades digestivas da sua mente e que, continuan- do a acompanhé-lo no seu texto narrative onde comparece agora um conflito entre duas posicdes diferentes, tenho que conseguir reconquistar aquela ordem mental e Portanto interpretativa que seja capaz de “soldar” as rachaduras da confianga... Percebo ao mesmo tempo a existéncia de um problema de “impulsividade” como a que tinha sido por mim atuada, ao assumir as identificagdes projetivas 54 A técnica na psicandiise infantil de Franco, ou melhor, de suas partes incontinentes que, em conluio com as minhas, tinham levado 4 atuacdo interpretativa... Essas partes estavam agora em conflito com as fungdes do pensamento... No texto, com Franco, falamos de conflito entre um exército violento e impulsivo que parte ao ataque impensadamente e um exército regular, bem organizado, capaz de “pensar” antes de realizar os planos. As seducées da interpretacdo “simbélica”: Marina Marina, menina de seis anos, no primeiro encontro comigo faz um desenho (fig, 9) que parece sugerir uma infinidade de leituras de contetdos: ali se poderiam descobrir com facilidade ‘seios”, “pénis”, “mamilos”, combinados de modo a fazer pensar em confusdes geograficas (Meltzer, 1967) “seio-nadegas”, “pénismamilo”, “frente-atras”. Mas qual seguir, entre as varias diregdes de interpretacdo? Enquanto penso (perguntando-me desorientado que emaranha- dos internos pode conter Marina), é a propria Marina que indica o caminho, associando espontaneamente ao desenho que “nao sabe se Ihe lembra mais um pirulito com o seu palitinho, ou as orelhas e a tromba de um elefante”. Isso poderia orientar a escuta sobre fantasias corporeas, na bipolaridade seio/penis. Mas, ouvindo ressoar nas palavras da menina as minhas proprias incertezas, sou induzido a colher sobretudo as qualidades mentais da comunicagao no hic et nunc, isto 6, a pergunta que Marina se faz sobre o desconhecido a sua frente e sobte o tipo de relagao possivel com ele. Sera wm analista acolhedor e afetuoso, coma o qual possa ter um bom contato, ov um analista violento intrusivo, que partira ao ataque com as suas interpretagdes? Esta segunda eventualidade sera mais claramente representada num quadrinho que Marina traré numa sessio seguinte, recortando-o da revista Mickey (fig. 10). Quadrinho que me confirmard a utilidade de ater-me ao texto de Marina ao ajuda-la a colocar-se perguntas e formular respostas, dependendo de como interagirei com ela, se de modo leve e terno, ou pesado e obtuso. O desenho ¢ 0 funcionamento mental do par: Marcello Marcello, num momento importante da anilise, creio que me faz entender muito bem os dois diferentes funcionamentos mentais com que me achego a cle, por meio de um desenho (fig. 11) no qual uma metade representa eu sentado diante dele, segurando um livro, e ele sozinho fazendo bip-bip com o brinquedo eletronico que, para qualquer eventualidade, traz sempre no bolso; parece dizer 35 Figura 9 que se eu estou com 0 livro das teorias e dos simbolos, ele volta a ser 0 menino mecanico, eletronico. Na outra metade da figura eu estou com uma méo estendida como uma ponte em sua direcao, e ele fala comigo. ‘Um outro particular: no primeiro caso, as minhas costas esta uma tabela onde esta escrito, PROBLEMAS RESOLVIDOS = O, como que dizendo, acredito: “Assim néo fazemos nenhum progresso”; no segundo caso esta assinalado: PROBLEMAS RESO, 0 resto (LVIDOS) néo esté na pagina, e ~ embaixo — a marca de muitos escritos. E assim que os problemas podem ser resolvidos, parece sugerir Marcello, mas ha também uma emocao, nao mais o bip-bip do menino mecanico, mas o RISO," a expressio da emogao, que s6 assim a distdncia pode ser expressa, de Marcello crianga que se sente ouvido e compreendido, Nao s6, mas também o “arroz”, cereal-alimento muito importante na longa estrada que conduz a saida da anorexia, que fora um dos motivos que levaram Marcello a andlise. Naturalmente, numa Optica de campo, o desenho remete a dois funciona- mentos atuais do par, em oscilacao entre eles: 0 anguloso e robotizado, e 0 “redondo” ¢ afetuoso, ou seja, a duas modalidades com que as mentes interagem. No campo; nas contém também todas as informacées preciosas para ajudar o analista ¢ o seu working-through, a deslocar a oscilagdo para a direita da figura: 3 N.T: RESOLVIDOS = RISOLT! em italiano; 2 Riso, em italiano, arzoz. A técnica na psicandlise infantil Figura 11 para um auténtico processo de simbolizacdo emocional compartithada, pelo qual se permita a Marcello assumir as emogdes que permaneceram muito tempo, para ele, inacessiveis como os alimentos. Desenho ¢ réverie: Massimo Toda aproximagéio ao desenho baseada num cddigo qualquer de leitura 57 A, Ferro \ corresponde a uma defesa em relacio ao pleno permeabilizar-se a ele, tmico pré-requisito para que possa ser de novo sonhado: nesta 6ptica nao podemos formular nenhuma lei sobre como ressoara dentro de nés, sobre qual detalhe ativara a nossa capacidade de reverie. Um dia Massimo faz um desenho no qual representa a entrada da casa onde moro; o meu apartamento como o ititagina; eu procuro significados, com a tentacao de recorrer as teorias € a teritativa de descodificar os simbolos, depois consigo renunciar a entender ¢ a recordar; Massimo continua diligente o perfeito desenho, até que ao escrever a legenda do que desenhou se interrompe para perguntar-me: “,,. mas como se chamam aqueles ali no canto CAN,..’ CAN... CANteiros”, € escreve em azul essa palavra, diferentemente de todas as outras palavras da legenda, escritas em preto. Assim que entendo o pedido de ajuda que o menino Massimo faz chegar até mim através do desenho do Massimo arquiteto, ele pode comecar a falar-me do seu gato, e de como este softe quando é deixado em casa. E a tiltima sesso da semana, e também a primeira vez que Massimo faz referéncia a dor pela separacdo. Massimo, menino sem necessidades, ou cujas necessidades ele sempre acreditou poder satisfazer sozinho, sente a falta de alguém. Mas isto é possivel somente depois que me sentiu sintonizado e receptivo ao seu pedido de ajuda, que nenhuma teoria me teria feito perceber. O desenha e as transformacées no tempo: Stefano Até aqui privilegiei o desenho como fotograma onirico do instante relacional, algo que ressalta as microtransformagées durante a sesso, como se pode observar na seqiiéncia das figuras e no didlogo, onde se véem claramente as transformacées instaveis ¢ reversiveis do instante relacional, que mudam com a mutagao da ordem emocional do par; ha no entanto uma outra vertente nao menos importante, a das transformacées estavels ¢ irreversiveis consideradasem periodos longos. A seqiténcia dos tres desenhos sucessivos de Stefano acontece no periodo de dois anos de terapia. Nesses desenhos, quase de engenheiro, comecam a abrir caminho tracos humanos, a principio muito mecanizados e rigidos (fig. 12), que aos poucos vaio assuthindo 0 aspecto do rosto de um menino (fig. 13), que parece mostrar-se 1_N.T. AIU... AIU... em italiano € 0 inicio da palavra aluola que quer dizer canteiro, mas ¢ tanbem o inicio da palavra AlUto, que quer dizer socorto, ajuda. 58 A técnica na psicandlise infantil camuflada e inesperadamente entre as estruturas metalicas de um navio ou de uum tanque de guerra. A cada vez, sera a frente do veiculo de desembarque, ou o painel de comando, o que se configurara quase secretamente como rosto de menino que procura emergir, estruturar-se, ser recorihecido, em meio aos aspectos autistico-mecanizados de Stefano. Até surgir o desenho de um Pinocchio (fig, 14), ainda desarticulado, ainda muito necessitado de Geppetto, e que parece capaz de mostrar o sofrimento através do “grosso espinho no cora¢do” de que falara Stefano, desenhando-o no alto a direita na figura. Transformagées irreverstveis ¢ estdveis se vistas sob a Optica do trabalho de anos, que podem ser considerados nao somente em relacdo as mudancas do mundo interno e do modo de funcionar de Stefano, mas também como a expressdo das modificagdes no modo de interagir das mentes de paciente € analista na sessio: desde as modalidades de encontro. mais.mecanizadas ¢ controladas, passando pelo emergir de uma espontaneidade maior, até realizar e poder compartilhar um pleno contato com a pena ¢ o sofrimento que comporta a integracdo e a mudanga. O DESENHO COMO EMERGENCIA, Gostaria de descrever agora outras situagoes, além daquela mais normal da crianca que faz o desenho na sala de andlise, ou que o traz, situagées nas-quais o desenho passou igualmente a fazer parte, mesmo que de modos diferentes, da andlise do paciente. " Desenho do analista feito em sessdo: Renato Quando vejo pela primeira vez Renato, ele me lembra um filhote de bisdo, ¢ se mostra logo como tal, na contencéo quase muscular (Bick, 1968) através da hiperatividade que atua para se proteger de catastréficos dissolvimentos no nada. . Nada que eu possa lhe dizer tem efeito sobre a sua cortida, qualquer, que seja o nivel da minha fala. Ao contrério, as minhas intervengdes parecem incita-lo como se as minhas palavras fossem projéteis, e em resposta a elas pega cubos de madeira ¢ os atira contra mim, atriscando atingir-me e machucar-me. Tento dizer-lhe que me sinto um cow-boy com os indios que giram ao seu redor quanto atiram uns contra os outros, Mas nada consegue fazélo parar. O 59 - = PORTAS BLINDADAS .4 MAGOES | =» 5 PORTOES DE ENTRADA = ge PORTAS NORMAIS = CAMERAS DETV = SALA DO MICRO J ESCRITORIOS ~ * DIRECAO , » ENFERMARIA~ : 7 as CAMINHOES PARA TRANSPORTES |B SALA DE INFOR” . SALA DE MANUTEN GAO DOS LINGOTES — A técnica na psicandlise infantil Figura 13 perimetro da sua corrida compreende também a sala de espera: de cabega baixa, continua a trotar, Comeco a dizer-me que seria preciso uma palicada para conté-lo, e me sinto tentado a fazé-lo fisicamente, pelo menos dentro dos limites da sala. Encontro-me porém sempre sentado no meu lugar desenhando, numa das folhas preparadas para ele, uma palicada. Para, mais curioso que interessado. Toma por sua vez um lapis e diz, fazendo grossos sinais sobre o perimetro da paligada: “E eu a arrebento, arrebento”, e desenha uma espiral vermelha; eu The digo que parece um vento, uma tromba de ar, ou talvez Nuvem Vermelha, que arrebenta todas as palicadas. Figura 14 62 A técnica na psicandlise infantil Responde, permanecendo parado: “Desenha mais paligadas!”. Eu executo colocando-me o problema se esta ¢ uma atuacdo minha, mas no meio tempo procuro desesperaclamente pensar. Quebra as paligadas com o costumeiro redemoainho colorido. Digo que parece que nao haja dique que possa fazé-lo rar. . Continuo a fazer palicadas, e num perimetro desenho algo como wma mesa. le, com uma hidrografica vermelha na mao, vai em direcdo a parede e desenha sobre um azulejo “uma cabana de indio”. Eu digo: “Um lugar para Nuvem Vermelha”. E na minha folha de papel desenho uma cabana, um menino indio e um redemoinho de vento; enquanto isso penso em como ao correr ele tinha derrubado no chio nao s6 0 contetdo da caixa de brinquedos, mas também cadeiras, méveis etc.: parece um campo de batalha; penso também que a mae me contou que nas freqientes crises pantoclasticas de Renato a wnica coisa que o faz parar so os desenhos animados. Aproxima-se e, utilizando como folha de papel ndo mais os azulejos mas a superficie da mesa, desenha por sua vez um menino indio que recothe tudo que cai de um cesto com a ajuda do amigo caranguejo com bragos que pingam sem machucar... continua o desenho,,. mas enquanto os dois amigos trabalham juntos atiram contra eles... chega um outro ciclone... A sesso vai em frente.., mas dispomos agora daqueles “personagens” que criamos juntos no nosso desenho animado, pelo qual podemos dar nome ¢ colocar em histéria o que acontece na sala e entre as nossas duas mentes, como pressuposto necessario para o reconhecimento, a narragao e a transformacao das emogées ¢ dos afetos; neste sentido recentemente Lussana (1991) falou da evolucdo entre uma modalidade interpretativa kleiniana e wma de tipo bioniano. Poder-se-ia discutir se o meu desenhar foi uma atuagao, problema ja tratado recentemente por Schlesinger (1989), ao qual acrescentaria que talvez o impe- dir-se uma liberdade nas emergéncias seria sacrificar ao rigor formalistico o que pode ser, ao contrario, comunicado e transformado ainda que por meios excepcionais e aparentemente impréprios, porque no funde os meus desenhos testemunham antes de mais nada a necessidade de descarga (como na corrida muscular de Renato), o nao poder pensar suficientemente, e a exigéncia de uma contencao, de um limite, uma vez posto o qual, poderiam em seguida acontecer as transformagées e os compartilhados processos de pensamento. Inutil dizer que considerei todos os personagens da sessio como funcées € holografias do par e das trocas emocionais do mesmo, ¢ também como pontos de partida para a narracdo de emogées ¢ afetos que, de modalidades incontinen- tes, viravam para a pensabilidade e a comunicabilidade verbalizada, no funda os protopersonagens ao nascer testemunham aqueles que jé defini como “agre- 63 ee A, Ferro gados funcionais”, dos quais voltarei a falar no fina! do capitulo, ¢ no capitulo sobre o didlogo. Sonhar o desenho: a mancha negra de Carlo Carlo € um menino de sete anos que estd procurando conter, dar lugar, distinguir os proprios sentimentos que antes eram violentamente evacuados. Tem na sessdo uma furiosa crise de cittme, em parte ligada aos sinais da passagem no horario anterior de um outro menino pela sala de anélise. Antes da explosio de cite ele tinha feito um desenho, do qual me tocara anova capacidade de conter nas margens do mesmo as (os sentimentos?) cores, € no qual me inquietara uma mancha negra sobre a qual ndo soubera o que pensar... partes escuras? destrutivas? Carlo tem a crise de citme. Eu “interpreto”, ineficazmente, a sua fitria, a sua taiva, o cidme pela passagem na sala de algum outro, de modo predominante- mente ativo, porque nao sei como fazé-lo parar enquanto grita e joga tudo no chao... Depois, passada a crise, Carlo me diz textualmente: Nao é assim que vocé me deve falar, quando estou mal; fico com mais raiva ainda; vocé deve me dar algo de seu, que me faga entender que ndo estou s6, que vocé ndo esté brave comigo, assim eu sorrio e me acalmo. Fico muito impressionado com o que me afirma, interrogo-me sobre 0 que me pede, sobre por que me diz que sao ineficazes, e mesmo nocivas, interpreta- GOes tao diretas, € penso no que fazer com ele... A noite tenho um sonho: na sala de andlise das criangas vejo algo de negro que caminha, escorrega quase, sobre a parede, nao entendo o que é... aproximo- me: é uma, “mancha negra” que parece caminhar.,. ndo, é uma barata cada vez maior... nao sei como comportar-me, parece-me no ter os instrumentos, caute- losamente pego uma varinha e comeco a enfrenté-la... golpeio-a como posso, cada vez mais forte, cada vez mais inutilmente... a barata se enfurece cada vez mais ¢ geme.., Assim que acordo me digo que o sonho me ajudou a recuperar quanto era ameacadora para mim a mancha negra, um buraco de compreensao, uma zona talvez de nao “pensabilidade” da mente de Carlo, mas também uma zona escura nao pensada da nossa relacao, e o quanto eu me defendia dela atacando-a com pseudo-interpretagées de carater evacuador e defensivo, Talvez ndo seja entao questo de interpretar tao ativamente o citmee a raiva, mas é preciso refletir sobre as palavras de Carlo, ¢ sobre 0 caminho que ele mesmo indica dizendo-me Dé-me algo de seu... faca-me entender que ndo esta com 64 Ee A técnica na psicandlise infantil raiva de mim. ..; talvez seja preciso oferecer 0 exercicio de capacidades transfor- madoras da mente do analista na sessdo, fora de esquemas interpretativos rigidos e pré-constituidos, grades de certeza para nés, mas de desespero para os pacientes; devo entao esperar que tome corpo alguma coisa produzida pela nossas duas mentes juntas, como confirmaré um sonho posterior de Carlo no. qual, numa sala, aparece “algo de horrivel em que nascem os cabelos ¢ os pelos, que porém, se tiver alguém que se ocupe dele de perto cresce ¢ assume uma forma”; a esse seguiré um outre sonho em que “um negrinho entra na floresta para conhecer os animais que ai vive”. As interpretacdes podem entao ser, as vezes, uma defesa contra a expansao da mente, para evitar reconhecer as nossas proprias partes mais animais primitivas, os nossos “monstros”, as nossas partes recusadas (Wet et al., 1989), que podem se reativar justamente no encontro ¢ na toca de identificagées projetivas com o paciente, como pressuposto pela criagéo de um campo emo- cional e pela capacidade de verbalizar os afetos. A distancia de meses, Carlo me faz um desenho (com as mesmas cores) no qual h4 um menino grande de sete anos que contém, como uma matrioska, um menino pequeno de um ano e meio, mas que esta para fazer aniversario e cresce... no higar da mancha negra: agora € uma parte crianga, que ndo fora possivel pensar antes (¢ cujas necessidades nao fora possivel reconhecer), que se estrutura e toma “corpo” no lugar da mancha negra. Nao se tratava de citme ou de destrutividade, mas de um “torrao” de necessidades infantis que precisava ser “formado” e em seguida reconhecido, Desenhar o sonho: a chave de Salvino Salvino, de doze anos, est4 numa fase adiantada da andlise, e ndo consegui- mos ainda estabelecer uma data de final do nosso trabalho (isto ligado também a patticulares fatos historicos da vida do paciente), quando fica preocupado com que eu no perceba a sua necessidade de terminar a andlise, tem um sonho em que uma porta agora pode ser aberta, gracas a chaves que mudaram “na cabega, embora mantenham o mesmo corpo”. Preocupado em nao conseguir exprimir o sentido do seu sonho, traz-me folhas de papel onde se atormentara desenhando “chaves com cabeca muda- da”, mas com 0 mesmo corpo, em que chamava de “cabeca” a parte dentada e “corpo” a parte fixa da chave; era ent4o uma composicao interna diferente, uma denteacao diferente que lhe permitia abrir a porta do luto e do fim da andlise. © desenho respondia a necessidade de fazer-me ver concretamente as 65 A. Ferro mudancas de composicdo e estruturagao interna, que ele temia que eu nao fosse ainda capaz e seguro de ver. Desenho de contratransferéncia fora da sessdo ‘Uma psicoterapeuta ha tempos em supervisdo para a psicoterapia de uma crianca muito pequena, durante um periodo de auséncia do mesmo, traz-me a sessdo de uma menina de oito anos. A psicoterapeuta, que conheci como muito atenta aos problemas do setting, conta-me, sem dar importancia, que j4 ha dois anos comeca esta terapia dando A menina quatro balinhas e ficando com outras tantas para si; das suas, ela dé duas A menina e come ela mesma as outras duas... a menina, por sua vez, come qv’%xo balimhas e guarda duas para depois da sessao. Enquanto isso eu, que ja estou espantado com esse comego, nao digo nada, somente penso comigo mesmo no domador de um citco que, antes de entrar no picadeiro, sinta tanto medo das feras que lhes dé sedativos, reservando também para si mesmo uma dose, que dividira depois, considerando mais urgente sedar as feras. A sessio se desenrola com os desenhos, feitos pela menina, de um homem ede uma mulher, que ela furaré depois repetidamente com a ponta aguda dos lapis... a terapeuta interpreta alguma coisa referente a diferenca dos sexos...¢ a angistias de castragao por causa dos lapis que se quebram (enquanto isso eu penso nas punhaladas de Brutus, ou melhor, de um bruto)... a terapeuta evidentemente no pensa, esta paralisada pelo terror,.. poderia dizer que ela nao € capaz de fazer o proprio trabalho, mas nao € assim, porque eu a vi agir com competéncia em situagdes diferentes e dificeis... se olho para o material da menina, € claro que existe uma fitria homicida para com a terapeuta (mae e pai?) «mas se olho a dupla posso entender mais; ha justamente uma paralisia do pensamento, 0 terror que faz com que se déem balinhas calmantes, terror que faz dizer coisas absolutamente insensatas diante da fiiria da menina, firia que cresce tanto mais quanto mais a terapeuta se defende... Quase por acaso, a terapeuta me mostra a este ponto um desenho que ela mesma fez (fig. 15) depois daquela sessdo: uma menina selvagem, negra, com a langa e a cabeca cheia de penas vermelhas (uma cabeca em chamas?) esta diante de uma cabana de folhas que é desenhada com duas janelas dos lados, no alto, com uma porta no centro; diz a terapeuta: “Parece a casa de um dos porquinhos na historia dos trés porquinhos e 0 lobo... a casinha de palha”. His a chave de leitura que a propria terapeuta fornece: ha uma pequena selvagem canibal, violenta, primitiva, e a terapeuta, cujo rosto assombrado 66 A técnica na psicanélise infantil Figura 15 parece ecoar na cabana com janelas-olhos esbugalhados e porta-boca escan- carada, aterrorizada, que teme nao conseguir acolher e conter a pequena selvagem; preocupada em ser sobtepujada por ela, teme ser desorganizada como continente. Um comentario caberia ainda: ndo sao tAo significativos nem a atuagao da terapeuta (as balinhas), nem as atuacdes interpretativas (as interpretacdes defensivas), mas sim o nao ter podido pensar que deveria metabolizar esses fatos. A propésito, nao posso deixar de lembrar o conto de um meu paciente psicdtico, ndo me recordo se tirado da sua historia familiar ou se de um filme, que narrava sobre um pugilista violentissimo cujos adversérios costumavam, mandarlhe jovens mogas para que o extenuassem, de modo que depois, no ringue ficasse mais facil para eles: inutil dizer que me Teconhecl no meu cativante amansélo e no desferrar, somente quando sentia a situacado sob controle, os meus golpes intepretativos, mas essa adverténcia do paciente me ajudou a elaborar quao grande era o terror que sentia em relacao a ele... Deveria disso claramente como as defesas do analista, por sua vez, estrutu- ram e modificam 0 campo; em conseqiiéncia, 0 esforco contratransferencial e 67 Figura 16 auto-analitico torna necessarias afinagdes de um instrumento submetido contt- nuamente a solicitages: os personagens da sesso, desenhos, sonhos, fornecem. constantemente ocasides e meios para esse tipo de trabalho. O “desenho” na andlise dos adultos Encontramos um precedente classico na belissima andlise de Susan, condu- zida por Milner (1969). Também Fachinelli (1983) propés, recentemente, um material grafico trazi- do por um paciente durante a analise. Como isso nao ocorre freqiientemente, Pparece-me til acrescentar um outro testemunho através do desenho (fig. 16) de uma paciente adulta, onde se nota uma propensdo intempestiva de minha parte a descobrir significados antes mesmo que emoc6es e afetos tenham encontrado um livre transito. Nos dois tempos do desenho é evidente 4 mudanga de expressio do rosto, da alegria pulsante a desilusdo triste, enquanto que de minha parte veio uma resposta indicadora de rumina¢do intelectual mais que de 68 A técnica na psicandlise infantil disponibilidade a compartilhar com a paciente a “assombrada admiragao” por todos os cometas que, parafraseando uma sugestiva metafora de Di Chiara (1990), podem aparecer na sala de andlise. AS PALAVRAS COMO “DESENHO” NA RELACAQ, NA ANALISE DOS ADULTOS Gostaria de evidenciar, por intermédio de um breve exemplo clinico, como as “palavras” dentro da sala de andlise so semelhantes a desenhos dentro da relag4o, com a intencdo de sublinhar assim a capacidade de transformagéo das linguagens ¢ de diminuir as diferencas entre andlise de criancas e de adultos, Foi Tiziana quem me fez pensar claramenteé no texto verbal de uma sessao como um quadro desenhado por meio de palavras, num periodo em que eu dava a maxima atengao @ conyunicacdo, entendida naquele momento como comuni- cacao a ser consicerada primordialmente na transferéncia, e como tal necessita- da de uma constante explicitacao. Tiziana é desde menina “noiva” de um jovem e promissor aluno da Academia de Belas Artes, com 0 qual vive uma relagdo muito intensa. Na anilise, 0 noivo “pintor” apresentar-se-4 em dois modos: as vezes serd o préprio analista nos seus afrescos interpretativos, na urdidura e na composi¢ao dos préprios enunciados, outras vezes serA uma parte da paciente que oscila entre duas modalidades de organizagao, uma narcisista-destrutiva, a outra criativa. A narcisista sera “o noivo que destréi os quadros que faz” (nesse periodo a paciente ndo tard nenhum sonho); a criativa, “o noivo que pinta e que conserva os quadros” (a paciente trard os préprios sonhos a anilise). Mas, por sua vez, isso refletiré duas modalidades de interpretagao do analista (num jogo infinito de remetimento de espelhos): a narcisista (Brenman, 1977), que destr6i os “quadros”, simplesmente porque estimula a inveja e a competitividade da paciente, ¢ a criativa, resultado de uma ligagao (O’Q) com a paciente. Como tempo, Tiziana colher4 das quadras do noivo, das minhas interpretagdes, doseu mundo interior, a qualidade ea tonalidade emocional; “o noivo pinta segundo combinagées de cores”: é assim que a tonalidade afetiva das interpretagdes sera colhida no seu todo, dar-se-4 aten¢ao ao delineat-se, ao organizar-se, ao cliversificar- se das ptoprias sensacdes, das quais tera quase uma percepcdo cromatica, e somente num segundo tempo “o noivo passard a uma técnica figurativa”. Ento, das minhas interpretagoes, sera possivel colher também o corteido descritivo, e das proprias emocées, também o elemento figurativo. Percebo assim as qualidades da minha pintura verbal, o ajuste de tons, certas catacteristicas das minhas cores, e vou a “escola de pintura” da paciente, que me 69 A. Ferro ‘ ensina a fazer quadros que correspondem cada vez melhor ao que ela experi- menta e sente durante a sessao. Mas a paciente também vem a minha “escola de pintura” e por sua vez aprende comigo como passar do cromatismo puro das sensagées a uma técnica figurativa, que comporte o reconhecimento ea descrigdo das proprias emogées e sentimentos, Dois sonhos de Tiziana testemunham esse percurso. No primeiro aparece uma mulher da Renascenga com os cabelos vermelhos (euma tranca), a qual associa Fanny Atdant; no segundo, cu dou a uma andorinha uns flocos para construir o ninho. E assim que sonha o sucesso de um processo de formacao de um “lugar” onde possa guardar os préprios pensamentos e sentimentos ardentes, problema que nos empenhara por muito tempo, desde que me trouxera um “pastel” do noivo que mostrava uma menina aflita com um rasgo no abdome, ou melhor, uma lamina branca, que indicava a falta de titero: de titero para as criancas, de lugar mental para sentimentos e paixées. Apequena releigio (“pastéis” sero por muito tempo os trabalhos do noivo) serio os flocos com que construiremos a sua capacidade de pensar e viver emogdes com autonomia... que apés anos de extenuantes evacuativas “tortas de chocolate”, sera vista ocupada em misturar, mexer, provar novos ingredientes e novas modalidades de relacao, na sua cozinha aletiva: até fazer as crépes, com as quais entre raiva (crepal)’... e dor (crepo!) se constituird a capacidade de criar algo de novo, fruto de trabalho e de pensamento. Como se vé, a atengio do analista para com o hic et nunc da relacdo, a interpretagdo € certamente modulada pela resposta do paciente quanto a “velo- cidade-distancia” (Meltzer, 1976), mas é sempre uma interpretacdo direta ¢ explicita da relacdo. Os préprios pacientes me sugeriram que esta modalidade de escuta seria “estreita demais”, quer pela proximidade as vezes excessiva que pode gerar com a ativacdo de fantasias de indistinco, quer no que diz respeito a liberdade criativa da dupla que trabalha e 4 propria liberdade da mente do paciente de gerar “pensamentos”, que ndo recebem continuamente a “néo-confirmagao” que o inevitavel deslizamento de plano e de sentido da interpretagdo forte e univoca freqiientemente comporta, Abre-se ent&o a perspectiva de considerar as interpretacdes diversamente, conjugando o que deriva das conceitualizagoes de Bion em relagdo a “insatura- fio” € ao “tempo” necessario para comunicar uma intuigéo, com o que deriva do assunto forte “de dupla” dos Baranger, isto é, o considerar a situagdo analitica como sendo constituida por um campo bipessoal para cuja estruturagdo contri- -m italiano, um jogo de palavras entre pasta (refeigo) e pastelli (dimimutivo de pasto). novo jogo de palavras com crépes e crepa (morte) crepo (morro). 70 A técnica na psicandlise infantil puem em igual medida o analista ¢ 0 paciente, mesmo cabendo ao primeiro a responsabilidade pela modulacio dos acontecimentos do campo. A conjugacio desses pontos de vista permitiré 0 modo de ver exposto no proximo paragrato. © DESENHO DE PALAVRAS NO CAMPO Parece-me cada vez mais possivel assemelhar toda a parte dialogada de uma sesso a um desenho de caracteristicas peculiares: uma continua mobilidade de todos os componentes, como num quadro vivo. O setting fornece a moldura, as emoées da dupla proporcionam a tela e as tintas, as palavras tém funcdo de agregacdo e organizacao das mesmas, até que delas derive uma forma, uma estrutura no mais das vezes como personagens, contos, histérias, alternadamente do reino animal, vegetal, ou mineral, ¢ assim por diante...mas estas figuracées, que variam de acordo como estado emocional e das relacoes do par, nada mais sAo do que o tnico modo de que as mentes dispéem para narrar 0 que acontece entre elas, sobretudo por meio da troca de identificacées projetivas cruzadas. & fascinante seguir, nesta optica, a entrada em sessdo de um “personagem”, o seu movimentar-se, transformar-se, sair de cena para se ver substituido, ow acrescentado por um outro “personagem” (de uma anedota, de uma lembranga, de uma hist6ria, de um sonho...), mas sempre para dar forma e cor a tudo que acontece no funcionamento mental do par naquele momento. Modelos diversos interagem de modo muito diferente em relagao aos “qua- dros vivos” das sessdes; mesmo aqueles com pretensdes de maior neutralidade entram na construcdo do campo, considerando também o fato de que muitas vezes as interpretacdes se colocam como defesas da mente do analista, contra a quota de dor mental que nao pode ser assimilada ou transformada. Como resultado dessa conceitualizacao, o analista assume plena responsa- pilidade e consciéncia da propria vida mental, do modo em que ela se apresente, ao estruturar o campo emocional, afetivo e lingitistico com o paciente, e a0 dar vida, entre as muitas historias posstveis, aquela tmica e irrepetivel derivada daquele encontro analitico, com todos os enriquecimentos criativos ¢ as mutila- c6es especificas. E se isto vale durante toda uma anilise, vale igualmente para cada subunidade da mesma, semana ou hora que seja. tum modelo que comporta a pergunta: “O que eu tenho a ver com o que se estrutura no campo?”.., ndo como coagdo a repetir, ou fantasmas do paciente projetados, mas sim como sinalizacdes por parte deles, do que esta acontecendo, mesmo que de um vértice no momento desconhecido para nés. Isto, com a consciéncia de que o fluxo de influéncia ¢ reciproco: nao somente a A, Ferro x 9 analista influencia o paciente, mas este, por sua vez, influencia o analista, numa circularidade nao s6 do “dislogo analitico”, como diria Nissim Momnigliano (1984), mas também, ¢ sobretudo, na continua e reciproca troca de identiificagses projetivas, Nesta Optica, o paciente “melhor colega” (Bion, 1980) exerce a fungao de contramestre que nos conta de novo e continuamente tudo o que acontece de um outro ponto de vista. Seria insensato, creio eu, usar este plano de leitura explicitando-o, como parece sugerir Langs (1975-1978); 0 capitao responsdvel pela rota, penso, deve s6 aproveitar essas sinalizacoes para manter a rota dtil Para a navegacao: isto é, aquela que consente que as partes psicéticas da personalidade tenham aquelas “realizagées” que nunca tiveram. Se depois de uma sessio considerada muito intensa pelo analista, a pequena Paciente contar que a irmazinha teve uma congestio e perdeu os sentidos depois de ter comido “risoto” demais em poucos minutos, isto sera um sinal, para o analista, de que uma carga emocional intensa demais e condensada (risoto: riso’/alimento; riso/emogao) faz com que a “funcao” irmazinha perca os sentidos (desmaiar/ perder as ligag6es), ¢ que devera ser reduzido o regime interpretativo € relacional, para que nao ocorram “perdas de significados”. Se uma outra pequena paciente sonhar que cobras se aproximam dela, enquanto a mae lhe diz para ndo se preocupar, e que o pai a colocou ao volante de um carro muito veloz e, mais, que encontrou no caminho o analista, que quase a atropelou, Jogando em cima dela a propria filha, separando a paciente da mio da mie, o analista no podera deixar de se perguntar o que ativa as cobras, onde estilo 0 pai que lhe coloca a disposi¢ao um carro veloz demais, ou a mae que ndo entende o perigo; pensard ainda, que sua propria filha jogada sobre a menina foi uma sua interpretagao “certa”, mas pensada sozinho e jogada sobre a paciente: como, de fato, interpretara “o irmAo que tinha raiva dos sulistas” como uma patte agressiva da paciente, que tinha raiva do analista; ainda nao era o momento, havia no campo uma menina.que Necessitava que a me mantivesse ali aquele “irmao perigoso”. Todo esse nivel intratextual, ou subtextual, ndo sera certamente interpretavel Pata o paciente; por esta Optica, toda a sesso nao sera mais que um sonho de contratransferéncia que ajudara o analista a regular o proprio estado mental ¢ interpretativo para reencontrar aquelas funcdes especificas de que o paciente necessita, por exemplo “uma mde que a conserve perto”, que entenda os perigos da pressa, das associaces velozes demais ¢ talvez improprias, de partes cindi- das:? e depois, por que deveriam ser somente dos pacientes? Aqui se inverte 0 conceito de dependéncia: nao deve mais ser o paciente 1 Vide nota da tadutora p. 56, 2. Amesma paciente, ap6s uma minha interpretacdo que combinavs duas partes cindidas precoce- ‘mente, tem o que definirei “um audiograma onirico” e ouve realmente as vozes dessas “partes” ‘que “falam dentro da sua cabeca”, 72 A técnica na psicandlise infantil dependente do analista ao assumir as interpretagdes comida/crianga, como no fundo é aceito pelas partes neuroticas, mas deve ser 0 analista capaz de depender das necessidacles emocionais do paciente. Se um paciente disser: “Meu pai fica demais no trabalho, demais no hospital e pouco conosco em familia, nunca nos toma pela mao e muito menos nos coloca sobre os joelhos”, ndo sera certamente a erotizagdo que estara em jogo, mas a solicitagao de um funcionamento mental diferente por parte do analista, para que interprete ¢ trabalhe menos (explicita- mente), acolhendo e escutando mais também o nivel manifestado do paciente, respeitando o seu texto, e funcionando como o pai que acompanha e fica afetuosamente por perto, mais do que como pai sempre no trabalho. Nos quadros vivos que o emparelhamento na sessao gera, sdo multiplas as interferéncias e os incémodos, no mais das vezes gerados justamente pelo analista que, no fundo, funciona (e deve funcionar) como o grande assumidor das identificagées projetivas do paciente e, enquanto tal, coloca-se como vefculo de entrada em cena de um dado funcionamento mental que o paciente chamara depois de modo “X”, ou através do personagem “Z”. Mais que a interpretacéo que gera um choque no campo, é o recebimento da sinalizagao do paciente sobre o que acontece que permite uma modificagdo gradual das intervengdes, e, portanto, a transformacdo dos “personagens” da sesso como expressdes do clima emocional do par enquanto trabalha (Ferro, 1991, 1992a,b). Mas veremos melhor tudo isso no Capitulo V sobre o didlogo. ALGUMAS REFLEXOES Deixarei sem comentario posterior as sequiéncias clinicas propostas, porque acredito que o modelo subtenso pode ser facilmente inferido das situacdes descritas, Gostaria somente de acenar com algumas possibilidades de ver, também através dos desenhos statu nascenti, os “agregados funcionais” (como no exemplo dos personagens do pequeno bisdo, ou do avido, ou das transformagées Robé Pinéquio), no sentido de que existe sempre um vértice do qual se pode olhar o desenho como “agregado funcional”, e somente sobre eles eu gostaria de dizer algo mais. Se é verdade que a troca entre analista e paciente € mais ampla do que a verbal, e que ao lado das palavras existem outras modalidades de comunicacdio (especialmente através das identificagées projetivas de um e de outro, sobre um, e sobre outro), isto leva a uma consciéncia sempre maior de que nao é sempre t4o imediata a possibilidade de atribuir a um dos dois membros do par analitico as partes e os funcionamentos cindidos, ¢ como estes determinam os aconteci- mentos da sessao, Rosenfeld (1987) ressalta a capacidade do paciente de sonhar 3 A, Ferro as partes cindidas da mente do analista ¢, além disso, as interferéncias que estas podem determinar na sua ordem mental e interpretativa. O sonho da noite, que pode ser lembrado ou nao ao acordar, ¢ considerado por Bion, ¢ retomado por Meltzer, como a amostra de um procedimento continuo que acontece seja quando dormimos, seja quando estamos acordados. Assim, também na sesso esta presente um funcionamento onirico das duas mentes que se sonham no fluxo reciproco de estimulos e de identificagdes projetivas; podemos conhecer os derivados desse “sonho” em vigilia como emergem nas fantasias, nas imagens, nas associagGes, nas narragdes e, em algumas situagées particulares, nos “fotogramas ontricos da vigilia”, verdadeiras imagens do sonho projetadas no exterior (vide Cap. V). Nesta optica, os personagens, as natragdes, as lembrancas, os desenhos, por exemplo, evocados durante a sessdo, podem ser repensados por um vértice como “sinteses de funcionamento” do par naquele momento, que mudam e se trans- formam continuamente, segundo o seu continuo interagir e dependendo das qualidades do mesmo. Pensamos, com Bezoari, conforme o que j4 escrevi na nota 3 do Capitulo Il, no termo “agregado funcional”, para definir numa d4rea quase transicional, anem sempre clara atribuicio da composicao de um personagem' a um ou outro ator/autor da cena analitica: sua parte” minha parte - sua parte projetada... Sua parte projetada e assumida por mim — ou assumida por mim mais alguma coisa minha — e quanto de mim’..,, isto é, 0 conjunto dos problemas postos pela concepgde forte e relacional das identificacées projetivas e do assumir um papel como tem aparecido nos trabalhos ja citados, a este propésito, no Capitulo II. Estas sao, todas, variagdes de formas e de atribuicées que necessitam freqdientemente permanecer por muito tempo indeterminadas, antes que se possa explicar 0 seu estauuto relacional explicitavel (ademais, nao é a explicitacao desse estatuto que conta, mas como aos poucos essas “formas” se transformam no jogo das interagées mentais). Estamos habituados a pensar em termos de partes cindidas e abusamos por muito tempo daquelas feias interpretacdes como “é uma parte de vocé que”, como se fosse possivel uma funcdo espelho do analista, de tal modo que néo estruture 0 campo que ajuda a definir... com todos os problemas relativos a como considerar os personagens trazidos 4 sessdo, se do mundo exterior, se partes do mundo interior, se aspectos préprios projetados em personagens do Falo de “personagem” porque ¢ mais simples, mas vale também para uma narragio articulsda, ‘um sonho, uma lembranca, uma anedota. NT: em italiano parte pode significar o “papel” de personagem ou “parte” de um todo. Ow nas inversées de fluxo: partes ce mim projetadas ¢ assumidas por voce, com-quanto de seu?... ¢ assim ao infinito. 74 A técnica na psicandlise infantil mundo real,.. Problema que pode ser zerado considerando o- personagem, o desenho, ou também toda a comunicagao do paciente, por um vértice, mantido em oscilagdo com os outros, a partir do qual é possivel considerar somente personagens (ou natracdes) relacionadas com a sessio, dramaticamente em cena, funcao e precipitado variavel do funcionamento do pat. No fundo, o agregado funcional ndo exprimiria nada mais que 0 conceito oposto ao-do pastido, como é descrito pelos Baranger: um fluir de comunicagao variavel em contraste com um precipitado estatico, marmorizado, de identificagdes projeti- vas reciprocas, que cristaliza a sitaagdo como no impasse ou ao assumir papéis, fruto de identificacdes projetivas que obrigam a uma posi¢do fixa (Gear et al. 1976). Naturalmente, tudo isso vale para o desenho, para o jogo, para os compo- nentes dialogados onde sera ainda mais facil mostrar este ponto de vista em acd, INTRODUCAO Gostaria de antepor as observagées sobre o jogo algumas reflexdes sobre o conto de fadas, porque 0 jogo parece-me ter muitas caracteristicas de ym conto de fadas personalizado, © jogo nasce na relacdo com a mae quando esta cuida da crianga; trata-se frequentemente de jogos caracterizados par sons, balbucios, verbalizacdes, que subentendem profundos intereambios comunicativos (Stem, 1977, 1985), acompanhados pela troca das reciprocas identifieagdes projetivas; através destas filtimas transitam estados emocionais ¢ afetivos, que encontram, na direcdo crianca-mie, ¢ gracas a réverie materna, o seu lugar de reconhecimento, bonifi- cacao, transformacado (Bion, 1959, 1962; Bordi, 1980), Essas telacdes primsrias so 0 lugar onde se constituem o conte de fadas ¢ Q jogo, Testemunha de que o mundo interior das criangas € populado por contetidos terrificantes é 0 fascinio que desde sempre tiveram as historias ou contos de fadas, muitos das quais, como Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, Barba-Azul, sdo cruentos, ¢ outros ainda, povoades por bruxas, madrastas, vingangas, invejas, cidmes e assim por dignte, Crejo que a preciosidade dos contos para o desenvolvimento mental de uma crianca esteja substancialmente em dois pontos: a sua insaturabilidade, isto ¢, 0 fato que cada crianca possa preencher qualquer conto, em momentos diferentes do proprio crescimento, ou até mesmo em momentos diferentes de proprios estados emocionais, com signilicados diferentes; além disso, a trama aletiva que se estabelece com o narrador, porque nao ¢ no texto narrado, mas na espessura afetiva ¢ emocional que se cria com quem conta que “vive” e s¢ ativa aquele algo de transformador das mais profundas fantasias da crianga (Ferro, 1985c), ” A, Ferro As criancas se encontram vivendo uma situagdo de constante dependéncia, de urgéncia de grandes necessidades, e de grandes emogées; tém constantemente medo de que as suas necessidades nao sejam satisfeitas, medo das suas neces- sidades projetadas para o exterior. Isaacs (1948) conta uma observacao de Jones, na qual uma crianca pequena olhando o seio com que a mae alimenta o irmao menor, diz: “E com isto que vocé me mordia”. Os contos de fadas permitem a crianca ver representadas, e direi mais, representar, os préprios medos mais terriveis e mais escondidos, além das préprias expectativas ideais ou idealizadas, muitos contos tratam do “bosque” (Pequeno Polegar, Chapeuzinho Vermelho), e as criancas desejam muitas vezes que eles thes sejam contados a noite antes de dormir: creio que o bosque seja 0 escuro do quarto ¢ do sono, ¢ os encontros, muitos do quais pavorosos, aqueles com as [fantasias e 0s sonhos que vém reelaborar os acontecimentos do dia, e criar novos nexos inesperados. O conto de fadas permite ainda viver alhures, longe no espago e no tempo, “era uma vez”, em lugares miticos (os contos sicilianos, por exemplo, so repletos do “Reizinho de Portugal”), aqueles medos que a crianga nao poderia nunca admitir provindos do encontro com as suas pessoas mais caras; ela ndo poderia tolerar a idéia de que a bruxa e 0. ogro sao também outros aspectos de papai e mamfe, para ela tao essenciais, ou que sejam partes proprias, ou estados afetivos que tomam corpo nas suas relagdes mais intimas. Uma crianca de oito anos, em anilise, tinha inventado um outro mundo (“o mundo dos pontos de vista”) onde havia fantasias e emogées que para ela era ainda intolervel viver de perto, no seu mundo. £ para um lugar longinquo que sao cindidos ¢ mandados as historias ¢ os personagens terriveis: devoramentos, infanticidios, matricidios ¢ outros, que nada mais sdo que todas as vicissitudes que dominam o mundo fantasmatico de criangas e adultos. O conto de fadas permite ainda que a crianca se identifique com os personagens, vivendo-os portanto do seu interior, consentindo-lhes a experién- cia de bonificar, por meio da delegacdo ao conto,.e & sucessiva restituigao, os sentimentos mais terriveis; pode funcionar como uma mae capaz de tornar-se permeavel aos medos da crianca e de lhos restituir menos terrificantes.., e se 0 Pequeno Polegar se perde no bosque, como toda crianga nas proprias emocées, o conto de fadas Ihe diz que existe remédio, Este me parece ser 0 aspecto-chave, com aquele da capacidade de conter: as criancas na realidade temem que os proprios sentimentos, medos, emocées, instintos, ndo possam ser contidos, que exista 0 risco de serem atropelados por eles, enquanto que os contos lhes B A técnica na psicandlise infantil mostram que é possivel encontrar solugdo até para as situacdes temidas como catastroficas e irremediaveis. Um outro aspecto que a crianga descobre é a possibilidade de compartithar os proprios medos; muitos deles sao de fato descritos nos contos: mas entdo, isto aconteceu com outros antes dele; visto assim, o conto se situa, paraa crianga, com a mesma capacidade de protecao de um velho sabio que viveu todas as situagdes, € justamente por isso encontra-se em condigées de entendé-lo, de fazé-lo sentir-se entendido, e sobretudo de dar um nome', uma trama e um sentido as angistias que obscuramente o invadem. Seria o caso de perguntar-se se nao é por esta “velha sabedoria” que freqiientemente os avés s4o os deposita- rios dos contos de fadas. Bettelheim (1975) escreveu um belo livro, A psicandtise dos contos de fadas, no qual propde uma leitura, do ponto de vista psicanalitico, dos contos clissicos mais conhecidos, aqueles que sao mais do que todos capazes de representar as ansias ¢ os medos das criangas. Mas gostaria de fazer uma critica ao modo de proceder de Bettelheim; nao creio que os contos ja estejam ali representando de modo completo, pelo menos nao téo completo como ele sugere, os medos e as ansias das criangas, consentinclo uma simbolizacdo, nem creio que sejam ja tao cheias de significado; acredito, ao contrario, que oferegam como que recipientes de formas ¢ tamanhos diferentes, que poderao vir a ser variada e diferentemente preenchidos por cada crianga, de acordo com as suas particulares necessidades emocionais. Uma espécie de proposta de simbolizacao, cue podera depois ser utilizada de modos diferentes por cada crianca. Exatamente como acontece com os possiveis simbolos dos sonhos, que tomados individualmente remetem a significados tao gevais que ndo permitem nenhum desenvolvimento, enquanto é o elemento de composicdo, os elos entre os varios elementos, entre os varios simbolos, entre estes e as emogées de quem narra o sonho e de quem o escuta, que gera um sentido (Meltzer, 1981a). Podemos ler, pois, nos contos de fadas, uma trama interna, muito menos saturada do que propGe Bettelheim; assim, Chapeuzinho Vermelho pode, para nos que a lemos, prestar-se a esta ou Aquela interpretagdo, mas se considerarmos a comparacdo historia-simbolo, sera somente do encontro desta com aquela determinada crianga, naquele momento, e depois com aquela outra naquele outro momento, que surgirdo tantos significados, tantos sentidos diferentes quanto diferentes serdo as criangas e as experiéncias emocionais, ou melhor, as ‘Uma paciente se angustia muito com ui sonho em que ihe nascem penas na costas, mas se tranqtiliza quando compreende que esta simplesimente se chamando de pata, (fola, no seu sentido denotativo.) Os contos, de fato, existem antes de forma oral, depois sio reunidos ¢ escritos. 79 A, Ferro necessidades emocionais proprias de cada crianca, diria mais, naquele encontro, com aquele narrador. O querer ouvir mais e mais a mesma historia, se por um lado pode indicar a permanéncia da situagdo emocional de base que leva a crianca a escolher aquela historia, por outro lado acredito que indique o continuo remanejamento ¢ trabalho que a crianca faz com suas proprias fantasias, fazendo com que a historia nunca seja a mesma, mas a cada vez seja sentida com uma modulacio diferente. Reflexes andlogas sio validas para o jogo, na sala de andlise ou em geral: permanece central 0 aspecto da insaturagdo do jogo ou dos brinquedos (assim como o da interpretagdo!), insaturacdo que permite a crianga nao ser vitima de um jogo j4 previsto pelo proprio jogo. E também de fundamental importancia a presenga do outro, isto é, que haja alguém com quem brincar; o brinquedo por si sé pode ajudar a crianca a representar, a tentar encontrar solucées para os proprios conflitos, mas é somente a presenga mental de alguém mais (como a presenca do narrador para as historias!) que brinque com ela que permite que 0 jogo seja plenamente transformador de angistias. E a acolhida dos estados mentais e emocionais presentes durante o jogo que consente as transformagdes mais profundas. . O brinquedo se coloca como um pré-texto de uma narragdo que se desen- volvera no jogo compartilhado, jogo que pode ser entendido como “experiéncia semiética e cognoscitiva” (Bertolini et al., 1978). Problema de toda crianca 6 transitar progressivamente todas as areas da propria mente (contanto que esteja acompanhado nessa viagem),’ para poder integra-las em seguida: Marco, um menino filho de pais que nado encontravam sempre suficiente espago mental para ele, tinha inventado o jogo forcado do Onibus, com o qual se mecanizava e corria de um canto a outro da casa, emitindo guinchos até hipnotizar-se e cair no chéo com um movimento oscilatorio da mao. Restava esta tnica forma de “autocontengao” de angustias grandes demais, que derivavam do seu ver o mundo dos adultos como um universo impermedvel de Oonibus, cada um deles correndo indispontvel pela propria estrada. Jogo esse que 1 Uma mae me apresenta assim o seu filho: sempre foi muito bonzinho, a pento de nem perceber que o tinha, até completar trés anos; com aquela idade o menino tornou-se seriamente hiperativo, Armée me conta que o menino brinca sempre do mesmo modo: no patio onde mora ha uma senhora que conserva sempre a janela fechada; o menino se aproxima e bate repetidamente contra a janela; geralmente nao acontece nada, as vezes, no entanto, a senhora escancara a janela e grita com o menino. Este continua, porém, pouco depois com o mesmo jogo, A mae me (raz também. ‘um desenho do menino: hi um caminhiio, um automdvel, uma bicicieta; dao idéia de serem muito yelozes, porque ha muita fumaga no cano de escapamento, mas ninguém os dirige, Parece-me que ‘9 menino traduz muito bem a indisponibilidade a se aperceberem dele ¢ testemunharlhe uma presenca pensante. 80 A técnica na psicandlise infantil foi progressivamente redimensionado quando os pais reecontraram um pleno espaco mental para Marco. A introjecdo de uma mae que saiba contar historias, ou participar do jogo da crianca, consente que ela possa sempre mais ou “brincar sozinho”, narrando- se 0 que acontece no seu interior, tomando distancia disto, encontrando solu- goes, ou fazer o mesmo com outras criangas; além disso, 0 todo sera criativo se continuar disponivel uma “agéncia de acolhida daquelas ansias ¢ angistias” que poderao existir em certos momentos do jogo: como no exemplo de Winnicott (1965) do menino que brinca sozinho na presenca da mae. Quanto a relacdo analitica, o analista se tornaré “o lugar das historias e dos jogos possiveis”, prestando-se a todos os papéis emocionais pedidos pelas necessidades do campo, papéis que em seguida poderdo ser restituidos a “pensabilidade” ¢ verbalizagdo, apos screm transformados no working-through do proprio analista. JOGO E PSICANALISE Podemos entdo considerar o jogo como um meio utilizado pelas criangas pata dramatizar, representar, comunicar, descarregar as proprias fantasias inconscientes, e também para elaborar e modular a ansia ¢ as angdstias ligadas aessas fantasias' como também para experimentar “identificagGes antecipadas” (Alvarez, 1988). Gostaria de citar o percurso feito para chegar a tais formulagées, fazendo referéncia ao trabalho de Freud e de Klein, para depois propor dois exemplos clinicas, Freud fizera duas inferéncias sobre a vida psicolégica das criancas a partir da andlise dos adultos, se excetuarmos 0 caso do pequeno Hans (1908), analisado por meio do pai; Freud estudava os proprios filhos e aconselhava os alunos a estudarem o comportamento das criangas, mas seré Melanie Klein a primeira a olhar a crianga do interior de uma situagdo analitica. Tarefa nao ffeil, € que no inicio foi muito criticada, pelos preconceitos de tipo pedagogico presentes nas terapias das criangas (Hugh-Helmuth, 1921), ou pelo escindalo 1 Encontramos muitos exemplos de jogos interpretados de modo “simbolico” em Aberastury (1981), ‘que mostra 0 significado de cada simbolo, mas ressalta a necessidade de colher a cada vez a situagdo total: uma boneca podera ser a cada vez pénis, um menino a propria crianga ¢ assim por diante. Aberastury faz notar sempre que ao interpretar um jogo devemos levar em conta a sua represenitagdo no espaco, a situagio traumética que implica, porque aparece aqui, agora ¢ conosco, o estado de espfrito que acompanha o jogo. 81 A. Ferro suscitado pelo relatorios das terapias de Klein, na Sociedade Psicanalitica de Berlim. Klein descreve o que observa no seu trabalho, a principio quase sem notar as mudancas conceituais que esse trabalho direto com as criangas compottaria (Segal, 1979), Como lembramos no Capitulo I, Klein se apercebe logo, ao “escutar” as criangas, da extrema importancia que tem para elas os “espacos” dentro do corpo, fato que nao foi notado imediatamente, porque todos consideravam a sua linguagem como poétiea, e no no seu significado literal e descritivo (Meltzer, 1979), Sao justamente a observacdo ¢ a compreensao do jogo que abrem a possibi- lidade de entender 0 mundo infantil. O jogo é visto por Klein como verdadeira trabatho da crianca, com algo que representa continuamente as suas fantasias, mesmo as mais arcaicas, e que lhe permite controlar a angustia e elaborar os conflitos. Por mais de uma ocasido, Freud ja prestara ateng&o ao jogo ¢ as fantasias infantis: no caso do pequeno Hans, por exemple, tinha ressaltado 0 jogo com a boneca, na qual Hans introduz um canivete na abertura onde antes havia um apito, ¢ depois lhe rasga as pernas para tirar o canivete, mostrando assim a fantasia de algo que penetra na mae ¢ de algo que sai da mae, justamente no perfodo em que se preocupa com os problemas da sua propria concepgao e do nascimento de sua irmazinha Hanna. Freud descreve depois em detalhes (1920) o famoso jogo do carretel, de uma crianca de dezoito meses (seu netinho) que jogava um carretel ligado a um fio para la da cortina de sua propria cama, fazehde-o desaparecer, pronunciando a palavra fort (fora) e depois puxava de novo o fio fazendo apatecer o carretel e pronunciando alegremente: da (aqui); tudo isso era feito concomitantemente & auséncia da mie, remetendo a possibilidade, para a crianga, de controlar, por intermédio do aparecimento e desaparecimento do carretel, o aparecimento € 0 desaparecimento da mde e a angistia ligada a isto. Jogo protétipo de tantos outros sobre o mesmo tema, come 0 do cuco, Freud (1920) ressalta ainda a importancia para a ctianga de passar da “passividade de experimentar a atividade de brincar” ¢ “o desejo através do jogo de ser grande e poder fazer aquilo que os grandes fazem”. Em Klein, a novidade ¢ olhar a crianga que brinca exclusivamente de um vértice psicanalitico e dentro de uma situagdo de andlise, de modo que toda atividade além das palavras, cada aspecto do comportamento, possam oferecer um fio para compreender o que acontece na mente da crianca. Fritz, de cinco anos, é analisado usando seus proprios brinquedos e em sua propria casa; também Rita, uma menina de dois anos e nove meses; até que Klein 82. A técnica na psicandlise infantil decide, para superar as dificuldades que as vezes derivam da proximidade dos pais, efetuar o tratamento no seu proprio consultério, colocando ela mesma os prinquedos a disposicdo: privilegiou os brinquedos ‘que permitissem as criangas exprimir as suas fantasias inconscientes sem serem influenciadas pelos proprios brinquedos, brinquedos pequenos, que possibilitassem- uma melhor repre: sentacéo do mundo interior, isto permite que se deixe emergir as imagens mais arcaicas presenites na mente das criangas, e permite também a sua claboragao. Algumas caracteristicas do modo de observacao de Klein merecem outras reflexes. E cla mesma que antes em Os principios psicologicos da andlise infantil (1926) e depois em Sobre a observacdo do comportamento das criancas no primeiro ano de vida (1915b) fornece quase uma declaragdo do proprio modo de observar, postula: 1) a necessidade, para descobrir as fantasias subjacentes, de encontrar a conexdo dos fatos observados, dando importancia a todos os particulares em suas relagées reciprocas, sem privilegiar absolutamente nenhum por mais dotadlo que seja de rico significado simbélico; 2) anecessidade de considerar “a mistura sem significado”, constituida pelo “material” produzido pelas criancas, pelo “mado” como brincam, pelo “motivo” de eles passarem de uma coisa a outra, pelos “meios” que escolhem para as suas representacdes, como um “conjunto coerente ¢ significativo”, que, se interpreta- do como se faz com os sonhos, revelara as fantasias ¢ os pensamentos suben- tendidos. Citarei somente alguns exemplos do imenso volume de trabalho desenvol- yido por Klein com as criangas (casos de Fritz, Rita, Erna, Trude, Richard etc.), ressaltando poréin o enriquecimento teorico, ou melhor, a revolugdo que esse trabalho determinou, tanto para a teoria psicanalitica quanto para o conheci- mento dos aspectos mais profundos da vida emocional e mental. Faco alusdo somente a algumas claras tomadas de posicao que Klein pode assumir gracas ao trabalho direto com as criangas, como resumiu Segal (1979): a) a conviccdo da centralidade da agressividade infantil, e os nexos com os momentos persecutorios, conforme os ultimos escritos de Freud; Klein retira ensinamentos da observacdo da atitude da crianca para com um brinquedo quebrado por ela, que sera posto de lado, se representar um irmaozinho ou wm dos pais; a aversio por tal objeto derivara do medo de ser perseguido: a pessoa agredida, representada pelo brinquedo, é temida como vingativa e perigosa; se acrianga wm dia procurar na gaveta o brinquedo quebrada, isto indicaré que as ansiedades persecutorias terao diminuido; o que correspondera também a uma mudanga pata com a pessoa representada. Outro exemplo é o de Gerald (Klein, 19274), para o qual um dos objetos de angtistia cra um animal, que na realidade “era” um homem; este animal muito barulhento “era” o pai, que fazia muito 83 A, Ferro barulho no quarto ao lado, onde Gerald desejava entrar para “castrar, matar, cegar o pai’, temendo ser tratado do mesmo modo pelo animal: alguns fugazes gestos seus, viurse na andlise, eram uma tentativa de repelit o animal agressor; b) oreconhecimento, na crianca ainda muito pequena, de um Superego precoce no tempo e muito forte (1927b), diferentemente-do que afirmava Anna Freud (isto €, que o Superego era fraco na crianga, que sobre ela prevalecia a influéncia dos pais reais ¢ que o Superego se formava somente apés a dissolucdo do complexo de Edipo), onde 0 jogo colocava em clara evidéncia fantasmas muito primitivos que faziam com que a andlise correspondesse na crianca a atenuagdo do Superego, diminuindo a persecutoriedade e o sentimento de culpa. Rita assumia © papel de uma mie cruel e punidora em relagdo a uma crianca representada pela boneca ou pela propria Melanie Klein, presa de terrores ¢ sentimentos de culpa, necessitando, portanto, ser punida (Klein, 1926); sempre através da anilise de meninas (1928), sao revelados como causa principal das ansias ligadas a feminilidade o temor de represdlias da mae contra o corpo da menina, € os contetidos decorrentes as fantasias de ataques e espoliagdes ao corpo da mAe; observa-se também como essas ansiedades persecutérias sao entremeadas de sentimentos de culpa ¢ depressao, ¢ se ressalta que a tendéncia a reparacdo € uma caracteristica essencial da vida mental (1927b, 1934 etc.); Trude (menina de trés anos e trés meses) possibilita observacées da raiz sidico-oral e sddico- uretral dos impulsos agressivos, assim como a comparagdo da andlise de Erna, menina parandica, com a de outras criangas menos doentes e com a de adultos, leva a hipotese que ansiedades de natureza psicotica fazem parte do desenvolvi- mento infantil normal (Klein, 1926, 1929); ¢) @ formacdo de imagens cindidas, uma perseguidora, outra idealizada, também com relacdo ao analista; ) a retrodatacao do complexo de Edipo (1928, 1945), ‘e) a existéncia de uma translacdo precoce na crianca, ¢ a necessidade de interpretala imediatamente (quando Rita entra na sala de Klein, esta alarmada, silenciosa ¢ pede para sair ao jardim; Klein a contenta, mas interpretando imediatamente a transferéncia negativa: Rita volta a sala aliviada...). Partindo sempre da observacao da crianga dentro da relacio analitica, Klein Postula a existéncia de objetos internos, observando que ndo havia correlacdo entre as imagens freqientemente destrutivas da mde, como apareciam no jogo, ¢ 0 comportamento da mde na realidade; tais imagens emergem do interior da crianga ¢ € justamente a imago parental, a relacdo com a figura fantasmatica interna, que se transfere para o analista; a este ponto Segal (1979) comenta como “estudando a neurose do adulto, Freud descobriu no adulto a crianca, eo estudo das criancas permitiu a Klein reecontrar na crianga o lactente”. 84 A técnica na psicandtise infant Evidenciam-se os mecanismos de defesa mais violentos, anteriores a repres- sao: “expulsdes e projegdes violentas” sao efetuadas pela crianga para liberar-sé dos perseguidores internos e do préprio sadismo; sao os medos de perseguicio, ligados ao corpo materno e ao pénis paterno, as principais angistias da infancia: existem diferentes sistemas de defesa: cisdes, idealizacaa, fantasias de restituigao e reparagdo. A neurose infantil ¢ considerada uma estrutura defensiva em relacdo as angtstias subjacentes de natureza psicdtica; assim, para Rita, ou para Erna, os rituais obsessivos serviam para aplacar complexas angtstias psicéticas de tipo parandide. Segal (1979) lembra também como Melanie Klein, observando as criangas pequenas, verificou que as relagdes abjetais, seja com objetos reais, ou, ainda mais, com objetos de fantasia, opetavam até onde podia avancar a observacao, ¢ sobretudo que as primitivas relagées objetais parciais, tinham win papel de primeiro plano na estruturacdo dos objetos interns, do Superego, e da vida fantastica da crianga. Klein nota ainda que a fantasia inconsciente da crianga ¢ precoce, onipre- sente, ¢ influencia todas as percepgdes e as relagdes da crianga. A atengao 4 fantasia inconsciente da crianga determina mudangas no con- ceito de simbolismo (1923, 1930); assim, além do jogo, todas as atividades da crianga séo impregnadas de significado simbélico; sto exemplos validos a Jeitura, a escrita, as tarefas e o rendimento escolar. Aanilise dos psicéticos se abre com o caso de Dick e com as reflexdes sobre o simbolismo que comporta: “A crianga, desde que deseja destruir os érgdos (penis, vagina, seio) que representam os objetos, imagina-os... como objetos ameacadores. A angiistia conseqiiente, concorre para que ele equipare tais orgdos a outras coisas: por causa dessa equiparacdo essas outras coisas se tornam fonte de angustia. Desse modo, a crianca é obrigada a estabelecer sempre novas equiparacdes que construirdo assim a base do seu interesse por objetos novos e do simbolismo" (Klein, 1930). (Em Dick, era a terrivel angiistia de as fantasias de ataques 4 mae que apagata todo interesse pelo corpo da mesma e tudo que o simbolizasse.) As fantasias mais primitivas ndo séo de natureza verbal. No inicio serao corporais, depois visuais, e finalmente exprimiveis em palavras, As vezes estas podem revelar fantasias de um estado precedente de desenvolvimento: Isaacs (1948) narra a observacao de uma menina que, aterrorizada, aos vinte meses, por um sapato da mde com a sola estragada, perguntou, quinze meses depois, pelo sapato dizendo: “Poderia ter-me comida”. A fantasia libidinal de um seio bom que alimenta ¢ reforgada por experién- cias positivas, enquanto experiéncias negativas reforcam as suas fantasias de objetos maus; a fantasia pode também ignorar a realidade, e 0 lactente oprimido 85

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