Conversando Com Os Pais PDF

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CONVERSANDO COM OS PAIS D. W. Winnicott EDICAO ORGANIZADA POR: CLARE WINNICOTT CHRISTOPHER BOLLAS MADELEINE Davis RAY SHEPHERD INTRODUGAO DE T. Berry BRAZELTON _ TRADUCAO. ALVARO CABRAL REVISAO TECNICA: CLAUDIA BERLINER Martins Fontes SGo Paulo 1999 Titulo original: TALKING TO PARENTS. Copyright © 1993 by The Winnicon Trust através de acordo com Mark Paterson. Copyright © Livraria Martins Fomes Editora Leda. Sao Paulo, 1993, para a preseme edicao. I edigfio setembro de 1993 2 edigao Junto de 1999 Tradugao ALVARO CABRAL Revisio téenica e da tradugio Claudia Bertiner Revisao grifica Vadim Vatentinovitch Nikitin Maurécio Balthazar Leal Producio grifica Geraldo Alves ‘Composigao Antonio Cruz ‘Dados Intermacionais de Catalogagio na Publicagio (CTP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) innicott, Donald W., 1896-1971 Conversando com os pais / Donald W, Winnicott ; edigao orga- nhizada por Clare Winnicott [et. al) ; imtrodugo de T, Berry Brazelton; [tradugio Alvaro Cabral] = revisio técnica Claudia Berliner]. ~ 2*ed, ~ Sao Paulo : Martins Fontes, 1999. — (Psicologia © pedagogia) ‘Titulo original: Talking to parents, ISBN 85-336-1047-5 1. Educagio de criangas 2. Educagio doméstica 3. Pais e filhos 1, Winnicott, Clare. Il, Brazelton, T. Berry. IIL. Titulo, IV, Série. 99-2112 Indices para catélogo sistemitico: |. Pais ¢ filhos : Relagées familiares : Psicologia aplicada 158,24 Todos os direitos para o Brasil reservados @ Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Consetheiro Ramatho, 330/340 01325-000 Sao Pauio SP Brasid ‘Tel. (O11) 239-3677 Fax (O11) 3105-6867 email: infodamartinsfontes.com uep:ttwwwemartinsfontes.com iNDICE Introducado Prefdécio dos organizadores . Capitulo 1. Capitulo 2. Capitulo 3. Capitulo 4 Capitulo 5. Capitulo 6. Capitulo 7 Capitulo 8 Capitulo 9 Capitulo 10. Capitulo 11. wee IX ww XO Educacdio para a sauide através do ra- iO ...eeceecescecesceeesececcnceeceeeeeens 1 Madrastas e padrastos 9 O que sabemos a respeito de bebés que chupam pano? ... 19 . Dizer ‘*nao”’ 27 49 he ore w. 77 . Seguran¢ga ..... _ 101 . Sentimento de culpa .............:006 109 . O desenvolvimento do sentido de cer- to e errado de uma criang¢a ......... Agora estéo com cinco anos . A construgao da confianga ... AGRADECIMENTOS Madeleine Davis morreu enquanto trabalhava nos Ultimos estagios de preparacao deste livro. Infe- lizmente, ela nado viveu para ver sua publicacdo, mas os editores, organizadores e todas as pessoas ligadas a The Winnicott Trust desejam registrar sua admira- cdo e gratidado pelo auxilio gentil e cuidadoso dispen- sado no preparo da publicagao desta e de outras obras de Winnicott. Os organizadores gostariam de agradecer a Tavis- tock Publications pela permissdo de incluir material publicado anteriormente. Devem-se agradecimentos também a BBC pela sua visdo, sem a qual varias das conversas em que se baseia este livro nao teriam ocor- rido, ea Claire Rayner por sua atenciosa contribuicdo para o capitulo 8. INTRODUCAO SOBRE A LEITURA DE WINNICOTT Ler estes textos, em boa parte inéditos, de D. W. Winnicott é como voltar a uma fonte refrescante depois de uma caminhada pelo deserto. Cada um de- les 6 uma experiéncia absolutamente recompensadora e deliciosa. O proprio fato de Winnicott ter escolhido se diri- gir aos pais por meio de um veiculo de comunicacao de massas ja é de grande interesse, Afinal, a ‘“‘mae de- votada comum’’ ideal € aquela que dispensa cuidados ao filho sem consciéncia de si mesma. A radiodifusao de suas idéias a respeito da criacado dos filhos poderia ser vista como ostentacao de sua filosofia. Contudo, como de costume, ele imediatamente deixa de lado a questao. Ele nao esta tentando instruir os pais mas ajuda-los a compreender 0 que fazem e a justifica-los pelo que fizeram. Uma declaragaéo como ‘‘percebe-se que poderiamos ter feito o mesmo ou que poderiamos ter feito pior’’ ilustra a sua maneira simples mas vigo- rosa de fornecer apoio as forgas dos pais, ao contra- rio das costumeiras autoridades que dizem aos pais com tanta pericia o que eles nado devem fazer. x CONVERSANDO COM Os PAIS Fui admirador e estudioso de Donald Winnicott du- rante toda a minha vida profissional. O modo como com- binava um enfoque pediatrico normativo com insights de psiquiatria e psicandlise infantil fizeram dele, ha muito tempo, um modelo para mim. Seus brilhantes insights fundamentam-se numa compreensao profunda dos pro- cessos pais-filhos aliada 4 firme conviccao de que a maio- ria dos pais deseja fervorosamente fazer bem a seus fi- lhos. Estes ensaios estao entremeados por interpretacdes positivamente reforcadas. Os pais irao se sentir libertados e tranqililizados, pois esses insights vém do coracio e so emitidos com uma agudeza de espirito deliciosa. Como deixa claro, 0 propdsito destas conversas nao foi dizer aos pais o que fazer mas (1) desintoxicar aciéncia da criagao dos filhos, (2) incutir-lhes confianga quanto ao que estao fazendo e (3) permitir que dispen- sassem 0 auxilio individualizado ao depararem com um obstaculo no cuidado com os filhos. Ele enfatiza con- tinuamente o instinto dos pais para fazer a coisa cer- ta, aliado a inevitavel culpa e 4 ambivaléncia que fa- zem deles os pais sensiveis que sao. Nunca tem medo da honestidade do bom senso: ‘‘Uma reuniao de pa- drastos fracassados... poderia ser proveitosa. Seria composta de homens e mulheres comuns.’’ Porque ser padrasto é inevitavelmente um papel ingrato. No ensaio sobre a pratica de chupar o dedo, ele fornece a melhor justificativa que conheco. Chupar o dedo ¢ 0 primeiro uso que o bebé faz da imaginacao. A experiéncia real de chupar o dedo foi enriquecida pelo seio ou pela mamadeira imaginada. Por que al- guém iria priva-lo dessa primeira experiéncia de criar do seu préprio objeto de afeicao? Estas conversas reduzem a sua ess€ncia os passos simples que conduzem aos objetivos que esta discutin- SOBRE A LEITURA DE WINNICOTT Xl do. Os trés estagios do dizer ‘‘nao’’, por exemplo, co- mecam com a necessidade dos pais de assumir plena responsabilidade pelos limites da crianga (primeiro ano), ensinando-lhe a palavra ‘‘ndo’’ e palavras asso- ciadas com perigo, como ‘‘quente’’ (segundo ano), e depois, devolvendo-a a ele e ampliando a sua experién- cia de fazer escolhas e de incorporar esses limites dan- do-lhe explicagdes verbais (terceiro ano). Tomemos outra questao cara ao corag¢ao dos pais: “‘como desaparece o ciime?’’ Na explicacdo belamente sucinta de Winnicott vemos como o ciume acaba por ser neutralizado pela identificacéo com a pessoa de quem se tem tanto citime, e entdo pela identificacgao com a mae ciumentamente guardia e seus sentimentos, usando aima- ginacfo (empatia) para assumir a perspectiva do outro. Creio que meu favorito é o ensaio sobre ‘‘o que molesta’’ ser pai. Este capitulo ajudara todos os pais a encarar seus sentimentos negativos como normais e até mesmo saudaveis. Winnicott lembra-nos que 0 que sai errado sempre molesta, 0 que sai certo, ignora-se. Portanto, é claro, o dia dos pais fica sobrecarregado de detalhes irritantes da vida cotidiana. ‘‘As criancas continuarao a ser um incdmodo e as maes continua- rao contentes por ter a oportunidade de ser vitimas.”” Este é um belo livrinho. Winnicott destila a natu- reza essencial do ser pai. O capitulo 8, por exemplo, éconcluido com a provocante idéia de que, sem culpa e ambivaléncia, nenhuma mae seria sensivel as neces- sidades do filho. Ele realmente infunde no leitor uma compreensdo dos desafios da paternidade, mas tam- bém faz com que seu publico sinta que ser uma ‘‘mae boa o suficiente’’ é um dos papéis mais recompensa- dores que se poderia buscar. Que génio! T. Berry Brazelton, M.D. PREFACIO DOS ORGANIZADORES Entre 1939 e 1962, Donald Winnicott fez cerca de 50 palestras radiof6nicas para a BBC, quase todas elas dirigidas aos pais. Transcritas, revelam conter al- guns de seus mais lucidos e convincentes textos. Uma coletanea de suas primeiras palestras, transmitidas no final da guerra e tendo Janet Quigley como produtora, deu origem a um optsculo intitulado Getting to know your baby; uma outra série, datando do final da déca- da de 1940 até meados dos anos 50, sob a producao de Isa Benzie, foi publicada num optisculo semelhante, in- titulado The ordinary devoted mother and her baby. Ambas as coletaneas esgotaram-se rapidamente; e, em- bora Winnicott, por causa das normas que proibem os médicos de fazer publicidade, nado tivesse posto seu no- me nas transmiss6es, 0 numero de pessoas interessa- das engrossara consideravelmente e sucediam-se 0s pe- didos para que as palestras fossem reeditadas. Aconte- ceu assim que esses trabalhos vieram a constituir a ba- se de um livro intitulado The child and the family, edi- cao coordenada por Janet Hardenberg e publicada por XIV CONVERSANDO COM OS PAIS. Tavistock Publications em 1957!; enquanto que mais al- gumas palestras, principalmente a respeito da evacua- cao de criangas durante a guerra, foram incluidas em seu volume complementar, The child and the outside world. Em 1964, a Penguin Books decidiu publicar uma sele- ¢ao desses dois volumes sob o titulo de The child, the Jamily and the outside world, 0 qual incluiu quase todas as palestras radiof6nicas publicadas até essa data*. No final de 1968, tinham sido vendidos 50.000 exemplares da edicado Penguin, e Winnicott escreveu um pequeno discurso para ser proferido durante uma recepcao que seria oferecida para celebrar o evento. Nesse discurso, conta ele como, para algumas de suas primeiras palestras, ia para a BBC em Langham Place “‘conduzindo seu carro sobre estilhacos de vidro e en- tulho causados pelo bombardeio da noite anterior’’. Prossegue dizendo até que ponto foi ajudado na lon- ga série de palestras em 1949-1950 por Isa Benzie, que lhe transmitiu seu entusiasmo e confianca no trabalho dele e, em suas proprias palavras, ‘‘pincou a expres- sao ‘a mae suficientemente boa’ de tudo aquilo a cujo respeito eu tinha falado até entao’’. E continua: ‘‘Es- sa frase tornou-se imediatamente um prendedor para pendurar coisas e ajustou-se 4 minha necessidade de escapar a idealizacdo e também aos eventuais intentos de ensino e propaganda. Pude seguir adiante com uma descri¢ao da puericultura tal como é espontanea e na- turalmente praticada por toda a parte.’’ 1, Editado nos Estados Unidos por Basic Books, Inc., sob 0 titulo Mother and Baby: a Primer in First Relationships. * Sao Paulo, Zahar Editores, 1966, A crianca e 0 seu mundo. (N.R.) PREFACIO DOS ORGANIZADORES XV Curiosamente, Winnicott sublinha também que depois da guerra nao reatou a pratica de pediatria (em- bora ainda mantenha clinicas psiquiatricas para crian- ¢as), €, por conseguinte, ja nao estava em tao estreito contato quanto antes com o volume de material coti- diano relacionado com a interacao mae-filho. Para es- tas palestras, ele considerou necessario, portanto, “‘rea: cender a chama clinica’ usando material da ‘‘experién- cia regressiva de pacientes psicanaliticos, muitos deles adultos, que me estavam dando um close-up das rela- des mae-bebé (ou pais-bebé)’’. ‘‘Na época dessas pa- lestras na BBC, em fins da década de 40,’’ escreveu ele, ‘‘eu estava numa posicao impar, na medida em que estava apto a ver Os meus pacientes em termos de pe- diatria e de uma espécie de psicandlise que era pecu- liarmente minha. Naturalmente, ao falar na radio, eu precisava manter a linguagem da pediatria, embora possa perceber-se que a pediatria ja se convertera pa- ra mim num lugar para o estudo do vinculo emocio- nal bebé-miae, pressupondo-se (como usualmente se po- de fazer) a satide fisica. Passei da ‘alimentacao infan- til’? para o ‘mutuo envolvimento bebé-mae’.’’ O livro de Winnicott A crianca e 0 seu mundo con- servou sua popularidade até os dias de hoje, e ainda vende milhares de exemplares por ano. Sua edig¢ao em lingua inglesa foi recentemente reeditada nos Estados Unidos pela Addison-Wesley. O presente volume, Conversando com os pais, rei- ne todas as palestras radiof6nicas que foram feitas de- pois de 1955. Apenas duas delas foram publicadas an- tes: ‘‘Agora estao com cinco anos”’ (‘‘Now they are five’’) e ‘‘Seguranca”’ (‘‘On security’), ambas no li- vro de Winnicott, The family and individual develop- XVI CONVERSANDO COM OS PAIS ment. Incluimo-las por uma questao de maior inte- gracdo. Também incluimos dois artigos que nao foram escritos para o radio: o primeiro e o ultimo no livro. O primeiro, ‘‘Educagao para a satide através do radio”’, é usado como um capitulo introdutorio porque enun- cia claramente os objetivos que Winnicott passou a con- siderar importantes ao efetuar palestras radiofénicas; eo ultimo, “‘O desenvolvimento da confianca’’, foi adi- cionado por ter sido escrito para os pais (algo raro em Winnicott fora do radio), por nao ter sido ainda pu- blicado e, datando de seus ultimos anos de vida, con- ter, em esséncia, muitas das idéias sobre criancas e seus pais que foi desenvolvendo durante todo o seu tempo de vida profissional. Fomos incapazes de descobrir o publico exato para quem 0 artigo foi redigido. A filtragem e editoragao dos artigos foi quase to- da ela realizada com a ajuda de Clare Winnicott antes de seu falecimento em 1984. A editoracao se restrin- giu ao minimo; no caso das palestras radiof6nicas, qua- se nao se fez necessario alterar alguma coisa, porquanto parecem ter sido escritas por Winnicott antes de irem ao ar: foram encontradas datilografadas entre muitos outros artigos e ensaios por ele deixados; as excecdes a isso sao as duas palestras para madrastas e a discus- sao com Claire Rayner a respeito do ‘‘Sentimento de culpa’’. Estas foram transcritas de fitas gravadas e a qualidade da escrita nao é, portanto, a mesma. Isso também se verifica nas conversas entre maes incluidas como parte da série central de palestras (‘‘Dizer ‘nao’”’, “Ciume’’, ‘“‘O que molesta?’’). Para essas palestras, 2. Londres: Tavistock; Nova York, Basic Books, 1965, [A familia e o desenvolvimerito individual, S. Paulo, Martins Fontes, 1993.] PREFACIO DOS ORGANIZADORES XVII as maes foram convidadas a comparecer na BBC, suas conversas foram gravadas, e Winnicott fez seus comen- tdrios num outro dia; aqui a natureza nao ensaiada do que foi dito torna-se um ingrediente essencial do todo. Christopher Bollas Madeleine Davis Ray Shepherd Londres, 1992 CAPITULO | EDUCACAO PARA A SAUDE ATRAVES DO RADIO Escrito em agosto de 1957 para Mother and child (n° 28, 1957) Este artigo foi escrito a convite. A educacao pa- ra a satde através do radio é um assunto que me inte- ressa pelo fato de, de tempos em tempos, ter realizado palestras radiofGnicas dedicadas aos pais. Mas deve fi- car claro que nao sou, na verdade, especialmente fa- voravel a educacdo para a satide em moldes massifica- dos. Quando uma audiéncia é vasta, contém muitas pessoas que nao estao ouvindo com o propdsito de aprender mas que ficam ouvindo por acaso ou por di- versdo, ou talvez até enquanto se barbeiam ou estao fazendo um bolo, de modo que nado tém as mAos li- vres para desligar o aparelho. Em tais condicdes, deve- se ter sérias duvidas quanto ao valor de colocar no ar qualquer coisa que seja importante. Podemos comparar isso com os programas radio- fénicos escolares, onde criancas de idades conhecidas se sentam em roda, levemente ocupadas mas claramente esperando receber, durante um certo periodo de tem- po, instrucéo administrada de um modo interessante pelo radio. A pessoa que deseja conversar sobre saide 2 CONVERSANDO COM OS PAIS através do radio nao tem a vantagem de um ptiblico ouvinte especifico. Refiro-me a educacao para a satide em termos de psicologia e nao 4 educacdo em questoes de satide fisica ena preven¢ao e tratamento de doengas. Muito do que tenho a dizer, entretanto, poderia aplicar-se a quais- quer palestras sobre satide, porque me parece que toda a educaciio sanitaria é psicolégica. Aqueles que escutam uma conferéncia sobre reumatismo ou sobre doencas do sangue nao o fazem por causa de uma sede de co- nhecimentos e de fatos; fazem-no por estar morbida- mente interessados em doencas. Parece-me que isto se aplica 4 educacao de pessoas em questées de satide, seja qual for o veiculo de informagao usado, se excetuar- mos a complicagado de que no radio devemos esperar que a grande maioria das pessoas que estdo ouvindo nao esta interessada em que lhe ensinem coisa nenhu- ma e aguarda meramente que a musica-recomece. Tal- vez eu esteja caluniando o ouvinte mas, de qualquer modo, estou expressando uma duvida que sinto toda a vez que a voz otimista e tranqiiilizadora do doutor faz uma palestra animadora sobre o fator Rh, a artri- te reumatdide ou o cancer. Desejo, porém, fazer uma sugestao construtiva com referéncia a divulgacdo radiof6nica de assuntos de saude. Qualquer espécie de propaganda, ou prop6- sito de dizer as pessoas 0 que devem fazer, tem de ser deplorado. E um insulto doutrinar pessoas, mesmo pa- ra o seu proprio bem, a menos que se lhes dé a opor- tunidade de estarem presentes para reagir, expressar desaprovacao e contribuir. Existe alguma alternativa que possamos admitir? O que podemos fazer como alternativa é tentar apreen- EDUCACAO PARA A SAUDE ATRAVES DO RADIO =. 3 der as coisas comuns que as pessoas fazem e ajuda-las a compreender por que é que as fazem. A base para essa sugestdo é a idéia de que muito do que as pessoas fazem é realmente razodvel nas circunstancias. E sur- preendente como, quando escutamos uma € outra vez as descricSes que as maes nos dao do tratamento de uma crian¢a no lar, de como as cuidam e as orientam, acabamos por sentir que nao podemos dizer a esses pais o que fazer; podemos apenas ver que provavelmente teriamos feito o mesmo, ou que talvez fizéssemos pior nas circunstancias dadas. Do que as pessoas realmente gostam é que lhes seja proporcionada a compreensao dos problemas que es- tao enfrentando, e agrada-lhes adquirirem conscién- cia das coisas que fazem intuitivamente. Sentem-se in- seguras quando entregues aos seus préprios palpites, ao género de coisas que Ihes acodem no momento cri- tico, quando nao dispdem de tempo para refletir e con- siderar maduramente que atitude tomar. Pode ser que os pais déem a uma crianca uma palmada, ou um bei- jo, ou um &abraco, ou que riam. Algo apropriado acon- teceu. Era essa a coisa certa, nada poderia ter sido me- lhor. Ninguém poderia ter dito a esses pais o que fazer naquelas circunstancias, pela simples razaéo de que as circunstAncias nao podiam ter sido descritas de ante- mao. Depois, porém, os pais descobrem-se discutindo as coisas e surpreendendo-se com 0 que fizeram, pois é freqiiente nado terem a menor nogao do que foi feito e sentirem-se confusos com o problema em si. Nesses momentos, a tendéncia deles é sentirem-se culpados, e recorrerdo voando a qualquer um que lhes fale com autoridade, que dé ordens. A educacado pode compreender todas essas coisas que as pessoas fazem e, de fato, fizeram — e de uma 4 CONVERSANDO COM OS PAIS boa maneira — desde que o mundo comecou a ter se- res humanos que eram humanos. Se se pode realmente mostrar as pessoas 0 que estéo fazendo, elas ficam menos assustadas, sentem-se mais seguras a seu pro- prio respeito, de modo que, quando estao sinceramente em duvida ou sinceramente sabem que sdo ignoran- tes, ndo procuram conselhos mas informacdo. O mo- tivo por que buscam informagao é o fato de que co- mecam a ter uma idéia de onde ir procura-la. Come- cam a perceber que é possivel adotar uma abordagem objetiva em relacdo as questées da mente, do senti- mento e do comportamento, e tornam-se menos des- confiadas da ciéncia, mesmo quando ela penetra na- quelas areas que até recentemente eram do dominio exclusivo da religiao. Penso haver muitissimo a fazer nessa questao de aceitar 0 que as pessoas sentem, pensam e realizam, e, a partir dessa base, desenvolver uma discussao ou um ensino que propicie uma melhor compreensao. Des- se modo, a informacao pode ser transmitida sem que a autoconfianga do ouvinte seja abalada. A dificulda- de esta, para aqueles que ensinam por esse método, em dispor de suficientes conhecimentos e em saber quan- do eles préprios sAo ignorantes. Por vezes, uma palestra radiof6nica dedicada aos pais subentende: ‘‘Vocé deve amar o seu filho; se nao amar o seu filho, ele sofrera, acabara delinqtiente.”’ ““Vocé deve amamentar o seu bebé; deve sentir prazer em amamentar 0 seu bebé; isso deve ser a coisa mais importante na sua vida.”’ ‘‘Deve amar o seu bebé des- de o instante em que ele nasce; é contrario a natureza nao amar o seu proprio bebé’’... e assim por diante. EDUCACAO PARA A SAUDE ATRAVES DO RADIO S Todas estas coisas sao muito faceis de dizer mas, de fato, se forem ditas, produzem efeitos deploraveis. Seria salutar fazer ver As mes que, por vezes, maes nao amam seus bebés no comeco, ou mostrar por que as maes, com freqiiéncia, sentem-se incapazes de ama- mentar o bebé, ou explicar-Ihes por que o amor €é uma questéo complexa e nado um mero instinto. Gostaria de acrescentar o seguinte: ao falar pelo radio, é impossivel tratar de anormalidades graves, se- jam na mae ou na crianca, especialmente de anorma- lidades nos pais. E irrelevante dizer as pessoas que pas- sam por dificuldades que est&o doentes. Quando as pes- soas doentes nos pedem ajuda, devemos aproveitar a oportunidade para minorar-lhes 0 sofrimento como pu- dermos, mas facilmente causaremos angustia se fizer- MOS as pessoas sentirem que estéo doentes sem colo- car a disposicao delas a terapia adequada. Nao ha um so conselho oferecido no ar que nao va causar apreensdo ou angustia em algum lugar. Re- centemente, falei a respeito de contar as criancas ado- tadas que sao filhos adotivos. Sabia, é claro, que esta- va correndo o perigo de causar angustia. Sem duvida, afligi muitas, mas uma das mes que me ouvira veio de longe procurar-me e dizer-me exatamente por que seria muito perigoso nas circunstdncias contar a sua filha adotiva que tinha sido adotada. Tive de concor- dar, embora eu saiba, em principio, que 0 certo € con- tar aos filhos adotivos que sao adotivos, e fazé-lo 0 mais cedo possivel. Se se diz as m&es que facam isto ou aquilo, nao tardam em ficar confusas e (o mais importante de tu- do) perdem o contato com a sua propria capacidade 6 CONVERSANDO COM OS PAIS para agir sem saber exatamente o que esta certo e 0 que esta errado. E facilimo fazer com que se sintam incompetentes. Se, para tudo, tiverem de consultar um livro ou escutar radio, estaraéo sempre atrasadas quando quiserem fazer as coisas certas, porque as coisas cer- tas tém de ser feitas imediatamente. S6 é possivel agir exatamente no ponto certo quando a acao é intuitiva ou por instinto, como se costuma dizer. A mente pode entrar em acao para refletir sobre o problema depois, e quando as pessoas procedem a essa reflexao a nossa tarefa consiste em ajuda-las. Podemos entao discutir com elas 0 género de problema com que se defrontam, 0 tipo de coisas que fazem e o tipo de efeito que po- dem esperar de suas a¢Ges. Isso nao é necessariamente a mesma coisa que dizer-lhes 0 que devem fazer. Finalmente: ha lugar para a instrucdo formal em psicologia infantil através do radio? Tenho as minhas duividas sobre se estamos prontos para fornecer uma instrugdo desse género. Também me ¢ lembrado o fa- to de que, ao dar instrucao a grupos de estudantes (as- sistentes sociais, por exemplo, ou professores em pds- graduacao, ou médicos), sabemos que esta nao pode ser administrada de forma desconexa mas deve contar com um ambiente formal. Talvez durante um certo pe- riodo de tempo esses estudantes recebam instrucdo: 6- hes dada a oportunidade de discutir entre si o que lhes € transmitido e de ler, assim como de expressar sua dis- cordancia e de oferecer sua contribuig¢do. Mesmo nes- sas circunstancias favoraveis, uma propor¢do daque- les que estao recebendo instrucdo tera dificuldades pes- soais a enfrentar e superar, dificuldades pessoais reve- ladas pelas novas idéias e pela nova abordagem, assim EDUCACAO PARA A SAUDE ATRAVES DO RADIO =—- 7 como pelo redespertar de lembrancas dificeis e fanta- sias reprimidas. Terao de lidar com novas excitacdes ecom uma recomposi¢ao de sua filosofia de vida. Ins- trucg&o em psicologia nao ¢ como instrugao em fisica ou mesmo em biologia. A instrucaéo de pais pode ser feita, sem duvida, numa situacdo cuidadosamente controlada, mas a ins- trucaéo dada através do radio nao cabe nessa catego- ria. Se for dada, devera ser de uma variedade extre- mamente restrita, estribando-se nas coisas boas que acontecem a pessoas normais. Seguindo essa orienta- cao basica, porém, muito pode ser feito, e é de se es- perar que continue sendo a politica da BBC prestar um servicgo social mediante a cessdo de tempo para a edu- cacao na area da satide que leve na devida conta as di- ficuldades inerentes a radiodifusdo. CAPITULO 2 MADRASTAS E PADRASTOS No dia 3 de janeiro de 1955, uma madrasta fez uma palestra no programa Woman’s hour da BBC, contando de um modo claro e comovente como esta- va atormentada por sentir-se incapaz de amar seu en- teado, que se incorporara 4 nova familia quando ti- nha sete anos de idade. A BBC recebeu uma enorme quantidade de cartas depois desse programa, descre- vendo experiéncias andlogas e diferentes de madrastas e padrastos, e indicando, em geral, que 0 assunto me- recia ser aprofundado. Por conseqtiéncia, a BBC re- servou para esse fim trés segmentos na Woman’s hour de 6, 7 e 9 de junho seguinte. O primeiro desses seg- mentos consistiu numa série de perguntas e respostas entre um especialista e um padrasto. Os dois seguintes foram preenchidos com palestras de Winnicott, as quais sdo aqui reproduzidas. Ambas foram transcritas de gra- vacdes, com o resultado de que a pontuacio teve de ser acrescentada. Os Organizadores 10 CONVERSANDO COM OS PAIS. (I) A madrasta perversa Sugere-se, as vezes, que se nado fossem os contos de fadas idéias como as da madrasta perversa jamais teriam surgido. Pessoalmente, estou convencido de que isso € um erro e de que é mais verdadeiro dizer que nenhum conto de fadas ou, a bem dizer, nenhuma his- toria de terror em quadrinhos ou coisa parecida pode ter um atrativo universal se nao se relacionar com al- go inerente a cada individuo, adulto ou crianca, O que ocorre no conto de fadas é que este capta e explora al- go que é verdadeiro, assustador e inaceitavel. Sim, tu- do isso: verdadeiro, assustador e inaceitavel. Peque- nos fragmentos do inaceitavel na natureza humana se cristalizam no mito aceito. A pergunta é esta: o que se cristaliza no mito da madrasta? Seja o que for, tem de se relacionar com ddio e medo, assim como com amor. Cada individuo tem uma grande dificuldade em reunir a agressividade que existe na natureza humana e mistura-la com o amor. Em certa medida, essa difi- culdade é superada na mais remota infancia pelo fato de que, no comeco, o mundo é sentido em extremos, amistoso e hostil, bom e hostil, branco e preto; o mau é temido e odiado e 0 bom é totalmente aceito. Gra- dualmente, as criangas desenvolvem-se a partir disso e atingem um estagio em que podem tolerar ter idéias destrutivas a par de seus impulsos carinhosos. Podem sentir-se entaéo culpadas mas descobrem poder fazer coisas para compensar. Se a mae souber esperar, che- gard o momento para o gesto de amor que é sincero e espontaneo. O alivio normalmente proporcionado nos estagios iniciais pela idéia dos bons e maus extremos MADRASTAS E PADRASTOS 11 é algo a que nem mesmo os adultos maduros podem renunciar por completo. As criangas, € as criancas pe- quenas em particular, podem facilmente admitir uma certa persisténcia dessa reliquia da fase inicial da in- fancia, e sabemos poder encontrar uma resposta pronta quando lemos ou contamos historias que apresentam os bons e maus extremos. Geralmente, a mde verdadeira e a madrasta jun- tam-se na imagina¢do com esses extremos, e em espe- cial por causa da segunda coisa que quero descrever, que é a existéncia de toda a sorte de raz6es pelas quais as criancas poderdao detestar suas m@es. Essa idéia de odiar a mae é muito dificil de ser aceita por todos e alguns que estao ouvindo nao gostarao de escutar as palavras édio e mae postas na mesma frase. Entretan- to, isso ¢ inevitavel; as maes, se realizam sua tarefa de modo apropriado, sao as representantes do mundo du- ro, exigente, e sao elas que introduzem gradualmente arealidade, a qual é tao freqiientemente a inimiga do impulso. Existe raiva em relagao a mae e o Gdio esta sem- pre presente, mesmo quando nao ha a menor duvida quanto a um amor misturado com adoracao. Se exis- tem duas mes, uma verdadeira que morreu, e uma ma- drasta, percebem com que facilidade uma crianca ob- tém alivio para a sua tensao fazendo uma perfeita e a outra horrenda? Isto se aplica quase tanto as expec- tativas do mundo quanto as crencas de uma crian¢a. Além de tudo isso, uma crianca acabara perceben- do ou sentindo que a devocao da mae num estagio mui- to inicial proporcionou as condicées essenciais que a habilitam a comegar existindo como pessoa, com di- reitos pessoais, impulsos pessoais e uma técnica pes- 12 CONVERSANDO COM OS PAIS soal de vida. Em outras palavras, havia dependéncia absoluta no inicio e quando a criancga comeg¢a a ser ca- paz de compreender isso desenvolve-se também um me- do da mae primitiva, detentora de poderes magicos pa- ra o bem e para o mal. Como é dificil para cada um de nds ver que esse onipotente agente primevo era a nossa propria mae, alguém que passamos a conhecer como um ser humano adoravel mas, de modo nenhum, perfeito ou inteiramente confiavel... Como tudo isso era precario... Além do mais, no caso de uma meni- na, é essa mesma mae, toda poderosa no inicio, a re- presentante irritante dos fatos desagradaveis da vida, adoravel o tempo todo, que, na realidade, passa a co- locar-se entre a filha e 0 pai. Nesse caso, em particular, a mae verdadeira e a madrasta partem de lugares dife- rentes, pois a primeira alimenta a esperanca e a segun- da teme que a menina conquiste 0 amor de seu pai. N§ao sera isso o bastante para mostrar que n4o deve- mos esperar que as criancas abandonem de subito uma tendéncia para dividir 0 mundo em geral e suas duas maes em particular em bons e maus, e que, pelo con- trario, devemos esperar uma certa persisténcia dessas idéias infantis nos adultos? Podemos usar argumentos ldgicos; podemos re- petir um sem-numero de vezes que 0 que importa nao é se as pessoas sdo negras ou brancas mas se, como seres humanos, sAo afetuosas e cativantes. Mas restam- NOs Os nossos sonhos, e quem gostaria de ver-se livre de suas fantasias? Em fantasia, nao precisamos ser adultos 0 tempo todo, da mesma maneira que precisa- mos ser quando pegamos o trem para 0 escritorio ou quando saimos para as compras. Na fantasia, o infantil eo adolescente persistem no adulto maduro. Mas aper- MADRASTAS E PADRASTOS 13 cebemo-nos do inconveniente da fantasia quando aden- tramos em uma ou outra das caracteristicas sombrias dos mitos do mundo. Eu mesmo posso ter adentrado em uma delas, talvez, quando falo sobre 0 édio e 0 medo a mae que sinto estar inevitavelmente mistura- do ao amor nas relacgdes mae-filho plenamente viven- ciadas. Vocés podem pensar que sou maluco. (I) O valor da histéria de um fracasso No estudo de qualquer problema relacionado com questées humanas, podemos restringir-nos a superfi- cie ou podemos ir a fundo. Se pudermos manter-nos superficiais, evitaremos uma por¢ao de dissabores e contratempos, mas também evitaremos os valores mais profundos. Algumas das cartas que chegaram apdés 0 programa sobre a histéria de um fracasso foram mui- to além do ébvio. Por exemplo, foi sublinhado que a crianca que perdeu o pai ou a mae nao pode ser trata- da como se isso no tivesse acontecido e é freqiiente- mente preferivel que a madrasta ou o padrasto permi- tam ser chamados por um outro nome a fim de que acrianga possa conservar ‘‘mam4e”’ ou ‘“‘papai’’ para referir-se ao que morreu. A idéia da mae ou pai que se perdeu pode manter-se viva e a crianga ser conside- ravelmente ajudada pela atitude que torna isso possi- vel. Também foi sublinhado que a crianca de quem se passou a tomar conta pode estar perturbada; e neste caso especial de uma crianca que nado era amada o me- nino tinha passado um periodo com a avo antes de ir viver com a madrasta, pelo que sofreu uma dupla pri- vacao e era passivel, por conseguinte, de sentir-se de- 14 CONVERSANDO COM Os Pals samparado a respeito do relacionamento e da confia- bilidade humanos. Se uma crianga se sente assim de- samparada, nao pode correr o risco de iniciar novos vinculos e defende-se contra os sentimentos profundos e contra as novas dependéncias. Vocés sabem que um grande ntimero de maes nao amam seus proprios bebés quando os dao a luz? Elas sentem-se horriveis, exatamente como a madrasta. Pro- curam fingir que amam mas simplesmente nao conse- guem. Seria téo mais facil para elas se lhes tivessem dito de antemao que o amor é uma coisa que pode che- gar mas nao € um botao que se liga. Geralmente, a mae nao tarda em sentir amor pelo seu bebé durante a gra- videz, mas isso é uma questo de experiéncia e nado uma expectativa convencional. Os pais tém, por vezes, 0 mesmo problema. Talvez isso seja mais facilmente acei- to, razao pela qual ha menos necessidade de fingimento por parte de um pai e seu amor pelo filho pode chegar naturalmente e no seu tempo préprio. Além de nado os amarem, é freqiiente que as maes odeiem seus bebés. Estou falando de mulheres comuns que, de fato, se saem muito bem e se preocupam em encontrar alguém que aja por elas e o faga de maneira apropriada. Co- nhe¢o muitas maes que viviam no temor constante de descobrir que fizeram mal aos seus proprios bebés e sao inteiramente incapazes de falar de suas dificulda- des por ser sumamente improvavel que alguém as pu- desse compreender. Ha tanta coisa que é profunda e oculta na natureza humana que pessoalmente eu pre- feriria ser filho de alguém que possui todos os confli- tos intimos da natureza humana do que ter por mae alguém para quem tudo é facil e tranqiiilo, que conhe- ce todas as respostas e é estranha a duvida. MADRASTAS E PADRASTOS. 15 A maioria dos que proclamam ter tido éxito aqui e ali poderiam registrar um fracasso alhures e, no lu- gar certo e no momento certo, a histdria de um fra- casso tem o mais alto valor. E claro, a quest&o é mui- to diferente quando as pessoas ficam por ai lamentan- do-se e suspirando, mas nao foi isso, por certo, o que aconteceu com a nossa madrasta que sofria tanto por ser incapaz de amar seu enteado. Sempre que uma es- posa ou um marido toma conta de um enteado ha uma longa histdria por tras desse acontecimento, e essa his- tdéria tem uma influéncia decisiva no modo como a si- tuacdo sera tratada. Nao é apenas uma questao de sen- timento de culpa por causa de uma crianga que, por assim dizer, ¢é roubada; ha toda uma historia de esco- Ilha de uma vitiva ou de um vitivo, ou de resgate de uma pessoa que teve um casamento infeliz. Ha toda uma série de importantes questdes que nao podem ser ig- noradas e que afetam o sonho ou a base imaginativa de padrastos e madrastas ao encetarem um novo rela- cionamento. Em qualquer caso especifico as coisas po- dem ser examinadas, e até proveitosamente examina- das, mas ao falar-se em termos genéricos 0 assunto torna-se de imediato demasiado vasto para ser todo ele abrangido. A mulher que se vé cuidando de uma crian- ca que nasceu de uma mulher que ¢ imaginativamente sua rival, mesmo que jd tenha morrido, pode facilmente sentir-se forcada por sua propria imaginacao a ocupar a posicao de bruxa em vez da de fada madrinha. De fato, ela pode ndo ter dificuldade alguma, ou pode, como as autoras de algumas cartas descreveram, gos- tar de assumir um lugar secundario em relacao a espo- sa anterior. Mas muitos homens e mulheres ainda es- tao se esforcando por alcancar a maturidade adulta 16 CONVERSANDO COM OS PAIS quando se casam, e devem lutar por seus préprios di- reitos ou perder sua identidade e seu sentimento pro- fundo de seres reais. Uma mulher pode facilmente sen- tir a presenga do filho da outra mulher como um lem- brete intoleravel da mae da crianca. Se esse género de coisa é verdadeiro mas inconsciente, pode distorcer o quadro e impossibilitar um crescimento natural de sen- timentos que conduzam primeiro a tolerancia e depois ao amor. Disponho apenas de tempo suficiente para men- cionar o fato de que uma certa percentagem de entea- dos sao realmente criaturas detestdveis, em virtude das experiéncias por que tiveram de passar. Podemos ex- plica-los e desculpa-los, mas a madrasta tem de supor- ta-los. Nao ha outra saida para ela. Felizmente, a maio- ria dos enteados é passivel de ser induzida a assumir uma atitude amistosa e, de fato, como varias cartas provam, sao inumeros Os casos em que os enteados se comportam exatamente como os proprios filhos de sua madrasta. Assim, com freqiiéncia, nao ha dificuldade ou, se as ha, nao so grandes nem apresentam qual- quer ameaca. Muitas pessoas perdem de vista a per- plexidade da situacéo madrasta-enteado e acabam acre- ditando que é tudo muito simples. Para as pessoas sem dificuldades, a minha exploracdo do mundo imagina- tivo deve parecer sumamente desagradavel e até peri- gosa. E perigosa para o sentimento de seguranca delas mas, como disse, ao perderem de vista os sonhos ruins e até os pesadelos, e as suspeitas e depressdes por que passaram, também perdem de vista tudo 0 que confe- re um sentido as suas realizagdes. Algum conhecimento de historias de fracassos po- de enriquecer bastante as nossas vidas. Além disso, es- MADRASTAS E PADRASTOS Ae: sas histérias podem mostrar-nos que existe um prop6- sito em ajudar as pessoas malsucedidas a reunirem-se. Se elas se reunem e falam, dividem entre si seus fardos e, por vezes, logram alivid-los. Uma ouvinte escreveu- me solicitando um encontro de madrastas e padrastos malsucedidos. Penso que tal reunido poderia ser fruti- fera. Seria constituida de homens e mulheres comuns. CAPITULO 3 O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBES QUE CHUPAM PANQ? Palestra transmitida pela BBC em 31 de janeiro de 1956 Muitos ensinamentos podem ser colhidos obser- vando o que os bebés fazem para passar 0 tempo en- tre os periodos de sono. Mas devemos, em primeiro lugar, livrar-nos da idéia de que existe um certo e um errado; 0 nosso interesse decorre do fato de que atra- vés dos bebés podemos aprender a respeito de bebés. O conferencista que falou a semana passada neste pro- grama abordou o ponto de vista de que se um deter- minado bebé chupa o polegar ou um pedaco de pano nao é ai que temos de intervir para aprovar ou repro- var, mas é onde temos uma oportunidade de conhecer alguma coisa sobre esse bebé. Concordo com ele e com as mes cujas cartas ele citou. Estamos interessados numa grande variedade de fenémenos que caracterizam a vida do bebé. Jamais podemos saber tudo a respeito desses fendmenos, por- que ha sempre um novo bebé, e nunca dois bebés sao exatamente iguais, quer no rosto, quer nos habitos. Conhecemos os bebés nao so pela linha do nariz ea cor do cabelo, se houver algum, mas também por suas idiossincrasias. 20 CONVERSANDO COM Os PAIS Quando as maes me falam a respeito dos filhos, peco em geral que recordem as coisas que acontece- ram no come¢o que eram caracteristicas. Elas gostam de trazer 4 memoria aquelas coisas que revivem tao ni- tidamente o passado. Falam-me sobre toda a espécie de objetos que fo- ram adotados pelo bebé, que se tornaram importan- tes, que sAo chupados ou abracados, e que reconfor- tam o bebé nos momentos de solidao e insegurangca, proporcionam consolo, ou atuam como um sedativo. Tais objetos estéo a meio caminho entre ser parte da crianca e parte do mundo. Nao tardarao em adquirir um nome, como “‘tissie’’ ou ‘‘nammie’’, o que denun- cia sua dupla origem. O cheiro e a textura sao seus ele- mentos essenciais — e que ninguém se atreva a lava- los! E que tampouco se ouse deixar um desses objetos em casa quando se sai. Se vocé for suficientemente s4- bia, deixara que o objeto se desintegre aos poucos, co- mo 0 velho soldado da cancao que nunca morre; vocé nao o destrdi, nao o perde nem se desfaz dele. O principal é nunca provocar 0 bebé: “‘Isso é al- guma coisa que vocé inventou, ou é parte do mundo que vocé descobriu e adotou?’’ Um pouco mais tarde, vocé estara querendo obrigar 0 seu bebé a dizer “‘ta’’, e a reconhecer assim que esse cachorrinho felpudo foi um presente da titia. Mas esse primeiro objeto € esta- belecido como parte integrante do contetido do berco ou do carrinho do bebé, antes que a palavra “‘ta’’ possa ser proferida ou fazer sentido, antes que o bebé faca uma clara distincao entre o eu e 0 ndo-eu, ou antes que tal distingao esteja sendo processada. Uma personalidade esta sendo formada e uma vi- da que nunca foi vivida antes esta sendo vivida, e é nes- O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBES 21 sa nova pessoa vivendo essa nova vida que a mae e 0 pai estado interessados a partir do instante em que se sente 0 bebé em movimento no ventre materno. A vi- da pessoal comeca imediatamente, e persistirei nessa idéia muito embora saiba que os filhotinhos de caes e gatos também chupam pedacos de pano e brincam, um fato que me leva a afirmar que os animais tam- bém sAo muito mais do que meros feixes de reflexos e apetites. Quando digo que a vida comeca imediatamente, admito que, no inicio, a vida adquire uma forma bas- tante restrita, mas a vida pessoal do bebé certamente come¢ou na época do nascimento. Esses estranhos ha- bitos dos bebés dizem-nos que existe na vida deles al- go mais do que dormir e ingerir leite, e algo mais do que obter satisfacdo instintiva de uma boa refeicdo. Es- ses habitos indicam que ja existe uma crianca, viven- do realmente uma vida, acumulando e estruturando lembrangas, formando um padrao pessoal de compor- tamento. Para uma compreensao mais completa, devemos considerar que existe desde 0 inicio uma forma rudi- mentar do que mais tarde chamaremos imaginag¢ao. Is- so habilita-nos a dizer que o bebé recebe e assimila nao sd com a boca mas também com as mAos ¢ a pele sen- sivel do rosto. A experiéncia de alimentacao imagina- tiva é muito mais ampla do que a experiéncia puramen- te fisica. A experiéncia total de alimentacao pode ra- pidamente envolver um fecundo relacionamento com 0 seio da mae, ou com a mae a medida que vai sendo gradualmente percebida, e o que o bebé faz com as mdaos e os olhos amplia a extensfo do ato alimentar. Isso que é normal fica ainda mais evidente quando ve- 22 CONVERSANDO COM OS PAIS. mos a refeicdo de um bebé ser ministrada de um mo- do mecanico. A mamada em tais condicées, longe de constituir uma experiéncia enriquecedora para o be- bé, interrompe nele a sensacdo de continuar sendo, Nao sei realmente como expressar isso de outra forma. Di- ria que houve uma atividade reflexa e nenhuma expe- riéncia pessoal. Quando fazemos cdcegas no rosto de um bebé, po- demos produzir um sorriso, mas o bebé podera sentir qualquer coisa menos satisfacao com isso. O reflexo traiu o seu dono. Ele quase possui 0 bebé. Nao é tare- fa nossa usar 0 poder que indubitavelmente possuimos para suscitar reflexos e estimular gratificagdes instin- livas que nao surjam como parte integrante do ritmo da vida pessoal do bebé. Todo género de coisas que um bebé faz enquanto mama parecem-nos absurdas, desprovidas de sentido, porque nao o fazem engordar. O que estou afirmando é que sdo justamente essas coisas as que nos corrobo- ram estar o bebé se alimentando, nao apenas sendo ali- mentado, estar vivendo uma vida e nao apenas reagindo aos estimulos que lhe sao oferecidos. Ja viram um bebé chupando um dedo ao mesmo tempo que prazerosamente mama? Eu vi. Ja viram al- guma vez um sonho ambulante? Quando um bebé chu- pa a ponta de um pano, ou do edredom, ou um bone- co, 0 objeto representa um extravasamento da imagi- nacao, quer dizer, a imaginacao estimulada pela fun- cao excitante central que é a amamentacao. Em outras palavras: ja pensaram alguma vez que a sensacao global, chupar o dedo, a ponta de um pa- no, abracar a boneca de pano, ¢ a primeira manifesta- © QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBES 23 cao infantil de comportamento afetivo? Pode alguma coisa ser mais importante do que isso? Talvez as pessoas considerem ponto pacifico a ca- pacidade afetiva de seus bebés, mas logo se darao conta disso se tiverem uma crian¢a que nao pode mostrar afei- c4o ou que perdeu essa capacidade. E possivel induzir a comer uma crianc¢a que pareca relutante em fazé-lo, mas nao ha nada que se possa fazer para tornar afe- tuosa uma crianca insensivel a afeicao. Vocé pode inunda-la de afeicaéo, mas tudo o que conseguira dela é que se esquive, ora silenciosamente, ora com gritos de protesto. Essas atividades insolitas e aparentemente irrele- vantes sobre as quais estamos falando sao um sinal de que a crianca esta presente como pessoa e, além disso, confiante no relacionamento com a mae. O be- bé esta apto a usar objetos que so simbolicos, como diriamos, da mae ou de alguma qualidade da mae, e é capaz de sentir prazer em agdes que s4o meramente Hidicas, muito distantes do ato instintivo, ou seja, da alimentacao. Observem 0 que acontece se 0 bebé comega a per- der a confianca. Uma privacao de pouca importancia pode produzir um elemento compulsivo no habito (ou seja qual for o nome que se lhe dé) de succao, de mo- do que se converta num tronco principal, em vez de ser um simples ramal. Mas se houver uma privacao mais séria ou prolongada o bebé perde toda a sua ca- pacidade de chupar o pedago de pano, de brincar com a boca ou de remexer no nariz; o significado dessas atividades ludicas dissipa-se. Esses primeiros objetos hidicos e essas atividades lidicas existem num mundo entre 0 bebé e o mundo 24 CONVERSANDO COM OS PAIS externo. Ha um esforco tremendo por tras da demora da crianca em distinguir entre 0 eu e o nao-eu, e da- mos tempo para que esse desenvolvimento ocorra na- turalmente. Vemos a crianga comecar a separar coisas e a perceber que existe um mundo externo e um mun- do interno e, a fim de ajudar, consentimos num mun- do intermédio, o qual é ao mesmo tempo pessoal e ex- terno, eu e ndo-eu. Isso €é 0 mesmo que a intensa ativi- dade luidica da infancia e que os devaneios de criancas mais velhas e adultos, devaneios esses que nado s40 so- nho nem fato, e no entanto sao ambas as coisas. Pensando bem nisso, sera que a/gum de nés eman- cipou-se totalmente da necessidade de uma area inter- média entre nds préprios, com o nosso mundo inter- no pessoal, e a realidade externa ou compartilhada? A tensdo que 0 bebé sente ao esforcar-se por separar os dois mundos nunca se perde por completo, e per- mitimo-nos uma vida cultural, algo que pode ser com- partilhado e, no entanto, muito pessoal. Refiro-me, é claro, as primeiras e sdlidas amizades e a pratica da religido. E, em todo caso, ha as coisas absurdas que todos fazemos: por exemplo, por que eu fumo? Para uma resposta, teria de me dirigir a uma crianca peque- na, que riria na minha cara, tenho certeza, pois uma crianca sabe melhor do que ninguém como €¢ ridiculo ser sensato 0 tempo todo. E estranho, talvez, mas chupar um polegar ou uma boneca de trapo pode gerar uma sensacao de realida- de, ao passo que uma refeicdo de verdade pode propi- ciar sensagGes irreais. A refeicdo real deflagra reflexos, Os instintos véem-se envolvidos de forma vigorosa, e a crianca ainda nao avancou o bastante no caminho do estabelecimento de um eu a ponto de ser capaz de O QUE SABEMOS A RESPEITO DE BEBES 25 absorver tao poderosas experiéncias. Isso nado lembra o cavalo sem jdéquei que venceu 0 Grand National? Essa vitoria nado deu o prémio ao proprietario do animal, uma vez que o jéquei tinha sido incapaz de aguentar- se na sela. O proprietario sente-se frustrado e 0 joquei pode ter saido machucado. Quando vocé se adapta as necessidades e ritmos pessoais do seu bebé no come- ¢o, esta habilitando esse principiante a firmar-se na sela durante a corrida, inclusive a montar o seu proprio ca- valo e a gostar de cavalgar por puro prazer. Para o eu imaturo de uma crianca muito pequena éa auto-expressao talvez na forma desses ins6litos ha- bitos de chupar um pedaco de pano que ela sente co- mo realidade, e que da a mae e A crianca uma oportu- nidade de relacionamento humano que nao esteja a mercé dos instintos animais. CAPITULO 4 DIZER “NAO” Trés palestras radiofGnicas na BBC, transmitidas em 25 de janeiro, 1° e 8 de fevereiro de 1960 Este programa e os dois seguintes formam uma série. O tema é ‘‘Dizer ‘nao’’’. Esta noite ouvirao uma discussao entre varias maes, e farei um breve comen- tario no final. Na proxima semana e na seguinte, se- rei eu quem falarei principalmente, mas serdo citados alguns trechos da discuss4o, apenas a titulo de lem- brete. Penso que irado gostar da discussao, que dura cer- ca de oito minutos. Parece-me extremamente realista. Quando a ouvirem, podem estar inteiramente certos de que nada foi encenado. E simplesmente 0 modo co- mo vocés discutiriam 0 mesmo assunto. ok eae A conversa das mies MAES “E muito dificil encontrar um meio-termo entre 28 CONVERSANDO COM OS PAIS. dizer as criangas 0 tempo todo nao facam isto, nao fa- cam aquilo, ou deixd-las resolver tudo. Mas, por outro lado, nado se pode deixar que destrocem a casa toda.”’ “‘Acabo de adquirir uma nova residéncia, tivemos um apartamento durante um ano e tivemos de com- prar tudo para ele, e também para 0 novo bebé. E de- cidi deixar que o bebé, uma menina, desfrutasse a mes- ma liberdade que no apartamento, ¢ ela é hoje um be- bé feliz por causa disso.”’ “Sim, mas que idade tem ela agora... vinte meses?”’ “Vinte e um meses, e muito ativa”’ (Falam ao mes- mo tempo) “Trés anos! Trés anos de idade é ligeiramente di- fente de vinte meses, nao acha?’’ (Falam ao mesmo tempo) “‘Mas decidi continuar mantendo essa atitude.’’ “A sua filha tera a mesma liberdade quando visi- tar a casa de outras pessoas?” “No momento tem, porque é extremamente curio- sa, como deve ser nessa idade.’’ “*Penso que esse negocio de as criancas serem bem comportadas quando visitam outras pessoas depende em grande parte do grau de liberdade que desfrutam em casa. Porque se tém liberdade para fazer as trope- lias e a sujeira que lhes apetecam em casa, de um mo- do ou de outro, entao nao tém...”’ “Nao ficam tao curiosas.”” “Entaéo néo querem fazer a mesma coisa em ou- tros lugares. Esta certo, quando vocé volta para casa das compras, a crianga apanha o saco de arroz — se vocé imprudentemente o tiver deixado ao seu aleance — e derrama-o pelo chao todo.’’ (Risos) ‘‘A crianca nao foi levada, vocé é que foi esttipida. Quer dizer, DIZER ‘’NAO” 29 quando a minha filha faz isso, eu percebo que quanto mais depressa voltarmos para a caixa de areia, onde ela pode — vocés sabem — derramar tudo 0 que qui- ser, melhor sera para nos.’’ (Falam ao mesmo tempo) ““Fla nao ficara chateada por passar tanto tempo na caixa de areia, e nao achard o arroz mais fascinante? “Claro que sim, mas também, quer dizer, pocas por exemplo. Aprendi essa licdo de uma outra pessoa, porque a minha filha teve alguém cuidando dela du- rante o primeiro ano, nado em tempo integral mas durante os dias em que eu ainda estava dando aulas (antes de ter o segundo filho, eu decidira que queria continuar dando aulas). Mas até com seus sapatos co- muns essa senhora deixava-a ir meter os pés nas pocas de agua, em certas oportunidades, e depois dizia-lhe: “Muito bem, desta vez vocé nao deve se meter nas po- ¢as, porque vamos sair. Nao posso te trocar agora. E ela nao ia para as pocas. Essa foi uma boa licao que aprendi. Quer dizer, se vocé deixa a crianca fazer algo quando isso nao vai ser um aborrecimento muito gran- de para vocé, entao ela nao o fara quando se lhe expli- ca haver uma razao para que nao o faca desta vez.’’ (Falam ao mesmo tempo) “Isso funciona?’’ (Falam ao mesmo tempo) “Isso nao surge do nada, é preciso prepara-las.”’ “*Vocé pode fazer da explicacdéo um jogo: que tal se fizéssemos isto... e vamos afastando-os pouco a pouco do que estiverem fazendo que é destrutivo, descobrin- do alguma outra coisa interessante para fazer.” (Falam ao mesmo tempo) ‘‘Bem, eu... explico racionalmente, quer dizer, o que pretendo com esse negécio de fazer um jogo daquilo que a crian¢a estiver fazendo num da- do momento ¢ introduzi-la com jeito num outro jogo.”” 30 CONVERSANDO COM OS PAIS “Distragao?”’ “Distracéo, sim.’’ “‘Acho que tudo depende de vocé nao ter um nti- mero excessivo de coisas a cujo respeito tenha de dizer ‘nao’. Quer dizer, quando o nosso primeiro bebé era muito pequeno, havia duas coisas a que diziamos ‘nao’. Uma era algumas plantas que tinhamos no /iving e nao queriamos que fossem arrancadas, e a segunda eram fios elétricos, pois havia uma porc¢ao deles pela casa. Diziamos ‘nao’ a respeito dessas coisas; quanto ao res- to... se havia qualquer coisa que ele pudesse estragar, tudo o que faziamos era coloca-la fora do seu alcance.”’ “E a coisa mais sensata a fazer.” (Falando ao mesmo tempo) ‘‘Essas eram sempre ‘nao’. O resto nado era. De modo que, quando vocé di- zia um novo ‘no’ para algo que vocé sabia que, por alguma razdo, a crianca nao entendia, ela nao se im- portava.”’ “Eu também comecei assim com o meu, com 0 mesmo &xito.”’ “‘Ha ocasides em que vocé nao pode deixar de di- zer ‘nao’. Aos 21 meses, vocé pode p6r as coisas fora do alcance deles... provavelmente ainda nao conseguem trepar. Parece que tomadas sao coisas que nao podem ser postas fora do alcance.’’ “Vocé deve instalar tomadas apropriadas... exis- tem tomadas apropriadas para eletrodomésticos.”’ **Acho que vocé deve decidir simplesmente quan- do dizer ‘n4o’ e manter-se firme. E muitissimo melhor que vocé lhe dé umas chineladas do que deixa-lo levar um choque elétrico, ou qualquer outro género de choque.”’ “‘Afinal de contas, vocé nem sempre esta em con- DIZER “‘NAO”* 31 digdes de mandar trocar todas as tomadas.’’ (Falam ao mesmo tempo) ““Acho que nao é assim tao facil quanto as pes- soas imaginam ter alguns ‘ndos’ e persistir neles. Acho que se vocé tem um ‘nao’ que parece suficientemente importante e interessante para a crianga isso a deixara fascinada porque se trata do unico ‘nao’. Veja 0 caso dos fésforos... elas ficam com a idéia de que os fésfo- ros sdo a coisa mais interessante que existe na casa to- da, porque s6 ouviram dizer ‘nao’ a respeito deles. Eu acho... bem, eu acho que vamos ter de deixa-las brin- car com fésforos.’” “‘Alguém ja tentou ensinar-lhes a riscar fosforos segurando-os a uma certa distancia...?”’ “*.,, mas isso as fascina ainda mais.”’ ‘‘Ndo sei, mas penso que € uma excelente abor- dagem mostrar as crian¢as 0 que acontece se continua- rem brincando com eles.”’ “‘Mesmo ao ponto de queimarem literalmente os dedos?”’ “Nao sei... suponho que é um pouco duro, mas se puderem chegar bem perto para se darem conta de que esta quente e poderia ser uma coisa muito doloro- sa, tanto mais que podem aprender de outras coisas oO que é 0 calor...”’ “Sim, eu tive sorte: o meu filho tocou certa vez no secador de toalhas, que estava quente, ele se quei- mou e eu disse: ‘Quente,’ ”” “‘O meu segundo filho faz alguma coisa, se ma- chuca e percebe, ou eu presumo que percebe, por que se machucou; mas no dia seguinte esta disposto a fa- zer exatamente a mesma coisa.’” “‘Estou certa de que é uma questaéo de tempera- 32 CONVERSANDO COM OS PAIS mento. A minha primeira filha estava com uns 18 me- ses quando meteu na boca uma porcao de bacon quen- te, eeu disse ‘quente’, e dai em diante creio que nunca mais voltou a queimar-se. Ela sabe o que é ‘quente’, e tem nao so muita imaginacdo mas também muito me- do disso. Mas a minha segunda filha é muito diferen- te. Enchia repetidas vezes a boca de bacon quente.”’ ““Ha certas coisas que elas nao podem fazer, mes- mo que nao lhes causem exatamente qualquer dano. Como o acendedor automatico de uma boca de fogao a gas. Tudo 0 que o meu filho tem de fazer é girar o botao para acender o gds. Bem, isso nao lhe faz ne- nhum mal, mas pode causar um tremendo de um pre- juizo se houver qualquer coisa colocada sobre o fogao. Ele sabe muito bem que nao deve acender o gas e fica sacudindo negativamente a cabeca enquanto o faz.’ (Risos) ““Nao seria esse um momento oportuno para uma boa palmada?”’ “Nao é essa uma daquelas situagdes em que vocé ja deveria, por certo, estar de sobreaviso, eno momen- to em que ele se acercasse do fogao afastd-lo energica- mente?’’ (Falam ao mesmo tempo) “E responsabilidade da mae que uma crianca nao fique perambulando pela cozinha, e isso é tudo. Quer dizer, isso sé pode ser responsabilidade nossa.” “Mas vocé esta lavando e cozinhando!’? (Falam a um tempo) ““Uma crianca nao pode permanecer indefinida- mente no seu cercado.” “Oh, nao, eu sei, mas eu pensaria que ha um jei- to de contornar quase tudo isso. E com distracdes. Se ela se sente atraida pela chama do gas, vocé lhe ofere- DIZER NAO” 33 ce alguma outra coisa igualmente atraente mas segu- ra. Acontece a mesma coisa com uma crian¢a mais ve- lha, vocé tem apenas de lembrar-lhe 0 tempo todo que deve colocar 0 cabo da cacarola do lado mais distan- te, para que qualquer crianca mais nova nao venha e a puxe pelo cabo.”’ “Nos somos uns felizardos. A nossa sala de jan- tar tem uma porta de comunicacao com a cozinha e as criancas tém a sala de jantar como uma espécie de local para brincar, e tento manté-las af. Mas nao fe- cho a porta. Desde que saibam que eu estou na peca ao lado e que podem me ver se assim quiserem, elas permanecem quase sempre na sala de jantar.”’ “*Com que idade?’”’ “Oh, desde muito cedo, logo que safram do cer- cado, a partir de um ano, mais ou menos. Vém até a porta para me espiar e depois voltam para a sala com seus brinquedos.”’ “‘Vocés nao acham que estar constantemente de sobreaviso, ter de inventar distracdes, e lembrar-lhes que nao podem fazer isto ou aquilo, ndo é uma coisa sumamente cansativa?”’ **Sim.’’ (Falando ao mesmo tempo) “‘Somado ao que é uma questdo de oportunida- de. E de falta de tempo. Vocé esta tentando fazer mui- tas coisas ao mesmo tempo, esta cozinhando, talvez esteja fervendo fraldas, alguém bate na porta da fren- te e vocé se volta de repente e surpreende o seu garoto brincando com a torneira do gas, ou tentando enfiar na tomada um fio elétrico que esquecemos de guardar na noite anterior. Esse é¢ 0 género de coisas que ocor- rem... nao da para pensar de antemao em tudo.’’ aka 34 CONVERSANDO COM OS PAIS DWW Espero que esse grupo de maes tenha continuado a discutir e a trocar opinides em torno de uma xicara de cha. Temos de deixa-las ai. Esia semana, como disse antes, farei apenas um breve comentario geral, e nas duas proximas semanas espero abordar e desenvolver alguns dos pontos susci- tados. Sempre gostei muito de ouvir esse tipo de coi- sa, quando as pessoas falam de sua especialidade. E a mesma coisa quando agricultores falam sobre trigo, e centeio, e batatas, ou quando qualquer artesao fala do seu oficio. Por exemplo, essas mulheres falam da diferenca entre bebés de 24 meses e 3 anos, ou qual- quer outra idade. Elas sabem que imensas mudancas ocorrem de més para més. Aos 12 meses, apenas algu- mas palavras tém sentido para um bebé como palavras, a0 passo que aos 24 meses as explicacées verbais co- mecam a ser um bom modo de comunicaca4o e um mé- todo eficiente de cooperacio quando ‘“‘nao”’ é 0 que vocé realmente quer dizer. Vemos pela discussao que existem muitas etapas. Eu destacaria trés. Em primei- ro lugar, vocé é absolutamente responsavel o tempo todo. Em segundo lugar, comeca a transmitir ‘‘nao’’ ao bebé porque esta certa em discernir 0 alvorecer da inteligéncia e os primérdios da capacidade do bebé para separar O que vocé consente do que nao consente. Vo- c€ nao esta tentando lidar com o certo e 0 errado do ponto de vista moral, esta simplesmente levando ao co- nhecimento do bebé os perigos dos quais 0 esta prote- gendo. Acho que os ‘‘ndos’’ maternos se baseiam na idéia de perigos concretos. Lembram-se de como duas maes falaram a respeito do calor? No momento apro- priado, elas proferiram a palavra ‘‘quente’’ e assim vin- DIZER “NAO” 35 cularam o perigo a dor. Mas muitos perigos nao estao ligados a dor de um modo tao simples, de forma que o ‘‘nao’’ tem de ser suficiente até ser alcancada a eta- pa seguinte. Na terceira etapa, ganha-se a cooperagao da crianga ao oferecer-lhe uma explicacao. Isso envol- ve a linguagem. ‘‘Ndo’’ porque esta quente. ‘“Nao”’ porque eu digo nao. ‘‘Nao’’ porque eu gosto dessa planta, subentendendo que se a planta for arrancada vocé nado gostara tanto do seu bebé durante alguns minutos. Referi-me a trés etapas, mas essas etapas sobre- pdem-se em parte. Primeiro temos aquela fase em que vocé assume plena responsabilidade, de modo que, se algo de desagradavel acontece, vocé se recrimina, e essa fase sé se torna obsoleta muito lentamente. De fato, vocé continua assumindo a responsabilidade, mas ob- tém um certo alivio por causa da crescente capacidade da crianca para compreender as coisas. Se essa primeira etapa se converter porventura em coisa do passado, isso significa que o seu filho cresceu o bastante para nao necessitar mais do controle da familia, tornando-se um membro independente da sociedade. Na segunda etapa, vocé se impde e impde a sua visio do mundo a crianga. Esta fase converte-se na ter- ceira, a da explicagado, mas o ritmo e a maneira como essa conversao se processa dependem tanto da crianga quanto da mae. As criancas sao tao diferentes umas das outras no modo como se desenvolvem... Podemos abordar esses pontos na préxima semana. Talvez ja te- nham entendido que dizer ‘‘nao’’ nao é simplesmente dizer ‘‘nao’’. 36 CONVERSANDO COM OS Pals I Na semana passada, ouviram algumas maes dis- cutindo o problema de dizer ‘‘nao’’; e eu fiz um breve comentario. Esta semana e na proxima falarei a res- peito de algumas coisas em que estive meditando en- quanto as ouvia. Mas existe algo que gostaria de dizer € que se relaciona com toda essa discussdo. No meu trabalho, aprendi muito sobre as dificuldades que as maes enfrentam quando nao desfrutam uma posicado favordvel. Talvez tenham grandes dificuldades pes- soais, de modo que nao podem ter um bom desempe- nho, mesmo quando sAo capazes de ver 0 caminho; ou tém maridos que estao longe, ou que nao fornecem um apoio adequado, ou que interferem, que sdo até ciu- mentos; algumas nao tém marido mas tém ainda de criar 0 bebé. E depois ha as que foram colhidas em condigdes adversas, pobreza, moradia superlotada, vi- zinhanga hostil. A tal ponto que todos esses proble- mas cotidianos as impedem de ter uma visdo mais am- pla do que deveria ser o seu papel de mae. E temos ainda aquelas que cuidam dos bebés de outras pessoas. Percebi que as maes que se reuniram aqui para dis- cutir a forma de tratar seus bebés sao do tipo usual de pessoas saudaveis e bem-sucedidas, e que possuem 0 senso de seguranca necessdrio para abordar o verda- deiro problema que significa cuidar de um filho peque- no. Sei que a maioria das maes sAo como essas que ou- vimos, mas desejo chamar a atencdo para o fato de elas serem felizes, em parte porque perdemos algo se tomarmos a boa sorte por ponto pacifico, e em parte porque estou pensando em todas as m&es que podem estar ouvindo e sao inibidas, infelizes, frustradas, e nado DIZER “NAO” 37. foram bem-sucedidas; porque todo mundo quer real- mente se sair bem. Dito isto, lembro-lhes as trés etapas que destaquei no programa anterior. Em primeiro lugar, disse eu, vo- cé é envolvida num processo em que é, de fato, total- mente responsavel pela protecao do bebé. Depois vem um periodo em que pode dizer ‘‘nao’’; e finalmente vem o tempo das explicacGes. Gostaria de dizer algumas palavras a respeito dessa primeira etapa em que a mae é plenamente responsa- vel. Vocé estara apta a dizer, depois de alguns meses, que nunca, nem uma Unica vez, deixou de atender aos chamados do seu bebé, embora tivesse de ser, é claro, uma pessoa frustradora 0 tempo todo, porque nao po- dia, e ninguém poderia, satisfazer todas as necessida- des do bebé — uma tarefa que a mae nao tem de reali- zar. Nao ha ‘‘nao’’ nessa primeira etapa; e lembrei- Thes que essa primeira etapa sobrepGe-se em parte as etapas subseqtientes; ela prossegue até o momento em que seu filho cresceu o suficiente para tornar-se inde- pendente do controle familiar. Vocé fara coisas horri- veis, mas nao creio que tenha em nenhum momento deixado de atender ao seu filho, nao se estiver ao seu alcance ajuda-lo. Na fase seguinte, a que chameia etapa dois, come- ca a aparecer o ‘‘nao’’. Vocé transmite um ‘‘nao’’ de uma forma ou de outra. Talvez diga apenas ‘‘Brhhhhh’’. Ou franza o cenho. Ou tor¢ga o nariz. Ou o uso da pala- vra ‘‘nao’’ constitui um bom método, a menos que 0 bebé seja surdo. Penso que se vocé é uma pessoa feliz encontrara facilmente como colocar esse negdcio do “nao’”’ numa base pratica, estabelecendo um modo de vida que se coadune com o seu e com 0 mundo a sua 38 CONVERSANDO COM Os PAIS volta. As maes infelizes, por causa de sua propria in- felicidade, podem ser propensas a exagerar 0 lado ca- rinhoso do trato com o bebé e, por vezes, dizem nao apenas porque andam irritaveis. Mas isso é irremedia- vel. E temos em seguida a etapa trés, a que chamo a fase das explicagdes. Algumas pessoas sentem um gran- de alivio quando podem, finalmente, falar com a crian- ca e esperar ser entendidas, mas estou dizendo que a base de tudo é certamente 0 que aconteceu antes. Gostaria de lembrar-lhes agora a parte da discus- sao em que uma das maes disse que foi introduzindo os ‘‘naos’’ um de cada vez. Penso que o detalhe im- portante é que ela tinha bem claro em seu espirito 0 que permitiria e o que nao permitiria. Se ela propria estivesse confusa, 0 bebé teria perdido algo sumamen- te valioso. Ougam agora um fragmento da conversa das maes: MAES ““Acho que tudo depende de vocé nao ter um nu- mero excessivo de coisas a cujo respeito tenha de di- zer ‘nao’. Quer dizer, quando o nosso primeiro bebé era muito pequeno, havia duas coisas a que diziamos ‘nado’. Uma era algumas plantas que tinhamos no /i- ving e nao queriamos que fossem arrancadas, e a se- gunda eram fios elétricos, pois havia uma por¢ao de- les pela casa. Diziamos ‘nao’ a respeito dessas coisas; quanto ao resto... se havia qualquer coisa que ele pu- desse estragar, tudo o que faziamos era coloca-la fora do seu alcance.”’ “E a coisa mais sensata a fazer.”” (Falando ao mesmo tempo) ‘‘Essas eram sempre ‘nao’. O resto nao era. De modo que, quando vocé DIZER “NAO” 39 dizia um novo ‘nao’ para algo que vocé sabia que, por alguma razao, a criancga nao entendia, ela nao se im- portava.”’ “Eu também comecei assim com o meu, com o mesmo éxito.” DWW Somos aqui informados sobre a capacidade de uma mae de adaptacao a necessidade do bebé de uma iniciagao sem complicagdes a algo que deve necessa- riamente ir ficando cada vez mais compiexo. O bebé tinha dois ‘‘nados’’ no come¢o, e depois outros foram adicionados, sem dtivida, e nao ocorreu uma desne- cessdria barafunda. Recordemos, agora, 0 modo como uma palavra foi usada antes que a explicacdo pudesse ser dada em palavras. Neste fragmento, a palavra ‘‘quente”’ coloca- nos exatamente entre as etapas dois e trés, como as chamei. MAES “‘Mesmo ao ponto de queimarem literalmente os dedos?”” “Nao sei... suponho que é um pouco duro, mas se puderem chegar bem perto para se darem conta de que esta quente e poderia ser uma coisa muito doloro- sa, tanto mais que podem aprender de outras coisas o que € 0 calor...” “Sim, eu tive sorte: 0 meu filho tocou certa vez no secador de toalhas, que estava quente, ele se quei- mou e eu disse: ‘Quente.’ ”’ “O meu segundo filho faz alguma coisa, se ma- chuca e percebe, ou eu presumo que percebe, por que 40 CONVERSANDO COM OS PAIS se machucou; mas no dia seguinte esta disposto a fa- zer exatamente a mesma Coisa.’” ““Estou certa de que é uma questao de tempera- mento. A minha primeira filha estava com uns 18 me- ses quando meteu na boca uma porcao de bacon quen- te, eeu disse ‘quente’, e dai em diante creio que nunca mais voltou a queimar-se. Ela sabe 0 que é ‘quente’, e tem nao s6 muita imaginacdo mas também muito me- do disso. Mas a minha segunda filha é muito diferen- te. Enchia repetidas vezes a boca de bacon quente.”’ “Ha certas coisas que elas nio podem fazer, mes- mo que nao lhes causem exatamente qualquer dano. Como o acendedor automatico de uma boca de fogao a gas. Tudo o que o meu filho tem de fazer é girar o botao para acender o gas. Bem, isso nao lhe faz ne- nhum mal, mas pode causar um tremendo de um pre- juizo se houver qualquer coisa colocada sobre o fo- gao. Ele sabe muito bem que nao deve acender o gas e fica sacudindo negativamente a cabeca enquanto o faz.’’ (Risos) ‘Nao seria esse 0 momento oportuno para uma boa palmada?’’ DWW ... Bem, talvez fosse. Pelo modo como essas mies falam, pode-se perceber que é na vivéncia de momen- to a momento que todo o trabalho importante é feito. Nao ha ligGes nem prazo estabelecido para aprender. A licao chega com 0 modo como as pessoas envolvi- das se descobrem reagindo. Quero repetir, porém, que nada absolve a mae de bebés e criancas pequenas de sua tarefa de eterna vigilancia. DIZER “NAO” 41 MAES ‘Esta certo, quando vocé volta para casa das com- pras, a crianca apanha o saco de arroz — se vocé im- prudentemente tiver deixado ao seu alcance — e der- rama-o pelo chao todo.”’ (Risos) ‘‘A crianca nao foi levada, vocé é que foi esttipida. Quer dizer, quando aminha filha faz isso, eu percebo que quanto mais de- pressa voltarmos para a caixa de areia, onde ela pode — vocés sabem — derramar tudo o que quiser, me- lhor sera para nds.” DWW Sim, foi culpa dela se 0 arroz foi todo derramado, sem duvida! Mas conjeturo que, mesmo assim, ela fi- cou muito irritada! As vezes, é apenas uma questdo de arquitetura, o modo como os varios cémodos da casa esto dispostos ou a colocacao de um painel de vidro na porta entre a cozinhae o quarto de brincar das crian¢as. MAES, “‘Noés somos uns felizardos. A nossa sala de jan- tar tem uma porta de comunicacao com a cozinha e as criangas tém a sala de jantar como uma espécie de lo- cal para brincar, e tento manté-las ai. Mas nao fecho a porta. Desde que saibam que eu estou na pega ao la- do e que podem me ver se assim quiserem, elas perma- necem quase sempre na sala de jantar.’’ “Com que idade?’’ “Oh, desde muito cedo, logo que sairam do cer- cado, a partir de um ano, mais ou menos. Vém até a porta para me espiar e depois voltam para a sala com seus brinquedos.’’ 42 ‘CONVERSANDO COM OS PAIS DWW Sim, ela teve sorte, nao é verdade, com 0 modo como sua casa estava dividida? E depois ouvimos falar da tensAo que a eterna vi- gilancia causa nas maes. Isso é especialmente verda- deiro, penso eu, quando a mulher, antes de casar, ti- nha um emprego regular, de modo que ela conhecia a satisfagdo que a maioria dos homens sentem em seu trabalho, a de poderem concentrar-se no que fazem e depois voltar para casa e relaxar. Nao € o mundo um pouco injusto com as mulheres a esse respeito? Ouca- mos 0 que o grupo tem a dizer sobre isso. MAES “Vocés nao acham que estar constantemente de sobreaviso, ter de inventar distragdes, e lembrar-lhes que nao podem fazer isto ou aquilo, néo é uma coisa sumamente cansativa?’’ “Sim.’’ (Falando a um tempo). “Somado ao que é uma questaéo de oportunida- de. E de falta de tempo. Vocé esta tentando fazer mui- tas coisas ao mesmo tempo, esta cozinhando, talvez esteja fervendo fraldas, alguém bate na porta da fren- te e vocé se volta de repente e surpreende o seu garoto brincando com a torneira do gas, ou tentando enfiar na tomada um fio elétrico que esquecemos de guardar na noite anterior. Esse é 0 género de coisas que ocor- rem... nao da para pensar de antemao em tudo.” DWW Nao, certamente que nao da. Felizmente, a eter- na vigilancia nao é eterna, ainda que o pareca. Dura apenas por um tempo limitado para cada crianga. Lo- go comega a dar os primeiros passos, jd esta indo para DIZER “NAO” 43 a escola, e a vigilancia passa entao a ser dividida com as professoras. Contudo, ‘‘nao’’ continua sendo uma palavra importante no vocabulario dos pais, e proibir continua sendo uma parte do que m§es e pais se véem constantemente fazendo até que cada filho, a sua pro- pria maneira, se emancipe do controle parental e esta- beleca um modo pessoal de vida e de existéncia. Mas ha algumas coisas importantes nessa discus- so a que eu ainda nao tive tempo de referir-me, de modo que fico contente por ter a oportunidade de con- tinuar na préxima semana. Il Esta semana continuarei examinando o dizer “nao’’ no relacionamento dos pais com seus bebés e criancas. Procederei como antes e falarei acerca de trés etapas, porque esse €é um modo conveniente de abor- dar e desenvolver 0 tema de quando e como dizer “nao’’ e por qué. Quero descrever de novo as trés eta- pas mas numa linguagem algo diferente, de modo que nado importa se ndo ouviram a palestra da semana pas- sada ou se esqueceram tudo a respeito. Disse dessas trés etapas que se sobrep6em parcial- mente. A etapa um nao termina quando a etapa dois comega, e assim por diante. A etapa um tem lugar an- tes que vocé diga nao; o bebé ainda nao entende, e vo- cé tem 0 controle absoluto, e deve té-lo. Vocé assume plena responsabilidade, uma responsabilidade que vai diminuindo mas sé termina quando o filho atingiu a idade adulta, quer dizer, quando acabou a necessida- de dos controles que a familia fornece. 44 CONVERSANDO COM OS PAIS Isso a que chamo a primeira etapa pertence real- mente a atitude parental, e o pai (se ele existe e se esta por perto) em breve participa na estruturacao e manu- tencao dessa atitude parental. Falarei mais adiante das duas etapas seguintes; elas estao relacionadas com pa- lavras e a primeira etapa nada tem a ver com palavras. Assim, no comeco, a mae, em breve ambos os pais, pas- sam aincumbir-se da tarefa de impedir que coisas ines- peradas acontegam. Podem fazer isso deliberadamen- te, mas isso acontece principalmente quase que em seus préprios corpos; é todo um modo de comportamento que reflete uma atitude mental. O bebé sente-se seguro e absorve a confianca da mae em si mesma, como se estivesse ingerindo leite. Durante todo esse tempo os pais estao dizendo ‘‘nao’’, estéo dizendo ‘‘nao’’ ao mundo, dizem ‘‘nao’’, nao se aproxime, fique fora do nosso circulo; no nosso circulo esta a coisa que é obje- to do nosso desvelo e nao permitimos que nada ultra- passe essa barreira. Se um dos pais fica assustado, en- tao algo cruzou a barreira e faz mal a crianca, tanto quanto se um ruido terrivel a tivesse penetrado e pro- vocado no bebé uma sensacdo insuportavel. Durante os bombardeios aéreos, os bebés nao tinham medo do estrondo das bombas mas eram imediatamente afeta- dos quando as mes entravam em panico. Mas a maio- ria das criancas pequenas supera os primeiros meses de vida sem nunca ter sofrido algo dessa ordem, e quando finalmente 0 mundo tem de atravessar as barreiras, a crianca em crescimento ja comecou a desenvolver seus métodos para lidar com o inesperado e é até capaz de comecar a prevé-lo. Poderiamos falar sobre as varias defesas que a crianga em desenvolvimento adquire, mas isso seria toda uma outra discussao. DIZER “NAO” 45 Dessa primeira etapa, na qual os pais se sup6em responsaveis, resulta o sentimento de responsabilida- de parental — aquilo que distingue os pais dos filhos e talvez torne sem sentido 0 jogo que algumas pessoas gostam de jogar, por meio do qual mae e pai esperam ser apenas ‘‘bons camaradas”’ de seus filhos. Mas as mdaes tém de ser capazes, afinal, de comecar a permi- tir que suas criangas conhecam algo dos perigos con- tra os quais as protegem, e que também saibam que espécie de comportamento afetaria o amor e as prefe- réncias maternas. Assim, as maes descobrem-se dizendo “nao’’. Podemos agora ver o inicio da segunda etapa, quando em vez de dizer ‘‘néo’’ ao mundo em redor a mae diz ‘‘ndo”’ ao seu filho. Isso tem sido descrito como a introducao do principio de realidade mas nao importa que nome se lhe dé; a m&e com seu marido apresentou gradualmente o bebé a realidade e a reali- dade ao bebé. Uma das formas é através da proibicao. Ficaréo contentes por ouvir-me dizer isto, que dizer “nao’’ é uma das formas, porque a proibicaéo é ape- nas uma de duas alternativas. A base de ‘‘nao’’ é “‘sim’’. Existem bebés que foram criados na base do “ndo’’. Talvez a mae sinta que a seguranca reside uni- camente em assinalar inumeras situac6es de perigo. Mas é lamentavel quando a crianga tem de travar co- nhecimento com o mundo desse modo. Uma grande quantidade de bebés pode usar o outro método. Seu mundo em expansao tem uma relacdo com 0 crescente numero de objetos e espécies de objetos a cujo respei- to a mae pode dizer ‘‘sim’’. O desenvolvimento da crianca, nesse caso, tem muito mais a ver com 0 que a mae permite do que com o que ela proibe. ‘‘Sim’”’ 46 CONVERSANDO COM Os PAIS forma 0 background ao qual o ‘‘nao’’ é adicionado. Isso, é claro, ndo pode abranger inteiramente o que tem de ser feito; ¢ meramente uma questao de saber se a crianga esta se desenvolvendo de acordo com uma ou outra orientacao principal. Os bebés podem ser su- mamente desconfiados desde os primeiros dias, e de- vo lembrar-lhes que ha todo o tipo de bebés; mas a maior parte deles sAo capazes de confiar em suas maes, por algum tempo, pelo menos. De um modo geral, apanham coisas e alimentos que tém a aprovacdo da mae. Nao é verdade que a primeira etapa é em seu to- do um grande “‘sim’’? E ‘“‘sim’’ porque vocé nunca fal- ta ao bebé, nunca o decepciona. Nunca se equivoca realmente na sua tarefa geral. Isso é um grande e taci- to ‘‘sim’’ e confere uma base s6lida para a vida do be- bé no mundo. Sei que a coisa é mais complexa. A crianga nao tardara muito em tornar-se agressiva e em desenvol- ver idéias destrutivas, e é entdo natural que a facil con- fianca do bebé em sua mie sofra alteracées, e que ela, por vezes, nao se sinta nada amistosa em seu trato com ele, embora sua personalidade permaneca a mesma. Mas nao precisamos lidar aqui com esse género de com- plicacdo, pois temos muito sobre que refletir quando nos damos conta da rapidez com que o mundo se tor- na complexo na realidade, na realidade externa. Por exemplo, a mae tem um conjunto de “‘nao faca’’, a avo prestimosa tem um outro, ou pode haver ainda uma baba. Além disso, as mdes nao sAo cientistas; ali- mentam toda a espécie de crencas que nfo poderiam ser provadas. E possivel encontrar uma mae que, por exemplo, teme que qualquer coisa verde seja veneno- Sa e que, portanto, nao deve ser levada a boca. Ora, DIZER “NAO” 47 como vai um bebé saber que um objeto verde é vene- noso e um amarelo é encantador? E se o bebé for dal- t6énico? Conheco um bebé que foi cuidado por duas pessoas, uma canhota e a outra manidestra, e isso era demais. De modo que podemos esperar complica¢gGes mas, seja como for, as crian¢as pequenas superam-nas e ingressam na terceira etapa de explicacao; elas po- dem entao comecar a reunir sabedoria extraida do re- pertorio de nossos conhecimentos; podem aprender o que pensamos que sabemos, e 0 melhor de tudo é que estao agora muito perto de serem capazes de discor- dar das razGes que damos. Para recapitular 0 que estive expondo, no princi- pio é uma quest4o de cuidado materno e dependéncia do bebé, algo como fé. Depois é uma questaéo de mo- ral; a versdo de moralidade da mae subsiste até que a crianga desenvolva uma moralidade pessoal. E de- pois, com as explicacGes, existe finalmente uma base para a compreensao, e compreensao é ciéncia e filoso- fia. Nao é interessante vislumbrar os primdrdios de grandes coisas como essas ja nessa fase inicial? Uma palavra mais acerca do ‘‘nao’’ de uma mae. Nao € esse 0 primeiro sinal de pai? Em parte, os pais sao como maes e podem ficar tomando conta do bebé e fazer todo o género de coisas como uma mulher. Mas como pais parece-me que eles aparecem pela primeira vez no horizonte do bebé como aquele aspecto inflexi- vel na mae que a habilita a dizer ‘‘nao’’ ¢ a sustentar a negativa com firmeza. Gradualmente, e com sorte, esse principio do ‘‘ndo’’ passa a estar consubstancia- do no proprio homem, o Papai, que passa a ser ama- do e podera aplicar a ocasional palmada sem perder nada. Mas ele tem de merecer o direito a dar palma- 48 CONVERSANDO COM OS PAIS das se pretender da-las, e para adquirir esse direito de- vera fazer coisas como ter uma presenga assidua no lar e nado estar do lado da crianca contra a mae. No co- meco, vocés podem nao gostar da idéia de consubs- tanciar 0 ‘‘ndo’’; mas talvez aceitem o que pretendo dizer quando lembro que as criangas pequenas gostam que se lhes diga ‘‘nao’’. Elas nao gostam de lidar sem- pre com coisas amenas e macias; também gostam de pedras, paus e chao duro, e gostam que se Ihes diga quando devem cair fora, tanto quanto de serem mi- madas. CAPITULO 5, CIUME Quatro palestras radiof6nicas na BBC, transmitidas em 15, 22 e 29 de fevereiro e 7 de marco de 1960 O que é que vocés pensam a respeito de citime? E bom ou mau? Normal ou anormal? Seria uma boa idéia, enquanto estiverem ouvindo a discussado que se seguira entre maes de criancas pequenas, manter pre- sente no espirito essa questao, sempre que for descrita alguma manifestacao de citme. E isso 0 que se deve esperar, ou ha algo errado em algum ponto? Penso que a resposta tem de ser complexa mas nao ha nenhuma vantagem em fazé-la mais complexa do que precisa ser, de modo que, em primeiro lugar, selecionem partes da discussao que constituam mais ou menos o género de coisas que ocorrem em todos os lares. Nao me impor- to de adiantar que, na minha opiniao, o citime é nor- mal e saudavel. O ciume decorre do fato de que as criancas amam. Se elas nao tém capacidade para amar, entao nao revelam ciime. Mais adiante, teremos de abordar os aspectos menos saudaveis do citime, em es- pecial a espécie encoberta. Penso que vocés verao que 50 CONVERSANDO COM OS PAIS nas hist6rias que essas maes nos contam o citime tem um desfecho natural, embora possa, talvez, ressurgir e desaparecer de novo. Finalmente, as criancas sauda- veis tornam-se capazes de dizer que sentem citime, o que lhes da uma oportunidade de discutir do que é que estao ciumentas, e isso podera ajudar um pouco. Es- tou apresentando a idéia de que a primeira coisa a ser dita acerca do citime é que representa uma realizagao no desenvolvimento da crian¢a pequena, indicando sua capacidade de amar. Novas realizacGes habilitam a crianga a tolerar ser ciumenta. Os primeiros ciimes manifestam-se usual- mente em torno da chegada de um novo bebé, mas sabe-se que o cilme n4o é evitado pelo fato de existir somente uma crianga na familia. Qualquer coisa que absorva a atencéo e o tempo da mae pode provocar cilime, tanto quanto a chegada de um irmaozinho. Creio realmente que as criancas que conheceram o cit- me e se conciliaram com ele enriqueceram-se com tal experiéncia. Isso é 0 que eu penso, e sugiro agora que oucam algumas maes respondendo a perguntas e fa- lando sobre ciume. MAES “*Sra. S., sei que teve oito filhos. Algum deles te- ve cimes de outro?’” “‘Dois ou trés deles tiveram. O primeiro bebé ti- nha quinze meses quando nasceu o segundo. Eu esta- va amamentando o bebé quando tinha por volta de trés semanas e 0 irmao veio afagar-lhe o cabelo e disse ‘ba- ba’ num tom tao carinhoso que eu comentei, ‘Sim, ndo é uma docura?’ e no instante seguinte a voz mudara, a expressdo mudara, deu-lhe um tapa na cabeca e dis- CIUME 51 se ‘ba-ba’, e comecei a pensar que ele nao se sentia na- da feliz a respeito do novo bebé. E, uma semana mais tarde, estava eu pondo o chapéu para sair e algo me fez olhar para a janela, e o bebé estava prestes a ser jogado no caminho, de modo que alterei prontamente todo o esquema, colocando-o de volta no seu antigo lugar e pondo o bebé no cercado. Fiz isso com todos eles, e conclui que nao ha mais problemas com o car- rinho, eles néo gostam que os tiremos dele. E o pri- mogénito fazia cenas, chorava uma barbaridade e es- perneava, e penso que era por causa do bebé.”’ “‘Ainda é ciumento?’’ ““Absolutamente. Superou isso por completo. Co- mo irmao mais velho, sente-se agora muito orgulhoso de todos os outros, mas durante uma certa época foi, sim. “Sra. L., 0 que aconteceu com os seus trés?”’ “Bem, o mais velho estava com dois anos quan- do seu irmao nasceu, e trés anos e meio quando nas- ceu a irma. Era uma crianca facil de tratar e feliz, e ao ver pela primeira vez 0 irmaozinho nao lhe prestou a minima atencdo. Tentamos prepara-lo para esse even- to mas ele, simplesmente, nado entendeu.”’ “Nao, era um tanto pequeno, suponho.”’ ““Pequeno demais para entender. E sua indiferenca durou uma semana ou duas, e entaéo chegou o dia em que viu o bebé no carrinho onde ele préprio j4 nao an- dava ha muitos meses porque crescera muito e estava grande demais para isso, mas chorou amargamente.”’ “Que idade tinha o bebé entao?”’ “Oh, umas trés ou quatro semanas, e chorou amargamente, e esse foi 0 comeco de tudo, acho eu. E depois disso, toda vez que o bebé era trocado, ele 52 CONVERSANDO COM OS PAIS ficava instantaneamente molhado ou sujo, ¢ levou mui- to tempo para melhorar. E so quando ficou mais ve- Iho e entendeu é que melhorou a esse respeito.’’ “© que aconteceu quando nasceu a irma?’’ “‘Tratou-a sempre com grande amor e carinho, as- sim como o segundo menino.”’ “‘Nao houve assim alguma recaida de nenhum de- les?”’ “‘Nao. Mas o mais velho tornou-se mais tarde agressivo quando o irmao comecou a sentar-se e a pres- tar atencdo as coisas.” ““Acha que era um sinal de ciime?’’ “Ah, sim, sem duvida nenhuma. Um dia encon- trei-o tentando sufocar o bebé no carrinho, e estava extremamente rancoroso com ele. E receio ter tomado represalias, por vezes, em defesa do bebé, porque nao podia suportar aquilo. Mas no creio que fosse uma boa coisa. Isso em nada contribuiu para melhorar a situacdo.’” DWwWw Essas parecem-me ser quest6es familiares cotidia- nas. Lembro-lhes as idades das criangas, porque a idade faz muita diferenca. O menino que afagou o cabelo do bebé enquanto este era amamentado e depois ten- tou joga-lo pela janela para o caminho tinha 15 meses quando o bebé nasceu. E depois havia 0 de dois anos que pareceu inicialmente indiferente. Tinham dito o que esperar mas talvez nado pudesse entender. Foi trés semanas apos o nascimento do irmao, quando o viu no carrinho que ja fora dele, que chorou amargamen- te. Superou a crise de pranto com a ajuda compassiva da mae mas, quando o irmao comegou a sentar-se e CIUME 53 a observar as coisas a sua volta, tornou-se agressivo e rancoroso, ao ponto de, numa ocasido, tentar sufo- car o bebé, no carrinho. So por volta dos quatro anos € que passou a adotar uma atitude mais amistosa. Nem ele nem o seu irmao sentiram ciumes da irmazinha. Eis um pouco mais da discussao das maes: MAES “Sra. T., 0 que nos conta a respeito de citimes en- tre os seus sete?’ “Bem, a unica ciumeira que descobri foi entre as meninas.”’ “‘Quantas filhas tem?’’ “So duas... o mais velho é um rapaz, depois vem uma menina, depois quatro rapazes e finalmente a ou- tra menina. Jean costumava perguntar repetidamente “Podemos ter um bebé que seja menina?’ Toda a vez que o bebé era homem, ela ficava amuada por um dia ou dois, mas logo desanuviava. Bem, ai aconteceu que ela voltou da escola um dia e descobriu que tinha em casa mais um bebé... uma menina. No comeco, pare- ceu profundamente excitada. O problema é que eu ti- ve o bebé no dia 10. O sétimo aniversario de Jean era no dia 16... e nao houve festa, eu ndo estava em con- dicdes. Assim, durante cerca de um més, Jean voltava a tardinha da escola, tomava seu cha e corria direto para a cama, lavada em lagrimas. Nao conseguiamos ajuda-la, ela ndo escutava, mas pensei que ela tivesse superado isso, entendem — pensei té-la convencido a mudar de atitude. Mas o bebé amanheceu ontem doen- te, meti-a na cama e¢ disse a Jean, no tom mais inocen- te possivel, ‘Jean, importa-se de ir buscar uma cami- 54 CONVERSANDO COM OS PAIS sola de dormir para Patricia?’ E Jean voltou-me as cos- tas e disse: ‘Ndo, por que eu? Ela que va e apanhe a camisola — ja é suficientemente grande.’ ”’ “*Continuou ciumenta?’’ “Sim, parece que sim. Mas tudo ficara muito tran- qiiilo desde que Patricia completou seis semanas. Ela esta agora com dois anos, e a coisa reapareceu de su- bito. So posso esperar sermos capazes de liquidar agora com isso de novo. “‘Jean nao sente ciumes dos irmaos?’’ “*Nenhum.’’ DWW Foi uma semana antes do sétimo aniversario de Jean que nasceu sua irmazinha, e quando teve de re- nunciar a sua festa de aniversario tornou-se violenta- mente ciumenta. A primeira crise de ciime durou seis semanas, e tudo recomecou quando ela tinha nove anos e sua irma dois. Jean nao se importara com a chegada de quatro irmaos homens nessa familia de sete e, de _ fato, sempre pedira uma irma. Suponho que a irma que realmente teve nado é necessariamente a mesma por que tanto ansiava. Oucamos agora mais uma historia: MAES “Sra. G., 0 que nos conta dos seus? Tiveram de haver-se com citimes?’’ “Sim, tivemos. A minha menina, que esta com quatro anos e meio, estava completando os trés anos quando nasceu o menino, e ela ficou muito excitada por ter um irmaozinho ou, de qualquer modo, por ter um bebé. Mas verificamos quase desde 0 primeiro dia CIUME 55 que se o bebé estava comigo ela tinha de ir sentar-se nos joelhos do meu marido ou vice-versa; queria que ficasse lendo para ela enquanto amamentava o bebé ou, pelo menos, ficar sentada ao meu lado.”’ “EF isso funcionou?’’ “Sim, funcionou. A fase ciumenta dissipou-se e tudo ficou tranqtiilo até que o seu irmaozinho estava... deixa ver, sim, creio que estava mais ou menos com um ano, quando ja se punha de pé no cercado, ¢ tive- mos entao um problema e tanto por causa dos brin- quedos. Levei os brinquedos de bebé que tinham sido dela para o cercado do irmao e, é claro, ela os reco- nheceu e ‘Este é meu, este é meu, este é meu’. E foi todo aquele negdécio de voltar a brincar com os seus antigos brinquedos de bebé, e conclui que teria de ad- quirir mais alguns brinquedos que fossem exclusiva- mente dele, caso contrario nao teriamos mais sossego.’” “E ela nao quis brincar com esses?”’ “Nao, nao, nado tocava nos do irmao, mas se o via brincar com os dela, mesmo que nao os tivesse to- cado por mais de dois anos, queria-os de volta. De- pois, isso também se dissipou sem que acontecesse qual- quer coisa muito violenta. Agora ele esta com dezoito meses € a coisa esta recomecando, uma vez mais, des- ta vez porque ele nao pdéra um minuto e vai apanhar as coisas da irmda.”’ “*.,, lutas pela supremacia em torno dos brinque- dos?’’ ‘Sim, de fato. Ela arruma todas as suas coisas — estou sempre dizendo-lhe, ‘Ponha-as em cima da me- sa, onde ele nado as alcance’, mas ela insiste em deixa- las um pouco mais embaixo e, mal volta as costas, ele chega e comeca a espalha-las pela casa toda. Ela fica 56 CONVERSANDO COM Os PAIS realmente uma fera... mas a verdade é que é muito pa- ciente com o irmao.”’ DWw Essa menina estava perto dos trés anos quando seu irmao nasceu. Ficou excitada com o evento mas sentiu- se deslocada pelo bebé quando este estava realmente no colo da mae e ela tinha entao de procurar o do pai. Quando o bebé tinha um ano de idade e ela quatro, a menina comecou a irritar-se com a pretensdo do ir- mao a apossar-se dos brinquedos dela. Mesmo daque- les brinquedos pelos quais ela parecia ja estar desinte- ressada ha muito tempo. Notaram que ela colocava seus brinquedos onde o bebé pudesse alcangd-los? A mae diz que ela é muito paciente com o irmao a maior par- te do tempo, e fiquei com a impressdo de que ela real- mente gosta que o menino lhe tome os brinquedos, em- bora proteste; talvez sinta tanto do ponto de vista dele como do seu. Agora que ouviram todas essas historias, sentem como eu que esses citimes fazem parte da vida fami- liar saudavel? Il Tenho feito para mim mesmo a pergunta: como e quando o citime comeca? E o que é que tem de exis- tir antes que as palavras cilime ou inveja possam co- megar a ser usadas e a fazer sentido? Incluo a palavra inveja porque ciume e inveja est&o intimamente liga- das, pois uma crian¢a que sente citime de um novo be- bé inveja-o por monopolizar as atencdes da mae. No- CIUME 57 tei que essas maes que estiveram falando a respeito de seus bebés nao se referiram ao ciime em qualquer crianca de menos de quinze meses. O que é que vocés teriam a dizer sobre isso? Penso que evidéncias de cit- me ou inveja poderiam ser detectadas antes dos quin- ze meses, mas nao muito mais cedo. Aos nove meses, por exemplo, um bebé seria demasiado jovem, dema- siado imaturo como pessoa para ser ciumento. Com um ano, provavelmente nao; possivelmente numa oca- sido ou outra; mas aos quinze meses com certeza que sim. Gradualmente, 4 medida que as criancas vao fi- cando mais velhas, o citime também passa a envolver coisas mais complexas mas, no comeco, é bastante 6b- vio que se refere a um relacionamento que foi pertur- bado, ou envolve a ameaca a uma posse que represen- ta ou simboliza uma relacao. E a relacdo com a mae que esta na base do ciume, e este acabara incluindo arelacao com o pai com o passar do tempo. Conclui- mos que muitos dos mais remotos citimes so obvia- mente acerca da mae, e gravitam com freqiiéncia em torno da amamentagao. Isso se da porque para 0 be- bé, nos primeiros tempos de vida, a amamentacdo é algo muito vital. Para a mae, a amamentacdo é ape- nas uma das muitas coisas que ela faz para o seu bebé, embora isso também seja muito importante para ela. Eis uma parte da discussdo entre algumas das maes. MAES “‘Ha uma diferenca de vinte e dois meses entre eles e quando nasceu 0 segundo — tive o segundo em casa — eo meu filho pequeno viu 0 bebé apenas com al- guns minutos de vida tudo correu mais ou menos bem 58 CONVERSANDO COM OS PAIS durante varios dias. Depois, aconteceu de ele me ver amamentando o irmaozinho e a partir desse momen- to, durante um bom par de meses, ele se punha de pé e chorava aos gritos toda vez que eu amamentava o bebé, e nao havia nada que o fizesse calar. Tentei tu- do para acalma-lo, consolava-o o melhor que podia, mas € muito dificil quando se esta amamentando uma crianga, e ele ficava simplesmente de pé, a nossa fren- te, gritando a plenos pulmGes. Mas apoés dois meses ele superou isto e parecia ter superado por completo a sua ciumeira, mas quando o meu segundo filho co- mecou a sentar, entre os sete e oito meses, tivemos a mesma cena de novo do mais velho, nao de gritaria mas de citime.’’ “Sim, a minha filha era um pouco menor; devo dizer que acho muito curioso que nao usasse mama- deira ja fazia... ah, jd fazia tempo... e ela nem sabia mais como mamar. Fiquei aturdida porque ela se acer- cou e... quando eu estava amamentando o bebé, ela também quis tentar, e ai eu pensei esta bem... mas, as- sim que se aproximou como que sentiu uma espécie de repugnancia. Eu pensei, tudo bem, mame se quiser, ve- jamos o que acontece... e ela avangou varias vezes... fez isso recentemente mas como uma espécie de grace- jo, de brincadeira. Nunca a repeli. Dizia-lhe, ‘venha ca, experimenta...’ e ela nao queria. Mas voltou ago- ra a mamadeira, porque 0 bebé também passou agora para a mamadeira, e ai eu Ihe dei uma mamadeira ri- dicula, coitadinha, uma coisa muito pequena apenas como uma espécie de simbolo, entendem.’’ “*& minha filha mais velha senta-se no meu colo enquanto o bebé esta mamando, assim vocés podem CIUME 59 imaginar que bagunga. (Risos) Ela adora isso, da pal- madinhas na cabeca do bebé ¢ 0 acaricia... mas esta agora apenas com dezessete meses, de modo que a si- tuacao é um tanto diferente.” “‘Tivemos uma crise de citimes com os dois mais velhos, ndo com o segundo e o terceiro; mas os dois primeiros, a menina, que é a mais velha, quando che- gou 0 segundo, ela queria ficar no colo do meu mari- do, ou queria ter algo muito especial, ou queria que eu lesse para ela enquanto estava amamentando o be- bé e coisas desse género, depois essa fase desvaneceu- se € agora o menino esta com dezessete meses e temos aquelas guerras horriveis. Seja o que for que um tem, © outro quer, e o menino agora — é claro, houve um periodo em que ela podia tomar tudo dele, ela é trés anos mais velha — mas agora ele ja nao larga aquilo de que se apodera, e grita... nado chora mas realmente grita ferozmente para a irma. Mas os dois gostam muito do bebé em seus gestos e tudo o mais, e nem um nem outro parecem sentir citimes do cacula.”’ “Isso, de fato, certamente nao é ciume, quando eles apenas brigam pela posse de coisas...”’ “E porque querem a minha atencao.”’ “Oh, entendo.’’ ““Vejam so, um brinquedo de bebé que dou ao me- nino — algo que a menina, ao crescer, tinha abando- nado por completo —, s6 porque o entreguei a ele, ela imediatamente o quer também; e se em vez de dar 0 brinquedo ao menino deixd-lo simplesmente em cima da mesa, onde ela poderia agarra-lo se quisesse, nem liga para ele.’’ 60 CONVERSANDO COM OS PAIS DWW Podem ver de tudo isso que muita coisa esta re- lacionada com as mamadas. Posso usar o ultimo frag- mento de conversa para ilustrar 0 que quero dizer. Estou pensando na menina que, com freqtiéncia, é cla- ramente ciumenta do segundo bebé, que era um meni- no, e isso acabou por desaparecer. E depois ela e 0 me- nino, que esta agora com dezessete meses, tém aque- las terriveis guerras em torno dos brinquedos. Mas é diferente o modo como ela é ciumenta e o modo como ele se defende e grita. Uma das maes disse: ‘‘Isso nao € ciime. E apenas uma briga pela posse de coisas.” E eu concordo, mas € exatamente ai que podemos ob- servar 0 modo como 0 ciume se desenvolve. Digo que existe uma idade certa para o ciime. E quero afirmar agora que apés uma certa idade a crianca é ciumenta e antes dessa idade a crianga esta apenas agarrando-se a algo que considera possessdo sua. Primeiro, trata-se de possuir, o ciime vem depois. Nao posso deixar de me lembrar de uma agéncia de teatros que faz sua publicidade com o seguinte s/o- gan: ‘“‘Vocé quer os melhores lugares; nds os temos.”’ Isso sempre me deixa terrivelmente ciumento e com uma vontade irresistivel de sair correndo para obter os lugares que quero e que eles tém. A unica dificuldade € que tenho de paga-los. Usando isso como uma ilus- tracao, posso dizer que até uma certa idade uma crianca esta proclamando o tempo todo: ‘‘Tenho a melhor das maes’’ — nado com estas palavras, claro. Finalmente, chega 0 momento em que a crianca pode proclamar: “*Tenho a melhor das maes... vocé a quer.’’ Esse € um novo e doloroso desenvolvimento. Para obter uma clara seqiiéncia de eventos, deve- mos retroceder um pouco mais, porém. Ha um perio- CIUME 61 do anterior Aquele em que o bebé esta, por assim di- zer, proclamando: ‘‘Tenho a melhor das maes.’’ Nes- sa fase anterior, esse fato da melhor mae é assumido. Nao ha lugar para publicidade. A mae, e tudo o que ela representa, constitui uma realidade incontestavel para 0 bebé. Depois vem: ‘*Tenho a melhor das maes”’, e isso marca 0 alvorecer da compreensdo do bebé de que a mae nao é apenas parte do eu (self) do bebé, mas que ela chega até o bebé vinda de fora, ou podera nao vir, e € possivel que haja outras mdes. Para o bebé, a mae converte-se agora numa possessao, tal que po- de ser retida ou largada. Tudo isso tem de se desen- volver na crian¢a pequena, aquilo a que chamamos 0 crescimento emocional. E depois vem a segunda me- tade do slogan: ‘‘e vocé a quer’’. Mas isso ainda nado é citime, é uma questdo de defesa de uma possessio. A crianca, nesta fase, aferra-se com unhas e dentes ao que considera ser seu. Se o teatro fizesse isso, estaria- mos impossibilitados de entrar no teatro. Finalmente, chega 0 reconhecimento de que a possessao central, a mae, pode pertencer a outrem. A crianca é agora uma das pessoas que quer e deixou de ser uma daquelas que tém. E uma outra que tem. E quando citime torna-se a palavra adequada para descrever as mudancas que ocorrem numa crianca quando um novo bebé aparece como um fantasma de um eu (se/f) passado, maman- do ou dormindo pacificamente no carrinho. Repetirei 0 que disse. Referi-me aos primeiros tem- pos da infancia, nos quais tudo o que é desejavel faz parte do eu (se/f), ou aparece como criado pela pré- pria necessidade do bebé. As idas e vindas sfo vistas com naturalidade pelo bebé. A coisa ou pessoa que é amada torna-se, em seguida, parte de um mundo ex- 62 CONVERSANDO COM OS PAIS terior 4 crianca, e é uma possessdo a ser mantida ou perdida. Qualquer ameaga de perda de propriedade ge- ra aflicgao e um obstinado apego ao objeto. Com o de- correr do tempo e a continuagao do desenvolvimento, a ccrianca passa a ser quem ameaca, quem detesta qual- quer coisa nova que se apresente para reclamar a aten- cao da mae — como um novo bebé ou talvez apenas 0 livro que ela esta lendo. Pode-se agora dizer que che- gou o citime. A crianga inveja 0 novo bebé ou 0 livro, e realiza todos os esforcos a fim de recuperar a posi- ¢4o perdida, ainda que seja apenas por pouco tempo ou numa forma simbolica. Assim, nos primérdios do ciime é comum vermos criangas tentando reintegrar- se no papel de bebés, mesmo que apenas de uma certa maneira ou por pouco tempo. Podem até querer revi- ver a experiéncia da amamentacdo. Mas comumente anseiam por ser apenas tratados como eram quando dispunham da posse plena e total, quando eram os Uni- cos que tinham e nao conheciam ninguém que nao ti- nha mas queria. Recordem a discusséo, no programa da semana passada, do caso da crianca que comecou a molhar-se de novo, e acabaram de ouvir falar a res- peito da crian¢a mais velha a quem a mae deu uma pe- quena mamadeira simbolica, como ela disse. Quando pensamos em tudo 0 que ocorre na crian- ¢a pequena enquanto os dias e as semanas passam, po- demos facilmente ver por que ha a necessidade de um ambiente confiavel, e isso é justamente o que, melhor do que ninguém, vocé pode dar ao seu filho. Quantas vezes vocés se perguntam se determinada atitude ou de- cisdo esta certa ou errada. Mas é mais interessante ver as coisas em termos do crescimento e desenvolvimen- to da crianca. CIUME 63 I As histérias contadas ao longo da discussao mos- tram que o citime tende a desaparecer, e quero exami- nar como isso acontece. O que acontece depende do desenvolvimento que esta ocorrendo o tempo todo na crianca. Penso que gostam de saber que espécie de coi- sas se passam na crianca, apenas por uma questdo de interesse. Quando as coisas correm mal, como deve acontecer de tempos em tempos, vocés ficam em des- vantagem se agirem as cegas. Se souberem o que esta acontecendo, tornar-se-40 menos sensiveis a criticas € a comentarios casuais de transeuntes. Quero falar de trés modos como as coisas que se passam na crianca permitem que o ciime termine. O primeiro modo ¢ este. Citime € 0 que observamos quan- do a crian¢a se encontra em estado de conflito agudo. Poderia ser apenas ansiedade, exceto pelo fato de que acrianca sabe do que se trata. A crianca ciumenta es- ta realmente sentindo amor e éddio, ambos ao mesmo tempo, e isso € horrivel. Pensemos na crianga. No co- me¢o, talvez, até para a crianga podera parecer muito bonito ver 0 novo bebé sendo amamentado ou cuida- do. Gradualmente, porém, da-se conta de que nao é ela mas um outro que esta ali, e o amor da mae pro- duz extrema raiva, raiva do novo bebé, da mae ou do mundo inteiro. Durante algum tempo, a crianga sd co- nhece a raiva, parte da qual é expressa. A crian¢a gri- ta: talvez esperneie e desfira pontapés; ou agrida; ou provoque a maior confusdo. Imaginativamente, tudo é danificado, quebrado, destruido. Sem duvida, aqui- lo que produz o novo desenvolvimento é a sobrevivén- cia do mundo, do bebé, da mae. O novo desenvol- 64 CONVERSANDO COM OS PAIS vimento consiste no reconhecimento pelo bebé dessa sobrevivéncia. Esse é apenas mais um dos processos mediante 0 qual a crianca pequena comeca a separar a fantasia do fato concreto. Na imaginacio da crian- ¢a, o mundo foi destruido pela raiva, como por uma bomba atémica, mas ele sobrevive e a atitude da mae permanece inalterada. Portanto, é seguro destruir imaginativamente, odiar. E com esse novo recurso para ajuda-la a crian- ¢a torna-se apta a ficar satisfeita efetuando somente um pouco da gritaria, dos golpes a esmo que, sem du- vida, seriam apropriados. Em poucas semanas, 0 citime converte-se em al- go diferente, a experiéncia de continuar amando, com o amor complicado por idéias de destruigao. O resul- tado para nés, que estamos observando atentamente, é vermos uma crianca que esta, por vezes, triste. E triste amar algo ou alguém e sonhar que o que se ama sofre dano. Alivio adicional resulta do fato de que nos sonhos destrutivos a coisa a que se faz mal pode ser algo que representa 0 bebé ou a mae, talvez um gato, um cao ou uma cadeira. Junto com a tristeza da crianca ma- nifesta-se um certo grau de preocupacdo com o bebé ou com 0 que for 0 objeto do citime. Mas as mies sa- bem que, no comego, nao podem fiar-se no sentimen- to de preocupagao da crianca porque, durante um certo tempo, a preocupacao converte-se com extrema facili- dade num ataque ciumento e se ninguém estiver por perto € causado um dano. A meu ver, 0 ponto principal aqui é que a vida imaginativa comega a funcionar e a oferecer a crianca alivio para a necessidade de ac¢ao direta, e isso propi- CIUME 65 cia tempo e oportunidade para os primérdios na crianca de um senso de responsabilidade. O segundo modo como penso que o citime pode ser e é superado € atra- vés do crescente poder da crianca para absorver expe- riéncias satisfatorias e fazer delas parte integrante do seu ecu. Ha uma progressiva acumulacao de boas lem- brangas na criancga, lembrancas de ter sido bem cuida- da; lembrangas de sensacGes agradaveis; de ser banha- da; de gritar; ou de sorrir; de encontrar coisas justa- mente quando e onde eram esperadas, até melhores do que poderiam ter sido esperadas. E ha também um acumulo de lembrangas de satisfacGes resultantes de orgias de excitac&o, especialmente na esfera da ali- mentacao. Todas essas coisas puderam ser somadas e produ- zir uma idéia de mae, ou de mae e pai. HA uma razdo pela qual o citime, com certa freqiiéncia, nado se mani- festa em absoluto numa crianga: é porque a crianca usufruiu tanto amor e tantas satisfagdes que pode até ser capaz de privar-se de um pouco de tudo isso a fa- vor de outrem. A terceira coisa é algo mais complicada. Relacio- na-se com a capacidade da crianca para viver através das experiéncias de outros. Chamamos a isso pér-se na pele de outra pessoa. Mas essa expressao parece um pouco despropositada quando a outra pessoa é um bebé sendo amamentado, ou banhado, ou deitado em seu berco. Conseguem as criancas pequenas chegar a fa- zer isso? Algumas levam muito tempo, até anos, antes de se permitirem nao sé entender 0 ponto de vista da outra pessoa mas realmente desfrutar uma parcela ex- tra da vida que a outra pessoa esta vivendo. E facil ver criancas — tanto meninos como meninas — identifi- 66 CONVERSANDO COM OS PAIS carem-se com suas maes. Deixam que a mae seja a mae real, aO mesmo tempo que brincam de estar no lugar dela, imaginando-se na posicdo dela. Eis um fragmento da discussao que ilustra isso: MAES “Sra. G., 0 que nos diz sobre 0 novo bebé em sua familia?’’ *‘Bem, nenhum deles — nenhum dos mais velhos — deu mostras de citme em relagao ao bebé, mas am- bos se mostraram ciumentos um do outro a respeito de acariciar ou ter nos bracos o bebé.”’ “Uma espécie de rivalidade?”’ “Sim, rivalidade entre eles. Por exemplo, estou sentada com o bebé no colo e a menina acerca-se para falar com ele. Imediatamente 0 menino, que esta com dezoito meses, vem correndo e tenta afasté-la com co- toveladas, antes que a irma tenha conseguido sequer dar uma olhada no bebé. E a partir desse ponto come- ¢a uma espécie de duelo para decidir quem tem direito a ficar com o bebé.’’ “E vocé o que faz?’’ “Bem, nessas ocasides ponho um braco protetor em torno do bebé e cuido de que os seus irmaos se afas- tem o bastante para dar ao bebé suficiente espaco pa- ra respirar.’” “Isso € uma ocorréncia comum?”’ “Sim... creio que sim... Cada um puxa o bebé pa- ra o seu lado. ‘E a minha vez de pegar no bebé’ ou “Agora € a vez dela’. O bebé é pequenino demais para que eu possa confia-lo aos irmaos, essa coisinha fragil aconchegada no meu colo. Chegamos a um acordo em que ambos se sentam perto de mim, um de cada lado,

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