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Capitulo 2 ALGUNS AXIOMAS CONJETURAIS DE COMUNICAGAO 2.1 IntTRopugio As conclusdes a que chegamos no primeiro capitulo salien- taram, geralmente, a inaplicabilidade de muitas nogdes psiquid- tricas tradicionais a0 quadro de referéncia por nds proposto e, assim, parecerd, talvez, sobrar muito pouca coisa em que se possa basear o estudo da pragmética da comunicagao humana, Quere- mos demonstrar agora que essa impressio é erténea. Contudo, pata fazé-lo, temos de comecar por algumas propriedades simples da comunicagio que tém implicdgdes interpessoais fundamentais. Ver-se-4 que essas propriedades so da natureza dos axiomas, dentro do nosso célculo hipotético de comunicacio humana. Quando eles tiverem sido definidos, estaremos entZo em situagio * de examinar algumas de suas possiveis patologias, o que seté feito no Capitulo 3. 2.2 A Impossipitipape pz Nio Comunrcar 2.21 Em primeiro lugar, temos uma propriedade do comporta- mento que dificilmente poderia ser mais bdsica e que, no entanto, € freqiientemente menosprezada: o comportamento néo tem oposto. Por outras palavras, no existe um nio-comportamento ou, ainda em termos mais simples, um individuo nfo pode nZo se comportar. Ora, se est4 aceito que todo o comportamento, 44 numa situagio interacional,® tem valor de mensagem, isto é, & comunicacio, segue-se que, por muito que o individuo se esforce, élhe impossfvel xZo comunicar. Atividade ou inatividade, pala- vras ou siléncio, tudo possui um valor de mensagem; influenciam outros € estes outros, por sua vez, nfo podem #do responder a essas comunicagées e, portanto, também esto comunicando. Deve ficar claramente entendido que a mera auséncia de falar ou de observar nao constitui excegiio ao que acabamos de dizer. © homem que num congestionado balcdo de Janchonete olha diretamente em frente ou o passageiro de avido ‘que se senta de olhos fechados esto ambos comunicando que nao querem falar a ninguém nem que falem com eles; e, usualmente, os seus vizi- nhos “recebem a mensagem” e resporidem adequadamente, dei- xando-os sozinhos, Isto, obviamente, é tanto um intercimbio de comunicacao como a mais animada das discussdes. 7 Tampouco podemos dizer que a “comunicagdo” sé acontece quando é intencional, consciente ou bem sucedida, isto é, quando ocorre uma compreensio mitua. Se a mensagem enviada: iguala a mensagem recebida é uma importante mas diferente ordem de (®) Poderfamos acrescentar que um individuo, mesmo sozinho, tem a possibilidade de dialogar em fantasia, com as suas alucinagdes (15) ou com a vida (s, 8.3). Talvez essa “‘comunicaao” interna obedeca a algumas das mesma regtas que, governam a comuniacto-iaterpessal; contado, tals fendmenos inobservavels esto fora do ambito do significado que damos ao term. (7) Pesquisas muito interessantes neste campo foram tealizadas por Luft (98), que estudon aquilo a que chama “privagdo de estimulo social”. Reuniu dois estranhos numa sala, félos sentarem-se diante um do outro ¢ instruiu-os “pata que nao falassem nem comunicassem um com o outro, de maneira alguma”. As entrevistas subseqiientes revelaram a natureza altamente tensa dessa situagio, Citando o autor: (...) ele tem A sua frente 0 outro individuo, com, seu comporta- mento manifesto, embora mudo, Neste ponto, é postulado, tem lugar a verdadeira prova interpessoal ¢ sé parte da mesma’ pode ser realizada conscientemente. Por exemplo;*como reage 9 outro sujeito ao primeiro individuo ¢ 4s pequenas pistas ndo-verbais que este lhe envia? Haverg uma tentativa de compreender seu olhar interrogativo, ou serd friamente ignorado? .O outro sujeito exibird pistas posturais de tensio, indicando a existéncia de alguma afliggo ao confronta-lo? Ficard cada vez mais 4 vontade, indicando alguma espécie de aceitagao, ou_o outro tratdlo-4 como se fosse uma coisa, algo que nao existe? Estas ¢ muitas outras espécies de comporta- mento facilmente discern{vel parecem tec lugar... 45 andlise, pois que deve assentar, fundamentalmente, nas avaliagdes de dados especificos, introspectivos, relatados pelo sujeito, os quais preferimos negligenciar para a exposic¢io de uma teotia -comportamental da comunicaco. Sobre a questia da incom- Ppreens&o, o nosso interesse, dadas certas propriedades formais da comunica¢io, vai para.o desenvolvimento de patologias afins, a margem das motivagdes ou intengdes dos comunicantes (na ver- dade, a despeito das piesmas). 2.22 . No que precede, 0 termo “comunicagdo” foi usado de duas maneiras: como titulo genérico do nosso estudo ¢ como uma unidade vagamente definida de comportamento.° Sejamos agora mais precisos. Continuaremos, é claro, a referir-nos ao aspecto pragmdtico da teoria de comunicagio humana, simplesmente, como “comunicagio”. Quanto as vdrias unidades de comunicagio (comportamento), procuramos selecionar termos que jé sfio geral- mente compreendidos, Uma unidade comunicacional isolada serd chamada mensagem ou, quando nao houver possibilidade de con- fusiio, ua comunicagio, A uma série de mensagens trocadas entre pessoas chamaremos interagZo. (Para os que ansciam por ‘umg quantificagiio mais precisa, diremos apenas que a seqiiéncia a que nos referimos pelo termo “interagio’ é maior do que uma mensagem mas nao infinita.) Finalmente, nos Capitulos 4-7, acrescentaremos os padrées de interagio, que constituem uma unidade de comunicagio de nivel ainda superior. Além disso, mesmo a respeito da unidade mais simples possfvel, serf Sbvio que, uma vez aceito todo o comportamento como comunicagio, nao estaremos lidando com uma unidade de mensagem monofénica mas com um complexo fluido e multifa- cetado de numerosos modos de comportamento — verbais, tonais, posturais, contextuais, etc. — que, em seu conjunto, condicionam 0 significado de todos os outros. Os varios elementos desse com- plexo (considerado como um,todo) slo capazes de permutas muito variadas e de grande complexidade, que vio desde 0 con- gruente ao incongruente e paradoxal,. O efcito pragmStico dessas combinagGes, nas situagGes interpessoais, ser& de interesse aqui. 2.23 . A impossibilidade de nfo comunicar é um fenémeno de inte- resse mais do que simplesmente tedfico. Por exemplo, faz parte do “dilema” esquizofrénico. Se o comportamento esquizofrénico 46 for observado pondo de lado consideragdes etioldgicas, parecerd que o esquizofrénico.tenta nfo comunicar. Mes como o disparate, o siléncio, o ensimesmamento, a imobilidade (siléncio postural} ou qualquer outra forma de rentincia. ou negagio é, em si, uma comunicasfio, o esquizofrénico defronta-se com a tarefa impos- sfyel de negar que. estd comunicando e, ao mesmo tempo, negar que a sua negacio ¢ uma comunicagic. A compreensio desse dilema bésico é uma chave pata numetosos aspectos da comu- nicagZo esquizofrénica que, de outro modo, permaneceriam obscuros. Como qualquer comunicagio, como veremos, implica um comptomisso e, por conseguinte, define a concepgio do emis- sor de suas relagdes com o receptor, podemos formular a hipédtese de que o' equizofrénico se comporta como se evitasse qualquer compromisso — nao comunicando, Se & essa a sua finalidade, no sentido causal, é impossivel provar, evidentemente; que esse é 0 efcito do comportamento esquizofrénico serd abordado em maior detalhe na s, 3.2. 2.24 Em resumo, podemos postular um axioma metacomunica- cional da pragmatica da comunicagdo: no se pode nio comunicar. 2.9 O ConteUpo & Nivers pe ReLagio pA Comunicagio 2.31 Um outro axioma foi insinuado acima, quando sugerimos que qualquer comunicacio implica um cometimento, um compro- misso; e, por conseguinte, define a relagio, Isto é outra’mancira de dizer que uma comunicagio nao sé transmite informacgio mas, ao mesmo tempo, impde um comportamento. Segundo Bateson (132, pags. 179-81), essas duas operagdes acabaram sendo conhe- cidas como os aspectos de “relato” e de ‘‘ordem”, respectiva- mente, de qualquer comunicagao, Bateson exemplifica esses dois aspectos por meio de uma analogia fisiolégica: Sejam A, Be C uma cadeia linear de neuténios. Entio, o disparo do neurénio B é 0 “telato” que o neurdnio A lhe enviou, ao disparar, e uma “ordem” enviada ao neurénio C para que dispare. O aspecto “‘relato” de uma mensagem transmite informacdo ¢, portanto, é sinénimo, na comunicacio humana, do conteddo 47 da mensagem. Pode ser sobre qualquer coisa que é comunicéyel, independentemente de essa informacao particular ser verdadeira ou falsa, valida, invdlida ou indetermindvel. O aspecto “ordem”, por outro lado, refere-se A espécie de mensagem ¢ como deve ser considerada; portanto, em tiltima instancia, refere-se as relagdes entre os comunicantes. Todas estas definicdes de relagdes gravi- tam em torno de uma ou varias das seguintes assetgdes: “Isto & como eu me vejo... Isto é como eu vejo vocé... Isto é como eu vejo que vocé me vé...” ete, numa regressdo teoricamente infinita. Assim, por exemplo, as mensagens “E importante soltar a embreagem gradual e suavemente” e “Solte a embreagem de golpe, ¢ a transmissao pifard num abrir e fechar de olhos” tém, aproximadamente, 0 mesmo contetido de informagio (aspecto de relato) mas definem, obviamente, relagdes muito diferentes. Para evitar qualquer incompreensdo sobre o que se diz acima, queremos deixar bem claro que as relagdes sé raramente sio definidas de um modo deliberado ¢ com plena consciéncia, De fato, parece que quanto mais espontanea e “sauddvel” é uma telacio, mais o aspecto relacional da comunicag3o recua para um plano secundério. Inversamente, as relagdes ‘‘doentes” sao carac- terizadas por uma constante luta sobte a natuteza das, relacdes, tornando-se cada vez menos importante o aspecto de contetido da comunicagio. 2.32 E muito interessante que antes de os cientistas behavioristas come¢arem a-se interrogar sobre esses aspectos da comunicaciv humana, j4 os engenheitos de-computacio tinham deparado com mesmo problema em seu trabalho. Tornou-se claro, para eles, que, quando se comunica com um organismo artificial, as comu- nicac6es tinham de apresentar os dois aspectos — o de relato e o de otdem. Por exemplo, se um computador vai multiplicar dois niimeros, ter-lhe-4 de ser alimentada essa informacie (os dois ntimeros) ¢ a informacio sobre essa informacio: a ordem de “multiplicar os ntimeros”, . Ora, o que € importante para o nosso exame ¢ a relacio existente entre o contetido (relato) ¢ a relacgdo (ordem) da comu- nicagfo. Essencialmente, foi definida no pardgrafo precedente, quando mencionamos que um computador necessita de informagao (dados) ¢ informagiio sobre essa informagio (instrugdes). Assim, as instrugSes sio, claramente, de um tipo Iégico superior aos dados; sio metainformagio, visto que constituem informagio 48 sobre a informagio, e qualquer confusio entre as duas acarretaria um resultado anédino. 2.33 Se revettermos agora 4 comunicacdo humana, vemos que a mesma telagdo existe entre os aspectos de relato ¢ ordem; o primeiro transmite os “‘dados” da comunicacao, o segundo como essa comunicacao deve ser entendida, “Isto é uma ordem” ou “Estou sé brincando” sio exemplos verbais de tais comunicagées sobre comunicagio, A relagio também pode ser expressa ndo-ver- balmente, por um grito, um sorriso ov muitos outros meios. E a relagio pode ser claramente entendida com base no contexto em que a comunicaco ocotre, por exemplo, entre soldados unifor- mizados ou na arena de um circo. léitor teré notado que o aspecto relacional de uma comu- nicacZo, sendo uma comunicagao sobre uma comunicagao, é idén- tico, naturalmente, ao conceito de metacomunicagio desenvolvido no primeiro capitulo, onde ficou limitado 4 estrutura conceitual e A linguagem que o analista de comunicagio deve empregar quando comunica \sobre comunicagéo, Podemos ver agora que nao sé ele mas cada um de nds se defronta com esse problema. A capacidade de metacomunicar adequadamente. ¢ nao sé a con- digio sine qua non da comunicag3o bem sucedida mas esté inti- mamente ligada ao grande problema da consciéncia do eu e dos outros. Este ponto serd explicado em maior detalhe na s. 3.3. De momento, e a titulo de ilustragio, queremos apenas mostrar que as mensagens podem ser interpretadas, especialmente na comunicagio escrita, o que oferece pistas metacomunicacionais sumamente ambiguas. Conforme Cherry (34, p4g. 120) acentua, a frase “Vocé acha que aquele chegard?” pode ter vatios signi- ficados, segundo a palavra que for acentuada — uma indicacio que a linguagem escrita usualmente nao fornece. Um outro exemplo seria um letreiro num restaurante, dizendo; “Os clientes que acham os nossos empregados grosseiros deviam ver o gerente”, uma frase que, pelo menos em teoria, pode ser enten- dida de duas maneiras inteiramente diferentes. As ambigiiidades desse género no sao as Gnicas complicagdes possiveis que resul- tam da estrutura de nivel de toda a comunicacio; considere-se, por exemplo, um letreiro que avise: “DESPREZE ESTE AVI- SO”. Como veremos no capitulo sobre comunicagio paradoxal, as confuses ou contaminagées entre esses niveis — comunicagao 49 © metacomunicagio — podem redundar.em impasses idénticos, na estrutura, aos dos famosos paradoxos da légica, 2.34 Por agora, tesumamos apenas o que antecede num outro axioma do nosso célculo conjetural: Toda a comunicagio tem um aspecta de contedido e umt aspecto de comunicagio tais que o segundo classifica o primeiro e é, portanto, uma metacomu- nicagao, ® 2.4 A Ponruagio pa SEqiBNciA pz EvEnros 2.41 A préxima caracterfstica bdsica da comunicagio que dese- jamos explorar diz respeito a interagao — troca de ‘mensagens — entre comunicantes. Para um observador externo, uma série de comunicag&es pode ser vista como uma seqiiéncia ininterrupta de trocas, Contudo, os participantes na interagio introduzem sempre 9 que, segundo Whorf (165), Bateson ¢ Jackson designaram por “pontuagio da seqiiéncia de eventos”. Dizem cles: oO psicélogo ER confina tipicamente a sua atencio a seqiiéncias de permuta tio curtas que € imposs{vel rotular um item de entrada como “estfmulo” ¢ um outro item como “reforgo”, enquanto se . classifica o que o sujeito faz entre esses dois eventos como “tes: posta”. Dentro da curta seqiiéncia assim comptimida, é possivel falar sobre a “psicologia” do sujeito. Em contraste, as seqiiénciss ~ de permuta que estamos examinando aqui séo muito mais cxtensas ¢, portanto, tém a caracterfstica de que todos os itens na seqiiéncla sao, simultaneamente, estfmulo, tesposta ¢ reforgo. Um dado item do comportamento de A & um estfmulo na medida em que seguido de um, item fornecido por B ¢ esse por um outro item fornecido por A. Mas na medida em que o item de A estf comprimido entre os dois itens que foram a contribuicgo de B, cle & uma resposta, (8) Algo arbitrariamente, preferimos dizer que a relago classifica ou subsoma 0 aspecto de contetido, embora seja igualmente correto, em légica, dizer que a classe é definida pelos seus membros ¢, por tanto, © aspecto de conteddo definitia o aspecto de relagfo. Como o nosso interesse primordial n3o ¢ a troca de informagio mas a pragmitica da comunicagao, usaremos o primeiro critério. 50 ‘Analogamente; 0 item de A € um reforgo na medida em que se segue a um item fornecido por B. As permutas em curso que estamos aqui analisando constituem, pois, uma cadela de ligacdes triddieas sobrepostas, cada uma das quais é compardvel 2 uma seqiiéncia estfmulo-resposta-reforgo. Bodemos tomar qualquer, triade da nossa uta e vé-la como uma prova isolada num experimento de aprendizagem de estimulo-resposta, Se observarmos desse ponto de vista os experimentos conven- cionais de aprendizagem, veremos imcdiatamente que as provas repe- tidas equivalem a uma diferenciagio das relagdes entre os dois orgs- nismos envolvidos: o experimentador ¢ 0 seu sujcito, A seqiiéncia de provas € tio pontuada que parece ser sempre o experimentador em fornece os “estimulos” ¢ os “reforgos”, enquanto o sujeito Emece as “respostas”. Estas palayras sio aqui deliberadamente postas entre aspas porque as definigdes de papel sé sao criadas, de fato, pela disposicio do organismo cm aceitar o sistema de pontua- gio. A “tealidade” das definicdes de papel & apenas da mesma ordem da realidade de um morcego num cartZo: de Rorschach: uma criagdo mais ou menos sty erminada do processo petceptive. O rato que disse: “Conse; inar o meu experimentador, Sempre que eu aperto este botdo, ele me d4 comida”, estava recusando aceitar a pontuagdo da seqiiéncia que o expetimentador procurava impor. . Pe Fambémn & verdade, porém, que numa longa segiiéncia de per- muta, 0 organismo envolvide — especialmente no caso de pessoas — pontuard, de fato, a seqiiéncia de modo a ficar manifesto que um ou cutro tem a iniciativa, o dominio, a dependéncia etc, Isto é, estabelecerao entre eles padrées de permuta (sobre os quais pode- rao estar ou nfo de acordo) ¢ esses padrdes setdo, de fato, as regras de contingéncia a respeito da troca de reforga, Conquanto 0s ratos sejam amévels demais para reclassificat, alguns pacientes psiquidtricos no o sdo°¢ criam traumas psicoldégicos para o tera- peuta! (19, pigs, 273-74) Nao est aqui em pauta se a pontuagio da seqiiéncia comuni- cacional é, de um modo geral, boa ou md, como deve ser imedia- tamente ébyio que a pontuacio organiza os eventos comporta- mentais e, portanto, é vital para as interagdes em curso. Cultural- mente, compartilhamos de muitas convengdes de pontuagao que, embora nfo mais nem menos rigorosas do que outras concepgdes dos mesmos eventos, servem para organizar comuns e importantes seqiiéncias de interagio.. Por exemplo, a uma pessoa que se comporta de certa maneira num grupo chamamos-lhe “lider” e¢ a uma outra “adepto”, se bem que, se refletirmos, seja diffcil dizer quem chegou primeiro ou onde estaria um sem 0 outro. 2.42 . A discordincia sobre como pontuar a seqtiéncia. de eventos’ est4 na raiz de incontdveis Jutas em torno das relagdes. Supo- a1 nhamos que um casal tem um problema marital, para o qual o marido contribui com um retraimento passivo, enquanto os 50 por cento da esposa sfo censuras e criticas irtitantes. Ao expli- car suas frustragées, o marido dird que o seu retraimento é a sua dica defesa contra as implicincias da esposa, enquanto ela classificar4 essa explicagio de uma grosseira e deliberada distorgio do que “realmente” acontece em seu casamento, notadamente, que ela o critica por causa da passividade do marido, Despojadas de todos os elementos efémeros € fortuitos, as suas brigas consis- tem numa troca monétona de mensagens: “Eu me retraio porque vocé implica” e “Eu implico porque vocé se retrai”. Este tipo de interagdo j4 foi mencionado de passagem na s. 1.65. Repre- sentado graficamente, com um ponto inicial arbitrério, a inte- ragZo do casal ter um aspecto mais ou menos assim: or Ko Marido ~~ me 2 8 \P 8 |p cal eal bel Bal Ba ] 1 PS) * Fy 52 Podemos ver que o marido apenas percebe as trfades 2-3-4, 4-5-6, 6-7-8 etc,, em que o seu comportamento (setas continuas) é“meramente” uma resposta ao comportamento dela (setas trace- jadas). Com a mulher, passa-se exatamente o inverso; ela pontua a seqiiéncia de eventos nas triades 1-2-3, 3-4-5, 5-6-7 etc, e vé-se como reagindo, tio-somente, ao comportamento do marido mas nao o determinando. Na psicoterapia conjunta, com casais, um dos cénjuges mostra-se freqiientemente impressionado pela inten- sidade do que, na psicoterapia tradicional, seria designado como uma “distorgio da realidade” por ambas as partes. E muitas vezes dificil acreditar que os dois individuos pudessem ter opi- nides tio divergentes sobre tantos elementos de uma experiéncia conjunta, No entanto, o problema reside, primordialmente, numa drea jf freqiientemente mencionada: a incapacidade de ambos pata metacomunicatem sobre os padrées respectivos de sua interacdo. Essa interagio ¢ de uma natureza oscilatétia sim-niio-sim-nio-sim, que teoticamente pode prosseguir ad infinitum © quase invaria- velmente se faz acompanhar, como veremos adiante, pelas tfpicas acusagdes de maldade ou Joucura. Também as relagdes internacionais esto repletas de padrdes andlogos de interagio; veja-se, por exemplo, a andlise da corrida armamentista, por C, E, M. Joad: (...} se, como eles sustentam, o melhor meio de preservar a paz € preparar a, guerra, nao fica muito claro por que todas as nacdes encatam © atmamento de outras nagdes como uma ameaca A paz. Contudo, & assim que o encaram e, por conseguinte, sio estimuladas a aumentar seus armamentos para suplantar os armamentos pelos quais se julgam ameacadas {...) Sendo esse aumento de armas considerado, por seu turno, uma ameasa pela nagio A, cujo arma- mento alegadamente defensivo provocou aquele, a nagio A usa esse aumento como pretexto para acumular ainda mais armamentos, com ‘os quais se defenda contra a ameaca, Contudo, essa maior acumu- Jago de armamentos “é, por sua vez, interpretada pelas nagdes vizi- aes Sonn ion amcag cons elas préprias ¢ assim por diante (...). 2.43 _ Uma vez mais, 2 matemética fornece uma analogia descri- tiva: o conceito de “sdries oscilantes ‘infinitas”, Conquanto a expressio fosse apresentada muito mais tarde, séries desse género foram estudadas pela primeira vez, de um modo Idgico e coerente, pelo padre austriaco Bernard Bolzano, pouco antes de sua morte em 1848, quando, segundo parece, ele estava profundamente preocupado com o significado do infinito. As suas idéias foram 53 publicadas a titulo péstumo, na forma de um pequeno livro inti- tulado The Paradoxes of the. Infinite (30), que se tornou um cléssico da literatura matemdtica. Nele, Bolzano estudou varias espécies de séries (S$), das quais talvez a seguinte seja a mais simples: Ssa—ata—ata—a+ta—ata—a+ta—... Para os nossos fins, pode-se considerar que esta sétie repre- senta uma seqiiéncia comunicacional de afirmagdes e negacdes da mensagem a, Ora, como Bolzano demonstrou, essa seqtiéncia pode ser agrupada — ou, como nés dirfamos, pontuada — de muitas maneiras diferentes mas atitmeticamente corretas,® © resultado €um limite diferente para a série, dependendo ‘de como se prefira pontuar a seqiléncia ‘e seus elementos, um resultado que deixou consternado muitos mateméticos, incluindo Leibnitz, Infelizmente, até onde nos é dado ver, a solucao do paradoxo oferecida, final- mente, por Bolzano nao trez qualquer ajuda para o andlogo dilema comunicacional. Como Bateson sugere (17), o dilema surge da pontuacio espiiria da série, notadamente, da pretensio de que tem um comeco e é esse, precisamente, 0 erro dos parceiros em tal situagdo. 2.44 Assim, acrescentemos um terceiro axioma metacomunica- cional: A natureza de uma relagio estd na contingéncia da pontua- ¢40 das segiléncias comunicacionais entre os comunicantes. (®) Os trés posstveis agrupamentos (“pontuagies”) sfo: S = (a—a) + (aa) + (a—a) + (2a) +e Brrr... . ‘Um outro modo de agrupar os elementos da seqiitncla sctia: S = a—(a—a)—(a—a) — (a-— a) — (aa) — eee a—O-O—O... wa Ainda um outro modo seria: S=a—(a-ata—-ata—ata—...) e, como os elementos contidos entre paréntesea nada mais sio do que a propria série, seguese que: Ssa-S a Logo: 28 = 6, ¢ = —. (30, piss. 4950) +4 2.5 Comunrcagdo Dicrra, 2 ANALOGICA 2.51 No sistema nervoso central, as unidades funcionais (neurd- nios) recebem as chamadas “‘cargas‘ quanticas” de informagio através dos elementos de conexio (sinapses). Quando chegam as sinapses, essas “‘cargas” geram potenciais excitatérios ou inibi- térios pés-sindpticos que sio totalizados pelo neurénio e provo- cam ou inibem o seu disparo. Essa parte especifica da atividade neural, consistindo na ocorréncia ou nfio-ocorréncia do seu dis- paro, transmite, portanto, informagio digital bindtia. O sistema humoral, por outro lado, nao se baseia na digitalizacao da infor- magaio. Esse sistema comunica mediante a descarga de quanti- dades descontfnuas de substancias especificas na corrente san- guinea. Sabe-se também que os modos neural e humoral de comu- nicagZo intra-organismica existem nfo s6 lado a lado mas que se complementam mutuamente e est#o na contingéncia um do outro, muitas vezes através de processos suniamente complexos, Os dois mesmos modos bdsicos de comunicagio podem ser vistos em funcionamento no campo dos organismos fabricados pelo homem: !° hé computadores que utilizam o principio do tudo-ou-nada das vélvulas eletrénicas ou transistores ¢ so cha- mados digitais porque, basicamente, so calculados para trabalhar com nimeros digitos; e hf uma outra classe de mAquinas que manipulam grandezas distintas e positivas — andlogas dos dados — e que por isso se chamam analégicas. Nos computadores digi- (20) E devetas interessante o fato de haver razGes para acreditar que os engenheiros da informdtica chegaram a esse resultado de um modo totalmente independente do que os fisiologistas j4 sabiam na €poca, um fato que, por si s6, fornece uma bela ilustragéo do postulado de Von Berta- lanffy (25) de que os sistemas complexos tém sua prdpria legitimidade inerente que ser acompanhada através dos varios niveis sistémicos, -isto é, os niveis atémi molecular, celular, organfsmico, individual, social etc. Conta-se que, durante uma reunido interdisciplinar de cientistas inte- ressados nos fendmenos de tetroalimentagao ( welmente um dos sim- Pésios da Fundacao Josiah Macy), o grande hstologista Von Bonin vin o diagrama de instalagio de um dispositivo de Jeitura selctiva ¢ disse imedia- tamente: “Mas isto é um diagrama da terceira camada do cértex visuall” Nao podemos garantir a veracidade do episédia mas contamo-lo respaldados no provérbio italiano ‘Se’ non & vero, & ben trovato” (mesmo que nio seja verdade, é uma estéria bem bolada). 55 tais, os dados ¢ as instrugdes sfo processados na forma de nimeros, de mado que, amitide, especialmente no caso das instru- gGes, s6 existe uma correspondéncia arbitrdria entre o item parti- cular de informagio e 4 sua expressio digital. Por outras pala- vras, a esses niimeros sio arbitrariamente atribufdos nomes de eédigo que tém tao pouca semelhanga com, as grandezas reais quanto os nimeros de telefone com os seus assinantes, Por outro ado, como j4 vimos, o principio de analogia é a esséncia de toda a computacio analégica, Assim como no sistema humoral dos organismos naturais os vefculos de informacio siio certas substncias e sua concentracdo na corrente sanguinea, também nos computadotes andlogos os dados assumem a forma de quanti- dades descontinuas e, no entanto, sempre positivas, por exemplo, a intensidade de correntes elétricas, o ntimero de rotagdes de uma roda, o grau de deslocamento de componentes etc. O cha- mado mare6metro (um instrumento composto de réguas, rodizios e alavancas usado para calcular as marés em qualquer momento dado) pode ser considerado um simples computador anélogo e, é claro, o homeostato de Ashby, mencionado no Capitulo 1, é um paradigma de uma mdquina andloga, se bem que nao calcule coisa alguma, 2.52 Na comunicagio humana, podemos nos referir aos objetos — na mais ampla acepcdo da palavra — de duas maneiras inteira- mente diferentes. Podem ser representados por uma semelhanga, como num desenho, ou ser referidos por um nome. Assim, na frase escrita: “‘O gato apanhou o rato”, os substantivos poderiam ser substitufdos por desenhos; se a frase fosse falada, poderfamos apontar para 0 gato € 0 rato reais. Seria desnecessdrio acrescentar que isso seria um modo incomum de comunicagio e, normalmente, usa-se o “nome” escrito ou falado, isto é, a palavra. Esses. dois tipos de comunicagio — um por semelhanga auto-explicativa, o outro por uma palavra — também so equivalentes, é claro, aos conceitos de analégico e de digital, respectivamente. Sempre que se usa uma palavra para denominar alguma coisa, é evidente que a relagdo entre o nome ¢ a coisa denominada é arbitrariamente estabelecida. As palavras so sinais atbitrdtios que se manipulam de acordo com a sintaxe Iégica da linguagem. Nao existe qualquer motivo particular pard-que as quatro letras “g-a-t-o” denotem um determinado animal. Em ultima andlise, trata-se apenas de uma 56 convengao semantica da nossa linguagem e, fora dessa convengio, nfo existe qualquer outra correlagao entre uma palavra e a coisa que ela representa, com a possfvel mas insignificante excecio das palavras onomatopéicas, Como Bateson ¢ Jackson sublinharam: “Nada existe particularmente como-cinco no nimero cinco; nada ae particulatmente como-mesa na palavra ‘mesa’” (19, pdg. 271 . Na comunicacio analdgica, por outro lado, existe algo parti- cularmente “como-coisa” naquilo que é usado para exptessar a coisa. A comunicagio analdgica pode referir-se mais facilmente 4 coisa que representa. A diferenca entre esses dois modos de comunicagao talvez fique mais clara se compreendermos que por myito tempo que, se fique escutando uma Ifngua estrangeira no r4dio, por exemplo, nenhuma compreensiio da Ifngua resultard disso, enquanto que alguma informacio bisica pode ser facil- mente derivada da obsetvacgao de uma lingiiagem de sinais ou dos chamados movimentos intencionais, mesmo .quando usados por uma pessoa de uma cultura totalmente diferente. Sugerimos que @ comunicacio analégica tem suas rafzes em perfodos muito mais arcaicos da evolucio e, portanto, é de muito maior validade geral do que o relativamente recente ¢ muito mais abstrato modo digital de comunicagiio verbal. O que &, pois, a comunicagio analégica? A resposta é relati- vamente simples: virtualmente, € toda a comunicacdo nao-verbal. Este termo, entretanto, é equivoco, porque est4 freqiientemente restringido aos movimentos corporais, apenas, ao comportamento conhecido como cinético. Nés sustentamos que o termo deve abranger postuta, gestos, expressdo facial, inflexio de voz, seqii@ncia, ritmo e cadéncia das prdéprias palavras, e qualquer outra manifestagio nao-verbal de que o otganismo seja capaz, assim como as pistas comunicacionais infalivelmente presentes em qualquer cotexfo em que uma interagio ocorra. 12 (41) A primacial significagio comunicacional do contexto & esque- cida com excessiva facilidade na andlise- da comunicagdo humana; entre- tanto, alguém que se pusesse a escovar os dentes numa rua movimentada, em vex de fazélo no seu banheiro, poderia ser rapidamente carregada pare uma delegacia de polfcia’ ou pata um manichmio — para darmos apenas um exemplo dos efeitos pragméticos da comunicagao nao-verbal. 37 2.53 . O homem é 0 tnico organismo conhecido que usa os modos analégico ¢ digital de comunicacao. #2 _A significagdo disso ainda € muito inadequadamente compreendida mas nfo pode ser subes- timada, Por um lado, nao é posstvel duvidar de que o homem comunica digitalmente. De fato, a maioria se nao a totalidade de suas realizagdes civilizadas seria impens4vel sem que ele tivesse desenvolyido uma linguagem digital. Isto é particularmente importante para a partilha de informagdes sobre objetos ¢ pata a fungiio de transmissiio oportuna de conhecimentos. Entretanto, existe uma vasta drea em, que confiamos quase exclusivamente na comunicagao analégica, com freqiiéncia, sem mudangas apreci4- veis na heranga analégica que nos foi transmitida pelos nossos mamfferos ancesttais, Trata-se da 4rea de relagdes. Baseado em Tinbergen (153) ¢ Lorenz (96), assim como em suas préptias pesquisas, Bateson (8) demonstrau que as vocalizacSes, os movi- mentos intencionais e os sinais de humor dos animais sio comu- nicagdes analdgicas pelas quais cles definem a natureza de suas relacSes, em vez de fazerem declaragdes denotativas sobre abjetos. Assim, para usarmos um de seus exemplos, quando eu abto a geladeira e o gato vem rocar nas minhas pernas, miando, isso no significa “Eu quero leite’” — como um ser humano expres- saria —- mas invoca uma relaco especffica, “Seja mae para mim”, porque tal comportamento sé é observado .em crias, ¢ relativa- mente a gatos adultos; nunca, porém, entre dois animais adultos. Inversamente, muitos amigos de animais domésticos estfo conven- cidos de que os seus bichos de estimagio “‘entendem” o que eles dizem. O que o animal entende, seria desnecessdtio dizer, nfo € certamente o significado das palavras mas a riqueza de comu- nicago analégica que acompanha a fala. Com efeito, sempre que a relacio € 0 ponto central da comunicagao, verificamos que a linguagem digital é quase anédina. Este ndo é apenas o caso entre animais ¢ entre homem ¢ animal mas em muitas outras contingéncias da vida humana, por exemplo, no namoro, amor, socotra, combate e, é claro, em todo o trato com ctiancas muito pequenas ou pacientes mentais gravemente perturbados. Crian- gas, loucos ¢ animais sempre tém sido creditados com uma intui- go particular a respeito da sificeridade ou insinceridade das (12) H4 razdes para acteditar que as balelas ¢ os golfinhos também podem usar a comunicagio digital; mas as pesquisas nessa drea’ ainda no sio concludentes. 58 atitudes humanas, pois é facil declarar alguma coisa verbalmente mas diffcil transportar uma mentira para o dom{nio*analdgico. Em resumo, se nos Jembrarmos de que toda a comunica¢io tem um contetido e uma relag#o, podemos esperar concluir que os dois. modos de comunicagio nao sé existem lado a lado mas complementam-se em todas as mensagens. Também poderemos esperar concluir que o aspecto de contetida tem toda a probabi- lidade de ser transmitido digitalmente, ao passo que o aspecto relacional ser4 predominantemente analégico em sua natureza, 2.54 Nessa correspondéncia reside a importincia pragmética de certas diferencas entre os modos digital e analégico de comuni- cago que serio agora examinadas. Para tornar essas diferengas bem claras, podemos reverter aos modes digital e analégico tal como sao representados nos sistemas artificiais de comunicacio. O desempenho, exatiddo e versatilidade dos dois tipos de computadores — digitais e andlogos — sao muito diferentes. As analogias usadas em computadores andlogos, em vez de grandezas reais, nunca podem ser mais do que aproximagdes dos valores teais e essa fonte onipresente de inexatidio é ainda mais aumen- tada durante o processo das préprias operagées do computador. Rolamentos, caixas de engrenagem ¢ transmisses nunca podem ser fabricados com perfeicio absoluta, « mesmo quando as méquinas andlogas confiam inteiramente em intensidades distintas de correntes elétricas, resisténcias elétricas, redstatos etc., essas analogias ainda esto sujeitas a flutuagdes virtualmente incontro- léveis. Uma maquina digital, por outra parte, funciona com toda perfeigao se o espago para armazenar dfgitos nfo for limi- tado, tornando assim necessério atredondar quaisquer resultados que tenham mais digitos do que a maquina pode suportar. Quem tiver usado uma régua de célculo (um excelente exemplo de um computador andlogo) sabe que poderd obter apenas um resultado aptoximado, enquanto que qualquer calculadora de escritério forneceré um resultado exato, desde que os dfgitos requeridos + nfo excedam o méximo que a calculadora pode operar. A parte essa preciso perfeita, o computador digito tem a enorme vantagem de ser no s6 uma méquina aritmética mas também Jdgica, McCulloch e Pitts (101), mostraram que as dezesseis fungées verdadeiras do célculo Idgico podem ser repre- sentadas por combinacdes de érgdos tudo-ou-nada, pelo que, por 39 exemplo, a soma de duas pulsagdes representaré o “‘e” Iégico e a exclusividade miitua de duas pulsagSes representa o “ou” légico, uma pulsagdo que inibe o disparo de um clemento representa negacao etc. Nada existe de compardvel, mesmo remotamente, em computadores andlogos. Como sé operam com quantidades positivas ¢ descont{nuas, so incapazes de representar qualquer valor negativo, incluinda a prépria negacéo, ou qualquer das outras fungdes de verdade. . Algumas das caracterfsticas dos computadores também se aplicam A comunicacio humana: o material da mepsagem dfgita € de um grau muito mais elevado de complexidade, versatilidade ¢ abstragdo do que o material analdgico. Especificamente, verifi- camos que a comunicagao andloga nada tem de compardvel com a sintaxe Idgica da linguagem digital. Isto significa que, na linguagem analdgica, nao existem equivalentes para elementos to vitalmente importantes do discurso como “se... entdo”, “ou... ou” e muitos outros, e que a expresso de conceitos abstratos & tio dificil, se néo impossfvel, quanto na primitiva escrita pictogrdfica, em que cada conceito s6 podia ser represen- tado pela sua semelhanga fisica, Além disso, ‘a linguagem analé- gica divide com o célculo analégico a austncia da negativa.sim- ples, isto’ é, uma expressio pata “nao”, . A titulo ilustrativo: ha légrimas de dor e lagrimas de jubilo, 0 punho fechado pode assinalar agressiio ou contengiio, um sor- tiso pode transmitir simpatia ou animosidade, as reticéncias podem ser interpretadas como tato ou como indiferenga, e seria caso pata petguntar se tadas as mensagens analdgicas nio terao, talvez, essa curiosa qualidade amb{gua, que nos lémbra o Gegen- sinn der Urworte (sentido antitético das palavras primevas), de Freud. A comunicagio analégica no tem qualificadores para indicar qual de dois significados discrepantes estd subentendido nem quaisquer indicadores que petmitam uma distingio entre passado, presente ¢ futuro. 14 Esses qualificadores e indicadores (18) © Ieltor j& ter4 desooberto, por esta altura, como, existe uma Ga sugestiva entre os modos de comunicasio analégico e digito e Os conceitos psicanalfticos de processas primdrios e secundarios, respectl- vamente, Se a transpusermos do quadro de referéncia intraps{quico para interpessoal, a descticc freudiana do Id ‘convertese, virtualmente, numa definigao da comunicagio analégica: 60 existem, é claro, na comunicacSo digita. Mas o que falta nesta € um vocabulério adequado para as contingéncias de relagdes. O homem, na sua necessidade de combinar essas duas lingua- gens, como emissor ou como receptor, deve fraduzir constante- mente uma pata a outra ¢, ao fazé-lo, depara com dilemas muito curiosos, que abordaremos em maior detalhe no capitulo sobre comunicagio patolégica (s. 3.5). Pois na comunicagio humana a dificuldade de tradugio existe nos dois sentidos. Nao s6 é impossivel hayer tradugio do modo digital para o analégico sem grande perda de informagio (ver s. 3.55 sobre a formacao histé- tica de sintomas) mas o inverso também é extraordinariamente dificil: falar sobre relagdes requer uma traducio adequada do modo analdgico para o digito de comunicacao, Finalmente, pode- mos imaginar problemas semelhantes quando os dois modos tém de coexistir, como Haley notou em seu excelente capftulo, “Mar- riage Therapy”: Quando um homem e uma mulher decidem que a sua associagio deve ser legalizada com uma ceriménia matrimonial, eles propdem-se um problema que continuard durante todo o casamento: agora que estao casados, permanecem juntos porque desejam ou porque deve? (60, pag. 119) . A luz do precedente, diriamos que, quando a parte mais ana- Iégica de suas relagdes (o comportamento de namoro) é adicio- nada a digitalizagio (o contrato matrimonial), uma definicao najo-ambfgua de suas relagdes torna-se muito problematica, 4 2.55 Em resumo: Os seres humanos comunicam digital e analogi- camente. A linguagem digita é uma sintaxe ldgica sumamente complexa e poderosa mas carente de adequada semdntica no campo das relagdes, ao passo que a linguagem analdgica possui @ seméantica mas nao tem uma sintaxe adequada para a definicio nao-ambigua da natureza das relagées. As leis da légica — sobretudo, a lei da conttadisio — nio so vilidas para os processos do id, Existem izpulsos contraditérios Jado a lado, sent se neutralizarem mutuamente nem se repelirem. (...) Nada existe-no id que possa ser comparado A negagto ¢ cau sa-nos espanto encontrar nele uma excegao a assergdo dos fildsofos de que o espaco € o tempo sao formas necess4tias dos nossos atos mentais. (49, p4g. 104; 0 grifo & nosso) {24) Pelos mesmos motivos, € possivel sugetir que 9 divétcio seria sentido como algo muito mais definitive se o usualmente seco ¢ desinteres- sante ato legal de obtengio da sentenca final fosse implementado por a forma de ritual analégico de separago final. 61 2.6 Interacdo Simérrica 2 CoMPLEMENTAR 2.61 Em 1935, Bateson (6) descreveu um fendmeno interacional por ele observado na tribo Jatmul da Nova Guiné e do qual, em seu livro Naven (10), publicado um ano depois, se acupow em maior detalhe. Deu a esse fendmeno o nome de cismogénese e definiv-o como um processo de diferenciagio nas normas de comportamento individual resultante da interagdo cumulative entre individuos, Em 1939, Richardson (125) aplicou esse con- ceito ds suas andlises da guerra e da polftica externa; desde 1952 que Bateson ¢ outros vém demonstrando a sua utilidade no campo da pesquisa psiquidtrica (Cf. 157, pdgs. 7-17; também 143). Esse conceito que, como vimos, tem um valor heurfstico que excede os limites de qualquer disciplina, singularmente conside- tada, foi elaborado pot Bateson em Naven da seguinte mancira: Quando 4 nossa disciplina ¢ definida cm fungio das reagdes de um individuo as reagdes de outros individuos, torna-se imedia- tamente evidente que devemos considerar as relagdes entre dois indi- viduos como suscetiveis de alteraciio, de tempos em tetapos, mesmo sem qualquer perturbacdo de otigem externa, ‘Temos de considerar nfo 6 as reagoes de A a0 comportamento de B mas devemos exa- minar também como essas reagies afetam o comportamento ulterior de Bo efeito deste em A, B imediatamente ébvio que muttos sistemas de relagdes, entre individuos ow grupos & individuos, conten uma feadénca para a mudanga progtessiva, Sc, por cxemplo, um dos padrées de compor- tamento cultutal, considerado apropriado no individuo A, for cultu- ralmente classificado como um padrio imperativo, enquanto que se espera de B que reaja‘ao mesmo no que é culturalmente considerado submissio, € provdvel que essa submissio encoraje a afimacio ¢ que esta afirmagdo exija ainda mais submissio, Temos, assim, um estado de coisas progressivo ¢, a menos que outtos fatores estejam presentes para restringir os excessos de comportamento imperative ¢ submisso, A tornar-se-4 neccssariamente mais impetativo ¢ B cada vez mais submisso; ¢ essa mudanga progressiva ocorrerd quet A B sejam individuos independentes ou membros de grupos comple- mentares. As mudangas progressivas desse género podem ser descritas como cismogénese complementar, Mas existe um outro padslio de relagdes entre individuos ou grupos de individuos que contém igual- mente o3 germes da mudanga progressiva, Se, por exemplo, encon- ‘amos a jactincia como padrao cultural de comportamento num BMUpO ¢ O oUtLO grupo responde a isso com jactiincia, podese desen- volver uma situagio competitiva em que as atitudes jactanciosas 62 redundam em novas jactdncias ¢ assim por diante, A cste tipo de mmudangs progtessiva poderemos chamar cismogénese simétrica, (10, Pags. 2.62 Os dois padtdes que acabam de ser descritos passaram a ser usados sem referéncia ao processo cismogenético e, atualmente, sfo citados apenas como interagZo simétrica e complementar. Podem. ser descritos como relagdes bascadas na igualdade ou na diferenca. No primeiro caso, os parceiros tendem a refletir o comportamento um do outro e por isso é que a sua interagio pode chamar-se simétrica. Fraqueza ou forga, bondade ou mal- dade, nfo sao aqui pertinentes, pois a igualdade pode ser mantida em qualquer dessas dreas. No segundo caso, o comportamento de um parceiro complementa o do outro, formando uma espécie diferente de Gestalt comportamental, e dé-se-lhe o nome de complementar, Assim, a interagdo simétrica é caractetizada pela igualdade e a minimizagio da diferenga; a interagio complementar baseia-se na maximalizagio da diferenga. Existem duas posigdes diferentes numa relagio comple- mentar, Um parceiro ocupa o que tem sido diversamente descrito como a posicao superior, primdria ou “de cima” e o outro a correspondente posigao inferior, secund4ria ou “de baixo”. Estes termos sio muito titeis, desde que equiparados a “bom” ou “mau”, “forte” ou “fraco”, Uma relacgo complementar pode ser estabelecida pelo contexto social ou cultural (como no caso de mie e filho, médico e paciente, professor e aluno) ou pode ser o estilo de relagdo idiossincrésica de uma determinada dfade. Num ou outro caso, é importante enfatizar a natureza conjugada da relacZo, em que comportamentos dessemelhantes mas ajustados se provocam mutuamente. Um_parceiro nao impde uma relacio complementar ao outro mas, antes, comporta-se de maneira que pressupde o comportamento do outro, enquanto que, a0 mesmo tempo, fornece razdes para tal comportamento: as respectivas definigSes de relagfo (s. 2.3) encaixam-se, 2.63 Um terceiro tipo de relacdes foi sugerido; a “‘metacomple- mentaridade”, em que A deixa ou forca B a encarregar-se dele; pelo mesmo raciocinio, poderfamos também acrescentar a “pseudo- -simetria”, em que A deixa ou forca B a ser simétrico. Esta regressio potencialmente infinita pode, entretanto, ser evitada se 63 recordarmos a distingo anteriormente feita (s. 1.4) entre a observagio de redundancias comportamentais e suas explicagdes inferidas, na forma de mitologias; isto ¢, estamos interessados em como o par se comporta sem ser distrafdo por por qué’ (eles eréem)-assim se conduzem. Entretanto, se os indivfduos envo]- vidos se aproveitam dos nfveis miultiplos de comunicagio (s. 2.22) para expressar diferentes padrdes em diferentes nfveis, podem surgir resultados paradoxais de significativa importancia pragmética (s. 5.41; 6.42, ex, 3; 7.5, ex. 2d). 2.64 As patologias potenciais (escalada em simetria e rigidez em complementaridade) desses modos de comunicacio serio abor- dadas no préximo capftulo, De momento, podemos enunciar simplesmente o nosso Ultimo axiom conjetural: Todas as permu- tas comunicacionais ou sao simétricas on complementares, segundo se baseiem na igualdade ou na diferenca, 27, Resumo Quanto aos axiomas acima, em geral, algumas limitacdes devem ser aqui enfatizadas de novo. Primeiro, convém que fique claro terem sido propostos conjeturalmente, algo informalmente definidos e certamente a titulo mais preliminar do que exaustivo. Segundo, siio entre eles muito heterogéneos, na medida em que os extraimos de uma yasta gama de observacdes sobre os fend- menos da comunicacZo, Foram unificados nfo pelas suas origens mas pela sua importancia pragedtica, a qual, por seu turno, assenta no tanto em seus particulares quanto em sua referéncia mais interpessoal do que monddica. Birdwhistell foi ainda mais longe, ao sugerir que . um individuo nfo comunica; cle se covolve em comunitacio ou tornase parte da comunicagio. Pode movimentar-se ou fazer rufdos (...) mas nfo comunica. De um modo paralelo, ele pode ver, pode ouvir, cheitar, provar ou sentit — mas nio comunica. Por outras palavras, cle nfo origina a comunicacao; participa dela. Por- tanto, 2 comunicagio como sistema nio deve ser entendida como um simples modelo de aco € reagdo, por mais complexamente que seja descrito. Como sistema, tem de ser compreendido no nivel transacionsl. (28, pag. 104) - 64 Assim, a impossibilidade de no comunicar faz com que todas as situagdes de duas-ou-mais-pessoas sejam interpessoais, comunicativas; o aspecto de relagZo de tal comunicagio especi- fica ainda mais esse mesmo ponto. A importancia pragmética, interpessoal, dos modos digital ¢ analégico nao reside ‘no seu hipotético isomorfismo com o contetido ¢ a relagdo mas na inevitdvel ¢ significativa ambigiiidade que tanto o emissor como © receptor enfrentam nos problemas de tradugdo de um modo pata o outro. A descrigao dos problemas de pontuacio assenta, precisamente, na metamorfose latente do modelo clissico de agao- -teacio. Finalmente, o paradigma simetria-complementaridade 6, talyez, o que mais se aproxima do conceito matematico de fun¢ao, sendo as posigGés dos individuos, meramente, varidveis com uma infinidade de valores possfveis cujo significato no ‘é absolute mas, outrossim, se manifesta unicamente em relagdo de recipro- cidade, 65

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