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Como reconciliar liberdade e justica social? «0 conllito entre igualdade e liberdade ¢ um problema recorrente das sociedades moder- nas, e muito particularmente dos Estados Unidos da América, pais onde a liberdade con- vive, lado a lado, com grandes desigualdades. Preocupado com este conflito, John Rawls quis mostrar que estas duas tendéncias, igualmente legitimas aos seus olhos, si0 mais complementares que contraditéras. Ele associa explicitamente a sua teoria & social demo- cracia: como reconciliarliberdade e justica social? J. Rawls queria elaborar uma concepeao de justica social bastante sistematica para poder substituir-se ao utilitarismo, cuja origem remonta; essencialmente, a Jeremy Bentham, 20 ‘séc. XVIII, e que dominou o pensamento politico anglo-saxénico. O utilitarismo postula que uma sociedade € melhor que outra se esta oferecer mais bens 20 conjunto dos cida- dios (‘a maior felicidade para o maior numero”). Este programa, aparentemente sedutor, € contudo criticavel. Com efeito, ele no se preocupa apenas com a soma dos bens, mas também com @ maneira como estes so repartidos! entre os individuos. Dito de outro modo, s6 importa 0 tamanho do bolo, mesmo que alguns s6 fiquem com uma pequena parte. E preciso, pois, estar pronto a sacrificar alguns individuos ou grupos desfavoreci- dos, se isso for necessario para o bem do maior mimero. |J, Rawls quer produzir uma teoria tio eficaz como o uilitarismo, mas que seja compativel ‘com os sentimentos morsis. Ele afirma que a justica processual pura esta na base da sua teoria, o que significa que 0 resultado obtido nao pode ser justo se o procedimento nao {or equitativo. . J. Rawls é evidentemente confrontgdo com 0 facto de cada um de nés ser logicamente tentado a escolher um principio que o favoreca em fungdo da sua situacio pessoal. Por exemplo, um homem rico pode considerar que os impostos utilizados em medidas sociais ‘sfo injustos, enquanto que um homem pobre pensard o contritio. Entdo, qual o procedi- ‘mento a escolher para evitar um tal conflito? J. Rawls imagina uma situacZo hipotética uma “experiencia pensada” que fomeca as condigdes necessérias para um processo iguali- Uirio, Esta situagdo corresponde ao “véu de ignorancia", 0 conceito mais original do pen- samento de J. Rawls. Sob este véu de ignorincia, “ninguém conheceria a sua propria sjtuacdo na sociedade, nem os seus dons naturais, e por isso ninguém teria a possibilidade ‘de elaborar princfpios para sua propria vantagem”. Nesia situaglo hipotética, as pessoas seriam encarregadas de definir as regras de uma sociedade sem conhecer previamente qual o seu estatuto social, nem as suas aptéddes pessoais (como a inteligencia ou a forca). Cada um ignoraria mesmo os seus tragos de personalidade, a sua propria concepcao do bem, ou mesmo’o seu projecto pessoal de vida. Para J. Rawls “o véu de ignorincia torna possivel uma escolha undnime duma concep¢ao particular da justia” uma vez que os parceiros racionais, ignorando aquilo que os diferen- cia “serdo todos convencidos pela mesma argumentacéo”. Se alguém, depois duma pro- funda reflexao, concluir que uma concepeao de justica € preferivel a outra, entio todos a preferirdo e chegardo a um acordo undnime. Assim, o autor, pela sua tearia, “generaliza € leva ao mais alto grat de abstraccao a teoria bem conhecida do contrato social”. Segundo J. Rawls, estas pessoas deveriam necessariamente chegar a dots prinefpios. O pri- ‘meiro é um “principio de igual liberdade”, o segundo divide-se num “principio de dife- renca’ e num “principio de igualdade de oportunidades”. © primeiro principio, prioritério sobre os outros, visa garantir liberdades e direitos iguais para todos. Ele postula que “cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema total o mais vasto posstvel de liberdades de base igual para todos, compativel com um mesmo sistema para todos". As mais importantes liberdades de base’sto as liberdades politicas (direito de voto de ocupar um posto pubblico), a liberdade de expresséo, de reuniio, a liberdade de pensamento e de consciéncia, o respeito da integridade fisica e psicolégica da pessoa, o direito de propriedade pessoal e a proteccio contra a detencio a prisio arbitrarios. segundo principio visa a instaurar a justica social, mas tendo em conta o facto de que, numa sociedade de total-igualdade, a produtividade seria tio baixa que. todos, incluindo 0s mais desfavorecidos, setiarh lesados. J. Rawls afirma, portanto, que as desigualdades s6cio-econdmicas $6 so justas se elas produzem, em compensacdo, vantagens para os ‘membros mais desfavorecidos (“principio'de diferenca’). J. Rawls afirma, portaritS, que no ha injustica no facto de um pequeno niimero obter vantagens superiores & média, _ desde que a situacdo dos menos favorecidos seja com isso melhorada. Mais, cada um deve beneficiar das mesmas oportunidades de acesso as diversas fungdes e posicbes sociais ("principio da igualdade de oportunidades”). Este principio tem prioridade sobre o prin- cipio de diferenca, porque nao se deve restringir a igualdade de oportunidades ao benefi- cio duma melhoria das condigdes de vida de cada um. ‘Como assinala Francois Terré, a teoria de J. Rawls exclui dois sacrificios: o sacrificio dos ais desfavorecidos em nome da eficécia econémica, o que leva a condenacio do “libera- lismo selvagem”; 0 sacrificio dos mais favorecidos em nome da justica social, o que equivale a rejeicdo do “socialismo autoritério”. (Que balanco podemos fazer, hoje, da Teoria da Justica? Ainda que publicada ha menos de 30 anos, esta obra constitui uma referencia filoséfica incontorndvel. Mas sob o eleito de moltiplas criticas, a sua forca de conviccao foi sendo consideravelmente diminuida ao longo dos anos. Hoje, 0 seu interesse parece residir mais nas reflexées que ela suscita, ine- vitavelmente, nos leitores que na sua validade intrinseca.» Jacques Lecomte, Philosophies de Notre Temps, Ed. Sciences Humaines, Pars, pp.135-140 (rad)

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