O METODO INDUTIVO 9
1, Essa coleta deve ser feita com diligéncia ¢ prudéncia, Nao é um trabalho facil, Em cada area
de investigagao existe grande probabilidade de erro. Quase todas as falsas teorias no campo da
cignciae as falsas doutrinas no campo da teologia se devem em grande medida a equivocos quanto
amatérias de fato. Um naturista distinto disse que repetia um experimento mil vezes antes de sentir-
se autorizado a anunciar o resultado ao mundo cientifico como um fato estabelecido.
2. Essa coleta de fatos deve nao apenas ser cuidadosamente conduzida, mas também abrangente
e, se possivel, exaustiva, Uma indugdo imperfeita de fatos levou homens a crer por séculos que 0
sol se movia em torno da terra, e que a terra era uma extensa planicie. Em teologia, uma indugao
patcial de pormenores tem levado a erros semelhantes ¢ sérios. E fato que as Escrituras atribuem
onisciéncia a Cristo. A luz desse fato infere-se que ele no poderia possuir uma inteligéncia
finita, mas que o Logos se revestiu de um corpo humano com sua vida animal. Mas é também fato
biblico que a ignorincia e o progresso intelectual, tanto quanto a onisciéncia, sfo afribuidos a
nosso Senhor, Ambos 0s fatos, pois, devem incluir-se em nossa doutrina de sua pessoa. Devemos
admitir que ele possuta inteligéncia humana, tanto quanto inteligéncia divina. F fato que tudo 0
que é predicado de homem sem pecado é na Biblia predicado de Cristo; e também é fato que tudo
0 que é predicado de Deus é predicado de nosso Senhor; dai se tem inferido que houve dois
Cristos ~ duas pessoas —, um humano e outro divino, habitando juntos precisamente como o
Espirito habita no crente; ou como os espiritos malignos habitam em endemoninhados. Essa
teoria, porém, ignora os numerosos fatos que provam a personalidade individual de Cristo. A
mesma pessoa que disse “Tenho sede” declarou “Antes que Abrafo existisse, eu sou”, As Escri-
turas ensinam que a morte de Cristo se destinava a revelar o amor de Deus e assegurar a transfor-
magi dos homens. Por isso Socinio negava que sua morte fosse expiagao pelo pecado, ou sati
fagao da justiga. O ultimo fato, contudo, é tao claramente revelado quanto o primeiro; e por isso
ambos devem ser levados em conta em nossa afirmacio da doutrina concemente ao designio da
morte de Cristo.
Necessidade de uma Indugtio Completa
TlustragSes interminaveis podem ser apresentadas sobre a necessidade de uma indugao com-
preensiva dos fatos para justificar nossas conclusGes doutrinais. Esses fatos néo devem ser
voluntariamente negados nem displicentemente ignorados, tampouco apreciados de forma in-
justa, Devemos ser honestos aqui, como o verdadeiro estudioso da natureza ¢ honesto em sua
indugo. Mesmo os cientistas ds vezes so levados a suprimir ou perverter fatos que militam
contra suas teorias favoritas; mas a tentago a essa forma de desonestidade ¢ muito menor em
seu caso do que no caso do tedlogo. As verdades da religiaio sdo muito mais importantes do que
as da ci€ncia natural. Elas sao percebidas pelo coragiio ¢ pela consciéncia. Podem alarmar os
temores ou ameagar as esperancas dos homens, de modo que existe forte tentagdo em ignord-
las ou perverté-las. Entretanto, se realmente desejamos saber o que Deus tem revelado, deve-
mos ser conscientemente diligentes ¢ fi¢is em coletar os fatos que ele tem tornado conhecidos
e dar-Ihes a devida importéncia, Se um gedlogo encontrar num depésito de data primitiva
implementos de fabricagéio humana, nao lhe é permitido dizer que sfio produtos naturais. Ele
deve ou revisar sua conclusao quanto a idade do depésito, ou retroceder a um periodo anterior
a existéncia do homem. Nao existe auxilio para ele. A ciéncia nao pode criar fatos; deve
recebé-los como sao. De forma semelhante, se a Biblia assevera que a morte de Cristo foi para10 TEOLOGIA SISTEMATICA
a satisfazer a justiga, ao tedlogo niio € permitido incorporar a justiga na benevoléncia a fim de
adequar sua teoria da expiagao. Se as Escrituras ensinam que os homens nascem em pecado,
nao podemos mudar a natureza do pecado e torna-la uma tendéncia para o mal, e ndo realmente
pecado, a fim de desvencilhar-nos da dificuldade. Se é fato biblico que entre a morte ¢ a
ressurreigio a alma subsiste num estado de atividade consciente, nao devemos negar esse fato
oureduzir a zero tal atividade consciente, s6 porque nossa antropologia ensina que a alma nao
possui individualidade nem atividade sem um corpo, Devemos tomar os fatos da Biblia como
sao, ¢ construir nosso sistema de modo que os abarquemos todos em sua integridade.
Principios a Serem Deduzidos dos Fatos
Em quarto lugar, tanto na teologia como na ciéncia natural, os principios se derivam de
fatos, ¢ nao sio impressos sobre eles. As propricdades da matéria, as leis do movimento, do
magnetismo, da luz etc. nao so ordenadas pela mente. Nao sio leis da imaginagao. Sao dedu-
Ges de fatos. O investigador vé, ou averigua pela observagiio, quais sao as leis que determi-
nam o fenémeno material; ele ndo inventa essas leis. Suas especulagdes sobre questdes de
ciéncia nao tém valor, a menos que sejam sustentadas pelos fatos. Nao é menos anticientifico
pata o tedlogo pressupor uma teoria quanto 4 natureza da vittude, do pecado, da liberdade, da
obrigagiio moral e entéo explicar os fatos da Escritura em concordancia com suas teorias. Seu
unico curso certo é derivar dos fatos da Biblia sua teoria da virtude, do pecado, da liberdade,
da obrigagio. Ele deve lembrar que sua obrigacao nao é apresentar seu sistema da verdade
(que nao tem a menor importAncia), mas averiguar e exibir qual ¢ 0 sistema de Deus, este sim
uma questiio da maior importancia. Se ele nfo pode crer nos fatos que a Biblia pressupdem ser
verdadeiros, que o confesse. Deixe os escritores sacros com sua doutrina, enquanto ele fica com.
asua. Sobre essa base, uma grande classe de exegetas e te6logos modernos, depois de muita luta,
realmente surgiu. Apresentam 0 que consideram como doutrinas do Antigo Testamento; entio as
dos evangelistas; entéo as dos Apéstolos; e entao a sua propria. Isso é justo. Entretanto, uma vez
que se reconhece a autoridade obrigat6ria da Escritura, é muito forte a tentacdo para forgar os
fatos da Biblia em consondncia com nossas teorias preconcebidas, Se o homem é persuadido de
que a coisa certa a fazer é inconsistente com a liberdade de ago; que a livre agéncia sempre pode
agir contrariamente a qualquer grau de influéncia (nao destrutivo de sua liberdade) trazido sobre
si, ele inevitavelmente negara que as Escrituras cnsinam o contrario, e portanto se forga a modi-
ficar todos os fatos que provam o absoluto controle de Deus sobre a vontade e voligao dos
homens. Se ele mantiver que a pecaminosidade s6 pode ser predicado da agao inteligente e volun-
taria em violagao da lei, ent&io deveria negar que os homens nascem em pecado, impedindo a
Biblia de ensinar o que ela ensina. Se ele cré que a capacidade limita a obrigagao, entao deve crer
independentemente das Escrituras, ou em oposicio a elas, néio importam quais, de que os homens
siio capazes de arrepender-se, de crer, de amar a Deus perfeitamente, de viver sem pecado, em
todo e qualquer tempo, sem a minima assisténcia do Espirito de Deus, Se ele nega que o inocente
pode enftentar justamente o mal punivel pelo culpado, entdo deve negar que Cristo carregou
nossos pecados. Se negar que o mérito de uma pessoa pode ser a base judicial do perdao e da
salvagiio de outras pessoas, entdo deve rejeitar a doutrina biblica da justificagao. E evidente que
se causaria completa ruina a todo o sistema da verdade revelada, a menos que consentissemos em
derivar nossa filosofia da Biblia, em vez de explicar a Biblia pela instrumentalidade de nossaAS ESCRITURAS CONTEM TODOS OS FATOS DA TEOLOGIA 11
filosofia. Se as Escrituras ensinam que o pecado é hereditério, devemos adotar a teoria do pecado
que se ajusta a esse fato. Se elas ensinam que os homens nao podem arrepender-se, nem crer nem.
fazer algo espiritualmente bom sem 0 auxilio supernatural do Espirito Santo, devemos conformar
a.esse fato nossa teoria da obriga¢ao moral, Se a Biblia ensina que levamos a culpa do primeiro
pecado de Adio, que Cristo levou nossa culpa e suportou a penalidade da lei em nosso lugar,
esses sitio fatos com os quais devemos fazer concordar nossos principios. Seria facil demonstrar
que, em cada area da teologia ~ com respeito 4 natureza de Deus, sua relagiio com 0 mundo, o
plano da salvagaio, a pessoa e obra de Cristo, a natureza do pecado, as operagdes da graga divina
—, 08 homens, em vez de tomarem os fatos da Biblia e verificarem quais princfpios se lhes apli-
cam, qual filosofia Ihes serve de fundamento, tém adotado sua filosofia independentemente da
Biblia, diante da qual os fatos da Biblia devem curvar-se. Isso é totalmente antifiloséfico. Que a
teoria deve ser determinada pelos fatos, ¢ no os fatos pela teoria, € o principio fundamental de
todas as ciéncias e da teologia, Como a ciéncia natural foi um caos até que o principio de indugao
fosse admitido e fielmente concretizado, assim a teologia é uma mistura de especulagdes huma-
nas, de menos valor que uma palha, quando os homens se recusam a aplicar o mesmo principio ao
estudo da Palayra de Deus.
§ 6. As Escrituras Contém Todos os Fatos da Teologia
Por um lado, isso é perfeitamente consistente com a admissio de verdades intuitivas, tanto
intelectuais quanto morais, devido 4 nossa constituigéo como seres morais ¢ racionais; ¢, por
outro lado, com o poder controlador sobre nossas crenas exercido pelos ensinos interiores do
Espirito, ou, em outros termos, por nossa experiéncia religiosa, E isso por duas raz6es: Primei-
ra, toda verdade deve ser consistente, Deus nfo pode contradizer a si mesmo, Ele nao pode
forgar-nos, pela constituigao da natureza que ele préprio nos concedeu, a crer em uma coisa, €
em sua Palavra nos ordenar a crer em outra. E, segunda, todas as verdades ensinadas pela
constituigdo de nossa natureza, ou pela experiéncia religiosa, so reconhecidas e autenticadas
nas Escrituras. Isso é um salvo-conduto e um limite. Nio podemos presumir que esse ou aquele
principio seja intuitivamente verdadeiro, ou que essa ou aquela conclusaio possa ser demon
trada correta, ¢ transformé-los num padrdio ao qual a Biblia se conforme. Qual seja a verdadei-
ra auto-evidéncia, ela tem de ser provada como tal € ser sempre reconhecida na Biblia como
verdadeira. Todos os sistemas teolégicos sao fundados nas intuigdes, assim chamadas, e se
cada pessoa se sente livre para exaltar suas proprias intuigdes, como os homens costumam
denominar suas convicgdes fortes, devemos ter tantos tedlogos no mundo quantos pensadores
existem. A mesma observacdo se aplica a experiéncia religiosa, Nao existe forma de convic-
gio mais intima e irresistivel do que aquela que emana do ensino interior do Espirito, Toda a fé
salvifica repousa em seu testemunho ou demonstragdo (1Co 2.4). Os crentes possuem uma
ungao do Santo e conhecem a verdade, e aquilo que nao mente (ou a falsa doutrina) é da
verdade. Esse ensino interior produz uma convicgio que nenhum sofisma pode obscurecer,
nenhum argumento pode abalar. Ele se funda na consciéncia, e vocé pode igualmente argiiir
um homem a luz da convicgao de sua existéncia, bem como da sua confianga, de que o que Ihe
é ensinado sobre Deus é verdadeiro. E preciso ter em mente, contudo, dois pontos, Primeiro,
que esse ensino ou demonstragdo interior do Espirito se confina as verdades objetivamente
reveladas nas Escrituras. Ele é concedido, diz 0 Apéstolo, a fim de podermos conhecer as12 TEOLOGIA SISTEMATICA
coisas gratuitamente concedidas, ou seja, a nés reveladas por Deus em sua Palavra (1Co
2.10-16). Portanto, nao significa a revelagio de novas verdades, mas uma iluminag&o da
mente, para que ela apreenda a verdade, a exceléncia c a gloria das coisas ja reveladas. E,
segundo, essa experiéncia é descrita na Palavra de Deus. A Biblia nos fornece nao apenas os
fatos concernentes a Deus, a Cristo e a nés mesmos em nossa relagio com nosso Criador ¢
Redentor, mas também registra os efeitos intimos dessas verdades na mente dos crentes. De
modo que n&o podemos apelar para nossos préprios sentimentos ou nossas experiéncias
interiores como fundamento ou guia, a menos que possamos mostrar que eles concordam
com a experiéncia de homens santos conforme registrada nas Escrituras.
O Ensino do Espirito
Embora o ensino interior do Espirito, ou a experiéncia religiosa, naio substitua uma reve-
lacdio externa, nao seja parte da regra de fé, ele é, no obstante, um valioso guia em
determinar o que a regra de fé ensina. O fator distintivo do agostinianismo, como ensinado
pelo proprio Agostinho e pelos mais renomados tedlogos da Igreja Latina ao longo da Idade
Média, o qual foi formulado pelos reformadores, especialmente por Calvino e pelos doutores
de Genebra, é que ao ensino interior do Espirito é dado seu lugar proprio na determinagao de
nossa teologia. A pergunta nao é primeira e principalmente: “O que ¢ verdadeiro para 0
entendimento?”, mas “O que ¢ verdadeiro para 0 coragiio renovado?”. O esforgo nao é em
fazer asseveragées para harmonizar a Biblia com a razio especulativa, mas em sujeitar
nossa fragil raziio 4 mente de Deus como revelada em sua Palavra, ¢ por seu Espirito em
nossa vida intima. Poderia ser facil levar os homens & conclustio de que eles siio responsé-
veis apenas por seus atos voluntérios, se 0 apelo é feito exclusivamente ao entendimento,
Mas, se 0 apelo for feito 4 experiéncia interior do homem, especialmente de cada cristio,
ent&io chega-se 4 conclusao oposta. Somos convencidos da pecaminosidade das condigdes da
mente tanto quanto dos atos voluntérios, mesmo quando essas condigdes nao tém 0 efeito de
nossa prépria agéncia, nem estdo sujeitas ao poder da vontade. Temos consciéncia de estar
vendidos ao pecado; de ser seus escravos; de ser possuidos por ele como um poder ou lei,
imanente, inato e além de nosso controle. Tal é a doutrina da Biblia, ¢ tal ¢ 0 ensino de nossa
consciéncia religiosa quando sob a influéncia do Espirito de Deus, O verdadeiro método em
teologia requer que os fatos da experiéncia religiosa sejam aceitos como fatos; e, quando
devidamente autenticados pela Escritura, so permitides para interpretar as afirmacdes
doutrinais da Palavra de Deus. Tao legitimo e poderoso é esse ensino interior do Espirito,
que nao é fora do comum encontrar homens de posse de duas teologias ~ uma do intelecto e
outra do corag&o. Uma pode encontrar expressio nos credos ¢ sistemas doutrinais; a outra,
em suas oragdes e hinos, Seria seguro para alguém resolver ndo admitir em sua teologia
nada que nfo seja sustentado pelos escritos devocionais dos verdadeiros cristios de cada
denominagao. Seria facil elaborar a luz de tais escritos, recebidos e sancionados pelos
romanistas, luteranos, reformados e remonstrantes, um sistema de teologia paulina ou
agostiniana, como algo que satisfizesse a qualquer calvinista inteligente e devoto no mundo.
O verdadeiro método de teologia é, pois, 0 indutivo, o qual presume que a Biblia contém todos
os fatos ou verdades que formam o contetido da teologia, justamente como os fatos da natureza
formam o conteudo das ciéncias naturais. Presume-se também que a telagiio dos fatos biblicos uns