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A: sempre cp lugae de destaque nos trabalhos de Lévi-Strauss, ndo ape as como subsidio & compreensio de uma sociedade ou de uma cultura, mas como um objeto de interesse proprio. Este é0 livre ‘em que ela 6 de mode mais exemplar, ratada como tal pelo antropélogo. Nele, como numa conversa franca, Levi crauss revive ¢ aprofunda algumas de suas maiores experincias aristicas: o romance de Proust, a pintura de Poussin, a miisica de Rameau e Wagner, sem ‘esquecer a mitologia dos indigenas americanos. Enganam-se potém os que esperam, a partir disso, um discurso pouco articulado, comandado pelos ‘caprichos pessoais do autor, Lévi-Strauss con:inua sendo um dos mais severos criticos dessa linguagem comumente aplicada & arte. O leicor notaré que, quando interroga trés proce- dimentos estéticos basicos — ollar,escutat, lt —¢ exami- ‘na suas variantes e sua posstvel esteutura comum, 0 autor guarda muito, certamente, do método que o celebrizou como tum dos maiores antropélogos de nosso tempo. a jill 91 Ti {| i } (Os leitores de Claude Lévi-Strauss conhecem seu inveresse profundo pela arte, xja ca 2 miisica das cangées populares ou da peta de Wagner, a pincura das scares rituais indigenas ou de realistao ‘ssico europeu, a narrativa dos mitos >rimitivos ou do comance de Proust Porém, é preciso ainda enfaizar, para além 4a inclinagio natural do antropslogo (a de interpretar a privicaartstica no interior da experiéncia social, um outro modo mais original de sua andlise, cape de relacionae as artes como pensamento, assim como as diversas ates encte si, buscando aelas uma continuidade ou mesmo fundamento, [esse sentido, ese veo reserva boas surpresas até 20 leitor habieuado a exploragio estéicarealizada por Lévi-Serauss. Ble restemunha, mais do que © interesse, a importincia da arte como alimento da reflexia, Sob o disfarce de uma linguagem modesta e despretensiosa, cde uma dicsio leve es vezes irbni, aparentemente guiada pela livre analogia, faxeose muitas observagées penctrantes no apenas sobre obras ¢ arcstas,isolados ‘ou associadas, mas sobretude sobre a percepcio e o entendimento da arte, a marureza da cor, do som e da peépria palavra Com notivel economia de meios, Lévi-Strauss se revela um fino analista dla pincura de Poussin, um atenrissimo couvince de Rameau e da tadisio operstica (ele que insiste em se declarar apenas um “ouvinte mediano”, cujo repertério musical se formou sobretudo 2 partir do ridio), «eainda um perspicae leitar de poesia, 40 Tangar novas luzes sobre um conhecido soneco de Rimbaud, "Vogais”, na linha dos smodemos estudos de poétiea de Roman Jakobson, Como se no bastasse, ele resgata um esquecido fildsofo e musicélogo ddo século XVII, Paul-Michel-Guy- se Chahanan. eniasteorias sobre a relacio 'RESTIMO. Zugho[pevoLucko OLHAR ESCUTARLER CLAUDE LEVI-STRAUSS OLHAR ESCUTAR LER ‘BEATRIZ PERRONE-MOISES omit. aa Copy “Titoorsina: Regater Ecoter Lire capa: Meroe Buon 9830 Librairie Plon INDICE soe deta be Lo Buh Boo leo de Nook Pushin: Denis Dire, led Lni-Michel Van Lowrestatueta de mde de ko Sious 1900) 6 aria de Ramet waracap revur aaa ore americana seul XIX) Preparago: Thal Ncoltide Camargo Revises Carlos Aiberts Inada Ana Pada Catan Os Chae LS Rie norte SP Cnn Othando Poussin Escutando Rameau . L Lendo Diderot .. » eye As palavras ea misiea... Ss Os sonse as cores Othares sobre os objetos Obrascitadas Indice onoméstico .. as Aen piin?Ante Pk esc wo a 936 tow an 72 (04532.002 — Sto Paulo —sp Aafosies ‘Telefone: (011) 866-0801 Fae (011) 866.0814 Lbollie Todos sdiios dost tio reserva 33 st 7 19 141 149 OLHANDO POUSSIN Proust compoe a sonata de Vinteuil e sua “pequena frase” a partir de impresses Sentidas ao escutar Schubert, Wagner, Franck, Saint- Saéns, Fauré. Quando descreve a pintura de Elstir, nunca se sabe se pensa em Manet, em Monet ou ainda em Fatinir. Mesma incerteza temos quanto 2 identidade dos escritores reunidos na personagem de Bergotte, Esse sincretismo estranho a época vert acompanhado de outro, queconvocae confunde no momento presente acontecimentos ou inci- lentes de datas diferentes, Por suas afirmagées ¢ reflexdes, onarrador parece ter na mesma pagina ora oito, ora doze, ora dezoito anos. Como acontece quando da estada com @ avé em Balbec: “Sendo nossa vida to pouco cronolégica”. “Muito boa é a pagina de Jean-Louis Cutts a esse respeito: [Ni hii tempo perdido nem tempo recuperado em La recherche [A la recherche di temps perdu (Em busca do tenipo perdido)}, hi apenas um, tempo sem passado e sem fturo, que & 0 tempo priprio da criagdo artis- ‘ica, Por issoacronologia em La recherche é to fluid, wo iludivel, tio inapreensfvel, oraextensfvel, oraem curto-circuito, oracireular, jamais linear e, & claro, jamais datada [| Perguntumo-nos se as eriangas que brincam nas Champs-Elysées ainda estio m idade do bergo ou jina do primeiro cigarro clandestino, ‘Vista desse Angulo, a meméria involuntiria nfo se opde simples- mente A meméria consciente, aquela que in‘orma sem fazer reviver, Suas intengdes na trama do relato compensam, reequilibram um pro- cedimento de composi¢Zo que altera sistematicamente o curso dos aacontecimentos e stia ordem numa duragao, que Proust, na verdade, trata com desenvoltura: “Alguns queriam que o romance Fosse uma espécie de destile cinematogrifico das coisas. Essa concepeiio era absurda, Nada se afasta tanto daquilo que percebemos na realidade quanto uma tal visio cinematografica”. Asrarbes desse parti pris nao sa0 apenas, pelo menos nao essen- cialmente, de ordem filosética ou estética. Sao indissocidveis de uma técnica. La recherche € feita de pedagos escritos em cireunstancias & Epocas diferentes. Trata-se, para 0 autor, de disp6-los numa ordem sa- tisfat6ria, quero dizer, conforme ao conceito que ele possui da veraci- dade, a0 menos no inicio, mas cada vez mais dificil de respeitar, & ‘medida que a composicio avanga, Em certas ocasides € preciso traba- Ihar com “restos”, ¢ os disparates tornam-se mais visiveis. No final do Temps retrouvé (Tempo recuperado], Proust compara seu trabalho a0 de uma costureira que monta um vestido com pegas jé recortadas, que {4 possuem forma; ou, se 0 vestido estiver muito usado, 0 refaz. Do mesmo modo, em seu livro ele ajusta e cola fragmentos uns aos outros “para recriara realidade, costurando, no movimento de ombrosde um, ‘6 movimento da nuca feito por outro”, e construir uma tinica sonata, ‘uma nica igreja, uma tinica jovem, com impressdes recebidas de vias, Essa técnica de colagens ¢ montagens faz da obra o resultado de tuma dupla articulagdo, Nio utilizo a expresso segundo seu emprego lingiifstico. A extensio parece-me, contudo, legitima pelo fato de as unidades de primeira orem ja serem obras literdrias, combinadas & dispostas para produzir uma obra literdria de um nivel mais elevado. Esse trabalho difere do que resulta de projetos, de esbogos refundidos na redagao definitiva, em vez de, no estado iltimo da obra, as pegas do mosaico permanecerem reconheciveis e manterem sua individuali- dade, 10 I ‘© mesmo existe também em pintura, Foi Meyer Schapiro 0 primeiro, creio, a chamar a atengio para as diferencas cle escala fla- _grantes entre as personagens da Grande jatte. A raz disso nio seria Seurat ter concebido suas figuras, ou conjun:0s de figuras, comocon- juntos independentes, tendo-os entdo dispos:0 uns em relagio aos ou- {ros (provavelmente apés tentativas sucessivas, cada qual consttuin- do uma experiéncia sobre a obra)? Dafa “magia”, como diria Diderot, ‘muito particular da Grande jatte, que, num local piblico destinado & caminhada, justapde personagens ou grupos de personagens iméveis emseu isolamento e que nem mesmo parecem conscientes da presenga luns dos outros; situando-se entre “essas coisas mudas” que, segundo Delacroix, Poussin dizia serem caracterfsticasta. Dafa extraordinaria atmosfera de mistério que impregna o quadro. Ela teria desagradado a Diderot: Vemos na [escreve] composictio 0 pitoresco ¢ 0 expressivo, Pouca ‘me importa que 0 artista tenha disposto sas figuras para os efeitos mais picantes de luz, se 0 conjunto niio me fala alma; se esses per sonagens af so como individuos que se ignoram num passeio pl blico[..) Descrigto antecipada, dir-s exatamente na Grande jatte.. Esse procedimento de composigdo ja estava presente em Hoku- sai, Vatias paginas das Cem vistas do monte Fuji atestam que, como Proust com seus papeizinhos, ele reuilizou, justapondo-os, detalhes, fragmentos de paisagem provavelmente desenhiados in foco, anotados ‘rejeigdo definitiva do que Seurat fez u lem seus earns, ¢ posteriormente transferidos para a composigiio sem levar em conta as diferengas de escala. Poussin, principalmente, ilustra 0 procedimento da dupa articu- lagio, de modo completamente diverso, é verdade, mas que explica suas figuras “mineralizadas”, um pouco como as da Grasidejatte (seu _génio, diz Philippe de Champaigne, “tinhia muita abertura para o S61 do”); ¢ explica igualmente que a seu respeito Diderot tenha podido falar da “ingenuidade” das figuras, “isto é [que so] perfeitamente & puramente o que devem ser”; Delacroix, de um primitivismoem que “a pureza da expressio niio € comprometida por nenhuma técnica de cexecugao”; enfim, que “sia independéncia absoluta de qualquer con- vengio” faz dele “um inovador da espécie mais rara” Othando Poussin, tem-se constantemente a impressao de que ele reinventa a pintura ou, pelo menos, que, para aquém do século XV} que © viu nascer, ele estende a mao para os mestres do Quattrocento, em primeiro lugar Mantegna (quando, no liceu, na sixidme — época em «que men pai me levava freqjientemente ao Louvre —, tive como tema de redacio a descri¢io de meu quadro preferido, escolhi o Parnasse). E ainda mais longe, pois a imaginagao de Poussin apresenta, as, vezes, essa ingenuidade, sem divida sublimada por seu g6nio, cujo saborabastardado Rimband buscavano final do século passadona pin- tura primitiva, Assim, em Vénus montrant ses armes & Enée [Venus ‘mostrando suas armas a Enéias], do museu de Rouen, essa deusa, que futua a0 alcance da miio nos ares, parece ter sido concebidae executa- «da parte e, em seguida, transposta para tela tal equal em toda.a sim- plicidade. Ou ainda, em Apollon amoureux de Daphné [Apolo ena- morado de Dafne}, que est no Louvre, a drfade confortavelmente instalada (causa espanto) nos galhos de um carvalho minsculo como se fosse um canapé. E também em Orion aveugle [Orion cegol, a pos- tura burguesa de Diana recostada em sua nuvem, como se estivesse ‘numa sala, apoiada nam mantel de chaminé, Talvez Delacroix pensasse em coisas desse tipo quando criticava “uma secura extrema [das] figuras sem ligago umas com as outras € [que] parecem recortadas” —o que correspond, no espago, ao que se observano tempo em Proust, Defeitos aos olhos de Delacroix, equeele relaciona, certamente com razo, 20 fato de os quatiros de Poussin re- velarem o que eu chamei de uma dupla articulagao: Poussin jamais buscou [a perfeigdo]e no a desejava: suas figuras so plantadas umas ao lado das outras como estétuas; provém isso do habito R «quetinha. ao que dizem, de fazer pequenas maquetes paraobter sombras cexatas? [..] pequenas maquetes iluminadas pela lz do dia do atelié Em 1721, Antoine Coypel lamentava igualmente que faltasse 20 contorno das figuras de Poussin “um gosto mais natural, menos seco e maisconfortivel, de que os tecidos mothados e manequins cestamente co afastaram”. Ingres, mais arguto, nota per sua vez: “Fabricar uma pequena cimara a Poussin é indispensiivel para os efeitos”, (Nas afirmagdes atribuidas a Poussir, percebe-se um paralelo entre linguagem articulada ea pintura, esbago da eorialingiifsticada duplaarticulagio: “Falando da pintura, diz [..] que as 24 letras do alfa- beto servem pata formarnossas palavras e esprimir nossos pensamen- tos, assim como os lineamentos do corpo humano para exprimir as diversas paixdes da alma, para fazer aparecer no exterior o que se tem ‘no espitito”.) Sabe-se que Poussin gostava de moldarem cera; no inicio de sua carreira fazia-o como os antigos e para reproduzir em baixo-relevo partes de quadros dos grandes mestres. Vérias testemunhas contam que, antes de iniciar um quadro, Poussin moldava estatuctas de cera Dispunha-as sobre uma prancha nas atitudes correspondentes a cena que imaginava, vestia-as com papel dimido ou um tafeté fino e faziaas por meio de um pequeno bastdo ponudo. Com essa maquete & a, ele comegava a pintar. Furos nas paredes da caixa que encerrava © dispositivo the permitiam ilumins-1o por tris ou pelas laterais, con- trolar na dianteira a luz. e verificar as sombras produzidas. Nao resta diividade que ele também buscavacolocaredeslocaras estatuetas para definir a composicao da cena cujo modelo reduzido ele assim cons- tra, Seus predecessores ja conheciam 0 procedimento, Varios 0 ti- ‘nham efetivamente praticado, mas na época de Poussin, diz Anthony Blunt, tinha eajdo em desuso, porque requeria muito tempo. E signi ficativo que Poussin o tenha retomado e aplicado com a miniiciateste- munhada pelas fontes a que recortemos. En nenhum pintor, em todo caso, percebe-se to claramente 0 emprego sistemético da maquete tridimensional, sua presenca por detras do quadro acabado. Suas figu- ras parecem menos pintadas sobre a superficie da tela do que esculpi- das-em sua improvavel espessura, Um método de composigao assimiladlo tio perfeitamente que se torna praticamente um modo de pensar. Dever-se a ele também as B paisagens urbanas ou rurais meticulosamente pensadlas, em que © Espectador é convidado a mergulfar € nas quais pode escother entre Varios itinerdrios dispontveis: “Parece que se caminha por todos os espayos que ele representa’, diz Félibien. Um devaneio que protons, snumta duragio correspondeate aesse protongamento do espa, .con- templagfo dos quadros de Poussin, A tridimensionalidade reconhec dda nas coisas contrasta com a apresentacio tantas vezes bidimensio- nal das personagens (dispostas, dizfamos, como num baixo-relevo), Em relagio os individuos,ela instalao mundo em posigiodominante, ‘Talvez seja significativo que a era de Poussin antevipe por poweo o aparecimento dos planos em relevo que exercem sobre 0 espectador umefeito magico andlogo. Uma das razSes da originalidade, da grandeza monumental que, «em Poussin, impressionava Delacroix parece estar ligada, portanto, 20 fato de seus quaclros serem obras de segundo grau, sendo o primeiro aquele que, com meios mais simples e de natureza divers, a maquete realizava jé como obraacabada: estigioem que aarte jéexplorou todos fos recursos de uma bricolagem & qual Poussin talvez.deva, segundo as palavras de Félibien, “a capacidade de distribuirem pequenos espagos grandes e engenhosas disposigdes”. ‘Certamente nada é mais estranho aos impulsos que movimentam acriagio romfntica, Dat as tergiversagées de Delacroix, que, apesar de sua admiragio por Poussin, chega, as vezes, a preferir Le Sueur: Poussin perde muito ao lado de Le Sueur” que tem mais consideracao ipela maleabilidade, pela dogura do efeitoe pelo movimento da com- posigio”,o que The permite obter “uma unidade, una fusio” que fal- tama Poussin, SJulgamento desconeertante, mas nio sem analogia com a prefe- réncia que, pelas mesmas raz6es, iranspostas da pintura paraa musica, ‘Delacroix concede também, de modo intermitente, a Cimarosa, “mais dramitico” do que Mozart, Ele elogia em Cimarosa “a proporeio, 2 alegria, a terra e, cima de tudo, (... aelegancia incompardvel [..J, nao [se trata de] mais perfeiclo, mas da perfeigo em si"; perfeigo cessa que nega a Mozart, assim como a nega a Poussin. Seria portanto mais de modo negativo, por ter rompido com a tradigio, que Poussin prepararia o caminho paraas escolas modernas, as que buscam “na prépria origem os efeitos que & pintura é dado pro- duzir sobre a imaginagao”, Deve-se compreender que Le Sueur (nes Is sa passagem mais associado a Poussin do que oposto a ele) teria ido inaisadiante? E dificil evitara impressdo de que se Poussin Le Sucur fembram a Delacroix “a ingenuidade das escolas primitivas de Flan- diese da Itilia”, para ele, de certo modo, Poussin é 0 “primitive” de Le Sueur, iil Num estudo dedicado a Les bergers d'Arcadie (Os pastores da Arcédia], Panofsky faz uma tripla demonstragao: |. A formula Er in Arcadia ego aparece pela primeira vez num quaddro de Guercino, pintado entre 1621 e 1623, pouco antes da chega- F > v © oe 1 7 Eee say safe ae at Sy eee a 2 a are army Ysera JT ANGI ea ST et ed 2 =~ =a — a chumea har = = Bae “ = oo on ot [SS f Sea aemipbanayant Poon ETE ESE nyranay ony +H averinbyney 2 Spe Syne pay oe aemunb ymin amb ‘a8 rune grey ms | ey) 5 § 8 a 8 § 3 gen IAT “vnvagiuay Pap aap z +a a Al 4 ~ sy eaqayotboquiey Bey gn agar regen erp abn ex ip ony rod tepedl te \ wine [A 40907 sorry Quando Diderot exige do artista “duas qualidades essenciais [-1, a moral ¢ a perspectiva”, raciocina zcerca da pintura como os amadores de séu tempo raciocinavam sobre misica: “Em toda imi- tagio da natureza, hd técnicae moral”, e, maisadiante: “Hs duas espé- cies de entusiasmo, 0 da alma e o do oficic”. Hoje em dia no damos ‘mais igual atenga0 & forma e ao assunto. Interessa-nos menos o que 0 uadro representa do que como o pintor cptou por representat uma cena, cuja intengdo figurativa passa para o segundo plano, Oassunto, agora em si indiferente, 66 precisa manter-se atado ao real, condigio necesséria para que a pintura ndo se perca totalmente no nattrégio da arte no figurativa. ‘Mesmo na auséncia de interesse moral,o interesse intelectual per- ‘manece intato. (O interesse moral ausente possui, aids, uma influéneia negativa; a pintura religiosa, por mais sublime que seja, emociona ‘menos o descrente do que as obras profanas do mesmo artista, Pois se 0 deserente se colocasse tal questo, seria incapaz.de conceder a primeira um interesse moral que nao Ihe suscitasse representagao alguma, Mes- mo sobre aqueles que se consideram alheios ao interesse moral, este exerce ainda uma ago, mas, por assim dize, ao inverso.) Longe de mim, portanto, a idéia de suhestimar, 20 modo dos for- tmalistas, a importancia capital das andlises iconogrificas e iconolégi- cas de Panofsky; ou tampouco, para citar apenas um exemplo, 0 inte= resse do deciframento da Primavera de Boticelli realizado por Wind, Eu seria tentado até alevé-lo mais adiante, notando que Castidade (uma das trés Gragas) nao esta simplesmente de olhos voltados para Mer~ ciirio, Prestes a ser atingida pela flecha de Cupido (Wind foi o primeiro 53 1 perceber isso), ela iré apaixonar-se por ele, que, ocupado com asstin- tos celestes, nao Ihe da atenco. Resultari dai um amor infeliz ou um amor compartilhado mas pouco impetuoso? Em ambos os casos, relago amorosa representada & esquerda seria o simétrico e o inverso daqueesté representada a direita, pelo par Zéfiro-Cléris, em queseafir- ‘ma a paixdo fisica. E, de um casal ao outro, a polaridade ativa ou pas- siva dos sexos também se inverte Em qualquer hipstese, o assunto apresenta interesse intelectual. Incumbe oartistade um problema que the cabe resolver, impde-Ihe um conjunto de limitagSes de ordem semantica (“tratar do tema”). limitagSes juntam-se &s que so inérentes & busca de uma harmonia formal, uma disposigao de linhas e cores belas em si sobre a superficie a tela. A obra atinge, com esse encontro, um grau de organizagiio superior. O que tem valor de termo num sistema assume valor de fungao no outro vice-versa. No Essaisur!"origine des langues Ensaio sobrea origetn das lin- guas], Rousseau esboga uma teoria da pintura, a propésito de suas idéias acerca da mtisica e como que para ilustré-las. Ele também as pereebe através de um cristal birrefringente: para.apintura, de wm lado, co desenho, ¢ de outro, acor, e paraa miisica, a melodia, de um lado, ¢ 2 harmonia, de outro, Como bem diz Starobinski, “Rousseau postula uma relagio de homologia entre as oposigGes melodia/harmonia € desenho/cor”. Contudo, pinturae miisica diferem: “Cada cor €absolu- ta, independente, ao paso que cada som é parangs apenas relativoe s6 se distingue por comparagdo”. (Mas os sons existem independente- mente, como as cores, quando 0s definimos unicamente pelo néimero de vibragbes. E a pintura também subordina as propriedades inteinse- cas das cores as relacSes que o artista estabelece entre elas. Conforme se refira & pintura ou a misica, Rousseau ora considera as coisas, ora as relagdes entre as coisas.) ‘Aprofundando-se a comparagao entre as duas artes, poder-se-ia rer que, em certos momentos, ele pressente e condena a idéia de uma pintura nfo figurativa: Suponhamos um pafs onde néo se tivesse nenfumaidéia do desenho, ‘mas no qual muitas pessoas que passassem suas vidascombinando,mis- turando e nuanganco as cores pensariam distinguir-se em pintur, [li- itando-se] esse belo simples, que na verdade no exprime nada, mas «que faz brilhar belas nuances, grandes manchas bem coloridas, ongas radagbes de tons sem nenhurn trac. 54 Permanecer-se-ia no nivel da sensacdio pura on entio, “a forga de pro- gresso, chegar-se-ia & experiéncia do prisma” e & doutrina de que a arte de pintar consiste inteiramente no conhecimento e utilizagzio das “relagdes exatas que existem na natureza”. O apélogo é surpreen- dente, pois, de forma caricatural, prefigura o impasse em que se viu bloqueado o primeito impressionismo ¢ omeio de sair dele, inventa- do por Seurat, ‘Todo 0 raciocinio parece, contudo, inspirar-se na obra do abade Batteux, Les beaus-arts réduits &-un méne principe [As belas-artes reduzidas a um tinico prinefpio}, publicads em 1746 (e que Diderot, a pretexto de combater, pilhou descaradamente). Cito: ‘Toda miisica deve ter um sentido [..]. © que diam de um pintor que se contentasse em langar sobre alela tragosarrojados e massas de cores vibrantes, sem nenhiuma semelhanga.com algum objeto conhecide? sso se aplica naturalmente & musica .... Por mais calculada em todos 0s seus ons, ormais geométricaem seus aaordes, se ocoresse de, apesar detodasessasqualidades, ela no possuirsigificadoalgumn,s6 poder ‘mos compar-la a um prisma, ue aprese_ta o mais belo dos cotoridos, sem constituir um quadro. Seria uma especie de crave cromiico, que apresentaria cores ¢ passagens, talvez para diveti 0s olhos, ecerta- mente entediar oespiito Mais original num outro texto, Rousseau comega com conside- ragbes bastante ousadas sobre 0 papel da convengio na percepgaio estética: “Entra algode arbitrério mesmo na imitacio”. O que também vale para a pintura: “Se o sentido do espectedornao se deixa iludire se limita a ver 0 quadro tal como eleé, equivocar-se-4 acerca de todas as relagSes ¢ ira achi-las todas falsas”. No tom de um quadro, na combi- nagao das cores, em certas partes do desento, “hé talvez mais de arbi- trrio do que se pensa,¢ [...] aimitagdo pode inclusive conter regras de convengao”. ‘Segue-se este trecho surpreendente: Porqueos pintores nfo ousamempreende- imitagbes novas, ques6 tem contra elas a prOpria novidade, e parecem de resto completamente da algada da arte? Para eles, porexemplo, éum jogo fazer parecer em rele- ‘yo uma superficie plana; por que entZio neahum deles jamais tentou dar aaparéncia de uma superficie plana a um relevo? Se fazemumteto pare= cer uma absbada, por que ndo fazem uma abSbadla parecer umn tet0? AS sombras, dizemeles, mudam deaparénciaem pontosde vistadiferentes; tal no ocorre com as superficie planas. Aumentemos a dficuldade, € 3S pegamos para um pintor pintare colorir uma estitua de modo a fazé-1a parecer lisa, da mesma cor, sem nenhum desenho, em umn tnieoaspecto ede um tinico porto de vista, Por antecipagao, Rousseau parece revelar aqui um dos arcanos do ccubismo, Nao sei se esses pintores alguma vez. coloriram estatuas. Mas, quando colocarm uma estdtua em seus quadros, destroem-Ihe © volume, representain-na plana, suprimem as sombras ou as transfor- mam em tons. Na pintura, Rousseau distingue, de um lado, a satisfagdo senso rial proporcionada pelas cores, cujo valoré puramentedecorativo, ede ‘outro, conhecimento de suas leis fisicas, que nada acrescenta & art. A mesma dualidade se verifica em misica, quando reduzida & harmo- nia: 56 hd nela a escolha entre 0 prazer sensivel dos tons ¢ a aplicagtio das leis que os geram, numa miisica erudita que ndo dé prazer algum. ‘Tratando de um outro aspecto da pintura e da miisica, dodesenho, de um lado, e da melodia, de outro, Rousseau reconhece-Ihes, a0 con- trario, uma fungao descritiva: “E apenas a imitagao que as eleva a essa categoria [das belas-artes}”. Essa redugao do desenho & anedota afas- ta-nos da concepeao que Ingres teria do desenho, que é paraele “a pro- bidade da arte”, o meio pelo qual a obra atinge um rigor de composigzo um equiltbrio interno. Mas Rousseau, como Diderot, desmembra as belas-artes em técnica e representacfo, sem ver que elas se encontrar. inteiramente no espago entre as duas. 56 | | XI Emeadaum de seus quadros, Poussin conta uma histéria, Os con- temporfineos admiravam acima de tudo 0 modo como ele sabia multi- plicar as personagens para methor detalhita. Nada menos anedstico, contudo, pois, para falar a linguagem dos lingilistas, a orgunizagio de ‘um@uadro de Poussin é paradigmtica, néosintagmitica. Arespeitode La manne (O mand}, ele escreve: “Encontrei certa distribuigio [...]e certas atitudes naturais, que permitem ver no povo judeu a misériae a fome a que estava reduzido, ¢ também o jibilo c a alegria em que se cencontra; a admiragio de que € tomado, o respeito e a reveréncia que dedica a0 legislador”. Poussin retne assim na tela os dados do proble- ma; ndio faz deles incidentes que se suceden no tempo. Em Pyrame ¢ Thysbée, que se encontra em Frankfurt (cena de tempestade),o paintano de aguas paradas parece desmentic a agitagtio das drvores vergadas pelo vento. Mas, assim como Poussin diz ter colocado em seu quadro figuras animadas sor movimentos diversos, que “tepresentam seu personagem depend rdo do tempo que faz”, ele refine aspectos da tempestade percebiclos de modos diversos: tempes- {ade enfurecida e calmaria angustiante que precede a primeira trovea- da quando 0 céu comeca a escurever. Esse modo, tipico de Poussin, de Justapor os posstveis (que jé pode ser notado em La mort de Germani- ‘cus) Se encontra nas antipodas de uma narrativa. (0 mesmo ocorre em Le jugement de Salomon [O julgamento de Salomao], do Louvre, Nada na historia justifica (0 relato biblico 1 Reis, 3:16-27 certamente no) que a criangamorta seja apresentada 20 reijcla esté morta, todos esto de acordo, assunto resolvido, Mas, para Poussin, importa que todos os elementos da situago estejam simulta- a7 neamente presentes, mesmo que nao coincidam no tempo. Como na estatudria medieval, em que cada santo se distingue por seu atributo dis- tintivo, Poussin representa a mae ma conforme a sua definigZo, que é a dle verdadeira mae de uma crianga morta, Esta iltimaest4, assim, ali, nos bragos da mae (0 que permite a Poussin compor uma maravilhosa bat- monia de cores com a te bitiosa da mulher, o pequeno cadaver vido, 0 vermelho sombrio e o verde-oliva das vestes, que teria sido impossivel se ele tivesse tido de repartiresses tons entre as duas mulheres). A regra dle unidade do tempo nao deve constituir um obstaculo para a busca da harmonia pictérica. A propésito do Frappement du rocher, Poussin reivindica essa liberdade do pintor “suficientemente bem instrufdo do que é permitido [..] nas coisas que se quer tepresentar, as quais podem ser tomadas e consideradas como ainda so ou como devern ser” Os contemporiineos de Poussin tampouco ignoravam 0 proble- ‘ma, mas, como ele, nio permitiam que isso os detivesse. Quando Le Brun fez umaconferéncia sobre La manne diante da Academia Real de Pintura ¢ elogion sem reservas 0 quadro, alguém Ihe objetou que Poussin nao deveria ter representado os israelitas numa miséria tio extrema, “jé que, quando 0 mand caiu no deserto, 0 povo jé tinha sido socorrido pelas codornas”. Ao que Le Brun retrucou que a pintura no como a hist6ria, “porque o pintor s6 dispde de um instante para pin- taro que quer figurar; para representar o que ocorreu naquele momen- to, vezes & necessdirio que ele retina diversos incidentes que o pre- cederam, a fim de tornar compreensivel o tema que expoe”. O historiador, diz por sua vez. Félibien, “representa sucessivamente a aio que deseja”, a0 passo que o pintor deve “reunir diversos aconte- cimentos ocorridos em diversos momentos”. Nessa matéria assim como em outras, 0 século xvii As vezes se ‘mostra retrgrado (talvez,fosse necessério que a Academia se entije- cesse © se ossificasse, para que o espirito empirista ¢ racionalista pudesse vingar. Seja como for, Diderot nega so pintor alatitude que lie concediam Poussin, Le Brun ¢ Félibien: “Entre esses movimentos [representados num quadro}, se eu notarum s6 que seja do instante que precede ou do instante seguinte, alei da unidade tera sido infringida’” Diderot retoma essa questo no verbete “Enciclopédia” e, para superar a dficuldade, esboga uma teoria interessante. J4 que “a pintu- +a, sendo permanente, nao passa de um estado momentineo”, ela s6 pode apresentar quadros descontinuos da natureza. “Multiplicai 0 quanto quiserdes, sempre haverd interrupgio.” A pintura remete, por- se ony tanto, aum problema filos6fico bastante amplo, com oqualateoriados niimeros também se vé confrontada: “Corso medir a quamtidade con- ‘inva por uma quantidade disereta?”. Ora, prossegue Diderot, a linguagemilustra uma situagao andlo- 3, pois hd “nas expresses nuances sutis que permanecem necessa- riamente indeterminadas”; e, desse ponto de vista, o enciclopedisia é barrado,em seu projeto de transmitir 0 coahecimento, “pela impossi- bilidade de tornar toda a lingua inteligtvel’ Mas, ao contrério do que ocorre na pintura, a linguagem dispde de tum meio-termo: menos numerosos do que as palavras que os contém, os radicais revelam uma continuidade entre pulavras isoladas la mes. ma natureza, representam em relagiio a elas estados intermedirios analogos aos que a pintura, por sua vez, nao pode representa, A invariincia seria entdo o que perniltiia superar a antinomia entre ocontinug eo descontinuo, Nessa tentativade aproximagio entre pintura. a linguagem, Diderot se detém, contudo, a meio caminko, Esperar-se-ia que ele se indagasse acerca da nogo de invarianciaapli- ‘cada ao problema especifico da pintura, Emve7 disso, ele parece admic tirque os quadros de Greuze ja fornecem a solugiio: “F acoisa tal como deve terocorrido”, exclama no Saléo de 1759, diante de L'accordée de village. Mas em lugar algum ele parece ter buscado, no estilo ou nos principios de composi¢ao de Greuze, aquilo em que consiste essa invariincia. Na verdade, o entusiasmo de Diderot por Greuze provém deoutras consideragées. Creio-o comparavel ao que foi sentide na época, inclusive pelos apreciadores da melhor pintura (Diderot no admirava Chardin?), dante da invengio do cinema, Greuze tam>ém inventou algo: repre~ sentar 0 instante por meios tio realistas e vio detalhados que propi ciam, tlvez devido ao tempo necessério para inspecioné-tos,aisio da duracio. Richardson jo tinhafeito em literatura, bastava transpor: (Omundo.em que vivemos ¢ o lugarda cens; ofundo de seu drama é ver dadciro; seus personagens iémtoda. realidad posstvel, seus caracteres sto tirados do seio da sociedade: seus incidentes estio nos costumes de todas as nagdes civilizadas[..] Sem essa arte, minha alma curvando-se com dificuldades a vieses quiméricos, a ilusio seria apenas momen- inca, ea impressio, fraca e passageira. Oque Diderot admirava, portanto, em Richardson e em Greuzeé exatamente aquilo que mais tarde seria pedido & arte cinematogrifica: 59 (05 flgores das paixes multas vezes impressionaram vossos ouvidos; ‘masesiaisbem longe de conhecer tudo 0 que hi de secreto em seusacen- tos eemsuas expressbes, Nio hiium 6 deles que nto possua sua prdpria Fisionomia; codas essasfisionomias se sucedem num rosto, sem que ele deixe de sero mesmo: ea arte do grande poeta e do grande pintor éa de mostrar-nos uma cizcunstncia Fugidia que se nos ina escapade, io se poderia pensar numa descrigio methor do que esperamos da srande tela fesse 0 lado “western” avant la fetie em Joseph Veet iva Diderot: "Com muita arte, mesclar 0 movimento 0 12- aluze as trevas,osiléncio eo ruido”. Ahistéria da arte ds vezes toca acordeom. Com suas “necessdrias delongas’, Richardson inicilmente alargou a iteratura que o cinema tantineo de Greuze viria a comprimir em seus quadros (cuja descrigo, no entanto era demorada; ver os Sales). 16.0 cinema, que ‘opera por meio de imagens, como a pintua,iréesticé-las, multipli- cando-asina durago, assim como a literatura faz.com as palavras 60 enn i XN No inicio do verbete “Belo”, publicado em 1751, no primeiro vo- lume da Encyclopédie, Diderot anuncia que ira finalmente resolver a questo da natireza do Belo, diante da qual fracassaram todos os seus predecessores, Na verdade, ele retoma umaidéia filos6fica jé bastante antiga, & qual as obras tedricas de Rameau acrescentaram o brilho da demonstragao no tocante & misica: 0 Beloconsiste na percepsao das relagdes. Mas quais relagdes? Preocupado em nio separar 0 abstrato do concreto, a forma do contetido, aidéia da coisa, Diderot vé na nogiio de relacéo uma abstra- «fo extrafda, pelo entendimento, de uma experiéncia t2o comum que “aio existe nenhuma nogao, a ndo ser talvez a de existéncia, que tenha sido capaz.de tomnar-se tio familiar a0s homens”. Mas se antogao de re- Jago “no possui outra origem que nao aexisténcia” e se, por con- seguinte, tudo na natureza se presta & percepgao de relagdes, dentre todas estas relagdes, quais fundam a nogao do Belo? Em que se dis- tinguem das outras? Diderot procurou, em duas ocasiGes, responder a essas questoes Na Lettre sur les sourds et muets (Carta sobre os surdos ¢ mudos), cot tempordnea do verbete “Belo”, com sua tecria dos “hierSglifos", que Feconhece & poesia o poder de ao mesmo tempo dizer e representa as, coisas: “Ao mesmo tempo que o entendimento as percebe, a imagi- nagio as vé e 0 ouvido as ouve”. O discurso poético aparece, assim, ‘como “uma trama de hierglifos amontoados uns sobre os outros”. A teoria é por ele ilustrada com diversos exemplos extraidos da poesia antiga € moderna, que ele analisa dos ngulos fonético e prosédico. ‘Uma andlise estrutural que, hoje em dia, fosse aplicada is mesmes 61 obras, reteria de bom grado, numaprimeiraetapa,a maior partede suas observagdes, Esse modo de conceber a poesia & bastante moderno, mas seria préprio de Diderot? Notou-se que ja se encontra em Batteux, mas isso no & tudo. A Lettre sur les sourds et muets é, do comeco ao fim, wma polémica acirrada contra Batteux. Ora, quando Diderot afirma ter der- rotado 0 adversério ao demonstrar “que a harmonia sitabica e a har- ‘monia periddica engendravam uma espécie de hier6glifo especifico da poesia’, apenas retoma a teoria das tés harmonias de Batteux, por este apresentadas na mesma ordem, com uma tnica diferenga, a de que a terceira, que é prépria da poesia, é chamada de “artificial” por ume de “acidental” pelo outro. i re i permedvel as idinsleis,que rentementeas considera suas. Com uma boa-fé desermante, censura em seguida os ‘prOprios autores por nd as terem tido e atribui-thes as idéias que cle mesmo professava antes de t8-Los lido, Trata-se de um tipo de ma- Jabarismo ainda praticado hoje em dia. Longe de mim afirmarque 0 abade Batteux eraum pensador pro- fundo. Mas 2 sua grande idéia de que a arte tem como tinico objetivo imitar a “bela natureza”, Diderot opde um argumento tolo: um pintor que pinta uma choupana pode resolver plantar diante dela “um velho carvalho rachado, retorcido e sem galhos, que cu cortaria se estivesse diante da minha porta’. Batteux ja tinha explicado por que objetos desagradéveis na natureza podem ser embelezados na arte: Na natureza, faziam-nos temer nossa destruigdo, causavam-nos wna Jmpressio acompanhada da visio de um perigo real, e como aemogio nos agra por si se a realidade do perigo nos desagrada, tratava-se de separar as duas partes da mesma impressio. Foi o que a arte conseguit, 0 apresentar um objeto que nos assusta, ao deinar que sefa visto para {ranqhilizar-nos e proporcionar-nos, assim, 0 prazer da emogo sem renfiuma mistura desagradével Varios anos apés a Lettre, Diderot (que entao ni julgavaateoria dos hierdglifos aplicdvel & pintura; ou melhor, apresentava con tradigdes nesse ponto) tentou, no Salo de 1763, abrir outra via. As cores do quadro, diz ele, nfo reproduzem as do modelo, apresentam, ‘em relagao a estas, uma homologia: “A grande magia consiste em aproximar-se da natureza e fazer com que tudo ganhe ou perca propor- cionalmente”, Pintar no é imitar, mas traduzir. Contudo a tentativa € oe ima vez malograda; algumas pai ‘que “nao entendemos nada dessa migic: resta dos hieréglifos, exceto a idéia de “uma arte nfo mais de con- vengio do que os efeitos do arco-iris”, uma correspondéncia miste- rosa entre as idéias e os sons, que ele rediz a seus efeitos sensiveis, sem pereeber que é, antes de mais nada, de natureza intelectual Para evitar tais impasses, teria sido necessirio reconhecer que o Belo niio se reduz & mera percepedo de relagdes, jé que isso pode ser dito de qualquer objeto. Num belo objeto, essas relagées estio elas _mesmas relacionadas entre si, o que contere maior densidade ao obje~ to, Diderot s6 admitia as relagdes simples, proscrevendo as compli ‘cada. Mas 0 objeto belo, ao contrario, rompe ouenfraquece a relagies simples, que ligam os objetos da experiéncia normal uns a0s outros, € 205 quais, enquanto objeto entre outros, ele mesmo esti ligado. Reco- nhecemos esse efeito, ou 0 produzimos, quando colocamos em des taque 0s objetos de arte, Poussin traduzia bem essa necessidade quan- do pedia que seu quadro La manne fosse ornado “com algumas cornijas [..] a fim de que, consideranclo-o ein todas as suas partes, os raios do olho sejam contidos e nao espalhados para fora, onde recebe- riam as espécies de outros objetos vizinhosque, chegando misturados com as coisas pintadas, confundiriam a visto”. Essas relagdes multiplicadas no intericr da obra de arte, 2s expen- sas das que ela possui com o resto, potencializam-na. O fato de tais relagées estarem relacionadas entre si faz da obra tuma entidade que existe em si mesmae por si mesma. Como disse Kant, de modo defini- tivo, finalidade (interna) sem fim (extemno); em outras palavras, um objeto absoluto. © malogro das tentativas de Diderot deve-se em grande parte & impaciéncia dos pensadores do século xvitt—embora afetos a Bacon — dante dos impetativos da experiéneia. Em relacao a esta, sentem uma espécie de avidez. Assim, quando Ihes falta, inventam-na; ou enti, conscientizando-se de estarem percendo o apoio, recaem nia abstragio, Diderot demonstrou duas vezes compreender que as ques- {Ges de estética s6 podem ser tratadas a partir de casos concretos: em sua anslise “hieroglifica” de alguns versos gregos, latinos e franceses (aideia ndo é dele), atendo-seas sonoridadese amétrica,eemalgumas reflexes s6lidas acerca de Chardin, que, no entanto,ele no considera a0 falar de outros pintores. Sejamos justos: ele em consciéncia dessas falhas, No artigo “Beto”, faz uma autocritiea. Mas, como se propde a as adiante, Diderot confessa ”.No Salo de 1767, jdinada 63 | superi-las? De modo totalmente negativo, listando todos os casos em, que 0s homens percebem relagdes ¢ as tomam erroneamente pot relagies estéticas, e sem propor uma definigao diferente daquelas que ‘oseriam realmente, ou seja, todas as nao listadas, que ele deixa pairan- donoar, Na verdatle, Diderot nao consegue superar, através de uma re- flexo sobre casos concretos que teria exigido maior concentragio, a antinomia entre a idéia ¢ a coisa, o sensivel e o inteligivel, na qual, finalmente, seu artigo naufraga. A antinomia se perpetuia até 0s Saldes (nos quais Diderot tem, contudo, objetos particulares diante dos othos), na escala reduzida de uma oposigao entre o moral e o técnico. Ele oscila entre esses dois pélos, dependendo do pintor que olha (Grewze ou Chardin), do humor com que se encontra ou do moment ‘mas que, nele, ndo se entcontram, nem deixam aparecer 0 “entre-dois 64 t XU Kant deu a forma definitiva & nogio de um “entre-dois”, no qual estaria situado o julgamento estético, subjetivo como 0 julgamento de gosto mas que, como julgamentode conhecimento, pretende ser véli- douniversalmente, A descoberta dos fractais revela, a meu ver, um ou- tro aspecto desse “eiitre-dois”, que nio diria respeito unicamente ao Julgamento estético, mas também aos proprios objetos a que esse jul- ‘gamento reconhrece a qualidade de obra de arte. Por menos que nos esforcemos em localizéilos, objetos ex- {remamente comuns na natureza io fractaise, freqiientemente, inspi- ram-nos sentimento estético. Nao estilo tais objetos “entre-dois”, ¢ isso duplamente? Suarealidade ¢intermedisriaentre alinhaeo plano; € 08 algoritmos que os engendram — aplicagao repetida de uma fungdo a seus produtos sucessivos — requerem, além disso, uma fil- ttagem que discrimina ou elimina certos valores obtidos pelo céleulo (dependendo de serem ou nao incluidos no campo, serem pares ou impares, estarem a direita ou a esquerda; ou ainda segundo outros critétios). Asrepresentagbes gréficas ou aciisticas desses cilculos demons- tram que, transpostos, por exemplo, & pintura, os fractais ilustram as formas mais variadas daquilo que, para simplificar, chamarei de artes decorativas. Dependendo do método de caileulo, dos valores iniciais escolhidos, da utilizagao de mimeros complexos ou de imeros reais, parece inclusive ser possivel distinguir estilos individualizados e co- nhecidos: ornatos orientais, art nouveau, atte celta e seus prolonga- ‘mentos irlandeses (vale notar que as ormamentagGes eélticas sao elas ‘mesmas o produto de uma filtragem; o artista traga com 0 compasso 65 diversos circulos que se interseccionam, alguns dos arcos de eiteulo assim formados so mantidos, ¢ outros apagaados). Para determinados produtos do ealculo € dificil encontrar uma semethanca precisa, No entanto, hi que convir que correspondem a estilos que pulderam ou podleriam existir Podem-se também colocar 05 fractais em miisica, Sua represen. tagiio na formade intervalos e de duragdes apresenta as caracterfsticas de uma misica igualmente decorativa, da qual niio esperarfamos mais, do que um ambiente sonoro bem tolerado pelo ouvido Oque da aesses resultados um saborespecial €0 fatode tercabido ‘um grande pintor, que também era apaixonado por misica, perceber exprimir numa lingua moderna a natureza e a tealidade dos fractais, (descobertos, juntamente com sua teoria matematica, em 1975, por Benoit Mandelbrot) a partir dos dados da experiéncia sensorial, Em seu Didrio, no dia $ de agosto de 1854, Delacroix faz as seguintes observagées (copiadas, diz ele, de uma nota escrita na margem de um livro de desenho, na floresta, a 16 de setembro de 1849): A natureza é singularmente coerente consigo mesma: desenhei em ‘Trouville fragmentos de rochedo 3 heira-mar, nos quais todos os aci- «dentes eramproporeionais, de modo a darno papel aidsia de umaimen- sa falésia: faltava apenas um objeto que possibilitasse determinar a «scala, Neste instante, escrevo ao lado de um grande formigueito, cons- trutdo ao pé de uma drvore, em parte sobre pequenos acidentes do ter- ‘eno, em parte pelo trabalho paciente das formigas; hd taludes, partes destacadas que formam pequenos desfiladeizos, por onde passam Fepassam os habitantes, com um aratarefida, como um pequeno povo «de um minimo pais que a imaginagdo pode aumentar num instante. Pos. 0 ver um mero monticulo de terra como uma vaste extensSo enteecor- tada por rochas escarpadas, com dectives abruptos, gragas ao tamanho uramente fisicos, como opa- ladare 0 olfato;0 ouvido, principalmente.temos seus;e parece ser mis sensfvel a eles, na medida em que so mais raros na natureza, Para cade zilsensagdes azradiveis que nos provémdo sentido da visio, talve2 nos Provenha uma pelo sentide daaudigao |... Tudo no universo parcce ser feito para os olhos, e quase nada para os ouvidos. Assim, de todas as ‘artes, a que mais gana ao rivatizar com ¢ natureza € a ate dos acon anes, que mas far Com ¢ natureza a arte dos acordes Marmontel parece refutaragui palavra por palavra as tees de Chabanon. Seu verbete foi publicado em 1776, no tomo t do Supple ment da Eneyclopédie. Sele origin depois de 1772, podria tren, nhecid a obra de Chabanon em sua primeita versio, Noo encom ‘meno ao nome de Chabanon na Mémoires de Marmontel Emeone pensayio,o de Morellet aparece fequenterrent, pois eram amigos do longa data (Marmontel, ji madueo,casou-se com a joven sobriaie dc Morellt lee seus parentes por afinidade viviam na mesma ease) Somos assim tentados a ver nesse verbeteo eco das diferengee de ‘opinido, até de dispatasacirradas, que Marmontel evoct en cose Mémoirese que, apesardaesimae afeicio rciprocas, opunhom fe ajientementea Morellet 3 XVII Chabanon era esperto demais para no sentira fragilidade de uma concepgio puramente naturalista da mtsica, Seu Eloge de m, Rameau a ameniza: a Misica, linguagem do mundo todo, divide-se em diale- tos, Até onde podem ir as diferengas? Em sua grande obra, ele indaga a respeito de possiveis correlagées entre a misica e aquilo que atual- ‘mente chamariamos de caréter nacional: Assegurar-se de que cada naglo recebeu da natureza um cariter de canto que Ihe & préprio [..] significaria acrescentar um capitulo, ov pelo menos um parégrafo, i histsria do homem. O que seria, entéo, se pudéssemos, completando essa descoberta, através de relagdes aparentes, combinar cada carster de canto aos costumes, a0 carster de cada nagio, & sua lingua, a0 modo que Ihe & préprio em todas as artes? Vai-se assim de um extremo ao outro. Chabanon oscila entre os dois, ‘como mostra outro recho, Se um negro ou um chinés, que possuem da beleza fisica umaidéia diferente da nossa, a0 serem transportados para a Europa passam a concordar conosco, “essa homenagem exética & bbeleza provard que ela é universal [..J,ando serque osnegrose os chi- neses [.] fo tenham feito sendo trocar de preconceitos”. Orelativis- ‘mo cultural desponta assim que se instala a divida quanto &existéncia de valores universais. Nao contente de estender esse relativismo & imtisica (ao menos como hipétese), Chabanon chega a conceber que poderia existir uma relagao de analogia, no seio de cada povo, entre sua imiisica, sua pinfura, sua poesia e sua linguagem, Mas imediatamente se multiplicam objegesem sua mente 84 De fato, em cada sociedade as artes néio evoluem no mesmo rite mo, No século de Luts x1v, a poesia, apintura e a elogiiéncia bri, thavam, quando a misica mal safa das tevas. Atraso uinda mais digno de nota na medida em que “a musica, que s6 se aperlcigoa depois das otras artes, precede-as todas em sua origem”. S6 uma investigagiio etnogrifica permitiria sanar a divida, e aquele que realizasse com sucesso essa dificil empresa forneceria ao fildsofo um quadro novo € interessante. Mas seria preciso que ele tivesse feito a volta ao mundo musical. Os negros da Costa do Ouro [atual Gana] tem cantos tristes ¢ lentos; os de Angola, animados¢ leves; 0s selvagens da América, cal- ‘mos e tranqliilos. As danas espanholas sao graves e majestosas, a danga polonesa tem um ritmo mais marcado eesti mais para orgulho, A danca inglesa se caracteriza por um movimento répido, a alema é fogosae arrebatada; as dangas francesas sfo alegres, graciosas, dignas. Mas nao hé dangas na Ieiia (sie) Ora, 0s viajantes afirmam que os negros da Costa do Ouro e de Angola diferem também no temperament e nos costumes: “Quantos exemplos desse tipo nao poderfamos encontrar? [Com a misica] a natureza teria, pois, dadoaos homens umalinguagem que revelatiaseu cardter”, Sabe-se, contudo, de casos em que a miisica e os comporta- mentos estio em desacordo, comoos cantes graciosos e trangiilosque acompanham os banquetes antropofeégiccs dos inclios americanos. A analogia entre a musica e os costumes se verifica para a Espanha, mas fo para a Inglaterra... Até que ponto acreditar nisso? A analogia exis tiria talvez entre certos tragos superticiais,e no entre os tragos pro- fundos? De qualquer modo, cla nao poderiaexistir na Europa, onde as belas-artes, o gosto, o espirito e as luzes circulam entre os povos. De ‘uma ponta 8 outra do continente fluiram e refluiram descobertas, Prineipios, métodos. Esse livre comércio das artes fez com que pendessem seu caréter (Chabanion frisa) insgena, Isso vale principal- mente para a mtisica, colocadas de lado algumas diferengas de exe- cuco, Para poder afirmar que estas estio relacionadas ao carster nacional, seria preciso encontrar andloges nas outras artes de cada, nagzo. Essas consideragdes recolocam em primeiro plano a distingio, fundamental para Chabanon, entre a mtisicae a linguagem articulada, mas abrem perspectivas muito diferentes das que o autor deixava, entrever no inicio. A elogiiéncia, a poesia eo teatro, diz ele, im uma 85 relagdo imediata ¢ necesséria com 0s costumes, 0 cariter, os us0s, 0 regime politico de cada nagdo, Porque essas artes so “filhas do espiri- toe movimentam a palavra’”, dependem estreitamente das circunstan- Cias histéricas locais. A mtisica, que nao pinta nem os homens nem as coisas, nilo se encontra na mesma dependéncia: ouve-se a mesma musica em Roma, Londres ou Madri. Mas, entao, como explicar con- tradigdes internas? Os alemies, “melodistas dsperos e hirtos, so poe- tas to doces, risonhos e sensiveis [..].O italiano que ha oitenta anos cantava como o francés tinha os costumes de nossa nagio?”. A universalidade da misica, proclamada no inicio da obra, encontrava seu fundamento numa sensibilidade comum a todos os homens eaté aos animais. Reduzida tescalaeuropéia, remete, antes, a um conjunto de condigdes hist6ricas, culturais e sociais. E, mesmo aqui, nio se pode afirmer que o gosto musical, descolado da sensagao, revele umaharmoniaentre osespiritos, jé que, num mesmo povo, pode ocorrer de as artes e 0 terhperamento nacional entrarem em choque: “Temo”, reconhece Chabanon, “que a filosofin mais esclarecida tivesse dificuldade em esclarecer tais mistérios”. Sendo assim, pode-se bem concluir que, de um lado, “ocarster do canto mais familiar uma nagao nao € indi cio seguro de seu cardter ede seu genio”; de outro, que “entre as artes e a palavra, de que o espirito é 0 juiz primeiro, ea arte dos sons, que compete ao tribunal dos ouvidos, existe tamanha diferenga que um povo estipido poderia ser bom mis co, € um povo com pensamentos profundos s6 possuir uma mtisica ligeira”; essa distancia entre misica e palavra ni é tio intransponive), quanto se poderia pensar, jd que 0 recitativo se cotoca entre as duas. problema do recitativo obcecou Chabanon, € um espirito tao) profundo quanto o seu niio podia deixar de perceber suas implicages filos6ficas. “Espécie de monstro anfibio, metade canto, metade decla- magiio”, orecitative 60 vicio da pera, sobretudo a francesa. princi- pal erro de Rameau foi 0 de nao ter conseguido afastar esse obsticulo. A questo nao se coloca no concerto, em que tudo € miisiea, mas 0 teatro leva melhor pelo interesse das situagoes. Como € quea mtisica ‘conse gue representé-las? Nao se sabe. Nessa matéria, a teoriaé incer- ta,e os conselhos, praticamente imposstveis de dar. Constata-se apenas como um dado de experiéncia “a convenién- cia secreta das inflexdes da palavra com os sentimentos que as deter- minam”. Nao seexplica tal conveniéncia; ela constitui “um mistétiode ‘metafisica impenetravel”. Entre os diversos povos, as entonagies niio 86 sio as mesmias, ¢ As Vezes se contradizem entre um povo ¢ outro. De ‘onde essas duasconstatagies que se opdem: “Os prinefpios da entonae 0 [...] nao so cle instituigdo puramente natural. Nio se poderia tam. pouco dizer que so de convene. A causa disso 6 ‘quanto a dos diversos sotaques nos diversos paises’ A pera acredita livrar-se do embarago gragas ao recitativo, “cane todeteriorado [...] se The tirarmos a precisa ritmica [..], um passo em diregdo a mera palavra”, Contudo um recitativo, ainda que bem-f ccujas palavras fossem ignoradas jamais permitiria adivinhé-las: "Os quiasmas do recitativo parecem infinitamente limitados;costumam-se repetir os mesmos"’ E preciso referir-se is palavras. Entre a mtsica e elas, tecem-se lagos: “O sentido das palavras langa outra luz sobre os sons” Oabismoentre misicae linguagem nao é, portanto, tio profundo quanto se dissera: existe convengaio na mtisica, assim como hé natu- rezana palavra, Dai anecessidade, na Spera, de uma colaboragio inti- a entre o mésico eo poeta. Cada um s6 fala e entende a propria lin- gua, mas deve sabertomar suaarte subsididtia dado outro. Associagiio estranha: “Uma épera quer ser gerada duas vezes” Em suas Réflexions préliminaires, que abtem De la musique, ‘Chabanon anuncia que iré considerar a arte musical “em seu esquele. ido”, Propée-se, diz, a encontrar uma natureza simples, ‘uma idéia primitiva por detrés das idéiasacess6rias. E é apenas depois de ter encontrado na melodia a idéia mais simples que se possa conce- berdamuisicaque eleird dedicar-se a completar essaidéia, para recons- tituira arte em sua totalidude, Assim, ele passa a ver na mtisica uma lingua comum a todos os homens € a todos os tempos. Isso vale, sem diivida, para o esqueleto, pois alinguagem musical possui uma estrutura especifica que, em cer. to aspecto, a aproxima da linguagem articulada (como os fonemas, os Sons nao possuem significado intrinseco) e em outro aspecto as afasta (a linguagem musical nio tem nivel de organizegio correspondente palavra). Até aqui, a demonstragao de Chabanon guarda toda a sua forga, Mas, dessa universalidade da estrutura, niio decorre que,ando ser por pequenas diferengas, a linguagem musical tenha sempre e portoda Parte © mesmo contetido. Aprofundando suas andtises, Chabanon vé- se obrigado a dar marcha & ré, Uma teoria que no inicio englobava todas as misicas reduz-se pouco a poucoao problema da miisica oc desconhecida 87 dental que, a partirdo séculoxvut, se desliga das outras pera formar um uuniverso separado. Chabanon dedica uma atengiio cadla vez maior a esse fendmeno, e reconhece que ele possui uma natureza propria: "Os primeiros passos que ela [a misica francesa] deu para afastar-se dos cantos simples © populares (como os dos antigos natais) a tinham desviado de seu verdadeiro caminho”. Continuamos sabendo em que amiisicae a palavra ce distinguem no plano formal, mas aidéiade que, a0 contrério das Linguas, as misicas dos diversos povos teriam pelo ‘mundo afora um contetido idéntico entra num yiizio do qual Chabanon jamais devia @-Ia tirado, 88 XVI Eu lia a segunda parte da obra de Chabanon, De la musique, cone sagrada essencialmente & 6pera, quando foi publicado Operratiques, de Miche! Leiris, coletanea péstuma de fragmentos que ele pretendia ‘eunir sob esse titulo, Além de observagées acerca do teatro chins, de sessGes de vodu, do Karagheuz,grego, nas quais se reconhece 0 etné- Jogo, essas notas abundam em reflexes agudas. Em relagio a0 veris- ‘mo, “naturalismo que retém da realidade apenas certos elementos paroxisticos”, por exemplo; ou ao expressionismo de Monteverdi: 20 lirismo de Puccini, ao wagnerismo de Pelléas (retomando, aparente- mente, comentérios que escutei muitas vezes de René Leibowitz, qne foi nosso amigo comum); um comentirio sobre Parsifal: “Se a repee~ sentagdo teatral é um rito [como a concebia Wagner], encenar um si- ‘mulacro de rito é justamente o que niio se deve fazer”; uma critica de Menott Ao lado de tudo isso, aparecem opinides desconcertantes por seu simplismo. Leitis elogia na Tosca os temas de opressio e de tortura Porque voltaram a ser atuais. Em Die Meistersinger, critica “um tufanismo desagradavel”, alegando que con: ele Hans Sachs defende o espirito da rmdsica alema contra as influéncias estrangeiras (mas Wag- ner da palavra a um ardoroso protestante para quem a palavra wallsch designa o conjunto dos povos romanos e caiSlicos; ¢ sabe-se 0 quanto a miisica deverd a Lutero, o quanto deveria mais tarde a Wagner: sem diivida ele tinha o direito de efetuar a transposicao) Outras opinides de Leiris sio francamente chocantes. Ele, que compreende tio bem Puccini, nao teme equiparé-lo a Leoncavallo. E Por que razio? Leoncavallo ter-se-ia mostrado genial, “fazendo con- vergir numa mesma obra esses dois temas — as Kigrimas por detrés do risoea verdade por detrés do teatro”. As palavras génio, genial, apare- ‘cem tr&s vezes em duas paginas em que Leiris fala apenas do libreto. Em relagdo A mifsica, nem uma palavra. ‘Causa grande espanto que, nesses textos qué produzem um encanto incessante, algo como cingifenta 6peras sejam objeto de co- mentétios cheios de poesia, sem que nunca ou praticamente nunca se fale de masica, Em seu Journal, publicado alguns meses apés Operratiques, relata suas impressdes por ocasido de uma representagio de Par- sifa! qual ele assistiuem 1954. Lé-se nele ocomentirio citado acima, ‘40 qual, ao longo de duas paginas, Leiris acrescenta outras queixas, Desgosta-me, tanto quanto a ele, 0 rango de carolice que se respira em certas passagens de Parsifal. Mas a percepeiio forgada de um sentido cristdo para o ciclo do Graal no & de ontem; remonta ao inicio do sé- culo xitl, com Robert de Boron. Para o etndlogo, que tem a obrigagio de posstir algumas nogbes de hist6ria das religides, essa tradigiio & eminentemente respeitdvel. Fm ve7 de irrtar-se, convém compreen- ddé-lae situara versa inovadora de Wagner entre todas as que se suce- dleram desde Chrétien de Troyes, Mas, sobretudo, ao ler essas paginas de Leiris, nao se tem a impressiio de que ele tenha, ao longo da repre sentaedo, sentido neshuma emogio musical. Pessoalmente, quando ‘sou invadido pela musica de Parsifal, paro de fazer perguntas. Leiris concentra seu interesse nos méritos vocais ¢ no jogo dos ‘cantores, na encenago, nos ceniirios e, princjpalmente, na agio dramética, Nenhum comentarista de 6pera cértamente deu tanta importancia & anedota (ha algo de Diderot em Leiris). Qualquer que seja.a histéria contada, se me permitem a expresso, “ele cai [nela]". Ele vai atrés, eeu tenho dificuldade em segui-lo, Excetuando-se alguns libretos — o de Carmen, os da Tetralogia por razées expostas alhures e, mais ainda, o dos Meistersinger, essa obra-prima acerca do nascimento da obra-prima (diante do qual Leiris confessa que “se faz dle enjoado"); o de Pelléas (outra obra que enfrenta certas reticéncias dda parte de Leitis), que, contrariamente & opinido cortente, eu ni jul- ‘20 indigna damisica—,amaior parte dos libretos me sao indiferentes, ha poucas éperas em que eu sinta a necessidade de entender as ‘palavras; fico sabendo a historia ¢ esquego-a imediatamente, Quando escuto novamente Lucia di Lammermoor no radio, lemibrar a intriga nao acrescentaria coisa alguma, creio, a0 arrepio provocado pelo for: 90 tissimo do sexteto, i emog: canada, © que é, entio, para mim, uma épera’? Uma grande aventura, Embarco num navio no qual, guisa de mastros, velas ¢ cordames, & cenxarcia reine todos os meios instrumentaise vocais requisitados pelo ‘compositor para realizar uma viagem que condensa em tr8s ou qutro hhoras uma vasta mtsica, tio variada quanto o espeticulo do mundo e, contuco, una (Chabanon jé fazianotar que a 6pera “pode admitirnuma, mesma obra diversos estlos ediversos mods [..J.pertencer a virias, cerasda mtisica”..);e que me taansporta para um mundo de sons a mi- Tare de ulometos das cas tentestes, como quando eet no Assim, no vou mais 6peca, pressentindo que o barco afundaré sob o peso insuportavel de uma encenagii e de censrios que insultam ‘49 mesmo tempo poema e armisiea. A tiniea questo que o dretor deveria colocar-se (mas, para sso, bastaria o maestro, pois ele pelo menos conhece e respeita a obra) € a de saber o que o compositor via em sua mente, ¢ econstituf-loo mais fielmente possivel, armado dos imeios tgenicos de que dispomos hoje em dia (mas sem projesdescine- ‘matogréficas mescladas ao cenério! A Gperaé uma estilizagao do real). Em 1876, Wagner declarava seu descontentamento com a encenacio

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