Introdução À Psicologia Comunitária PDF

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JORGE CASTELLA SARRIERA ENRIQUE TEOFILO SAFORCADA Organizadores Introducado a PSICOLOGIA COMUNITARIA Bases teoricas e metodologicas ey NaI) Cd ara ree raed Ll nena Raia) Lilian Rodrigues da Cruz Mea rag ea ee ante ear arg a CU ee Loe lel a a is; Se EY © Editora Meridional, 2010, © Estria Paidés SAIC, 2008, ‘Thulo orginal: Enfoques conceptuaes y tecnicos en Psicologia Comuritaria Cap: Vinicius Xavier ; Projo grafic e edtrarSo: FOSFOROGRAFICO/Ci Sbardeato Revs: Mathews Gazzola Tussi Ris écrica: GPPC/UFRGS Tag: Autores Ett Luis Gomes 1 reimpresséo Datos Internacionais de Catalogado na Pubicago (CI) iblotecéria responsive Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960, tal Inrcugo 2 Picolga Comuniti: bases eros e metodléicas/ Jorge stl Sarr Enrique elo Stocada orgs). Foro ‘gre: Sulina, 2014 230. Titular Enfoques conceptual ytencos en Psicalgia Comunitari 1S; $78-85-206-0588-5 1. Pscaloga. 2. Psicologia Comunitia. 3 Psiolgia Soca. 3. Psicologia - Pesquisa. 4 Psicologia - Meteo. area, Jorge Castel, I Saforcada Enrique Teo, oo: 150 COU: 1599 Todos 0s cites dest edgdo reservados & EDITORA MERIDIONAL LTDA. fv, Osvaldo Arana, 440 ~ con 101 CEP. 90035-190 — Porto Alegre — RS Tol: GL) 3811-4082. Fax: (51) 3264-4194 suine @editorasulina com wun.eitorasulinacom br Fevereiro2014 Ipresso no Brasil/Pinted in Braz Sumario Apresentacio — 7 Introdugéo — 13 * PARTE I - ENFOQUES CONCEITUAIS Capitulo 1. O Paradigma Ecol6gico na Psicologia Comunitatia: do contexto a complexidade — 27 Jorge Castella Sarriera Capitulo 2. Perspectiva ecolégico-sistémica da saide — 49 Enrique Saforcada » ©. Capitulo 3. Breve historia e alguns desafios. “~~ da Psicologia Social Comunitéria — 76 Lilian Rodrigues da Cruz, » Maria de Fatima Quintal de Freitas e Juliana Amoretti Capitulo 4. Conceitos sobre redes sociais no paradigma ecossistémico — 97 Maria Piedad Rangel Meneses ' Capitulo 5. Psicologia da Libertagso - 113“ Adolfo Pizzinato PARTE Il - ENFOQUES TECNICOS (Capitulo 6, Anélise de necessidades de um grupo 4 ou comunidade: a avaliagao como proceso — 139 Jorge Castell Sarriera Capitulo 7. A Investigac&o-Acao Participante — 153 Katia Regina Frizzo . 0! Capitulo 8. Didrio de campo: reflexdes ; episiemolégicas e metodol6gicas. — 167 Katia Regina Frizzo Capitulo 9. Grupos Focais em Psicologia Comunitaria — 186 Pedrinho Arcides Guareschi, Katia Bones Rocha, Mariana Calesso Moreira @ Mariana Gongalves Boeckel Capitulo 10. A entrevista ea visita domiciliar na pratica do psicélogo comunitario — 203 Katia Bones Rocha, Mariana Calesso Moreira e Mariana Goncalves Boeckel Capitulo 11. A ética na intervencao psicossocial — 213 Ceres Berger Faraco e Maria Amétia Jaeger Sobre os Autores - 227 Apresentacao A Psicologia Comunitaria, assim como outras disciplinas relacionadas ao trabalho social e a satide coletiva, esti adquirin- do um papel cada dia mais importante em uma sociedade que procura construir um mundo mais humano e igualitério, promo- vendo estruturas sociais mais justas e solidérias. Neste sentido urge fortalecer uma cigncia comprometida com o ser humano. Nas tiltimas décadas tém surgido em diferentes discipli- nas enfoques vineulados com 0 compromisso social voltados aos problemas humanos visando aliviar o softimento das maiorias ‘marginalizadas, fortalecendo seu potencial. Essas disciplinas tém produzido conhecimentos a partir dos contextos nos quais emer jram, com forga suficiente para provocar mudangas substanciais nna promogiio da satide e na melhoria das condigdes de vida. A Psicologia Comunitéria na América Latina surgiu com caracteristicas especificas do seu contexto ¢ comprometida ‘com a mudanga social. Nao existe uma tinica proposta tebrica ou paradigmética que seja a panaceia para solucionar os graves pro- bblemas que vivencia a nossa sociedade latino-americana, desigual € injusta, Sao muitas as contribuigdes tedricas, a diversidade de metodologias ¢ as propostas que pretendem dar conta de alguma parte desta complexidade social e cultural da América Latina. 0 que no podemos aceitar sto posigdes no Ambito da Psicologia Comunitiria que acriticamente reproduzam uma situagdo de do- minago. Por isso, nosso objetivo neste livro é destacar aqueles enfoques correspondenies a diferentes paradigmas que esto contribuindo de forma positiva, seja na reflexdo e conscientizagao sobre a realidade, seja na agdo e na mudanga da mesma, Expandir esses enfoques tedricos entre os profissionais ¢ estudantes do campo social significa a possibilidade de identificar 08 possiveis determinantes dos problemas psicossociais e sociais eas formas de intervengiio no campo social e da satide que visem ‘a sua superagdo. Muito tempo se passou sem ferramentas tebrico- -metodolégicas de intervengdo transformadora que no fossem aquelas geradas no mbito da ciéncia positivista, O presente livro iniciou com a pareeria do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitéria, em Porto Alegre, com 0 professor Enrique Saforcada, da Universidade de Buenos Aires, para ser editado pela Paidés, o que aconteceu em 2008, em lingua espanhola, Preparamos dois livros, este primeiro sobre enfoques tedricos e metodoligicos, € um outro, que esti por ser editado ainda, sobre aspectos histéricos de Psicologia Comunitéria no MERCOSUL e aplicagées de programas comunitarios. Na edigao ‘no Brasil, pela Editora Sulina, com 0 intuito de que o presente livro possa servir de apoio no Ambito das disciplinas relacionadas 4 Grea social-comunitéria, denominamos o livro de Introducdo & Psicologia Comunitéria: bases tedricas e metodolégicas. Pedrinho Guareschi, que nos honrou escrevendo a Intro- dugio deste livro, € socidlogo e psicélogo social, coordenador da Colegio de Psicologia Social da Editora Vozes e editor de livros como Sociologia Critica, que conta com mais de 20 edigdes. Com entusiasmo se dispds a revisar nosso livro, escrevendo a introdu- Gao com sabedoriae clareza, fruto de uma vida dedicada ao traba- tho social-comunitirio e ao estudo e pesquisa na area, colocando as bases éticas e epistemologicas para a agdo do profissional. © enfoque tedrico da Psicologia Ecolégico-Contextual em Psicologia Comunitéria é um dos modelos teéricos mais desenvolvidos na érea social, pela sua visto integrada da pessoa nos seus contextos, acothendo a complexidade do fendmeno e fornecendo elementos tedricos e metodoldgicos para o desenvol- imento humano ¢ social. O capitulo foi escrito por quem redige essas linhas, Prof, Jorge C. Sarriera, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenador do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitiria desde 1993. Enrique Saforcada, autor do Capitulo 2, expe sua base tedrica ecoldgico-sistémica para analisar o sistema global de saiide na América Latina, leitura imprescindivel para quem trabalha no contexto da satide comunitéria, preocupado pelos determinantes biopsicossociais, especialmente no contexto latino-americano. Sua leitura nos oferece um valioso instrumento para que possa- mos entender de forma critica os componentes do sistema de satide. referido autor assessora atualmente os programas de Satide ‘Comunitaria das prefeituras de San Isidro e Avellaneda, vizinhas da cidade de Buenos Aires (Argentina). A construgio ¢ formagao das redes sociais é uma temética cada dia mais relevante, num mundo crescentemente competi- tivo e individualista, Um trabalho social que nao desenvolva redes sociais ¢ comunitérias € que esteja unicamente dirigido trabalhar os problemas individuais sem contar com as redes de apoio é um trabalho perdido. Cabe procurar formas de apoio social e de fortalecimento de redes comunitirias que constru- am vinculos sociais ¢ de solidariedade. Maria Piedad Rangel Meneses desenvolve esse tema no Capitulo 3, a partir da sua experiéneia e conhecimento como professora da Universidad de Santo Tomas, em Bogota, ¢ atualmente como professora na Universidade Luterana do Brasil Além desses trés primeiros capitulos vinculados & com- Preensio ecolégico-sistémica da Psicologia Comunitiria, outros dois capitulos apresentam enfoques tedricos sécio-histéricos. O Capitulo 4 apresenta uma introdugdo a Psicologia Social Comunitaria, teoria que teve sua origem em Porto Rico com Irma Serrano Garcia e na Venezuela com Maritza Montero. Desde 4 perspectiva brasileira é Maria de Fétima Quintal de Freitas, Tepresentante da area de Psicologia Comunitéria no Brasil e docente da UFPR (Curitiba-Brasil), junto com a doutora Lilian Cruz, docente universitiria da UNISC (RS) e Juliana Amoretti (UnB), que expdem os principios basicos deste enfoque para anilise critica da realidade, propiciando um marco histérico- -critico compreensivo, propondo categorias de andlise, através da conscientizagao e da mudanga social Termina a série de bases teéricas a Psicologia da Liber- tagdo, originada na América Central, coneretamente em El Salvador, por um homem comprometido ¢ idealista, assassina- Ignacio Martin Bars. Adolfo do pelas suas ideia presenta os principais aspectos que servem para o entendimento do marco tedrico e operative dessa importante teoria para o Ambito comunitirio. A segunda parte do livro responde a uma demanda que constatamos a partir da nossa pritica. A Psicologia Comunitéria encontrou-se desde seus primeiros momentos com muitas difi- culdades para desenvolver sua ago social porque os instrumentos do mundo académico tradicional no respondiam as necessi- dades € objetivos do seu trabalho. Hoje ja existe publicagdes, que instrumentalizam o trabalho dos profissionais da area. Nos apresentamos algumas metodologias e técnicas de trabalho social que passaram pelo nosso crivo no decorrer das intervengdes. ‘A metodologia ii des, pri- meiro passo no processo de insergaio ecoldgica ou familiarizagao com a comunidade. Dentro das metodologias participativas, 0 processo de estudo ¢ de avaliago constante das necessidades serve para orientar a aga0 comunitaria, uma ago levada adiante conjuntamente pelos técnicos e pela comunidade. O autor dessa apresentago é o autor do texto, expondo de forma resumida, no Capitulo 6, a metodologia ¢ as técnicas, com diferentes tipos de cia pela andlise de necessi anilise, segundo contextos diversificados. Poderiamos afirmar que a investigagao-acdo participante (IAP) € 0 método por exceléncia do trabalho comunitirio. Katia Frizzo, doutora e professora de Psicologia Social, escreve de forma clara ¢ bem fundamentada sobre a IAP, no Capitulo 7, expondo as etapas e pro edimentos desta metodologia participativa. A ‘mesma autora, no seguinte capitulo, apresenta a técnica de Didrio de Campo, de importincia fundamental no trabalho social e de pesquisa, originado na antropologia, mas hoje j4 imprescindivel ‘em outras dreas das ciéncias humanas e sociais. Trabalhar com Grupos Focais é uma das formas mais ceficazes para refletit e construir um conhecimento sobre um de- terminado tema ou problema. Discutir com membros de institui- ges e comunidades sobre determinados aspectos geradores que necessitam ser ressignificados coloca em debate ¢ em anilise as representagdes, crengas ou valores sobre os problemas que nos envolvem. Pedrinho Guareschi, autor da introdugao, junto com Katia Bones Rocha, pesquisadora em Satide Pablica na Genera- litat, de Barcelona, Mariana Gongalves Boeckel, professora uni- versitéria na FACCAT-RS e Mariana Calesso Moreira, psicéloga professora no IEP/HMY, escreveram 0 Capitulo 9, esclarecendo 05 objetivos, a adequagdo € os cuidados no uso desta técnica no trabalho social e da sate. A entrevista psicossocial no trabalho comunitario tem suas especificidades diferentes da entrevista clinica. As autoras do capitulo anterior dio continuidade, no Capitulo 10, ao desen- volvimento das caracteristicas da técnica de entrevista a0 mesmo tempo que introduzem outra técnica de observacao-intervencao, a visita domiciliar tao necessaria e relevante, seja nos programas da saiide da familia como no campo social O livro termina com um capitulo sobre 05 cuidados éticos na intervengio social, de Ceres Berger Faraco e Maria Amélia Jaeger de Sousa. Seu texto nos alerta sobre os fundamentos epistemologicos do trabalho e do papel do profissional, aberto, espeituoso e participativo. Concebe-se o profissional que traba- Iha junto com a comunidade como alguém que reconhece que 0 protagonista de toda agdo social ou comunitaria 6 a comunidade ‘mesmo, onde reside a capacidade de transformagao. Convidamos o leitor a dialogar conosco através dos pres- supostos teéricos, metodologicos e técnicos que apresenta este livro, esperando que possam ser titeis para a reflexio, planeja- mento e a ago no seu trabalho social-comunitario. Jorge Castella Sarriera Introdugao O MISTERIO DA COMUNIDADE Pedrinho Arcides Guareschi Zygmunt Bauman, em seu pequeno livro sobre Comuni- dade (2003), afirma que “comunidade” se transformou numa espécie de termo migico, com possibilidade de solucionar qualquer problema, Concordo plenamente com essa afirmagio. O termo comunidade se tomnou uma espécie de “vale-tudo”, varinha de condio, uma espécie de grito de ordem, invocado para resolver impasses e dar fim a toda contradigao. Acontece que as coisas no sd bem assim, ¢ esse termo precisa ser desmistficado, sacudido, decodificado, desideologizado, desconstruido. Coisa semelhante ‘a0 que acontece com o termo “ideologia”. Tenho um hobby de colecionar definigdes de ideologia: ja cheguei a 64, todas com alguma conotagio diferente. Acho que € preciso fazer o mesmo com 0 termo “comunidade”. Nao pretendo fazer isso aqui. Mas pretendo, pelo menos, mostrar as implicagdes que 0 termo possui, deixando o desafio para que alguém comece a colecionar ¢ iden- tificar as muitas acepgdes do termo. Li os trabalhos deste volume, as discussdes sobre os diver- 80s enfoques teéricos e os enfoques epistemolégico-metodol6; cos, presentes na Psicologia Comunitiria, Muito bons, todos eles. Mas tive a sensago de que faria muito bem uma discussio bem bisica, como mesmo uma introducdo & problemitica toda, algo ue vena antes e que fundamente tudo 0 que se vai dizer depois, 13 Esté claro que o tema é Psicologia Comunitéria. Mas, ao fazer psicologia de algo, tenho de saber com clareza as nuances desse algo. E dentro desse referencial que arrisco essas consideragdes. Quero comecar dizendo que cada um tem o direito de em- pregar @ termo.comunidade no sentido que queira. Mas ao mesmo tempo gostaria de afirmar que, ao menos por honestidade, quando formos empregar o termo, digamos o que entendemos por ele. E mais uma sugesto que pode causar embaragos, mas que tem todo © direito de ser posta em pritica: quando voeé estiver ouvindo alguma conferéncia, participando de algum evento e alguém em- pregar esse termo, nao tena receio de interromper e perguntar: por favor, o Sr(a) poderia nos dizer o que entende por comunidade? A razio disso é que, como pretendo mostrar de agora em diante, ha sentidos totalmente equivocados e contraditorios presentes no termo comunidade. Vou discutir o conceito a partir de dois eixos que poderdo ajudar a ver as diferengas de sentido do termo comunidade e, com isso, server para identificar e especificar qual o sentido que se esti dando ao termo, Os dois eixos remetem a dimensdo do individual e & dimensdo do social. Eles muitas vezes se apre- sentam como opostos, mas na verdade se complementam. E essa € a conclusio principal a que pretendo chegar: mostrar como comunidade carrega, ou deveria carregar, em sua compreensio mais profunda, a superacdo dessa dicotomia, Se trato os dois eixos separadamente & apenas por motivos didaticos, mas na verdade estiio profundamente interligados e se complementam. Na dimen- sio do “individual”, vou exploraras diferentes concepgdes de ser humano que podem estar subjacentes 4 concepgdo de comuni- dade e que modificam completamente seu sentido. Na dimensio do “social”, mostro como esse termo, “social”, possui diversos significados e ¢ importante saber qual deles assumimos ao falar, © agir, em Psicologia Comunitiria. As discussdes que seguem 4 wt : 2 errata quollopin cue estio elaboradas com mais detalhes numa publicagdo recente que as explicita ¢ fundamenta mais longamente (Guareschi, 2005). Que concepcaio de “ser humano” esta presente quando emprego o termo comunidade? Ninguém hesita em afirmar que uma comunidade, ob- viamente, implica na presenga de algumas (poucas ou muitas) pessoas. tengo que uso aqui o termo “pessoa”. Isso & importante, porque quero distinguir, com clareza ¢ fundamentagao ontol6gica, entre 0 conceito de “pessoa” € outros conceitos de ser humano, como o ser humano “individuo”, ou o ser humano como “pega de ‘uma méquina”. Com isso jé vou adiantando que ser completa- mente diferente 0 entendimento do que seja comunidade quando ~ assumirmos os seres humanos dentro de uma dessas compre- ensdes. Vamos as distingdes. ‘Vejamos primeiro qual a compreensio do ser humano tomado como “individuo”. Esse termo pode trazer equivocos, sendo necessério discuti-lo em detathe e com profundidade, Ele implica duas dimensdes: a primeira é que o ser humano é “um”, © linico, singular. E o que a filosofia entende quando o define como, indivisum in se, isto €, que-cle é um, indiviso em si mesmo, Mas hha uma segunda dimensdo, nessa concepgo de individuo, e€ essa dimensio que o dstingue das outras concepedes: 0, ser humano, 0 )” é um, sim, mas é também “separado. ido”, isto é no tema ver com nada e com ninguém; ¢ 0 ai- visum a quoliber atio, isto é, separado de tudo o mais. Segundo essa perspectiva, ndo hé nada, nele, que o rela- cione, ow 0 ligue a alguma coisa. Tudo converge para 0 centro. Ele 6 suficiente em si mesmo, nio tem nada a ver com outros € ho necessita de outros para sua definiedo e compreensio. Essa Is 6a concepgio de ser humano como entendido ¢ assumido pela filosofia liberal E essa concepgdo de ser humano “individuo” que foi adotada pela modernidade. E aqui aparece Descartes. Ele, com sua famosa afirmagao “cogito, ergo sum”, isto é, “pens, logo cexisto”, consagra essa concepeiio de ser humano. Em sua frase stio contidos os trés grandes e novos valores da modernidade: 9 -individualismo (cogito — penso ~é a primeira pessoa do singular, ‘eu); 0 racionalismo (penso—razo); € a experiéncia pessoal, pois Descartes dizia que podemos duvidar de tudo.(c temos de duvidar de tudo). De uma coisa, contudo, nfo podemos duvidar: éduvidar gue,duvidamos, caso, ‘contrario nio haveria mais possibilidade de saida. E essa certeza de que duvidamos € uma experiéncia pes- soal, Essa concepgio de ser humano esteve muito presente, e ainda esti, em certa psicologia que busea todas as explicagdes apenas no “individuo”, psicologizante. Voltaremos a isso mais tarde. Mas ha também, no aspecto oposto, 1um entendimento do ser humano.como “pega da.maquina”, ow como “parte de_um todo”. Essa é a compreensio e sentido presente nas concepgdes tedricas sociologizantes, ou totalitérias, O ser humano, em si mo, no teria valor. oEstado, a organizagio burocritica, O ser humano 6 apenas parte secundaria desse todo que, ele sim, seria expli- cativo da realidade. Os regimes totalitirios, como 0 Fascismo, ‘© Nazismo, o Stalinismo, ¢ todos os regimes de “partido tinico”, tém como pressuposto uma concepgao de ser humano “parte de um todo”, sujeito a burocracia do sistema. Mas ha ainda uma terceira compreensdo do ser humano: ele pode ser entendido, dentro da melhor tradigao filos6fica (e se quiserem, teolégica), como sendo “pessoa=relagio”. E 0 que é relagio? do seria uma categoria bisica: o que vale é (Quando se menciona o termo “relago”, a primeira resposta. ‘que surge € que relago é troca, relago ¢ comunicagao, que para 16 er relagiio é necessério que haja sempre.ao. menos dois etc. ‘Mas relagio é muito mais. Uma coisa s6, singular, também pode ser relagio. Como defini-la, entdo? (Os que conseguem se deter para refletir sobre o significado das palavras, os que conseguem se admirar diante das coisas ‘ais simples ¢ banais, isto 6, os filosofos, definem relagio como sendo “ordo ad aliquid”, trés palavrinhas dificeis de traduzir, mi que significam muito. Fazendo um esforgo, poderiamos traduzir assim: relagdo & 0 ordenamento,.o ditecionamento.intrinseco, isto é, do proprio ser, em dirego a outro. ser. Mas esse ser, essa realidade, continua “uma”, com a liferenga de que ha nela algo que, necessariamente, isto é, na sua propria defini¢do, 0 obriga a se ligar a outro, a incluir em si um outro, ou outros. Ela nio perde sua singularidade, mas ela é feita pelos outros, pelas relagées que cla estabelece. E isso que entendo por pessoa=relagio. Nessa concep¢ao, 0 ser humano é um, singular, especifico, como 0 “individuo”, visto . ‘cima, mas com a diferenga de que 14.0 ser humano é um.e “nfo tem nada a ver com os outros”, ao passo que aqui o ser humano um, sim, mas ndo pode ser sem outros. Isso talvez seja compli- cado para alguns, mas com um pouco de paciéncia e cuidado pode ser entendido. Como também ele é mais que a parte de um todo, ois ele possui uma singularidade propri auténoma. Mas se, Por um lado, ele é singular, por outro, seu ser, sua subjetividade € constituida pelos outros, ¢ resultado dos milhées de relagdes que estabelece em sua vida. Hi, pois, uma diferenga ontolégica entre entender o ser humano como pessoa, como individuo, ou como apenas parte de lum todo. Pessoa & singular, mas implica necessariamente outro. Individuo nao tem nada a ver com outros, E a concepgio totali- aria reduz 0 ser humano a simples composto de um todo maior, negando sua singularidade e subjetividade. Que tem isso a ver, agora, com a comunidade? Creio que nao ¢ necessario refletir muito para ver que, se os participantes, «de uma comunidade so pessoas, automaticamente um esta ligado_ ‘a9 outro, um necessita do,outro. As relagées ja esto implicitas, nio ha como dispensé-las. E s2o relagdes vitais,relagdes que ém_ a ver com o préprio ser, Ji se defino o ser humano como individuo, eu posso ter um amontoado.de participantes, mas eles se unem por relagdes que nao implicam a participagdo essencial dos homens/mulheres. A solidatiedade, como condigSo fundamental dos seres humanos, rio precisa estar presente, As relagde8 podem ser de exploracio, dominagio, exclusio, Ha, aqui, uma contradigio paradoxal: se, por um lado, defino o ser humano como individuo, como o faz a filosofia liberal, filha da modernidade, posso (¢ devo) pensa-lo ‘como um competidor, como alguém que tem de dar conta sozinho de seu recado. Aliis, ndo é por nada que no capitalismo liberal a lei suprema é a competigio, ¢ ela é legitimada pela afirmagio de que “sem competigao nio ha progresso”. A tal ponto que, se nao houver competigao, cu devo institui-la; e, por outro lado, nés constatamos que, para alguém se “realizar” na vida, ele precisa dos outros, pois sozinho ele nao pode chegar a progredir, a avan- car, De uma parte, ento, nego que o outro é necessério para mim ¢, de outra, nfo posso deixar de necessitar dele. E nesse sentido que dizemos, em Psicologia, que 0 ser humano é a soma de suas relagdes. Nés nos constituimos, formamos nossa subjetividade, a partir das relagdes. Nos somos os milhdes de relagdes que esta- belecemos desde que nascemos, Mas, ideologicamente, eu diria, ‘a. concepgao.de ser humano liberal nega as relagées. Ja numa concepgio totalitaria, 0 que vale é a instituigio, a “comunidade” tomada como um todo, como fim em si mesma, negando, ou subordinando os participantes a esse todo que teria valor em si mesmo, Isso quanto concepgio de ser humano, Vejamos agora a questo do social. Concepgées de social Assim como é impossivel pensar comunidade.sem_pes-. soas, assim também & impossivel pensar comunidade.sem.o social. Acontece que, assim como com 0 conceito de ser humano, ha também varias concepgdes de social. E conforme a concep- cdo de social que temos, assim também poderemos assumir, & agit, diferentemente, em nossa atividade dentro da Psicologia Comuni Numa concepedo individualista e liberal, paralela & que define 0 ser humano como individuo, temos também uma con- cepeo de social em que, na verdade, o social nfo & nada mais ‘que uma soma de individuais. Nesse sentido, um grupo no teria nada de especial, além do fato de existirem pessoas juntas; mas nao se poderia dizer que ali houvesse algo essencial, ontoldgico, que fosse além do individuo. Essa é a concepgaio de social de uma Psicologia Social, por exemplo, que se expandiu nos Estados Unidos, onde ela foi reduzida a uma dimensio individual. Robert Farr (2002), em seu livro Raizes da Psicologia Social Moderna, explica muito bem esse fendmeno e mostra como os estudiosos americanos que foram 4 Alemanha para fazer seu doutorado ‘rouxeram de la, ¢ principalmente de Wundt, apenas a dimensio individual e experimental. Toda a dimensio social, os dez volumes da Volkerpsychologie que Wund esereveu no inicio do século XX, foram totalmente esquecidos. A Psicologia Social passou a scr lizada.e experimental. E foi assim que ela se expandiu pelo mundo, prineipalmente na América Latina, As eagdes contra tal tipo de Psicologia apenas comegaram a surgir na década de 1980, principalmente com a Fundagao da ABRAPSO- (Associagao Brasileira de Psicologia Social). Num enfoque oposto, no outro extremo, dentro de_uma concepgaio totalitiria, o social & definide como sendo a grandee ‘inica realidade. O individual nfo existe, 6 apenas uma parte de outra entidade, essa sim.real e concreta,,0 social, que passa a ser ‘um social reificado, coisificada. Ea visio comtiana edurkeimi de social, onde ele se transforma em coisa. Essa visio totalitaria -“Tevou a construgio de_um Estado também_totalitario, onde.o 4. que vale & 0 sistema, a instituigo, o grupo, ¢ o ser humano. se dilui dentro dele, pasando a ser apenas uma pega na grande maquina do sistema. Quando tomamos comunidade com base esse social, ela ird se constituir como algo corporificado, uma realidade concreta e com vida propria, uma espécie de maquina burocritica, onde 0 que vale € 0. sistema Entende-se aqui sistema. como algo fechado em si mesmo, auténomo, com vida prépria, autossustentavel, como o concebe Buckley (1967). Mas ha um outro social? Creio que sim, ¢ nesse enfoque o social, ele também, & uma relacdo. Nessa dimensio nao existe nem o individuo isolado nem o grupo-maquina, fechado: ha relagdes que compdem um grupo. Tanto as pessoas, numa comu- nidade assim entendida e assumida, como a propria comunidade, io incompreensiveis umas sem as outras. O serhumano se realiza em comunidade ¢ uma comunidade é sempre uma comunidade de seres humanos=relagdes. Nosso enfoque, tanto em sua concepgao ,ontoldgica como no aspecto epistemoldgico-metodologico, vaise fixar nas relacdes.— E na verdade, se refletirmos um pouco, é facil ver que esse conceito da conta de se compreender o que seja uma comunidade. Y fa se define pelas relagies, cla é constituida de pessoas=relagSes, Comunidade, no sentido que the queremos dar aqui, implica uma concepeao de ser humano pessoa=relagio, por um lado,.c suger’ ‘um tipo de social que se coloca como intermedirio entre. um social que nao é nada mais que uma soma de individuos, ¢ um social reificado, totalitario, com vida prépria ¢ autossustentdvel, Concluindo 0 termo comunidade se tomnou central is diseussdes sobre na contemporaneidade. Grandes filsofos éticos, como Habermas, Karl-OttoApel, Boaventura Sousa Santos, , discutem e sugerem um alternativa ao que chamam, com nomes diferentes, de “irracio- nalidades-globais™. Exemplos de tais irracionalidades seriam, entre outros, a avassaladora ¢ criminosa especulacao financeira, que transforma em “capital volatil” 20 trilhdes de délares dos 33 que constituem o PIB mundial, deixando para a produgo apenas 13 trilhdes; a impossibilidade de atribuir imputabilidade legal a ingentes conglomerados anénimos que decidem sobre os destinos de nagdes; a manipulagdo das grandes massas feita pelas buro- cracias andnimas ¢ pelos meios de comunicagao ete. As solugdes para tais problemas passariam, no seu entender, pela comunida- de, Habermas enfatiza a importincia do mundo da vida contra a colonizacio das subjetividades exercida pela burocracia®. Apel (2000) discute a importancia das comunidades de comunicagao. Aguas das principaisreferéncias sobre esse t6pico so: Boaventura Sousa Santos, Pela Maio de Alice ~ O Socal o Politico na Pés-Modernidade, S, Paulo: Cortez, 1996, principalmente o Capitulo 4, onde ele emprega os ‘termes “ieracionlidades globais” e “comunidades interpretativas”. Também: Karl-Otto Apel, The Sinsation of Humaniti as na Ethical Problem, em Praxis International, 4: 250, ¢ outros eseritos, onde emprega otermo “comunidades decomunsai" ingen Habeas, Tri dein clin Comucate, 2a es el ae 1987; Agnes Heller, The Human Condition, {Um arfundanent sabre esa quest, no gue tng Habermas, pode se eign Reber N. Relish "Comnmiarismo ou Liberals? Bl stadas Unidos cm bate, em: est de Souza (ns), Oman eo protestant riana ea singularidade cultural brasileira, EdUnB, Brasilia, 1999, . 306-8. Na inerpretagio de Bellah, 0" 8.3064: Ns nero lah, © “mundo da vida” de Habermas & 0 Boaventura Santos apela para as comunidades interpretativas como capazes de garantir a liberdade das pessoas e conseguir alternativas de mudangas. E Heller rediscute a importancia de recuperar 0 cotidiano. a “ — Talvez a primeira seja a de que(comunidad®? como a tomamos aqui, implica, além da dimensio_ organizacional e burocritica, a presenca de sentimentos.¢ afetos, que responde “~~ a necessidade dos seres humanos de amar e ser amados, como {ji discutido por Toennies: uma comunidade (Gemeinschafi) & diferente de uma sociedade (Gesellschaft). Numa comunidade, diferentemente de numa sociedade, nfio sto colocadas em comum apenas relacdes secunditias, relagdes funcionais, burocri ticas; na comunidade so partithadas também relagdes priméias, isto é, relagdes de afeto, comunhio, amor. Os seres.humanos, para sua plena realizagZo, necessitam viver essa dimensdo afetiv. Um “individuo”, numa relagao de competitividade onde “quem pode mais, chora menos”, é impedido de viver tal dimensio. Ou, ‘como poderiam os seres humanos, quando reduzidos a “pegas de uma maquina”, desenvolver a necessidade de serem reconhecidos como pessoas, serem aceitos e amados? ‘Numa.comunidade-como.a.entendemos, se constitui em uum tipo de vida em sociedade “onde todos sto chamados pelo nome”, isto é, onde todos sio identificados como seres humanos autOnomos e com isso tém a possibilidade de poder dizer sua palavra,expressar seu pensamento, manifestar sua opin. AS pessoas so reconhecidas como “sujeitos” que participam, com subjetividade propria, como seres singulares. Tal > © autor que por primeiro claborou qualitaivamente o conecito de comuni- dade foi Ferdinand Tocnnies, em seu livro Gemeinschaft und Gesellschaft eseritoem 1887. A traduio em inglés, em que me baseei esti em Worsley, P Modern Sociology — Introductory Readings, Harmondsworth: Penguin, 1970 le mostra, alias diferengas entre eomunidade e sociedade. 2 fundamental para que o ser humano possa se realizar como “ser politico”, que é uma das dimensdes centrais.do ser humano. E ¢ através do fato de ter nome e dizer sua palayra que ele podera participar da construgdo da cidade; Participagaoyaqui, é tomada no nivel do planejamento, ¢ nfo apenas no nivel da execucio ou da participagao dos resultados. Misteriosa a comunidade. Um mistério, sim, mas mistério nao é algo que nés nao entendemos: mistério ¢ algo do qual nao ‘entendemos tudo. Mas uma reflexio ¢ uma pritica comprometida poderiio ajudar a iluminar, sempre mais, esse mistério. E para isso que as reflexdes deste livro podem colaborar. Referéncias APEL, Karl-Otto. Transformagdo da Filosofia I: Oa priori da Comunidade de Comunidagao. 8. Paulo: Loyola, 2000, BAUMAN, Zygmunt. Comunidade ~ a busca por seguranga no mundo ‘tual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003 BUCKLEY, Walter. Sociology and Moclern Systems Theory. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1967, FARR, Robert. As R 2002 (5* ed. GUARESCHI, Pedrinho A. Psicologia Social Critica ~ como pritica de libertagdo, Porto Alegre: Edipuers, 2005 (2* ed), izes da Psicologia Social Moderna, Petropolis: Vozes, Hick etl ede Main Ae O8 cf 23 Capitulo 1 O PARADIGMA ECOLOGICO NA PSICOLOGIA COMUNITARIA: DO CONTEXTO A COMPLEXIDADE Jorge Castellé Sarriera Importancia da escolha de uma teoria explicativa ‘Ainda que nos seja familiar a maxima: “no hé nada mais pritico que uma boa teoria”, a experiéncia nos mostra a difi- culdade de demonstrar coeréncia entre 0 que pensamos e 0 que fazemos. Assim tem acontecido, durante muito tempo, com a Psicologia Comunitéria, disciplina que de forma intuitiva, pela le “ensaio-erro”, tem explorado caminhos da ago comunitiria. Por esse motivo algumas priticas comunitérias se transformaram em ages assistencialistas, e, além do mais, com frequéncia, niio coniseguem avaliar 0 éxito de seus objetivos de trabalho, se é que estavam inicialmente explicitados. Profissionalizar a tarefa do psicélogo comunitirio im- plica na realizago de um trabalho que: 1) tenha como tela de fundo uma boa teoria explicativa, geralmente avaliada de forma positiva por outros profissionais da drea que tenham experiéncia © conhecimento; 2) que seja capaz de realizar uma anilise sis- temitica e a mais completa possivel da realidade, com base no conhecimento construido entre o saber cientifico eo saber popular, 27 3) que se oriente pelos valores éticos de respeito, solidariedade Seri a opgao profissional, junto com os valores pessoais ea e compromisso. anilise do problema ou situagao a trabalhar, que levari & escolha A Psicologia Comunitiria, como area aplicada da Psico- do instrumental teGrico-metodolégico que podert ser mais eficaz logia Social, pode valer-se de qualquer teoria que explique 0 para se chegar aos objetivos propostos, Na prética, muitos concei- comportamento humano, Porém, cada teoria tem se construido mediante © conhecimento produzido a partir de determinadas priticas e em determinados contextos. Uma teoria tera mais consisténcia ¢ forga explicativa dentro do campo no qual foi validada, Assim existem boas teorias para explicar os processos de aprendizagem, a clinica psicolégica, 0 contexto social, educa- cional, laboral ¢ da saiide. Transferir conhecimentos construidos de uma area de atuagio para outra pode trazer dificuldades in- terpretativas por ignorar as especificidades do entorno de onde comportamento se produz. Por isso, os psicdlogos comunit tém escolhido, adaptado ou criado teorias que tém sua origem nas pratice is, por vezes de dreas afins, como a antropologia, a educagao, o servigo social, a medicina social, outras da prépria Psicologia, como a Social, Educacional, da Satie ou Institucional, As teorias expostas neste livro expressam aquelas que os psiedlogos comunitirios latino-americanos desenvolveram com. maior énfase por acreditar que representem melhor nossa real dade, Sao elas: a Psicologia Social Comuni tos das teorias antes citadas se complementam e se enriquecem. Cada uma delas atribui maior importéncia a certas categorias de anilise ow a focos temiiticos determinados (conscientizagio, forta- lecimento, organizagio, mudanga comunitiria, saiide, prevencio, desenvolvimento humano e social). As teorias que selecionamos para este livro, apesar de suas diferencas, possuem pressupostos epistemologicos convergentes. A crise paradigmatic Estamos saindo atualmente de uma crise paradigmitica jas entre os mais con- que tem marcado discussdes univers servadores ¢ progressistas, A busca atual de novos paradigmas expli tigagdo psicologica e social tradicional, segue uma perspectiva mnais integrativa e comprometida socialmente com o set humano, vos, capazes de resgatar os elementos perdidos na inves- ‘A evolugo dos conhecimentos, os instrumentos € as es- ia (Serrano-Garcia y Collazo, 1992; Montero, 2003) e a Psicologia da Libertago tratégias do trabalho interventivo ¢ investigativo, especialmente (Martin-Baré, 1998). Por outro lado, estfo as teorias adaptadas nas dreas aplicadas, questionam o chamado paradigma tradicio- a nossa realidade mas provenientes de contextos diferentes, que, nal ou positivista, até pouco tempo divisor de diguas entre o que por sua relevancia, esto contribuindo com o avango da Psicologia era considerado cientifico ¢ nao cientifico. Tem sido duramente Comunitéria latino-arnericana. Sto elas: o Paradigma Ecalégico criticado por nds, psicélogos sociais, por ser reducionista e sim- em Psicologia Comunitiria (Kelly, 1986a, 1986b; Sarriera, 1998, plificador da realidade humana. 2004) ¢ o Enfoque Ecolégico-Sistémico da Satide (Saforcada, Outros paradigmas, chamados pés-modernos (Montero, 2001, 2003). Sabemos que nenhuma destas tcorias é, por si $6, 1996), valorizam aspectos da realidade deixados de lado pelo capaz de explicar a complexidade dos fenémenos sociais, nem & paradigma tradicional, como: a complexidade, a desordem, 0 suficientemente ampla para assumir, 20 mesmo tempo, diferentes ‘movimento, a experiéncia, o significado, o contexto ¢ a consci- niveis de anilises (pessoas, grupos, instituigdes ou sociedades). Encia, os quais se constituem em elementos de anilise necessirios 28 29 para uma realidade, jé no estitica, mas em permanente troca © construcao, A perspectiva epistemoldgica, a visio de homem, de mundo ¢ de realidade tém mudado ¢ inclusive o proprio conceito de Cién- cia, Os supostos ontoldgicos se afirmam desde uma perspectiva ética das relagdes interpessoais e do trabalho cientifico. O conhe- cimento sobre o ser humano se expande, integrando-se em uma compreensio mais unitiria a partir do entendimento das interde- pendéncias que ultrapassam o ser humano ¢ seu ambiente vital. ‘Como toda rea de conhecimento, a Psicologia Comunitiria necessita propor e discutir seus principios epistemolégicos, seus construtos explicativos e seu instrumental metodolégico. Mas, além disso, ¢ como caracteristica da Psicologia Comunitiria, os pressupostos éticos assumem muita importincia, enfatizando valores, entre eles a mudanga social por melhores condigdes de vida, a participagdo dos cidadaos, a elaboracao de politicas pibli- cas que contribuam para a diminuigdo das desigualdades sociais ea busca de melhores condigdes de saitde, trabalho e moradias dignas para todos. Como afirma Maritza Montero (1996), a construgio de um paradigma em Psicologia Social deve se embasar na valorizagio da construgdo ¢ transformago critica, através de uma relagdo dialogica e participativa entre o pesquisador extemno (psicdlogo comunitirio) e os pesquisadores internos (comunidade), dando énfase A aplicagdo dos avancos da ciéncia a servigo da mudanga social e da melhoria da qualidade de vida. O Paradigma Ecolégico em Psicologia Comunitaria A palavra “ecolégico” (do grego oikés = “habitat”, casa) representa uma metifora que, para Bott (1999), significa 0 cui- dado com 0 entomo, com a natureza, com as pessoas, com as 30 comunidades, para conquistar ou preservar uma qualidade de vida desejavel de forma sustentivel e solidéria. Pensar em ecologia significa pensar na interdependéncia entre os sistemas que nos rodeiam, e no bom aproveitamento e adequada distribuigdo dos recursos. Significa também pensar em rede, pensar acerca da complexidade € da produgio da subjetividade social nos mais diversos contextos e eventos. Ser ecolégico significa ter uma atitude proativa e interativa com 0 ambiente (micro, meso, ma- crossistémico). E buscar a harmonia do homem com a natureza, produzindo cultura e transformando o entorno num lugar com me- Thores condigdes de vida para todos. Essa adaptagao ou harmonia entre o homem e seu contexto tem cardter ativo e transformador, e significa a boa convivéncia e 0 equilibrio, Nao obstante, exige também uma vigilncia permanente para sua preservaco e para a promocio do desenvolvimento do ser humano e de seu ambiente em constante mudanga. Encontramos no Paradigma Ecolégico possibilidades de uma visio mais holistica da realidade, com um instrumental de anélise mais préximo do contexto psicossocial no qual esto mersas pessoas e comunidades. Gragas ao desenvolvimento atual do conhecimento psicolégico e de dreas afins (interdisciplinares), podemos contar com uma série de teorias que dao sustentago a0 Paradigma, Como podemos ver no Quadro 1, escolhemos algumas teorias que consideramos mais relevantes para configurar Paradigma, expondo-as através de dois eixos, adaptando a ideia de Swartz ¢ Martin (1997, p. 11), que explicam a realidade desde ‘uma perspectiva mais subjetiva (Realidade Percebida), até a mais objetiva (Realidade Atual), dependendo a énfase na Pessoa ou no Grupo e na Comunidade. Como autores mais representativos da concepgiio ecolé- ‘ica do ser humano, isto é, da explicagtio de que o ambiente exerce um importante impacto nas pessoas ¢ que as mesmas poderdo 31 exercer maiores repercussdes sobre as mudangas ambientais, ci- tamos Kurt Lewin, desde 1935 (1951; 1978), ¢ demais pioneiros de teorias sistémicas e ambientais, como Bertanlaffy (1968) ¢ R. Barker (1968). Posteriormente, o desenvolvimento de outras teorias tem dado maior consisténcia ao paradigma, como o de Ecologia do Desenvolvimento Humano, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner através do Modelo Bioecoldgico (1998), no qual Pessoa, Processo, Contexto ¢ Tempo (PPCT) nos ofe- recem uma excelente base de compreensio entre 0 proceso biolégico e 0 contextual do desenvolvimento em suas dimensdes espago-temporais. ‘Outras propostas de modelos que contribuem para a com- preensio desta proposta paradigmética sdio a Ecologia Social, desenvolvida por Rudolf Moos (1973), que elabora a nogio de clima familiar, social, escolar, organizacional ¢ apresenta ins- trumentos para sua avaliaga0; 0 modelo ecologico das Relagdes Satide-Trabalho, desenvolvido nas tltimas décadas pela equipe de Peter Warr (1987), que analisa as relagdes entre desemprego, meio ambiente e satide mental; a Ecologia Contextual na Psicologia Comunitiria, desenvolvida por James G. Kelly (19866) € por Trickett (1984), aplicando a intervengdo comunitaria os prinefpios do modelo ecolégico, apoiados também por Rapaport (1981), que afirma que 0 objetivo basico de todo psicdlogo comunitario deveria estar relacionado ao fortalecimento (empowerment) de pessoas e comunidades. 32 Quadro 1. Matriz Configurativa do Paradigma Ecoligico rapa Comeniate a Neos (teens Ba) Gee eto)” (Eoee/C Sot (Elerin) me i Ca eee ening nemo) P Carat! ‘aso Gin oer Pensadores atuais propdem um novo mundo possivel para a cigneia a partir da complexidade, como Edgar Morin (2001), € da interdependéncia, redes de relagdes ¢ processos, como F. Capra (2002). No caso do Brasil, sem configurar uma teoria, mas com um aporte relevante, a perspectiva da Ecologia Integral, de Leonardo Boff (1999), é uma fonte de inspiragio para os psicé~ logos comunitirios. Nao cabe aqui estendermo-nos em cada uma destas teorias. Quem estiver interessado nestes enfoques deveri conhecer e submergir nas leituras de cada um de seus autores, sobre os quais deixamos nas referéncias bibliogrificas possibi dades de leitura complementar. © Paradigma Ecolégico é um dos mais difundidos atual- ‘Mente entre os psicilogos comunitirios. Rappaport (1981), um dos pioneiros e fundadores da area de Psicologia Comunitéria, firma que a natureza da teoria em Psicologia Comunitiria nlio 33 pode ser seno de natureza ecoldgica, porque seus valores so ‘0s que melhor servem aos interesses da drea. Ao mesmo tempo, afirma 0 autor, a proposta ecolégica é a que melhor conduz 20 descobrimento mais fidedigno dos fenémenos comunitarios (Hombrados-Mendieta, 1996). Kelly (em Saforcada, 1992) justifica a escolha deste para- ddigma por seus valores ¢ bases epistemologicas: ‘A pesquisa realizada sob as premissas filos6ficas e metodo logicas do positivismo tem surtido efeito de reduzir nosso conhecimento sobre as limitages ¢ qualidades complexas peculiares de um “sistema” determinade [..}. Proporemos que uma epistemologia ecoldgico-contextual proporcione 4 liberdade para estabelecer linhas de pesquisa mais con- igruentes com os interesses filoséficos € sociopoliticos da Psicologia Comunitira (p. 46). Na América Latina 0 Paradigma Ecologico esta presente na Psicologia Comunitiria em varios paises, com uma produgo cientifica relevante, onde se destacam alguns trabalhos, como os que vém realizando Saforcada, na érea da Satide Pablica na Argentina (Saforeada, 2001, 2003); ou na area do Desenvolvi- mento Comunitério no Chile (Rozas, 1995); na Pesquisa ¢ In- tervengio Psicossocial no Brasil (Sartiera, 1998, 2004; Maciel, 2000); na produgio teérica e pritica da Psicologia Comunitaria na Venezuela, denominado como Paradigma da Construgio ¢ Transformagdo Criticas (Montero, 1997, 2003). Passamos a expor as bases teéricas, 0s elementos para a compreensio dinimica da realidade e as estratégias de interven- ‘so comunitaria, que compem os principios explicativos bisicos do Paradigma. 4 A estrutura ecol6gico-sistémica O meio ecoldgico se compde de estruturas fisicas, sociais e psicolégicas que caracterizam o intercémbio entre pessoas e seus ambientes. E concebido como uma série de estruturas con- cGntricas chamadas microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema (Figura 1). Figura 1. O meio ecolégico Os contextos nos quais a pessoa desenvolve sua vida e suas atividades recebem 0 nome de microssistemas. A familia, ‘escola, o trabalho, a igreja, a rua, o posto de saide ete. sio di- ferentes microssistemas que fazem parte do cotidiano de nossas vidas, Cada microssistema tem caracteristicas fisicas e materiais Particulares e entre eles se dio as relagdes, se atribuem papéis ¢ Se desenvolvem atividades. Um grupo de microssistemas inter-relacionados compoe lum mesossistema, que se earacteriza por ser um contexto maior penne desenvolve sua vida. Este Ambito é o comunitirio, lo por uma série de microssistemas, e tem uma unidade de 35 analise especifica. O mesossistema, portanto, exige uma anilise das inter-relagdes entre dois ou mais ambientes nos quais a pes- soa participa ativamente. Intervém as caracteristicas pessoais, familiares, educacionais, sociais ¢ de trabalho das pessoas da comunidade, assim como os aspectos fisicos (drea geogrifica, infraestrutura sanitaria, elétrica, de habitagdo etc.) eos recursos ou apoios soci ¢ associativos). Estes indicadores sio imprescindiveis para 0 estudo integrado da comunidade. ‘Além das influéneias dos diferentes microssistemas dos s (sanitirios, de seguranga, educacionais, religiosos quais a pessoa faz parte ativa, existem outros microssistemas ou ambientes que, ainda que nao se participe diretamente deles, exercem influéncia na conduta. Por exemplo, as condigdes de trabalho do pai ou da mle poderdo influenciar as relagSes fami- Jiares e o desempenho escolar dos fills. Outro exemplo sio as instituigdes politicas, de saiide, educagao etc., das quais depende (© mesossistema comunitério € que exercem notavel influéncia nna qualidade dos atendimentos aos membros da comunidad. Este sistema, do qual a pessoa ou a comunidade nao participa diretamente, mas do qual sofre indiretamente sua influéncia, se denomina de exossistem: © macrossistema conecta ¢ atravessa os sistemas de me- nor ordem (micro, meso e exo). Esse sistema se refere, tanto em sua forma como em seu contetido, as diferentes subculturas, & cultura como totalidade, aos sistemas de erengas e ideologia que sustentam as relagdes entre subsistemas (politicas educativas, de satide, econdmica; valores, tradigdes, modelo socioeconémico imperante, entre outros). Quando a posigao no ambiente ecolégico de uma pessoa ou comunidade se modifica, como consequéncia de uma mudanga de politicas, de atividades, de papéis ou de recursos do sistema, se di um processo de transigao ecolégica. Se essa transigio for 36 preparada, antecipada, ¢ forem desenvolyidos recursos para sua rapida resolugdo, a transigdo entre microssistemas ou do proprio mesossistema seri mais saudavel e com menos estresse psicos- social. Estudos de Sarriera (1995; 2004) centrados na transigao dos jovens da escola ao trabalho revelam as dificuldades dos jo- vens nesta etapa, para ¢ qual nfo foram preparados, muitas vezes por omissio da escola, familia e sociedade, encontrando-se em uma “terra de ninguém”, desencadeando mal-estar psicologico e social. O ser humano, como a comunidade, esti em continuo processo de adaptagio, evolugiio ¢ intercdimbio. Adaptagao aqui significa, diferente do conteiido funcionalista, por muito tempo imperante na Psicologia, nfo a auséncia de tensio, mas sim o desenvolvimento continuado do fortalecimento dos recursos da pessoa ¢ do ambiente. Assim, se deseja a construgio continuada de ambientes étimos e saudiveis nos quais as possibilidades de ‘adaptagdo e desenvolvimento se potencializem na construgio do sujeito e de uma sociedade melhor. Este entendimento ecolégico-sistémico da realidade nos revela a riqueza multidimensional da anilise dos fendmenos psi- cossociais, respeita e nao reduz a complexidade dos mesmos, propde o desenvolvimento da pessoa através da otimizagao de seu potencial para exercer mudangas no meio, Ao mesmo tempo no ignora, mas pontua a influéncia determinante do ambiente na conduta, A dinamica do Paradigma Ecolégico __ Os prineipios pelos quais se orienta o Paradigma Ecol6- ico mostram a forma dindmica da interagdo pessoa-ambiente, Segundo Kelly (1966) ¢ Trickett, Kelly e Todd (1972), so os seguintes: Interdependéncia Tanto pessoas como ambientes, quando provocam ou experimentam alguma mudanga, produzem também mudangas nos demais sistemas (pessoas, familia, escola, comunidade, soe dade), Pessoas ¢ ambientes permanccem em constante interagao, io somente no sentido de se inffuenciarem mutuamente, senio também por sua interagdo continuada no transcurso do tempo. ‘Sendo ambos ativos ¢ transformadores, podemos avaliara impor- tancia tanto do sujeito como protagonista da mudanga no ambiente social como o sujeito sendo transformado, através do tempo, pelo proprio ambiente social, ‘Como exemplo desta interdependéneia podemos analisar 0 processo de desinstitucionalizagaio dos doentes mentais, da inelu- sio escolar das criangas com necessidades especiais, da insergl0 dos imigrantes na nova cultura, dos problemas de fome, de mal atendimento na saiide piblica, entre outros. Esses programas de ago social conseguiram se desenvolver na medida em que houve articulagio entre os diferentes sistemas direta ou indiretamente implicados, Podemos distinguir, segundo Prilleltensky (2000), trés interdependentes de andlise: 1) o pessoal (micro); 2) 0 relacional (meso); ¢ 3) o coletivo (macro). Como consequéncia do principio da interdependéncia, os acontecimentos, recursos e pessoas situados em meios sociais imediatos a pessoa (micro) ‘wna comunidade (meso) influenciaram também as estruturas, ‘0s papéis ¢ as normas de funcionamento do proprio meio social (macro), ‘A interdependéncia se contrapde & perspectiva “hada”, individualista, na qual o sujeito & considerado como ‘inico pro- tagonista. Também se contrapde aos procedimentos impostos socialmente sem participagao do sujeito na comunidade, sendo a ideologia, 0 poder piiblico ou a equipe técnica 0 tinico ator, nivel 38 excluindo a comunidade. Nao resta diivida de que nossa agio staré centrada no que Bronfenbrenner (1996) chama de “unida- de de funcionamento”, pessoa-ambiente, ambos inseparaveis construtores da subjetividade social, Somos desafiados hoje, por sermos psicdlogos comunita- rios, a vislumbraras possiveis consequéncias da ago comunitaria nos diferentes sistemas, direta ou indiretamente envolvidos, ¢ os aspectos éticos relacionados. Ao mesmo tempo temos que focar nossa agdo para saber escolher a unidade de anilise de pesquisa adequada, sem perder a complexidade do fendmeno e também sua singularidade. Conaruéncia e adaptacao. Consiste na tendéncia para encontrar um equilibrio entre a dinamica do desenvolvimento das pessoas, dos sistemas ¢ das ‘oportunidades ou dificuldades que vao surgindo. O continuo de- senvolvimento inerente as pessoas e a0 meio facilita uma série de atividades, assim como inibe outras, mudando sempre as condigies no ecossistema Os dois processos que intervém para aleangar a congru- éncia so 0 enfrentamento ¢ a adaptacio. Em toda situagio, 0 ‘comportamento reflete um processo continuado de adaptaco competéncia da pessoa ou da comunidade com relagio ao seu meio ambiente. Diferentes contextos e diferentes tempos pode- Ho modificar os critérios de um comportamento considerado até entao adaptativo ¢ terdio que mudar buscando melhores e mais Competentes formas de resolucao, Evolugaio e sucesso A sucessio traz a perspectiva de longo prazo e orienta sua tengfo na andi a ‘40 na analise do contexto hist6rico da comunidade, onde 39 © problema ow a necessidade sfo vistos desde uma perspectiva integrada de tempo e orientada para o futuro (Nelson & Prillel- tensky, 2004). Da mesma forma que é essencial 0 conhecimento da hist6- ria do individuo para sua compreensio atual e dos recursos dos 4quais disp6e, também 0 meio ecolégico (geogrifico, cultural, biolégico) dispie de seus préprios recursos © de sua prépria historia. Construir 0 futuro tem como base uma boa informagio e sibia compreensdo do pasado e do presente. Dentro da nossa perspectiva, pessoas, contextos € acon- tecimentos deverdo estar em constante processo de avaliagio. ‘A mudanga pessoal e/ou comunitéria poderé dar-se de forma espontinea ow a partir de uma determinada intervengao, A mu- dana representa uma oportunidade para redefinir e reajustar os recursos que possam facilitar 0 processo de evolugo. ‘Troca e desenvolvimento dos recursos (Os sistemas se caracterizam pelo interedmbio de recursos. Pessoas ¢ contextos trocam produtos, seja em forma de relagdes, conhecimentos, trabalho, dinheiro, tecnologia, poder, tempo etc. Este principio focaliza a importincia da identificagio, desenvol- vimento, modificagao, criago © obtengao dos recursos para 0 fortalecimento comunitario. O processamento de recursos dirige sua atengdo também a0 potencial de recursos até entio nao desenvolvido ou descoberto, como a sensibilizagao das pessoas através de uma consciéncia mais clara da necessidade de desenvolvimento de suas capaci dades, habilidades sociais e de lideranga, assim como a poten- cializagao dos recursos da comunidade, ou, em sua auséncia, a possibilidade de criagio ou obtengio dos mesmos, que poder evar a methoria da qualidade dos ambientes e das pessoas neles incluidos. 40 A intervenco psicossocial na perspectiva ecol6gico-contextual O enfoque ecoldgico utilizado pelos psicélogos comuni- trios dé énfase & pessoa imersa no contexto, em contraposi¢a0 4 postura histérica da Psicologia tradicional, que focaliza as va- riéveis individuais e deixa de lado o papel dos sistemas sociais na construgaio do sujeito. Dentro do modelo ecolégico se privilegia a pesquisa em contextos naturais, contrapondo-se aos cenitios artificiais. Coe- rente com seus prineipios, 0 psicdlogo comunitirio se insere € se familiariza no contexto onde ird desenvolver sua intervengao. As propriedades ou caracteristicas das pessoas, as estru- ‘tras que definem os contextos sociais e os processos que ocorrem neles devem ser analisados nos sistemas onde ocorrem (unidades de anailise), com a finalidade de preservar a singularidade e espe~ cificidade de cada subsistema Considerando os passos do desenvolvimento da pesqui- sa no enfoque ecoligico, cabe destacar, em primeiro lugar, a importincia de identificar os problemas que surgem em um de- terminado contexto ou situagio e avaliar como os sistemas do contexto provocam, incrementam ou mantém estes problemas ou necessidades. A permanéncia dos problemas ou necessidades ode ser devido a falta de recursos do proprio contexto para fazer frente aos mesmos. Caberd ao pesquisador e 4 comunidade com- Preender ¢ respeitar os valores e a cultura do contexto, localizar de forma adequada a manifestagiio dos problemas e propiciar a autonomia eo fortalecimento de recursos pessoais e comunitirios Para sua solugao (Levine citado por Hombrados-Mendicta, 1996). Em nenhum caso o psicélogo comunitério determina ou leva a Priori seu foco de investigagao desconsiderando a comunidade © as caracteristicas do contexto. 41 Para avaliar os contextos propomos trés dimensdes dife- rentes, ainda que complementares: 1) ambientes percebidos, ava- liando as relagdes, desenvolvimento pessoal e a permanéncia ou a mudanga nos sistemas (Moos, 1974/1994); 2) caracteristicas objetivas do ambiente: fisicas e arquitet6nicas; politicas e proce ‘ments; recursos ambientais; indicadores demogrificos ¢ sociais da ‘comunidade; 3) esquemas transacionais incluindo earacteristicas de conduta das pessoas e do ambiente (Linney, 2000). Para toda intervengio, 0 psicologo comunitario tem que estar embebido do espirito ecoligico da intervengao (Trickett, 1996), para poder levar a cabo seu trabalho social. Em primeiro lugar, a premissa participativa e colaborativa 6 fundamental (Kelly em Saforcada, 1992): trabalhar com a comunidade e niio para a comunidade. O grau de participago da comunidade é uma boa medida do éxito da intervengao. Em segundo lugar, temos que estar atentos, sabendo que resolver um problema num contexto pode gerar novos problemas em outros contextos. A perspectiva ecolégica pressupde que a mudanga social no é linear. Em ter- ceiro lugar, 0 foco da intervengao nao esté dirigido aos objetivos individuais através de um programa comunitério determinado, entdo se deve ter uma perspectiva das metas que se conseguir coma intervengaio nos diferentes niveis de andlise. O éxito de uma intervencao se fundamenta na capacidade de mobilizar a comu- nidade e 0 contexto para futuras agdes e programas, E em quarto lugar, uma intervengio dependeri do papel e das caracteristicas do interventor. Por definigao a intervengo ecolégica é flexivel e improvisada, iniciando por enfatizar a construgio de boas relagdes com os diferentes setores da comunidade. ‘Nao podemos esquecer alguns pressupostos que nos auxi liardo na hora da intervengio: — Oconceito de ambiente ecoldgico com miiltiplos niveis lise. Cabe defini inicialmente um nivel de andlise. = Aceitar que a conduta é transacional e nao pode ser analisada fora do contexto onde esta ocorre. Reconhecer a possibilidade de descobrir grandes dife- rengas em ambientes semethantes. — Entendero contexto nos leva a poder identificar padres individuais de conduta num determinado tempo e espago. Em sintese, se formos propor uma estratégia de interven- fo dentro desses pressupostos, algumas etapas poderiam ser consideradas como fundamentais, conforme Fernandez-Balles- teros (1987): 1. Identificar os contextos ou sistemas relevantes da pes- soa, comunidade ou instituigdes em foco, com base nos ‘objetivos da intervengio; 2. Estudar as caracteristicas dos contextos(fisico, hist6rico, social, politico, cultural); 3. Avaliar as necessidades e as variveis ambientais per- cebidas pelas pessoas (problemas, expectativas, valores, atitudes, representagdes), ¢ contrastar se estas mesmas percepedes se manifestam em outros sujeitos que habi- tam nestes contextos; 4. Planejar de forma colaborativa, entre pesquisadores extemos e internos, os possiveis ambitos de abordagem ou dreas de intervengao; 5. Avaliar sequencialmente as modificagdes produzidas pelas interagées entre pessoa-ambiente, pesquisador- comunidade, Em sintese, a avaliago de uma intervengaio ecol6gica im- Plica identificar condutas, expectativas, necessidades, cenérios “ Condigdes da intervengo. Ao analisar os contextos se iden- ‘ficam também as possiveis fontes de discordancia. Algumas 43 caracteristicas diferenciais dos ambientes (natural ou social, ¢ especificos, como a classe, a familia, a empresa, a comunidade) faro com que a intervengao se oriente de forma diferenciada. Alguns conteitdos de anzlise para a intervengaio sempre devem estar presentes, como: conscientizagao, relagGes, redes de apoio social, organizagio, mudanga social e recursos. A leitura fenomenolégica que o pesquisador faz da reali dade se relaciona com critérios de cientificidade essenciais neste enfoque, como a validez ecolégica, que consiste na andlise das possiveis correspondéncias entre as percepedes que as pessoas tem e as caracteristicas ou propriedades que 0 pesquisador ‘supe ou pensa que tenham as pessoas ou comunidades. Supe, como afirma Kelly (em Saforcada,1992), uma construgdo mitua centre pesquisador e participantes num determinado contexto compartithado. Outro parimetro de cientificidade esta relacionado com a validez do desenvolvimento. Como uma determinada interven- 0 tem podido contribuir ou contribui com o desenvolvimento humano ou comunitirio? As mudancas produzidas em concep- Ges c atividades de pessoas e comunidades se estenderam a ou- {ros sistemas ¢ ambientes, ou no mesmo ambiente em momentos diferentes? Neste aspecto, Bronfenbrenner (1996) assinala o que seria uma mudanga transformadora: [aquela mudanga que consegue] a modificago e a reestru- turagao sistemitica dos sistemas ecolégicos existentes, de forma que desafiem as formas de organizagio social, os sistemas de erengas ¢ os estilos de vida que prevalecem em ‘uma cultura ou subcultura particular (p. 61), Ainda que o estudo dos contextos sociai cesteja em fase 1 de desenvolvimento, existem avangos na instrumentali- ini zagiio, conceitualizagio e avaliagdo de contextos. Os psicdlogos comunitérios necessitam entender os aspectos patolégicos & 44 opressivos que caracterizam os ambientes humanos e estudar os ambientes saudéveis que possam ajudar no trabalho junto as comunidades, para eriar ambientes que promovam satide, bem- -estar e competéncia (Nelson & Prilleltensky, 2004) Podemos concluir que o Paradigma Ecolégico em Psico- logia Comunitiria representa uma perspectiva tebriea que entende a realidade dentro da complexidade, como uma cons- trugo conjunta ¢ interativa entre pessoas e ambientes, criando consciéncia ¢ informago das interdependéncias que criam as injustigas e desigualdades, desenvolvendo ¢ fortalecendo os recursos que contribuem para uma otimizacao das condigdes de vida, atuando nas instdncias macro, meso e microssistémicas, de forma colaborativa e solidaria entre os membros da comunidade © entre o pesquisador ¢ a comunidade, fortalecendo as redes sociais que auxiliam na resolugo dos problemas psicossociais. © Paradigma Ecolégico promove a integragao das relagdes in- terpessoais, 0 conhecimento das caracteristicas sécio-histdricas da comunidade, 0 espago fisico, o ambiente em seu sentido mai amplo, a cultura ¢ os recursos existentes. Atende as caracteri ticas especificas de cada contexto, e propicia aos pesquisadores uma instrumentago variada, com metodologias participativas, qualitativas e quantitativas, segundo os objetivos de cada pro- rama comunitirio, Propde como valores prioritérios a qualidade de vida ¢ 0 estabelecimento de estruturas sociais que apoiem 0 desenvolvimento, a igualdade e a diversidade, através da ago Participativa ¢ transformadora de pessoas e comunidades. Referéncias BATESON, G. Pasos hacia una ecologia dela mente, Buenos Aires: Planeta- Carlos Lohié, 1991, BARKER, R.G. Ecological Psychology: concepts and methods for studing ‘he enviroments of Human Behavior. Cal Stanford: University Press, 1968. 45 BERTANLAFFY, L. V. Organismic psychology and system theory. Worees- ter Clark University press, 1968, BOFF, L. Saber euidar: ética do humano ~ compaixdo pela terra. Petrépolis Vozes, 1999. 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Se en- ‘endemos a vida como uma permanente atualizagio e expansd0 das potencialidades biopsicossocioculturais das pessoas e seus Gxtomos, podemos deduzir que é saudivel ou salutogénico, em EEzmos de Antonivsky (1987), tudo o que gera tai atualizagses aBuns®es, ou promogdes, sempre que ndo impliguem na obs- i "aculizagio ou impedimento deste processo em outras pessoas Sue seus entomos. E isso Porque, por retroalimentagao, tais 49

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