(Barrows) Conceitos Da Psicanálise - Inveja PDF

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OS Sten Inveja fs | CONCEITOS DA PSICANALISE Inveja KATE BARROWS Editor da série Ivan Ward | | | — eas in Pychoeras~ nfl pleas ro loo Unido om 2002 por tn Book The Ot Bly, rok Pa Ton, Cambrane S68 TFS oy dae © 2089 Kae Baron Conceitos da Paicanlice ~ mala ¢ una co-edo da Ecou, Sopra Dusto Fatal Lida. coms Ramo Curert Cae Edioure, Soumento-Dueto Ector Lidas Fun Cunha Gago, 412, * anda, Sto Pal, GF CEP o5421-0D, abtons (1) 2038-5688, Felume Bumard Eetors: Ru Nova Jousnim, 945, Bonsuceso, A dn tuto, CEP 21042.235, taloonn 21) 2864 868 ‘opr ca ecgao basta © 2008 Dust Eri oat ete Abate Ser one Carer Er) Fare An ula Ase Ooo Eth “radupio e ecipio cabs Nena Roa Fevkeso terion Paulo sear Imagen de fondo: cet de Paavee, e otic tena CtP res, Catlogoto ante Stone Nasal dos fives do vos, 2288 Oarons, Kate ive Kate Baro radio Cae Mensa Ros, - Ro de Rosie sine Durart" Edouc' Sto Pel Sognen-Dtt (Covcates és pando ;19) “Tete a: oous npsycoanayaney ‘sow deraiesooe 1, Fret, Sigrun, 1856659. 2. Kan, Neri, 1060-1860, 9. ru am Kat 1877-82548 Paconine Ith Sei os 00 e240 (OU 18H Tacs os sion osovadon A oO] lo GASIEGS ae ‘Tolos os dios reservados. A raprodigio ae mtoza dos paslegio, por 42.8 moo aja oa ou pall, cow vip ds alr 8 08, INTRODUCAO. Muito antes do surgimento da’ psicandlise, a inveja era tida como um dos maiores pro- blemas da humanidade. £, afinal, um dos sete pecados capitais e, segundo Geoffrey Chaucer ~ escritor ingles do século XIV -, “o pior peca- do que existe. Isso porque, na verdade, todos 0s outros pecados sto cometides contra uma virtude espectfica, mas a inveja se volta con- a todas as virtudes ¢ toda bondade [...] € € como o demonio, que sempre se regozijou com o mal do homem”, Chaucer dizia que a inveja se entristece com a bondade e a prosperidade dos outros, mas se deleita com a desgraca alheia. A caracteristica singular da inveja é esta: nao ter nenhum fim positivo. Os outros pecados tém 0 objetivo, em- bora equivocado ou interesseiro, de conquistar um objeto de desejo. Gula, avareza, luxtria, orgulho, todos sao motivados a seu modo por algo desejével, ainda que em detrimento de ou- tra pessoa. S6 a inveja nao traz vantagem algu- ma, pois ela destréi o objeto de admiracao e, assim, torna indesejavel. A nica vantagem Obvia seria o prazer sédico — “a alegria com 0 mal de outro homem”?, Chaucer citou algumas das maneiras como a inveja se apresenta, que sao conhecidas de muita gente. Falou da “calinia ou detracdo” e de alguém que elogia o vizinho com “ma in- tencao, pois ele sempre coloca um ‘mas’, que € uma censura muito maior do que todo o elo- mn ocha gio”. Certo sujeito trabalha duro e com abne- gacdo para uma entidade beneficente, mas no passa de um benfeitor. Outro-é um excelente pianista, mas toca um pouco rapido demais. Alguns amigos foram muito solicitos, mas sa0 presuncosos demais. DEFINIGOES DE INVEJA ‘Antes de avancar mais, eu gostaria de dei- xar claro que existem dois usos bem diferen- tes da palavra “inveja”. Caaucer a’empregava em referencia a carga destrutiva, arrasadora, que se volta contra a propria pessoa ou as qualidades admiradas nela. Esse € 0 tipo-de inveja que a psicanilise também descreve. No entanto, 0 termo € usado frequentemente na linguagem popular para indicar uma espécie de inveja que nao tem un carater pernicio- 80; a0 contrario, consiste na aflicao dolorosa decorrente de uma admiracao que faz 0 indi- viduo se conscientizar das suas deficiéncias. Esse segundo tipo de inveja pode motivar a imitagdo ou levar a aceitagto das proprias li- mitagoes, e nao a uma tendéncia destrutiva. Invejo em vocé as virtudes, as habilidades a beleza, o que nao significa necessariamente que eu queira destrut-las, Na verdade, a mi- nha admiracao por esses atributos pode me inspirar a usar melhor os meus. Mesmo que o individuo nao tenha como conseguir aquilo que inveja, ele pode se en- riquecer com isso e obter algo de bom, Uma pessoa idosa que inveje os jovens talvez se sin- ta estimulada com a vivacidade e 0 otimismo deles, ainda que exista af a dor de reconhecer 0 fato de que ela nunca mais sera jovem, Alguém que inveje um artista ou um escritor ndo pode esperar conquistar 0 talento e a aptidio deles, mas pode se inspirar na criatividade deles e na sua concepgio do mundo. Deane 2 a, Essa inveja € intrinseca a avaliacdo dos ou- tros ¢ daquilo que eles tém para oferecer, E as vezes chamada de “inveja de imitacao”. Eu nunca serei uma instrumentista brilhante, mes ainda assim posso me inspirar nas qualidades da miisica e da emogio que ela transmite. muito mais dificil conviver com @ inveja destrutiva, mas ela também constitui a natureza humana. Talvez seja por essa tazo que compre- endemos algumas das personagens literérias in- vejosas, embora as deploremos, embora, de certa forma, elas nos instiguem. Além de provocarem um sentimento de indignaggo justa, como 0 lago de Shakespeare e 0 Satands de Paraiso Perdido, de John Milton, essas personagens também induzein _ solidariedade: sabemos 0 que significa ser elas. E muito comum os vildes dg literatura motivarem um interesse € uma compreensio maior do que 0s alos admiraveis da inveja e da destrutividade deles, pois em cada um de nés hé um viléo. Podemos ter conhecimento das nossas qua- lidades aceitaveis, mas a literatura nos ajuda a aceitar certos tracos da nossa personalidade que nao aturariamos tao bem nao fosse ela. A invéja destrutiva talvez seja o sentimento mais dificil de identificar em nés mesmos, ja que aparentemente € a tinica emogao que ataca a bondade sé porque ¢ boa. Além disso, © efeito da inveja € solapar a bondade e as capacidades do individuo assim como as da pessoa invejada EFEITOS DA INVEJA NO EU. Milton ¢ também Chaucer atribufram a in- veja ao demonio, uma vez que Satanés a per- sonifica pelo seu ddio tanto a criatividade e ao poder de Deus como a sexualidade ¢ ao amor imaculado de Adao ¢ Eva. Expulso do Paraiso por ter tentado destronar Deus, Satands vem & terra ¢ espiona Adao e Eva. A inveja o domina rece boca nu Que espetéculo mais odioso, mais atormentador! Entdo esses dois u emparaisados, um nos bracos do-outro, o Eden mais feliz, vao desfratar o seu quinhao de mais e mais felicidade, enquanto eu ao Inferno sou langado.* Como se sabe, Satanas se poe invejosamente a arquitetar o fim da felicidade ea expulsto de Adao e Eva do Jardim do Eden. O diabo-pune a eles ¢ a Deus por sua desgraca, e Milton descre- Ve a angtistia intoleravel que se seguiu ao ata- que de inveja de Satands contra Deus ao seu exilio do Paraiso: Eu, um desgracado! Para ende fugirei da infinita colera e do infirito desespero? Todios 05 caminhos me levam ao Inferno; o inferno sou ew Enno mais profundo dos abismos um chao ainda F mais fundo que ameaca devorar-me escancara-se, comparado com 0 qual o Inferno que padeco parece 0 Céu.3 A ganancia insacidvel e a inveja voraz de Sa- tarids so projetadas na boca descomunal do In- ferno, A sensacao de descer vertiginosamente, de profundezas infinitas e desesperadoras, pode resultar de inveja extrema, pois as figuras inter- nas boas sao atacadas, deixando o individuo sem amparo para evitar a queda, Uma menina de seis anos que queria dese- nhar muito bem nao suportava que uma colega de classe fosse obviamente muito mais talen- tosa ¢ fizesse desenhos muito melhores que os dela, Certo dia, quando se viu sozinha na sala de aula, ela rasgou o desenho que a mais bem- dotada deixara secando. Pouco depois, ficou extremamente apavorada com o que tinha fei- to, com uma vergonha imensa e se sentindo 12 eo as 0s ainda mais imprestavel do que antes, Sua rela- tiva falta de talento aumentou bastante com o sentimento de culpa e a falta de esperanga de consertar a situacao. Quando atacamos um objeto externo admi- rado, atacamos também a representacio dele em. nossa mente. Isso nos deixa sem um apoio inter no, € a culpa do ataque afeta 0 nosso senso de va- lor pessoal. O ataque intemo as pessoas e as qua lidades que prezamos — os nossos ‘objetos bons", como dizem os psicanalistas — pode provocar um sentimento de destraigao ¢ desolagao intema, O que, entdo, teria levado a menina de seis anos a rasgar a pintura ou Satands a declarar guerra a Deus? Talvez nao s6 porque os objetos de inveja sejam considerados bons ou melho- es, mas porque a qualidade deles faz a garota, Satands ou qualquer um se sentir incapaz. As vezes 0 individuo ndo suporta nao ser 0 me- thor. Entio, 0 ataque ao que € bom talvez néo tein se deva apenas ao desejo gratuito de prejudi- car e tenha outra motivacao: destruir algo ou alguém cuja qualidade o individuo entende de um modo que o faz se sentir mal. Na inve- ja sempre existe uma comparagdo — inveja-se aquilo que nao se tem. INVEJA E CIUME E importante diferenciar a inveja do seu par, © citume, embora os dois estejam quase sempre iniimamente ligados e se confundam. Existe citime quando queremos ter alguém ou uma coisa. O motivo € a posse, ¢ a destrutividade € um meio para esse fim. Na lei francesa se prevé que 0 homicidio cometido por citime, chama- do crime passional (crime de paixao), € sujeito a uma pena menor do que 0 assassinato cometi- do com outro motivo.” O rival é morto em ra- = No Brasil quem comete crime pasional pede ser benfiado com red ‘toca pens sob cerns congas. (N. do T) 4 une one za0 de um amor ardentt, ainda que possessivo € mortal. Mas a forma destrutiva de inveja nao poupa nada: 0 abjeto admirado deve ser elimni- nado para que ninguém possa usulrut-lo. A dificuldade de distinguir o ciume da inveja fica clara nesta histéria comovente. Um meni- no de dois anas ficou empolgado com o nas- cimento do irmao, Enquanto 0 recém-nascido € a mae continuavam na maternidade, ele fez muitas perguntas ao pai sobre os fatos da vida: como o bebé aparecen, como foi feito e como saiu da barriga da mae. O. pai se esforcou ao- maximo pata explicar delicadamiente essas’coi- sas ao filho, que pareceu satisfeito. Um pouco mais tarde, porém, o menino teve um chilique porque queria ir a maternidade. O pai, achan- do que o filho estivesse com citime do recém- nascido, perguntou-lhe se queria ficar com a mie. O garoto exclamou veemente: “Nao! Eu quero sera mamae!” O fato de ele ter visto a mae gravida e ter ouvido falar do nascimento Provocou a inveja, que se manifestou no fani- quito mas foi controlada de certa maneira na conversa com 0 pai, A inveja desse menino, to- davia, era controlavel e suportavel e, portanto, diferente da inveja mais perniciosa, muito mais dificil de mudar. : Exemplos como o da menina que rasgou a pintura eo do menino a espera do nascimen- to do irmao acontecem todo ‘dia. O menino conseguiut revelar o que sentia ao pai, que reconheceu a inveja e a frustragao do filho de nao ser 2 mae, 0 que o ajudou a supor- tar esses sentimentos. Com 0 apoio do pai, 0 menino comecou a criar uma figura interna que Ihe permitiu compreender e tolerar a in- Veja. Por outro lado, s6 muitos anos depois a menina conséguiu contar 0 que fizera e con- tinuava a se sentir mal com o acontecimento € incompreendida 16 been e Cone © mundo interior das pessoas ¢ criado em Parte pelos sentimentos ¢ ém parte pela convi vencia com os outros. O ataque de inveja pode os deixar sem apoio interno porque achamos que as outras pessoas esto impregnadas dos hossos sentimentos negativos. A menina con- cluiu que nao podia recorrer a ninguém porque na mente dela as figuras que a ajudariam tinham se tornado hostis e agressivas como ela. A ga- rola tinha medo de.que 2ssas pessoas “arran- cassem um pedaco dela”, do mesmo modo que ela havia rasgado a pintura. Em certos casos, os pais podem ser realmente severos e aplicar cas- tigos, dando a crianca boas motivos Para nao contar o que fez. A dificuldade também pode estar na crianca. Todavia, quase sempre esas situacdes se misturam ‘As duas criancas mencicnades nos exemplos demonstram dois tipos de consciencia. O me- nino conseguiu fazer 0 pai ajudé-lo a adquirir uma consciéncia benevolente ou-compreensi- va, que reconhece os sentimentos mas nao se vinga e, assim, contribui para conter a agressi- vidade ow a dor. Fosse por que fosse, a menina, com uma culpa solitaria, estava a mercé de uma consciéncia punitiva ¢ impiedosa, a qual, ainda que a ajudasse a se comedir no futuro, nao per- mitiu que cla se perdoasse por ter sentido inve- ja. Todos temos esses dois tipos de consciéncia ~ a compreensiva ¢ a impiedosa — e os usamos em momentos diferentes. Eles s40 constituidos Por uma mistura dos nossos sentimentos e da bondade ou da severidade real das pessoas ao tedor. A inveja destrutiva € frequientemente acompanhada de uma consciéncia persecut- ria, que por sua vez implica soliddo e sensacdo de abandono. A literatura ajuda a ndo nos sentirmos so- zinhos com a inveja, pois permite conhecer as nossas emogées mais profundas —os exemplos 18 Fra que aptesento neste livro esclarecem 0 que € sentir inveja, A terapia psicanalitica é outra ma- neira de as pessoas descobrirem a propria:in- veja e aprenderem a lidar com ela, em vez de deixé-la estragar tudo. O que dizem os psicana- listas a respeito da inveja? A partir de Sigmund Freud®, muitas figuras importantes do mundo da psicanalise descobriram que a inveja pode ser o maior empecilho para o sucesso da andli- se € que 2 aceitagao da inveja pode ter impor- tancia fundamental para o bem-estar ¢ a savide mental do paciente FREUD Em “Anilise Terminavel e Interminavel”, en- saio que escreveu dois anos antes de morrer, Freud mostra que 0 paciente pode se recuser a aceitar a ajuda do analista. Fle supds que a recusa resultasse do medo da passividade, no homem, € da inveja do pénis, na mulher. A supercompensacao rebelde do homem produz uma das mais fortes resistencias de transferencia Ele se recusa a se submeter a um pai substituto ow a-se sentir em divida com ele por qualquer coisa, ¢, conseqiientemente, recusa-sé a aceitar que o seu restabelecimento parta do médico, Nenhuma transferencia andloga pode surgir do desejo da mu- ther por um pénis, mas esse desejo € fonte de crises de depressao grave nela, devido a conviccao de que a anilise nao sera proveitosa e de que nada pode ser feito para ajuda-la” @rifos mew Ainda que 0 ponto de vista de Freud se centrasse no penis como simbolo de enorme poténcia e mérito fisico, ele apontou um pro- blema clinico significativo associado a inve- ja: por definicao, o invejoso nao pode aceitar ajuda por nao suportar que Ihe deem nada. A dificuldade em ambos os sexos € aceitar algo que venha de outras pessoas. 20 Seria impossivel falar do desenvolvimen- to das ideias da psicandlise sobre a inveja sem mencionar de passagem uma das mais polemi- cas e contestadas contribuigdes de Freud para a teoria psicanalitica, a “inveja do penis’. Ele afirmou que as criangas sabem de apenas um “orgéo genital, o penis. No seu entender, a me- nina pequena percebe que nao tem penis ou até se acha um menino casirado, em vez de possuir algo que € s6 dela. Freud supos que a inveja do pénis pudesse provocar dificuldades futuras para aceité-lo nas relagdes sexuais. Embora muitos analistas concordem que existe inveja do penis em ambos os sexos ~ afi- nal, 0 garotinho pode invejar o penis desenvol- vido do pai-, a idéia de primazia do penis foi contestada ferrenhamente. Como explicarei, a idéia da inveja na infancia passow a abranger a inveja da mae ja na primeira mamada. O con- ceito também foi ampliado para dar conta da a enfase nas funcdes Unicas do orgio invejado ou da mae ou do pai invejado. Entao, o penis € invejado pela poténcia; o seio, pela capacidade de alimentar; 0 corpo da mae, por ser capaz de gerar bebés; ¢ ambos os pais por serem, cada qual a seu modo, fontes da vida As feministas declaram que a ittveja recai so- bre as prerrogativas dos homens na sociedade € nao no pénis em si. Do mesmo modo, as prer- Togativas biol6gicas e sociais das mulheres, que geram filhos, thes dao de comer e cuidam de- les, aumenta a inveja que os homens tém delas. Isso porque € a diferenca que motiva a inveja, sobretudo se essa diferenca for fundamental, ABRAHAM O psicanalista Kar] Abraham (1877-1925) propos a tese de que a inveja causava dificul- dades numa fase inicial da vida ¢ destacou a possibilidade de o bebe ter inveja do seio. sermon ‘Assim como Freud, Abrahamdeu grande én- fase A relagdo com o pai. Mas também apresen-, tou idéias que mudatiam a feigao da psicanali- se ¢ seriam aprimoradas por outros analistas, especialmente por sua paciente Melanie Klein (1882-1960), pioneira da psicanilise de crian- gas e adultos, Abraham afirmou que « bebé talvez achasse dificil aceitar a produtividade do seio e tambem a potencia do pai. Ele’ressaltou que “devemos ter claro que o prazer do perfoco de amamen- tacao € em grande medida um prazer de pe- gat, de receber algo” (grilo meti). Fle descre- yeu como na relagao alimentar a inveja pode interferir no prazer do bebé de ser alimentado e levar a um padrao de relacionamentos insatis- fatorios em que o individuo nao consiga aceitar 0 que venha dos outros, A proposicao de que a inveja j& existe nes- sa fase inicial foi um dado.novo na psicandlise. Abraham achava que o otimismo e a capacida- de de desfrutar a vide derivassem de uma rela- @o alimentar satisfatdria, No entanto, quando essa relacdo dé errado e 0 individuo nao conse- gue estimar 0 que the € dado, a situacao pode se complicar bastante, Abraham descreveu um tipo de paciente que nao tolerava aceitar o que © analista lhe propunha Em vez de estabelecer uma transferéncia, esses pa- cientes tendem a se identificar com o médico. Em lugar de terem wma relacao mais préxima como meédico, cles se colocam na posigao deste. Adotam 0s interesses do médico e gostam de se ocupar da psicandlise como ciencia, em vez de deixd-la agir neles como método de tratamento, Eles tendem a trocar de papel, como faz a crianga ao brincar de Ser 0 pai. Eles ensinam o médico ao Ihe oferecer a ‘Sua opinido sobre a propria neurose, que eles consi- deram especialmente interessante, ¢ imaginam que 24 fers a ciéncia-se enriquecerd com a andlise deles j...]. Acima de tudo, eles desejam superar o médico e depreciar a aptiddo ¢ as conquistas psicanaliticas dele, Eles afirmam ser capazes de “faze-lo melhor” L...J. Indubitavelmente, existe nisso tudo um que de inveja.® @rifos meu A observac&o de que o paciente “troca de papel” com o analista é uma constatagao sur- preendentemente simples do mecanismo que mais tarde. se tornou conhecido como “iden- tificagao projetiva”. Com esse artificio, a indi- viduo se apodera das qualidades invejadas na outra pessoa € projeta nela os seus sentimen- los indesejaveis. A crianca se coloca acima do pai pondo-se de pé num mével mais alto, por exemplo, elhe dizendo que ele € pequeno e néo sabe nada, Abraham, com o humor que torna as suas obras tAo interessantes, descreveu um. neurdtico obsessivo que durante alguns meses 4 se apegou a idéia de que.sabia mais de psica- nalise do que o proprio Abraham. Enfim, ele teve o bom senso de comentar: “Agora comeco a perceber que voce sabe um pouco sobre new- rose obsessiva!”"!° KLEIN ’ Perto do fin da vida, Melanie Klein, como Freud, se convenceu da ubiqitidade da inveja € escreveu sobre ela no seu ensaio essencial “Inveja € Gratidao”. Ela considerava a inveja uma manifestagao da pulsdo de morte, con ceito que era objeto de polémica acirrada en- ue os psicanalistas. Quer se acredite na exis- tencia de uma pulséo de morte em si, quer se pense que existam forcas destrutivas na na- tureza humana, a inveja € indubitavelmente uma expresso delas. Isso se deve a investida da inveja contra a bondade e, assim, contra a propria vida. Klein foi ao cerne da questo: 26 kien “A capacidade de dar e de preservar a vida € tida como a maior das dadivas, e portanto a criatividade se torna a causa mais forte da inveja”"’, Ela supunha que a inveja se dirigis- se para a mae como fonte de vida e sustento, para as qualidades mentais e também para a isica. capacidade Klein afirmou que a paz de espirito de outra pessoa pode ser motivo de inveja. Ela mostra como “a infelicidade, a dor e os conilitos (que © paciente] atravessa se contrapoem ao que ele acha ser a paz de esptrito do analista - na ver- dade, a sanidade dele especial de inveja”®. 0 que é-um motivo Uma paciente chegou a uma sessdo da sua andlise se queixando de que “tranquilidade mental!” era o que cla mais desejava e nao tirtha. Entdo, passou a criticar num tom de censura € inveja algumas pessoas que a ajudavam. Ficou claro que ela nao queria que essas pessoas nem a analista tivessem tranqaiilidade mental, mas que se preocupassem com tudo que estivessem fazendo de errado. Quando, por meio da anali- se, a paciente percebeu que o que Ihe provoca- va insatisfacdo era a sua dificuldade de aceitar ajuda e viver sem preocupagio, ela ficou cada vez mais feliz e conseguiu esquecer algumas das suas queixas, Melanie Klein, como Abraham, achava que a inveja estivesse presente ja na primeira relacao de dependencia para com a mie e o peito ou a mamadeita. Fla formulou a hipstese de que [...] 0 objeto bom primordial, o seio da mae, cons- titulo nitcleo do ego e contribui intensamente para o seu crescimento. ...] todos os desejos instintivos Ido bebe] e suas fantasias inconscientes atribuem ao seio qualidades que vao muito além do alimen- to que ele proporciona [...] e] enriquecem de tal forma o objeto primordial que ele continua a ser 2 fn 0 alicerce da esperanca, da confianca e da crenga na bondade.'* Para evoluir @ partir dessa base é necessario um trabalho emocional. Klein pressupés que o bebé dividisse a principio os sentimentos em bons e maus, idealizados ¢ persecutérios. Os bebés oscilariam entre os estados de contenta- mento pleno e aflicao e raiva intensas, ¢ nds considerarfamos isso norma]."* E Aos poucos, pelo fato de a mae assimilar os sentimentos intensos do bebé e ajudé-lo a su- porté-los, os sentimentos positivos ¢ negatives dele nao precisam se manter tio separados, O bebe percebe que a mae que ele odeia ¢ também aquela que ele ama, e adquite a capacidade de tolerar sentimentos ambivalentes, Se a inveja in- terferir muito nessas fases iniciais, 0 objeto idea- lizado ¢ depois bom nao conseguira se firmar na psique do bebe, que ficart confuso entre 0 bem €o mal. Klein supds que isso constituisse a base dos estados ce confusto. (Essa idéia foi desen- volvida mais adiante por Herbert Rosenfeld.) O bebe — ou, depois, acrianga ¢ 0 adulto ~ pode também ter difculdades alimentares se imaginal que atacaram 0 seio invejado e o envenenaram No futuro, essas fantasias iniciais podem preju- dicara confianca nas pessoas. Da mesma manei- ta, numa andlise, LJ inveja ¢ as atitudes a que ela dé vazao in- terferem no crescimento do objeto bom na situacao de transferéncia, Se, numa fase inicial, 9 alimento bom e o objeto primario bom nao foram aceitos nem assimilados, iso se repete na transferéncia, prejudi- cando 0 andamento da andlise.' Em outras palavras, o paciente sente dificul dade de digerit ¢ assimilar a descoberta que a anilise Ihe proporciona, 30 ven © exemplo de uma anélise pode ésclarecer 4 ligacdo entre as perturbacdes concretas com © seio ¢ as perturbacées simbélicas com a cria- uvidade e a realizacéo. Uma jovem com um distarbio alimentar grave e fobia social achava, apesar disso, que o seu maior problema fosse a dificuldade de se interessar pela vida. Ela ti- nha consciéncia suficiente para perceber que nao era a falia de dinheiro ou de posses nem a Sua satide fisica que mais a incomodavam, mas a sua dificuldade de manter um interesse vivo has pessoas eno que o mundo the oferecia.- Soube-se depois que o problema da jovem estava ligado as dificuldades alimentares e a fo- bia, uma vez que a suspeita da comida e das pessoas tinhaa mesma origem. Sua primeira re- lacdo com uma fonte de alimentoe de interesse € ctiatividade havia sido destrutda pela inve- Ja, de modo que ela nao podia se apoiar num objeto bom interno para confiar nas fontes de ex alimento ou nas fontes de contato e interesse humano. No entanto, o fato de a paciente ter-se agar- rado ao desejo de se interessar pela vida a aju- dow muito, Dew-lhe motivagéo para mudar e contribuiu para que ela saisse do isolamento ¢ convivesse com os outros. Para tanto, foi neces- sério enfrentar na anélise um lado seu invejoso que prejudicava a sua capacidade de se interes- sar e ter prazer e atacava a competéncia da ana- lista para ajudé-la. Quando consegui manter 0 interesse e o envolvimento, ela ficou feliz coma andlise e com a propria vida. Poderiamos perguntar: “Por que alguém se voltaria contra 0 seu: potencial?” Lembre-se de que é impossivel atacar a pessoa que tem o que se quer sem atacar também a capacidade de se relacionar com essa pessoa e de aceitar 0 que veriha dela — que sao faculdades importantes, O bebe que precisa esperar pela mamada e depois Es se afasta do seio ou a crianga que esta zangada com a mae porque esta da atencio aos outros ou a si mesma acaba sentindo que o que a mac dé ndo ¢ bort., Isso tambén prejudica o seu afe- toe d sua capacidade de desfrutar o que a mae pode dar e de se sentir grato por isso Klein escreveu apaixcnadamente sobre as vicissitudes da inveja e a importancia da grati- 40, do amor e do prazer quando esses efeitos nocivos sao enfrentados. 2la afirmou que, se o bebe tivesse experiéncias plenamente satisfato- nias nos primeitos meses de vida, se formaria uma base de gratidéo capaz de, diminuir a in- veja ea destrutividade. Entdo se estabeleceria uma figura interna boa, ‘que ame protege 0 eu é amada e protegida pelo ew"” INVEJA NA INFANCIA As emogoes associadas ao seio ea mae tam- ém sao sentidas pelo pai, pelos pais como casal € por outros bebés, reais ow imaginatios. Todo ovo relacionamento traz sentimientos antigos que serao reelaborados de um modo diferente € com uma pessoa diferente, para que, se certas Propensdes se firmarem na primeira relacao, existam oportunidades de aprimoramento, A telagdo diferente com o pai pode as vezes tor- nar a inveja menos intensa do que com a mae, ou 0 pai pode ajudar a lidar com a inveja. Foi o que aconteceu com o menino citado, que que- ria ser a sua mae quando ela teve outro bebé. No entanto, nao s6 a mae ¢ o pai sao inve- Jados, mas também o elo entre eles. Quando bebé se da conta de que os pais tem uma rela- fo propria, diferente, € provavel que ele tenha varios sentimentos: interesse, animagao e segu- tanga com o fato de que a vida prossegue in- dependentemente dele. Os bebes ¢ as criancas Pequenas costumam brinear alegres se ha gente Por perlo cohversando. As vezes, porém, eles Pa

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