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SE wvetteia 24.0080, A travessia de “Riobaldo Rosa”, no Grande sertao: veredas, como um processo de Individuagaéo Tania Rebelo Costa Serra Resumo, Este trabalho tem por objetivo retomar obra de 1900, intitulada Riobaldo Rosa, ered junguiana do G) Guimaraes Rosa, G tese visi a demonstrar quea “viagem facilitara leita Jung usados no texto. Por fim, & necessirio ter em mente que se trata de psicologia, 0 que necessariamente: processo finito, pertencendo aquel narrativa, a0 contr: proceso em perene renovagii Palavras chave: Joao Guimaraes Ros mde sertdo,a firm dle evidene mde serio: veredas comporta u de Riobaldo, 0 protagon analisada como um processo de individuagao, com as su; ica ser 0 processo de i c personagem especifico, jo do de uma pessoa de-carne e osso, para a qual aindivicuagio €um a hipotese de que oro Interpretagio jm nce de Joo ssa hip doromance, pode ser diferentes etapas. A fim de este artigo vird seguido de um glossdrio dos principais conceitos de Carl trabalho de eritica literdia, e nfio de lividuagao nele tratado que se encerra no final da var] Jung, literatura brasileira, mito, arquétipo. The initiation voyage of "Riobaldo Rosa” in The devil to pay in the backlands, as an individuation process Abstract, This paper is a new readi Junguiama do Grande serio. Its main of the 1990 work entitled Riobalde Rosa: a vereda pothesis is that Grande serida: veredas, the 1956 novel by Joao Guimaraes Rosa, can be analysed through the concepts belonging to Carl J ng’s analytic psychology. This reading implies that the character Riobaldo's"initiation journey” can actually be i At th preted as an individ 1, in order to facilitate th ion process, with a nderstanding of th jngien terms used in this work. Lastly, itis import its stages of development. text, comes a glossa to point out that this is. of literary criticism, not psychology, which means that the individuation process here analyzed relates to.a specific character and is completed at the end of the novel, fa that does not happen in real life, when individuation is a permanently being renewed. Key words: Joao Guimaraes Kosa, Brazil nn teratnre, myth; archetypes. Introdugao do sertio, somos fabulistas Estd no nosso sangue narrar estbrias. (..) Destle pequenos, estamose: lantemente escutando as narrativ multico das, ¢ também nos que ds veres podese as da cruel, (..) Eu trazia sempre os ouvidos ccia transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque es rae continua sendouma lend: a mim mesmo que sobre 0 sertio nao se podia fazer “literatura” do tipo corrente, zmas apenas escrever lends, contos, confis- ses, Joo Guimaries Rosa. (Cartaa Gunter Lorenz) tc trabalho propde-se a fazer uma lei- yguiana do romance Grande sertio: veredas, de Joo Guimaraes Rosa. Conse g{ientemente, a narrativa néo seré analisada do ponto de vista literério, mas sim do pon- to de vista do mito, da lenda, e de seu papel na psicologia analitica de Jung, aqui usada como instrumento para a garimpagem de verdades profundas da peique humana, des vendadas através da li sibilitar esta abordagem analitica e esquems- tica, sera observada a seqiiéncia cronolégica da narrativa, endo aordem do discurso, Um glossario ao fim, contendo os principais con- eitos utilizados, servira de material ancilar > leitor. Last but not least, antes dle passar & andlise do romance aqui proposta, deve-se Jembraraimpossibilidade de restringir uma grande obra de arte a um nico esque analitico. Este € apenas 0 que esta af dito: UM esquema para abordar ¢ compreender 6 texto de Guimaries Rosa, que agora em 2006 est completando cingiienta anos de publicado. Por outro lado, e ainda no campo das premissas, assim como Jung estudou os mi- tos enquanto recepticillos de uma heranga cultural da humanidade, ¢ como uma lin- guagem onde 0 arquétipo é o instrum para veicular determinada mensagem, e tudarei também o romance Grande sertao: veredas sob seus aspectos miticos € picos. O primeiro objetivo deste trabalho, endo, € mostrar que a utilizagao das estru- turas mitolégicas e dos arquétipos do incons- ciente coletivo por Guimaries Rosa! teve como conseqiiéncia levar a mensagem do crescimento psicoldgico humano ~ atravé da“travessia" de Riabaldo —diretamente a0 subconsciente do leitor do século XX e, em assim fazendo-o, tornar-se um texto para- digmético, exemplar, atributo também ne- cessirio a literatura épica da qual faz parte. Na tese de mestrada? que dew origem aeste estudo procurei demonstrat, utilizan- do 0 sistema psicolégico e a terminologia de Jung, que o romance rosiano poderia ser comparado a. um mito do descobrimento ‘Tid Teva a ere que o tena feito inttivamente * Posteriormente publicada sob o tule ce Risalde Raw veredejunguiane de Grand 70 de si, € a travessia acima mencionada ser compreendida como um tipico processo de individuagao, com todas as suas cinco fa- ses. Garimpar esse proceso & 0 segundo objetivo deste trabalho, Antes de mais nada, no entanto, é preciso mencionar um Leil- moti na obra, uma eapécie de ritmo no da narrativa, ou seja, verificar que, em Rosa, as diferentes etapas da vida do prota- gonista, Riobaldo, duram, grosso modo, pi riodos de sete anos, ou miiltiplos desse ngimero, Assim, pudemos evidenciar qua- torze momentos diferentes no enredo, et tre os quais encontrar-se-fo espalhadas cinco fases da individuagio. Antes do co- meco da andlise propriamente dita, cont do, gostaria de fazer uma pequena digtes- silo a respeito dese “ritmo heptassflabo” interno do romance. f curioso ¢ divertido observar que 0 sete tem como que um pa- pel magico nas entrelinhas do texto, ¢ va mos vé lo emergindo nos detalhes mais di minutos da narrativa, como, por exemplo, quando da batalha final do Tamandué-tao, na qual Riobaldo decide contar até dez.ai tes de atacar, mas nao consegue passar do sete!... Toda ae fo da estratuira t tica € narrativa vai seguir esse padrao, € devemos compreender essa marcagao mica do autor como uma referéncia impli- cita auma tradigio esotérica ¢ numerolégi- ca, dentro da qual o mimero sete tem fian- fo magica e transformadora— fungao esta que destina também & sua obra, Iniciando, entio, a andlise proposta, deve-se primeiramente mencionar que a travessia de Riobaldo poderia também ser encarada como uma viagem iniciatica, qu por stia vez, seria a interpretagao metafisi- ca da viagem geogrilica de um herdi épi- co. Tomando 0 exeimplo classico de Ulisses Odisséia, dle Hemera, vemos que “viagem” € 0 desenvolver-se como ser hi mano; 0 encontrar e aceitar o sofriment © perseverar em aleangar seus nobres obj ma ‘Tor auto Indo, seria tater possvel pensar qe 0 mimero sete marca um compasso numa grande sinfonia litera, on compe undelete terion, wo qe podria até mewn set iso como urn palimpsest ca estratiea arate ini Aletheia 24, jul/dez, 2008, Livos, mesmo que para isso leve dez anos. Ao término da jornada épica, como no exemplo mais recente de Pasifal, de Wol- fran von Eschenbach, 0 encontro com o objeto da busca inicial, neste caso 0 Graal, simboliza o estado do homem que atingiu a sabedoris a, ou sgja, aquele que conseguiu encontrar a plenitude psiquica. Consisten- tememte encontrado através dos séculos, 0 tema da longa viagem, das muitas aventu- ras vividas com a ajuda dos deuses, ea per- severanga em fazer o bem & caracterfstico do ephos através da historia literdria. Assim, poderfamos ir tm pouco mais longe ¢ alirmar que a viagem iniciitica se- ria um tema subjacente a quase toda a lite- ratura épica. Segundo Hélder Macedo, um poema épico tende a signi dliscurso de segundas intengées, um percurso spiritual, uma viagem personali- zacla num herdie E-ha wm esqucma bésico subjacente a toda viage porsuaver corresponcle ama magnificagao da formula enistalizada dos ritos de passa~ gem, Esse esquema define trés momentos fundamentais:a chamada, a viagem propri- rente dita, e oregresso. (Caméesea viagem inicidtica, p38) © grande épico de Joio Guimaraes Rosa é exemplo dessa linhagem de obras- primas da literatura ocidental, que comeca com Homero, continua com Virgilio, Dan- te, Ariosto, Cam@es, Torquato Tasso, e que passa pelos romangos medievais de cavala- ria, sobretudo os do cielo da busca do San- to Graal, como o de von Eschenbach. sentido épico no Grande sertéo jé foi st ‘entemente analisadto na lite cae no cabe ser aqui estudado. Por outro lado, se. romance traduz uma visio total do mundo, num sistema em que 0 narra- dor trata da compreensio ordenada do Universo ~ também atribuighe do mito caberia ainda afirmar que Rosa eriou, as- sim como James Joyce, um novo heréi épi- Co, ji que Riobaldo narra na primeira pes- soa sua travessia pelo Serio, isto & pela vida que se vai ordenando através do seu Aletheia 24, jul ez, 2008, narrar, Este, assim, j4 niio seria mais “ape- nas” literdrio, mas Seria, sobretudo, psico logico, fornecendo, portanto, farto materi- al para uma andlise do tipo aqui proposta. Conforme j4 foi dito anteriormente, este trabalho visa também a mostrar que a Viagem inicidtic ico Ricbaldo comporta todas as ctapas do processo de indivicuagao de que fala Carl Jung. Con- tudo, para que este processo venha a acon- tecer, essas diferentes etapas tém de ser necessariamente assimiladas ¢ interioriza- das psicologicamente pelo heréi, antes que possa atingir 0 ponto cle matura quico. Elas devem também aparecer em uma ordem cronoligica e progressiva, a sa- ber: L- (preliminarmente) a int ca da persona, Em seguida apenas, a identifi- cagio c accitagio das imagens dos arqu pos do inconsciente coletivo: 2- a sombra; 8+ a.anima'; 4-0 velho sibio ¢ 5- 0 Si-Mes- mo, Os quatorze momentos distintos da travessia do heréi, como ficou assinalado acima, seriam como pequenas “viagens” que levariam & grande Viagem final, 0 en- contro do homem com a Ordem, ou Cos- mos, estdgio a que Jung chama de Selbst, 0 Si-Mesmo. Na verdade, se as cinco etapas aqui referidas estio contidas ze momentos, aandlise da sa do he esses quator- iduacio, fio condutor deste artigo, ter como fungio costurd-los, entrelaganclo-os ¢ explicando- os A luz daqueles cinco arquétipos. Assim, a primeira fase da vida de Rio- baldo precede as ages narradas: € 0 mo- mento em que vive s6 com sua mae, numa simbologia do andrégino dos tempos pri- mordiais. Esta androginia voltar4 a realizar- se no fim das aventuras ~a volta 20 comeco, de que lala Hélder Macedo -, mais tarde, quando se casar com Otactlia. Naquele pri- sto, o herdie a Bigri, sam moram do lado esquerdo ~ 0 lado do cora- a0 ~ do Rio Sao Francisco perto da Serra das Maravilhas ¢ da vila que se chamava Ale- ‘Como no hi exempla de animus na narrativa, este to para a P etapa, € aqui nfo ser abordade @ arquétipo da tela sia, apenas a do velhe sibio, 1 gres. Trat em que tudo € perfeito. Sua persona, ou sea, sua personalidade exterior, desenvolve-se num clima de tranqililidade, embora o jo- vem nutra profiundo édio pelo “protetor” da familia, um certo Gramacedo Judiso Bor- ges, evidente ciime do filho pela mae. Toda ¢ssa primeira fase de sta vida, passada jun- to Bigri, dura mais ou menos quatorze anos © € uma espécie de “prélogo”, ou prepara- ‘ho para a narrativa a seguir. Asegunda etapa de sua est6ria comega quando ele encontra o Menino, num dia de maio, apés ter estado gravemente doente, Esse encontro vai modificar radicalmente sua vida, pois esse jovem € um ser ilumina- do que representa a coragem e a feminilida de, que passario a acompanhé-lo dali para afrente. importante também observar, que uma grave doenga sempre antecede uma mudanga estrutural na vida de Riobaldo: reriam como pontos de mutagio paicoldgi cos, indices no texto de que alguma coisa vai mudar. Assim & que, nesse momento de sua vida, ele exorciza 0 édio que sente pelo “protetor”, supera os sentimentos negativos, que vinha carregando nocor tinho para seguir o seu destino, caminhar para o seu futuro. Em verdade, quando os dois adolescentes cruzam 0 Rio, estit-se rea- lizando a primeira travessia do her6i, ou seja, © comego da ago, do agir. O Menino ~ qu mais adiante saberemos ser 0 Reinaldo, ali- 4s, Diadorim — tem um papel fundamental no romance € seri uma espécie de guia de Riobaldo por quase toda a narrativa, como veremos em breve. Aterceira etapa da travessia de Riobal- do comega logo apésa morte da mae, quan- do é enviado para a fazenda Sfio Gregério, de posse do seu padrinho, o coronel Selori- co Mendes, na verdade seu pa saber mais tarde, O rapaz. tem mais ou me se do tempo da lenda e do mito, lo, ¢ fica prov nos quatorze anos, € vai comegara sta apren- dizagem formal —diferente da aprendizagem. day coisas “do coragio”, que havia tido na etapa anterior -, ji que 0 padrinho vai ensi- né-loamanejarasarmas, para o que Riobal- do demonstra grande habilidade. Esse mo- mento permite-Ihe também viver na “lorde- n va’ além de abrirthe acesso 2 cultura, pois ali cle estucia também Letras, Histéria e Ge ografia. Esse terceiro momento da viagem inicitica configura a interiorizagao da per- sona adequada ao status de grande fazer deiro dos Gerais, status este que ele esta le- gitimamente waufruindo no tempo da nar ragio. No entanto, 0 her6i nao gosta do pai ~ Freud explicaria - e dilacera-se entre os sentimentos de tédio € a gana de partir. Do final dessa etapa por diante, ele estar sem- pre partindo, viajando, na mimesis do desti- no de outros hersis épicos, como Ulisses ou Enéia O quarto momento de sua viagem co- ‘mega quando ele, mais ou menos com vinte € um anos, foge da Sio Gregorio, apés ter sabido acidentalmente pelo bando do gran- de “Rei dos Gerais”, Joca Ramiro, que © pax drinho é na verdad, seu pai. Apés a fuga, Riobaldo encontra Zé Bebelo, para quem serviré de professor embora, na ver va aprender muito com ele. No fim desse perfodo de sua vida, quando opta por tor- nar-se um jagungo, ele vai eliminar a perso- na adquirida anteriormente, pré-requisito necessirio A passagem aos outros estigios de maturacao psicolégica, que formam o conjunto do processo de individuagao. Logo antes da fuga, contudo, ainda na fazenda do pai, ouve pela primeira vez a Cangio de Simiz, simbolo da criagio poética, e que ele vai levar na memoria pelo resto da vida, lado a lado com a destreza com as armas, opos- tos que nele complementam-se harmonica- mente. E interessante notar que © herds guird interiorizando experiéncias, seja com aprendizagens formais e/ou estéticas, seja com pessoas, que, a0 morrerem ou desapa- recerem ca narrativa, so assimiladas sim- bolica ¢ psicologicamente por ele. ante, essa no de morde- mias, sem trabalho conereto além de ser “cabo eleitoral” de Zé Bebelo, comega a desgosté-lo. Riobaldo nao esta preparado para experimentar a estabilidade, simples- mente porque ainda nie completou sl aprendizagem vivencial, isto &, nao des-es- truturou 0 mundo da infincia e da adole: céncia, a fim de the dar rumo novo e pré- Aletheia 24,jul/dez, 2008, prio, Sente-se, portanto, compelido a pros- seguiraviagem e refere-se pela primeira ver a0 seu destino, Esta seria uma alusio inici- al & nogio de carma, de predestinagio, que percorre toda a narrativa. O her6i, na ver- dade, parece intuir que & neces constntir © interiorizar a persona repre sentada pela lordeza -, ¢ foge novam: finalmente efetivando a interiorizagio do ipo. Assim, apds ter assimilado esse prime’ roarquétipo, comega a quinta etapa de sua tica, e segunda do processo de fem que o herdi vai encontrar € comegar a interiorizar a som- bra: a vivéncia do Mal em cada um, E nes- rio des- into de sua vida que ele reen ‘© Menino, agora um jovem ¢ belo rapaz, ¢ que é chamado de Reinaldo pelo bando do chefe Joca Ramiro. Riobaldo torna-se cle mesmo um jagungo € mata pela primeira vex um homem, rito de passagem doloroso e do qual sai ficando mais uma vez grave- mente doente, prenincio de nova mudan- a estrutural em sa mente. Na verdade, € to mal naquele momento, que pensa em p novo, mas de com 0 Reinaldo segura-o. Pouco depois, se destino leva-o a encontrar-se com o bando do Hermégenes — uma das personificacées da sombra de nosso her6i, “tigre assassim (G. s. 4, p.16), ~ € entrar no seu acampa- mento € como descer aos infernos. Esta seria a primeira catibase* de Riobaldo, ¢ da qual emerge com poderes diferentes. Por outro lado, é também a partir da- {qui que se inicia sua apresentagio aos qua- tro diferentes estigios da anima, etapa ime- diatamente posterior na cronologia do pro- cesso de individuagao. Este arquétipo € ini- cialmente representado pela figura da don- guerreira Reinaldo/Diadorim, por quem Riobaldo, mais adiante, vai descobrir estar apaixonado. Assim, a simbologia des- sente wir de 7X catbase, ou “cescida aos infermas pessoas", ¢caracte ristiea do épico. Vide o encontro de Enéias com act pai Anquises, nos Campos Elson, na Envi, de Virgo, Ha ‘ero todo seiscalabases a narratia, que nfo seréo mencionadas em fangio das limitacoes de espago deste trabalho, Aletheia 24, jul ez, 2008, se encontro com 0 lado feminino aparece, quando vemos o heréi fruindo as belezas da natureza que o(a) amigo(a) ensina- Ihe a ver. Ele também descobre que tem um co- nhecimento intuitivo day coisas ~ instru- mento cognitive a que hoje chamarfamos de intcligéncia emocional al cia natural? caracteristica da inteligéncia racional. Desta maneira, com a ocorréncia cada vex mais freqiiente de aglutinagées entre pélos antagénicos de fendmenos, est iniciando-se uma espécie de proceso pa- ralelo, 0 de coniunctius oppositorum, wniio dos opostos, simbolizada pela figura do andrégino, mecanismo psfquico também requerido para se aleancar o Si-Mesmo. CO sexto momento da travessia € feito sob outro nome: 0 da pessoa do “pés-en- contro” com a sombra/Hermégenes, que ele |jfccomeca a interiorizar. Riobaldo ganha epiteto de Tatarana, devido A sua pontaria quave infalivel, ¢ torna.se der de bando. Por outro lado, assim como veremos no caso da anima, no romance analisado a sombra vai ser representada por quatro persona- gens: 0 Hermégenes, 0 menino Guirig6, 0 catrumano ‘Treeiz dio. Essa miltipla exposicao a0 arquétipo faz com que o herdi comece a gostar imensamente do poder que possui sobre os chefiados ~ ea exercé-lo, No entanto, essa personalidade emergente do amigo deixa Diadorim bas- tante inquieta, o quea levaaconvidé-lo para abandonarem 0 jaguncismo. Mas agora é Riobaldo Tatarana quem ndo est “pron- to” © no quer partir; deve continuar sua jornada, pois sua viagem est4 pré-tragada, € ele nao pode mais fugir: “viver € muito perigoso”, e ele “carece dle ter muita cora- gem” para encarar o seu proprio destino. Carece, na verdade, de compreender que 0 Bem eo M a mesin moeda, € que sem reconhecer a existéncia de ambos ~ e “domar” a sombra — ele niio pode crescer psicologicamente. A sétima etapa dessa viagem € regicla pela descoberta do amor: 0 processo do aciio ca ima segue ose a da ast 0 © © Ril al sie dois lados de un encontro e assimil *Auibuto de Ulises por exceléncia 73 curso. Riobaldo sente-se enamorado por Reinaldo —“Diadorim, meu amor” (G. 5. 2, p.221) = mas resiste a esse amor que Ihe parece pecaminoso, Outra mulher aparece hese momento da trajetéria do heréi, a Nhorinhé, mulher-fémea que se opde & jo- vem guerreira, mas que, de certa forma, tranquiliza-o sobre sua masculinidade. Nhorinh4’ representa o primeiro aspecto anima, que Jung denomina Eva, o do relacionamento puramente instintivo e bi- ologico. Ja Diadorim representaria 0 seu segundo nivel, que o psicanalista chama de Helena, personificagio da relagio amorosa em um nivel romantico ¢ estético, embora tendo elementos sexuais. Ain: nesse me! mo periodo eronolégico, conhece também Otactlia, a moga com 4 poucos anos depois, © qu terceiro aspecto do arquétipo, a Virgem Maria: 0 poder do amor espiritualizado, Naverdade, vale repetir, seré 26 depois, unio com Otacilia ~a Beatriz desta em vai casar-se simbolizara 0 de obra; a mensageira dos aspectos numino- sos da vida -, que o her6i volta a ter a cor digo de andrégino que gozava quando da in ceadolescéncia idilicas junto & mae, conforme veremos mais adiante. Desta ma- neira, apenas apés enfrentar essas travessi- as turbulentas, poder reencontrar ot po do mito, quando volta a ficar “redon- do”, completo, embora num outro ponto, ou patamar da espiral que é 0 seu desen- volvimento psiquico. Assim, se porum lado Diadorim morre de citimes da rival, por outro lado € a ela a que! ai percebe que este pode estar fic tirio”, como o Hermégenes. Na qualidade de mulher, ela compreende intuitivamente © que o amigo precisa; vence a ojeriza e faz fo apelo & rival espiritualizada: o amor ge- neroso prevalece sobre o citime, Por outro lado, e como num reforgo as qualidades femininas—o prazer estético-, € ainda vai recorrer ps ie veies pela alos dota ‘Ae contravia da Ressuarda de aia adoescéncia, que sim- holizaria a sexwalidade peril, anterior ao arquétipo fem questi. 4 se tempo que Riobaldo 1é seu primeiro ro- mance, Sinclair das ithas, que o deixa fasci nado, Frui todasas belezas do mundo e nao Emais apenas um chefe dominador, mas ja apresenta um acentuado lado “yin”, evi- denciado pelo romaneista no amor A cultu- ‘a ca literatura re rac ao belo que a mis presentam, assim como o vimos também gostar da Cangio de Sintiz, Nao sera & toa que 0 veremos excrever os primeiros ver- sos: est “prenhe” das pessoas e dle amor... A oltava fase de sua viagem inicistica comega aps a morte de Medeiro Vaz, que havia sucedido a Joca Ramiro, apés ter sido este assassinado & traigdo. Assim, depois da morte de Vaz*, ¢, em seguida, da chef abortada de Zé Bebelo, Riobaldo assume a lideranga do bando numa espécie de guer- contra os “Judas” traidores: Ricar- dio ¢ Hermégenes, Esta também se inic ando um segundo ciclo na narrativa, em que os arquétipos onados —o que, segundo Jung, é um grave perigo para o psiquismo. A. partir desse momento, para o heréi no ha mais volta possivel, isto & nao pode uma vez mais fu- gir ¢ ir busear a sua “alma”, j4 que Di rim é filha de Joca Ramiro e, jurando vin- ganga de morte contra os “Judas”, vai exi- gir a participacao de Riobaldo na guerra final que vai comecar. Nese contexto, Tatarana torna a mudar de nome e agora é © Urutu-Branco, grande chefe e, como v remos mais adiante, futuro Rei dos Gerais? A sinfonia literdria segue no seu de- senrolar heptassflabo, ¢ 0 none momento do processo de individuagio de Ricbaldo, no Grande sertao: veredas, € aquele em que heréi lidera © bando na travessia do Liso do Sussuario, espécie de deserto intrans- ponivel que ficava na retaguarda da fazen- do Hermagenes, Varios arquétipos ca: wr se inflaci aprese do- Madeira Waa €0 segundo rei apresentado na narrativa, ‘imbora vi falharn prova que éenizaro Lise do Susaiaro, ‘espécie de rto de iniiacio, ou caabase, necessrio para Jntuinge ser apron coma re 90s és grandes reis mencionados na narrativa slo: Joca Ramito, Medeio Vaz e-0 Urutu-Branco, numa reiteracto da estrutara mica do etero retorno, simbolizado pela morte do antigo tei e-a dhegada da novo te Aletheia 24, jul/dez, 2008, racteristicos do processo aqui estudado es- larfio presentes, concomitantemente, nes se momento da narrativa: o Urutu-Branco leva ao seu lado esquerdo o sacizinho Gui- rig, terceira personificagio da sombra, como jé referido antes; ao seu lado direito 0 Cego Borromeu, primeira manifestagio do arquétipo do velho sabio, etapa seguin- te da individuagio antes de chegar ao Sel= dst; por fim, Diadorimianina, esta sempre presente desde o comego da fase de jagun- go. E também nesse momento que ele mata ocatrumano Treciziano, terceiro represen- tante da sombra, no seu processo de assi- ilila psicologicamente, Gontudo, antes do cruzamento, ele vai ter uma experiéncia mfstico-epifana a Eneruzilhada das Veredas Mortas, ‘onde se foi encontrar A meia-noite com o demo. Depois disso ~ € apesar de nao ter visto 0 malino, 0 tinhoso ~ Riobaldo pas- ar muito, significativamente, ©a jamais errar numa decisio tomada. Du- rante todo esse curto perfodo, podemos depreender da narrativa uma justaposi- io perigosa entre consciente ¢ inconsci- ente, 0 que dé enorme d texto, prenunciando a tragédia que esta por vir. No entanto, consegue ser bem acedido no rito iniciftico que é cruzar 0 Liso ¢ descobre, no $6 que 0 diabo nao existe, mas também que 0 Mal nao existe fora e sim dentro de cada um, Este co- nhecimento dé-lhe poderosa forga inte- rior, forca esta imediatamente percebida peloy animais que o circundam, © tam- bém pelo “Seo” Ornelas, grande lorde ¢ fazendeiro dos Gerais. A partir desse mo- mento, © Urutu-Branco passa a usar ins- tintivamente o poder energético da som- bra, agora praticamente interiorizada, hora nie saiba quadamente. A décima parte da viagem iniciatica ocorre quando da tiltima batalha da guerra santa, em que morrem o Ricardo ~ quarto e iltimo representante da sombra =, pela mio de Riobaldo, ¢ o Hermégenes, pela dio de Diadorim. Nesse momento, o tlt 0 Rei dos Gerais interioriza, finalmente, maticidade da dominé-la ade- Aletheia 24, jul ez, 2008, © arquétipo da sombra: esse € 0 dia do “di- abo na rua no meio do redemoinho”!... Por outro lado, € nesse momento, também, 20 abragar-se chorando com “a Mulher” di- ante do corpo de Diadorim/Maria Deodo- rina, que assimila © quarto ¢ tiltimo aspee- todo arquétipo da anima, representado pela mulher do Hermégenes, aspecto este a qu Jung chama de Sophia: a sapiéncia; a sabe~ doria que transcende até mesmo a pureza easantidade. Agora, Nhorinhé, Diadorim, Otacilia ea Mulher passam a fazer parte de seu psiquismo, que segue constraindo seu equilibrio ao unir os pares opostos Bem ¢ Mal, Masculino ¢ Feminino, € assim ad inf nitum. No final dessa travessia, quando abandona o jagunci Ot cilia, terd interiorizado todos os quatro es tagios do arquétipo da sombra ¢ da anima, |jfpoclendo ser analisado como um homem “semicompleto” Aproximando-nos do final da jornada, adécima primeira etapa passa-se sob a aga da morte. Riobaldo, que havia tomba- do" como que atingido por um raio, apés ver o Hermégenes ferir de morte Diadorim, passa meses entre a vida € mente despojado da vontade de viver, dian te doque Ihe parece ser uma grande injust ca do destino: primeiro pela ignorancia que foi mantido a respeito dofa) amigo(a), ¢, segundo, pela tomada de consciéncia do que poderia ter sido, caso tivesse sabido da ver- dade. Quando fica bom, empreende sua ttl tima viagem em busca das origens de Dia- dorim nova travessia. Nesse momento, cle 8 havia conseguido levar a bom termo a missio de trazer ordem para o Sertio e tiré- Jo da desordiem em que se encontrava desde a morte de Joca Ramiro, Nesse momento, também, ele jd era visto como o salvador da terra, o Rei dos Gerais, aquele que lhe de- volveu a paz, tirando-a do estado de Caos, para trazer-the o de Cosmos. ‘Author do Hermégenes, manca expressamente neme- auda, € que vinha send trazida refém do Urat-Branco desde que haviam sudo de sua fend por detris de Liso fo Susiarto. "Numa alusto A morte simbélica do iniciad, 75 No entanto, ainda nfo era a sua hora asua vez, Nao estd inteiramente maduro, € 0 processo de individuagio esta incom- pleto; é, portanto, necessirio prosseguir nas travessias. Assim & que a décima segunda etapa comeca com 0 reconhecimento do arquétipo do velho sdbio, arquétipo este duplamente representado no romance pelo velho Borromen, conforme jé mencionado antes, ¢ por Quelemém, espirita kardecis- ta, que vai amparé-lo e aconselhi-lo nessa hora de transigio. No futuro, quando © heréi narra esses fatos ~ a travessia na ca- mada da meméria -, Quelemém jé ser compadre do casal Riobaldo e Otacilia, Por outro lado, 0 narrador explica também ao Doutor que, apés conhecé-lo, € a0 contar a sua est6ria, conseguitt sair do “lavarinto” em que se encont verdades escondidas ~ € finalmente com- preendeu-se a si proprio. Portanto, apés a dupla assimilagio de arquétipodovelho sabio, Riobaldo esta pron- to para empreender a iti e de sua vi- agem inickitica: © encontro com 0 Si-Mes- mo. Deste modo, a décima terceira e pentil- apa da prncessa ¢ e regresse la he ao comeco de sua jornada, conforme o es- quema sugerido por Hélder Macedo — pe niiltima travessia. E importante também observar que, para o leitor, essa idéia da tra- Jjet6ria circular fica fortalecida pela referén- ‘cia sub-repticia ao eterno retor >, conceito mitico por exceléncia e reforgado por Rosa no final do romance, com o desenho do sim- bolo do infinito, Vejamos o que diz Macedo sobre essa etapa em uma viagem inicidtica: Para paverdadei- ra iniciagao, tera de conseguir expandlir a idle pessoal ao ultrapas sivos obstéculos até que. no encontro com a ‘Magna Maier ~ momento indispensivel & objetivo implicito da sua demanda-, tenha assumido o podler paterno de que depende arenovada continuicade da prépria con nidade nele personalizada. (Candes ea via- gem inicidtica, p33) wrase tornar u sua ides Assim, ap6s “assumi(r) 0 poder pater- no”, Riobaldo vol Ele deve 76 estar por volta dos vinte € oito anos, quai do abandonaa vida de chefe jagungo cc 6 tiltimo Rei dos Gerais ~ estes ja de volta a0 estado de Cosmos, ordem esta que deve necessariamente prevalecer no tempo do mito, Portanto, a volta ao comeco, embora em outro ponto da espiral, encontra o ca sado com Otacilia e préspero fazendeiro, como seu. pai, ja que ap6s a morte deste havia herdado iodas as suas posses. Na ver- dade, uma vez que havia sido bem sucedi- do em ultrapassar e interiorizar a persona, ou seja, a figura de lorde e fazendeiro abas- tado, cle agora volta a poder usé-la em um outro estgio de seu desenvolvimento pst- quico, numa outra sintonia energética: a do anquétipo regido por um sinal positive. Fi- nalmente, € na Sao Gregorio, de retorno quase ao comeco da narrativa cronolégica, que ele esta contandojeantando sua estéria a0 Doutor da cidade grande. F assim um homem completo. Agora a epopéia entra em sua tihim etapa, sendo 0 hersi nesse momento apre- sentado como um homem maduro, compl to bem estabelecilo na vida, no que se vai configurarcomo.a décima quarta fase de sua viagem, ca quinta e tiltima do processo de individuagio. Desta maneira, a travessia—a iiltima continua no tempo da narracio, como uma verdadeira catdbase ao reino da mem@ria, tema recorrente em grande parte dos sistemas mitol6gicos. Por outro lado, mostra-nos que © retorno através da lem- branga é a forma privilegiada de acesso do artista & mina de ouro dos fatos culturais guardados no inconsciente coletivo da hu- manidade, que 0 autor magicamente des- vendla para seu leitor. Assim sendo, com mais. essa circuiferencia fecliatls, ot 96}, tet assimilado todos os arquétipos anteriores equilibrado intimeros opostos, colocando-os em harmonia, pode-se dizer que 0 her6i ests “redondo” € que chegou 20 estigio do S Meso, ou Selbst, no esquema de individua- ‘cao proposto por Jung. : importante compreender, ainda, que, assim como 0 ato de narrar pode ser entendido como instrumento de catarse para o protagonista, a obra em si tam proporciona catarse a scu leitor e, portan- no Aletheia 24, jul/dez, 2008, to, duplica a fangao iluminadora do mito, tornando se, conseqiientemente, ela mes ma mediadora no processo de explicagao do mundo, atributo mitolégico por exce- léncia, Em decorréncia desse papel ilumi- nador do romance, seria possivel também compreender Ihe o principal personagem, Riobaldo/Tatarana/Urutu-Branco/Rei dos Gerais, como um legitimo representante do iiltimo arquétipo do proceso de individu- ago, o Selbst, simbolizado, conforme diz Jung em seus estudos, pelos grandes mes- tres ou messias, Assim, a travessia termina- da satisfatoriamente eleva-o a categoria de paradigma, de modelo € padrao de com- portamento a seguir-se, imortalizanclo-o. Por conseguinte, apés a anslise acima empreendida, penso ser possivel afirmar que a utilizagio das estruturas mitolégicas € dos arquétipos do inconsciente coletivo por Jodo Guimaraes Rosa teve como con- seqiéncia concreta levar crescimento psicol6gico humano = através do exemplo da tavessia de Riobaldo ~ di- retamente ao stubconsciente do leitor do século XX, conforme enuncia 0 primeiro objetivo deste trahalho. Consegniur-o, pa- rece-me, escamoteando a razio e privilegi- ando a intnigao € a empatia; conseguiu-o através do dislogo direto com o inconsci- ente coletivo daqueles leitores; consegui-o, repito por fim, efetuando a unido de fr- miulas narrativas miticas, to antigas que se perdem nas brumas da meméria coletiva da humanidade, ¢ de uma linguagem mo- derna, revolu 1. Por outro lado, por da interpretacio junguiana do texto, a segunda hipétese deste trabalho também pode ser evidenciada, isto é demonstrar pa rado a um mito do descobrimento de si podendo a travessia acima mencionada ser compreendida como um tipico processo de dividuago, com as suas cinco etapas. Contudo, seria ainda necessério men- cionar, antes de concluir, que a viagem ini Giatica, aqui analisada, evidenciaria em um nivel mftico-simbélico, uma outra sfntese operada entre opostos geralmente nao sin- tetizaveis na cultura ocicental do séeulo XX, nensagem de i a saber: a uniao do homem racional com 0 Aletheia 24, jul ez, 2008, homem metafisico e/ou instintive. Desta maneira, como ordenagio do mundo, Grande sertéo identifica-se com 0 mito ¢ a epopéia; no entanto, através da construgio nificado ontolégico para a vida humana, ele j4 passa a ser simbélico. As- sim, Riobaldo ou seré que no poderia mos falar de uma nova coniunctius intitul da Riobaldo Rosa? ~ encontraa sua alma!* construindo uma ponte que o liga & tradi- ho, a0 conhecimento cultural imemorial (novamente a volta ao comego de que fala Helder Macedo), mapeando um caminho para o inconsciente clos leitores € dando- Ihes referencia emocional. Neste sentido, 0 texto fornecer-nos-ia, ao mesmo tempo, tr- digio € renovacio; histéria e interpretagio; alegoria ¢ simbologia; prazer estético ¢ empatia cultural No entanto, talvero que mais importe entender, no Ambito deste trabalho que se conelui, & a nog do mundo, que nos propde 6 romance ana- lisado, s6 poderia ser veiculada através do Verbo, da palavra escrita, Desta maneira, compreendemos quea realizagio das diver- sas conjungiies de opastas — conjangies estas que atravessam necessariamente os Marios estigios do proceso de individua- Gio de Riobaldo ~ apenas seriam possibili- tadas pela linguagem, “porta para o infini- to”, conforme disse © autor em carta a seu tradutor Ginter Lorenz, e epigrafe a este estudo. O bardo, parece dizer-nos Rosa, 0 intermediario entre os homens ¢ os deu- ses, € a palavra escrita seria o seu instru- mento de comunicaco por exceléncia. Outras artes, como a miisica, por exemplo, também aparecem no texto com essa fian- ida a > de que a comp 0 le que a compreensic w intermeddiaciora, mas € sem ¢ itura que é ali privilegiada, o que evi- (0 exclui de outros exemplos de individuagao caminhos diversos para se chegar ao Si-Mesmo, Por fim, a chave para compreender 0 7 Rlobaldo Ross a quem também poderfamos nos refer como o paradigma do hemem mevlerno que encontron sua alma, muna referéncin 3 hipdtese de Jung no ensaio ‘Moglern man in searel of a soul” 7O homem modern a procura da alia”) sucesso do atualissimo romance de Rosa, que este ano completa cingiienta anos, po deria ser a certeza interior de que € possi- vel chegar-se a0 Selbst, ainda que apenas através da imaginagio criadora. Por outro lado, esse conforto possibilitado pelo mito dé alento © prazer numa sociedade da pelo excessivo racionalismo ¢ esterili: de espiritual. Assim, 0 propésito deste arti- g0é,no findo, o de lembrar-nos que ¢ de sertao: weredas seria também uma ponte que nos conduziria pela fruigao da beleza estética até as verdades mais profiandas da mente humana, Essa atualidade simbolica do texto — que vai beber nas estruturas mesmo da mitologia e da literatura univ sais — prova que o paradig lido, ¢ que a viagem iniciatica de Riobaldo Rosa lumina, ainda pertinentemente, 0 lei- tor do século XXI. Glossério junguiano ~anima/animns: segunda etapa do pro- cesso de individuagio, esses dois arquéti- pos do inconsciente coletivo representam, respectivamente, 0 lado feminino do ho- mem € 0 lado masculino da mulher. Sem a compreensio da dualidade basica human = masculino/feminino, yin/yang -, € assu- mindo-a interiormente, no ha amadurec mento psiquico possivel. Segundo Marie Lonise Von Franz, caca um desses arquéti- pos admite também quatro aspectos no seu desenvolvimento. Por exemplo, a anima envolve o& segui mento amoroso uniio dos opostos): I- Eva: representa 0 relacionamento puramente instintivo ¢ bi- ol6gico; 2- Helena (de Fausto): personifica a relagio jéem um nivel rom co, embora tendo elementos sexuais; 3- Mari os A grandeza da devo # estiigios no relacion: etfora representando a intico © estéti- eleva E espiritual 4- Sophia: a sapiéncia, a sabe- doria que transcende até mesmo a pureza ea santidade. - arquétipo: “residuos psiquicos acu- mulados no inconsciente da Humanidade através dos séculos ¢ revelados como ‘ima- 78 gens primordiais’, que ressurgem sempre na intuigio dos poetas, independentemente do tempo e do espaco” (Moisés, pAl). - “contetido imagistico ¢ simbélico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, evidencidvel nos mitos ele das de um povo, ot no imaginério in dividual, especialmente em sonhos, deliri- 65, manifestagoes artfsticas, ete” (Houaiss). = catibase: do grego calabasis: msi antiga. Progressio dos sons descendentes na mtisica grega. Aqui utilizado no sentido de descida aos “infernos” da psique, ao encontro com a propria sombra; uma tr vessia para o inconsciente. Os mitos repre- sentatives dos processos de crescimento ¢ amadurecimento de um adividuo geral- mente mostram a catébase para o mundo cténico ¢ desconhecido, de onde o indiv duo volta pronto para uma nova etapa de sua vida. 2 auniso doe coninnetins oppositore opostos, objetivo precipuo do proceso de individuagio, ocorre na primeira e segun- da etapas desse processo. - grande mie/velho homem sabio: te ceira etapa do procesto de individuagio, esses dois arquétipos do inconsciente cole- tivo identificam-se com 0 mesmo sexo dos individuos. Para um homem, por exemplo, seria Merlin. Eles simbolizam a sabedoria profunda das coisas, aleangada através da meditagao, do sofrimento e da velhice, uni- das a.um didlogo intuitive com o seu “deus interior” ecom a realidade exterior. Auniao dos opostos, efetuada nos dois primeiros estigios do processo, permite acclosodes- 10, que ja € um simbolo do Si se arquél Mesmo. Apesar de etapa necessiria, essa terceira fase do proceso € perigosa, j que 0 individuo pode ser tomaco pela “infla- ser dos "ou $4 lo pelo arqud com 0 qual esta tendo contate. ~ homem moderno: é a nogao que liga 08 conceitos de mito € do proceso de indi- viduagio. Ser solitirio, necessitando viver 6 presente como uma ponte entre o passe do € 0 futuro e bem sucedido na ocupagio que escolheu. Num mundo dessacralizado, sente a necessidade de cunhar seu préprio Aletheia 24, jul/dez, 2008, conceito de religiosidade. Esta sempre & procura de uma alma, a sua alma, que Ihe permita voltar ao mundo do transcenden- te. Para Jung, o caminho para encontrar a alma esta na viagem para dentro, buscan- do encontrar os “deuses” que af se encon- tram excondidos, ~ inconsciente coletivo: parte do nos- so psiquismo que seria herdada através dos milénios de experiéncia cultural do homem, uma espécie cle heranga psfquica. Poce-se inferir sua existéncia através de imagens recorrentes ao psiquismo, os arquétipos. = libido: energia psiquica. O sentido de religiosidade encontrado em todos os po- vos é um exemplo da transmutagao da ener- gia da libido. > mito: “relato fantastico da tradigio oral, geralmente protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbélica, as for- Gas da natureza e os aspectos gerais da con- digo humana” (Homaiss). O mito é ca tico e tem a fangao de trangiilizar a psi- que. Em sua linguagem encontramos 0 pensamento magico e alto indice de redun- dancia. O mito ordena © mundo, criando propri € “congelado”, e ele esti constantemente buscando mediar os antagonismos e re belecer 0 equilibrio entre forcas opostas, sobretudo entre Caos (desordem) Cosmos (orem). Para Jung, 0 mito corresponde a uma verdade psicolégica importante. ~ persona: etapa preliminar do proces so de individuagao, em que o individuo tem de identificar a “mascara social” de que se serve ¢ através da qual exsconde.se 0 verda- deiro ego. Desmascarar e depois assimilar) interiorizar 0s “trejeitos culturais” da soci- edade na qual se vive € condigio necessiria 20 infcio do processo. = process de sia/as varias etapas para alcancar uma per~ sonalidade redonda, superior; amadureci- mento pessoal. Ocorre normalmente na segunda metade da vida ¢ faz com que dividuo aceite 08 “opostes”, tanto em ni © tempo do mito divide: tra vel individual quanto coletivo. ~ psiquee: 6 um sistema dindmico e cons- tantemente em movimento. Nao expressa Aletheia 24, jul ez, 2008, exatamente a idéia de alma: € como se fosse um fluxo constante de energia que se auto regula, Esta energia psiquica (libido) corre entre dois pélos, chamados de “opostos”, que tém fingio reguladora, de equilibrio. Ela é também responsivel pela criagio dos mbolos do inconsiente, que se exprime, entAo, através de uma linguagem simbélica. Esta fungio transcendente tem por objetivo transformar o instinto em cultura, - simbolos do inconsciente: 0 simbolo € apreendido através da intuigio, que, sen- do percepgio através do inconsciente, faz com que seja compreendido por empatia e inteiramente absorvido pela consciéncia, - Si-Mesmo/Selbst: quarta € ultima eta- pa do processo de individuacao, este arqué- tipo do inconsciente coletivo € o Apice do desenvolvimento ¢ amadurecit jo de um individuo, extremamente dificil de ser alean cado pelos humanos comuns ele é simboli- zado pelos grandes messias profetas: Je sus, Buda, Maomé, e 6 representado pelo niimero 4, sendo a quaternidade o simbolo da perfeigio. O individuo torna-se um ho- mem c6smico quando 0 ego se incorpora 20 Si-Mesmo. © hon ico representa a parte interna e imortal de cada ser humano. - sincronicidade: conceito extrem mente dificil de ser compreendido, mas que €, basicamente, a ocorréncia de uma coin- cidéncia significativa, ou seja, que tinha de ser, que estava fadada a ser. Em um nivel mais profiundo, é o resultado da comunica- cho instintiva entre o mundo invisivel € 0 fisico. A sincronicidade é, também, © que permite explicar a intuigho premunitéria de Riobaldo, Hermégenes ou Zé Bebelo, li da & nogiio de destino e carma. ~ sombra: 0 lado “mau”, tabu, dentro de cada um, localizada no inconsciente pessoal. De una 1 I, nos mitos € representada por um(a) feiticeiro(a) ou qualquer personagem cruel, geralmente do mesmo sexo que o(a) heroi(ina). Esses stintos geral midos, mas, para se aleany neira ge se repri- turida- de psiquica, € essencial que o individuo aprenda a reconhecé-los e manté-los sob controle. 79 Referéncias Eschenbach W. V. (1989). Parsfal. Brasflia: ‘Thot Editora. Houaiss, A. (2001). Dicionério eletrénico Houaiss da lingua portuguesa. RJ: Ed. Obje- tive, Jung, C. G. (1986). Estudos sobre o simbo- lismo do si-mesmo. Petrépolis: Vozes. Jung, C. G. (1977). Memorias, sonhos, refle- ‘des. RJ: Nova Fronteira, Jung, C. G. (1969). Modern man in search of ‘a soul. NY: Harvest. Jung, C. G. (1970). Pychologie et alchimie. Paris: Editions Buchel/Castel. Jung, G. G. (1980).Psicologia do inconscien- ve, Petropolis: Vozes Jung, C. G. (1980). Psicologia rligidio orie ‘ental. Petrépolis: Vores. Jung, C. G. (1958). Psyche & symbol. NY: Doubleday Anchor Books. Macedo, H. (1080), Camdes ¢ 2 viagem iniciética. Lisboa: Moraes Ed. Moisés, M. (1978), Diciondrio de termas lite- ravias. Sio Paulo: Cultrix. 80 Rosa, J. G. (1970). 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