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Albert Fishlow « Bolivar Lamounier Edmar Bacha « Francisco Weffort Fernando Henrique Cardoso « Margaret E. Keck Maria C, Campello de Souza + Pedro S, Malan Ralph Della Cava Scott Mainwaring Sonia E. Alvarez « Thomas E. Skidmore DEMOCRATIZANDO O BRASIL Organizagao de Alfred Stepan @ PAZE TERRA i A lenta via brasileira para a democratizacdo: 1974-1985* Thomas E. Skidmore Pano de fundo: O retorno do autoritarismo brasileiro: 1964-1974 Em marco de 1964 uma coalizio entre corspiradores mili- tares e civis dzp6s o presidente Joao Goulart e abriu um novo capitulo na histéria do autoritarismo brasileiro** Seu precedente ‘mais claro foi novembro de 1937, quando o presidente Gettilio Vargas suspendeu a eleigdo que iria escolher sex sucessor. Var- ‘gas criou um regime autoritério semicorporativista (o Estado Novo) amplamente sustentado nos militares. Em 1945 0 pré- prio Vargas foi deposto pelos militares, ¢ 0 adotow um sistema competitivo multipartidério, A reversio ao autorite- tismo em 196¢ foi novamente obra dos militares, que decidiram dar continuidede ao sistema presidencial, mas sob a tutela mi Jitar. O presiconte seria um general designado pelas corporacées + Tradugio de Ana Luiza Pinheiro. s+"Agradego © apoio financeiro do. programe, da, “Fulbright” da ‘Faculty Reseatch Abtond Fellowship” da Universidade de Wisconsin Graduate Schoo! Research Committee, e do "Nave Fund” da Universidass fe Wisconsin, Pelos comentarios proveitosos e criticas sou grato a Bolivar Vamounier, Peter Evans, Pedro Malan e Fernando Henrique Cardoso. 7 de oficiais militares para eleigio pelo Congresso (mais tarde am pliado para um Colégio Eleitoral) para um mandato determinado. A expetiéncia do novo autoritarismo no Brasil suscitou mui tas andlises de estudiosos, incluindo um volume da conferéneia de 1971 em “Yale” sobre Authoritarian Brazil? Um dos traba- Ihos mais influentes foi o de Juan Linz, que sugeriu que “o caso brasileiro representa uma situaedo autoritéria mais que um regime autotitério”.* Linz considerava improvavel que 0 gover xno militar brasileiro institucionalizesse um novo sistema compa rével & Espanha de Franco. Ele via como mais provavel, ou methor, um regime instavel. A histéria subseqtiente confirmou a andlise de Linz. Este trabalho oferece uma avaliagio esque- mética de como o governo militar, a partir de 1974, afastou-se da regra arbitréria ¢ lentamente caminhou em dirego a um sis- tema competitive multipartidério com a restauragao do estado de direito.* © primeiro presidente militar epés 0 golpe de 1964 foi o general Humberto de Alencar Castelo Branco. De 1964 a 1967 Castelo Branco enfrentou a tarefa ingrata de conduzir um pro- grama de estabilizagdo econdmica. Sua equipe econémica redu- ziu drasticamente © {ndice inflacionério e renegociou com su- cesso a divida externa, mas fracassou na recuperacao do cres- cimento econdmico. Ao mesmo tempo, o governo Castelo Bran- co enfrentou uma grande presso da “linhadura” militar que queria suspender as eleig6es ¢ as garantias constitucionais para facilitar 05 expurgos e procedimentos arbitrérios. Castelo Branco conseguiu conter os “linha-dura” por meio de concess6es (pro- Tongando o seu mandato por um ano, assumindo poderes excep- cionais por meio de “Atos Institucionais”). Expurgos foram efe- tuados na burocracta, entre os militares, nas universidades sindicatos. Ao mesmo tempo, o presidente e seus assessores-cha- ve trabalhavam numa nova constituigio, a fim de permitir que © préximo presidente pudesse assumir 0 poder num regime cons. titucional “normal” © constitucionatismo patecia predominar quando o general Artur da Costa e Silva assumiu o poder em 1967. © compro: misso do novo presidente, de “humanizar” a “Revolugio” mi- 28 litar de 1964 parecia um bom presséigio. Na esfera economics, as novidades nao poderiam ser methores. O Brasil comegou uma explosio do crescimento econémico cuja média foi um extracr- dindrio 11% a0 ano de 1968 2 1974, Na politica, entretanto, © cendrio eta menos feliz. A estrutura frdgil da constituigio de 1967 néo podia conviver com a radicalizacdo politica crescente. Em 1968 houve enormes demonstragoes estudantis e duas im- portantes greves no setor industrial.’ O governo reagiu com me- didas policisis que se tornaram altamente repressivas, especial- mente porque em geral os “linhadura” comandavam as forgas de seguranca, Em dezembro de 1968, os militares enfureceram- se em virtude de um voto do Congresso que protegia um deputado a quem desejavam processar. O presidente decretou 0 Ato Ins- titucional n? 5 (AI-5), que autorizava a suspensio dos direitos civis normais, tais como 0 habeas-corpus, justificando « medida pela necessidade de proteger a seguranga nacional” Ao con- trétio de seus precedentes, esse novo ato nfo trazia a data de vencimento. Depois que o presidente Costa e Silva morreu de um der rame cerebral em 1969,7 seu sucessor, designado apés intenso debate entre as corporacdes militares, foi o general Emilio Gar rastazu Médici, que permaneceu. no governo até 1974.* A pre- sidéncie de Médici foi a mais autoritétia desde 1964, Apesar do fato de se fazer eleigdes,? © do Congresso continuar funcio- nando (com a suspenséo de 1969 = 1971, quebrads apenas pe- 1a ratificer a sucesso de Médici no comego de 1970), o Brasil estava sob 0 contole das forgas de seguranga, que travavam uma batalha com varios pequenos movimentos de guerrilha. Mesmo depois que as guerrilhas foram liquidadas sem misericérdia, os procedimentos arbitrérios ¢ as préticas ditatoriais continua ram.J* Assim mesmo, o presidente Médici conquistou uma legi- timidade parcial de facto junto aos membros das classes média e alta, em razSo dos indices recorde de crescimento econdmico € do estabelecimento da “lei e da ordem”. Os anos Médici terminaram com 0 governo aparentemente mais forte do que em qualquer outra época desde 1964. A amea ca armada da esquerda fora liquidada — os guertilheiros esta vam na prisio, no exilio ou mortos. A economia expandiase, com um indice de erescimento em 1975 de 14%, o mais alto de qualquer ano desde 1928. O Brasil parecia ser 0 modelo para aqueles que buscavam 0 segredo do crescimento econdmico no Terceiro Mundo, Nao obstante esse aparente sucesso, mudancas importantes estavam em gestaco. Um grupo de oficiais militares vinha defendendo, jé hé algum tempo, a necessidade de retomar ao estado de direito. Eles se identificavam bastante com o antigo presidente Castelo Branco (morto num acidente afreo apenas alguns meses ap6s deixar 0 cargo em 1967) c sua intencdo original declarada de retornar to logo quanto possivel ao governo constitucional. Destacando-se nesse grupo, o geseral Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Castelo © membro-chave da “Sorbonne” tar, desejava modernizar o Brasil rapidamente. Golbery ha- via lutado contra a designagao de Costa e Silva como sucessor de Castelo Branco, ¢ desde sua saida do governo em 1967 pla- nejava um retorno ao poder. Golbery tinha um aliado, igual- mente importante, no general Emesto Geisel, que era um can- didato de consenso das Forcas Armadas para suceder Mé 1974: Uma nova presidéncia-liberalizagao de dentro? ‘A sucesso presidencial de 1975-74 aconteceu de maneira ‘mais calma do que qualquer outra desde 1964. Durante 1973 a opiniéo militar convergiu para o nome de Emesto Geisel, 0 presidente da Petrobrés, que tinha a virtude adicional de ser irm&o do ministro do Exéreito. O Colégio Eleitoral seguiu pon- tualmente as instrugGes, e em janeiro de 1974 elegeu o presidente Geisel com 400 dos 503 votos. A derrota considerdvel do MDB num corpo altamente manipulado era, em pequena parte, com- pensada pela esperanca de que o novo presidente desejasse (€ realmente pudesse) diminuir a represséo. No fim de fevereiro Geisel anunciou seu ministério, para cujos postos-chave foram nomeados tecnocratas. Delfim Netto foi substituido na Fazenda por Mério Simonsen, outro professor de economia com estreitas 30 ligagées com So Paulo, Delfim foi mandado para fora do Bra sil como embaixador da Franca, em parte para manter sua per sonalidade formidével to longe quanto possivel dos novos exe- cutivos da politica. A Secretaria do Planejamento permaneceu nas mios de Jo%o Paulo dos Reis Velloso, 0 economista do Nor- deste, que provou ser 0 tecnocrata de maior longevidade."™ Havia rumores de que © novo governo planejava acabar com as injusticas sociais do passado. Melhor distribuigéo de ren- da era a preocupagio principal: entre 1960 ¢ 1970 os dez. por cento mais ricos da populacéo tinham eumentado sua parcela de renda de 40% para 47%, enquanto a parcela dos cingiienta por cenfo mais pobres tinha caido de 17% para 15%. Um novo Ministério do Bem-Estar Social iria consolidar os mal coordens- dos programas de bem-estar criados pelos governos passados. Uma distribuigéo mais justa da renda requeria um alto crescimento continuo, para que ninguém perdesse em termos ab- solutos. O chogue do prego do petréleo da OPEP, em 1975, entretanto, mostrou que o Brasil, que importava 80% de seu ppetréleo, tinha poucas opgdes: cortar da importagio os ndo-de- rivados de petréleo, usar suas reservas de divisas, ou tomar emprestado mais capital externo. Cortar nas importagées dimi- nuiria o ritmo do erescimento, ¢ a recessio mundial causada pe- lo choque do prego do pettéleo impedia um aumento nos Iucros com exportagio. A tinica maneira de absorver 0 aumento do prego e manter 0 crescimento era usar as reservas ou fazer em- préstimos externos. O Brasil fez ambas as coisas, duplicando sua divide externa somente em 1974 (de 6,2 bilhdes de délares para 119 bilhes de délares).”? Sustentado por empréstimos estrangeiros, 0 governo Geisel decidiu manter os enormes projetos de investimento estatal que havia herdado (a represa de Itaipu, o projeto de ago da Agomi- nas, etc.), enquanto ele préprio realizava um conjunto de novos projetos dispendiosos de investimento para aumentar a capaci- dade interna de bens de capital © matérias-primas bésicas, Em restumo, © novo governo aceitou um desafio até mesmo maior do que 0 que seus predecessores tinham tentado, e num clima in- ternacional muito menos favorével 51 © general Golbery do Couto ¢ Silva tinha agora voltado a0 poder, retomando a posiglio que mantivera com Castelo Bran: co — chefe da Casa Civil do presidente. Golbery e Geisel he- viam trabalhado juntos no governo de Castelo Branco, ¢ desde 1967 estavam manobrando para reconquistar o poder pa- ra aqueles que cles consideravam como os “revolucionérios au- ténticos”.!* ‘As expectativas do povo em relagdo do novo governo, ¢s- pecialmente entre a elite, concentravam-se na esperanca de que © governo Geisel conseguisse manter o aparato repressivo sob controle, acabando especialmente com a tortura. No fim de fe vereiro, Geisel alimentou essa esperangas encontrando-se com 0 cardeal Arns de Sao Paulo, um critico incansével da violagdo dos direitos humanos pelo governo. Emissérios da Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foram encorajados pelas conversas com o general Golbery, que parecia genuinamente sus- cetfvel a um retorno ao estado de direito. O otimismo cresceu quando Geisel expressou sua esperanga de uma redemocratize- eo gradual, comecando com uma descompressao, embora ele tonha também claramente advertido que a “seguranga” nacional cra indispensavel para garantir 0 desenvolvimento. Ficava claro, desde o inicio, que qualquer movimento em diregio & redemocratizago e a um retorno ao estado de diteito dependeria da habilidade do presidente de mobilizar apoios den- tro das corporagdes dos oficiais das trés armas, especialmente do Exéreito, Os “linha-dura” poderiam se opor e talvez mesmo sabo- tar qualquer liberalizacao. Havia especulegio para saber até que ponto o presidente de fato controlava o aparato de seguranca. Um incidente no Nordeste ilustrou o problema. Pouco depois da posse de Geisel, 0 comando do Quarto Exército em Recife pren- dew Carlos Garcia, um respeitado jomnalista que chefiava a su- cursal, no Recife, do jornal O Estado de S. Paulo. Ap6s interro- gat6rio ¢ tortura, Garcia foi solto. Era a esse tipo de tratamento brutal, tipico da era Médici, que @ oposicéo esperava que Gei- sel pudesse dar um fim. Os proprietérios do jomnal, que tinkam sido corajosos no ataque ao governo militar, protestaram vigo- rosamente contra os maus tratos a seu reporter, a quem munca: foi apresentada nenhuma acusacio judicial, No fim de maio, os censores fedetais langaram um ataque os meios de comunicacdo,"* reagindo, em parte, & critica mais agressiva da oposicio. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) expressou sua preocupacdo sobre o fracasso do governo em es clarecer o caso das pessoas desaparecidas que, acreditava-se, ha- iam sido ptesas pelas forcas de seguranca.** Em julho, o MDB solicitou formalmente que 0 ministro da justica, Armando Faledo, explicasse 0 paradeiro de pessoas tidas como presas pelo go- verno, Em agosto a OAB acelerou sua campanhe, com sua convencéo nacional no Rio devotada inteiramente ao tema “O advogado e os direitos humanos” 2” Em outubro, dois novos incidentes mostravam que a libera- lizagdo estava bastante préxima, A prisio e tortura, pelo Quarto Exército no Recife, de Fred Moris, um cidadfo americano e an- tigo missionério metodista, criou ama crise nas relagdes Brasil Estados Unidos reforgou o interesse americano na liberalize go brasileira."® Os “linha-dura” também exibiram sua forga no caso de Francisco Pinto, um proeminente deputado radical do MDB da Bahia, que foi destitufdo de sua cadeira no Congresso € teve seus direitos politicos cassados. A causa foi um discurso nna rédio em margo, denunciando o presidente chileno Pinochet, quando este veio participar de posse de Geisel Novembro de 1974: O choque da derrota eleitoral Todas essas lutas entre o governo ¢ seus ctiticos acabaram por se tornar uma pequena introdugdo as eleigdes de novembro de 1974, 0 teste eleitoral mais importante do Brasil na década, 4 nivel federal, desde @ “Revolugdo". O governo Geisel recebera de sew predecessor um legado eleitoral contraditétio. Enquanto ‘os governandores eram eleitos indiretamente pelos legislativos estaduais, que eram facilmente manipulados por Brasilia, as elei- Bes pars. o Congresso eram diretas. O regime Médici resolvere, em 1970, 0 problema de tais ameacas através de intimidago ma- ciga do eleitorado ¢ da perseguigio & oposicao. Mas o que acon- teceria se as eleigdes fossem relativamente livres? © primeiro teste de Geisel nfo apresentow problemas. A ARENA venceu & eleigéo indireta para governadotes em outu- ‘bro de 1974, sem surpresas, jé que era a ARENA que contro- lava todas as instincias legislativas que fizeram a eleigdo. Ainda assim, a vitéria pode ter desorientado os estrategistas politicos no palécio presidencial, que subestimaram a amplitude ¢ pro- fundidade da opoxigao eleitoral. Os lideres atenistas esperavam confiantemente a vit6ria nas eleigées do Congresso, ¢ até 0 iniaio de outubro poucos observadores politicos bem informedos te: iam apostado contra eles. Mas o clima politico mudou rapida- mente no final de outubro. Para surpresa de todos, 0 governo decidiu permitir o acesso relativamente livre de todos 0s can didatos a televiséo. O eleitorado comegou entao a se perguntar se 0 seu voto poderia fazer diferencs. Talvez 0 MDB de fato representasse uma alternativa real. Talvez 0 presidente estivesse preparado para cooperar com a oposicéo. Durante alguns meses, o MDB tinha demonstrado estar mais de acordo com as inten- o6es de liberalizaglo do presidente do que o préprio partido do governo. A iiltima quinzena antes do dia da eleigao trouxe ume torrente de entusiasmo pata a oposicéo. Os resultados da eleigo surpreenderam a todos,"* inclusive 6s estrategistas mais otimistas do MDB. © MDB tinha quase dobrado sua representacdo na Cémara dos Deputados (0 niimero total de cadeiras tinha crescido de 510 para 364) elevando-se de 87 para 165. A ARENA caiu de 225 para 199. Os resultados no Senado foram igualmente draméticos. A delegacéo do MDB aumentou de 7 para 20, enquanto a ARENA caiu de 59 pare 46. Enquanto a ARENA vencera por uma pequena matgem no total de votos para deputados federais, 0 MDB venceu no total de votos para senador, que era o melhor indicador da opiniao nacional. Além disso, o MDB ganhou o controle das assembléias estaduais nos estados-chave, onde 0 eleitorado urbano era cru cial: Séo Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro (incluindo a cidade do Rio), Parané, Acre ¢ Amazonas. Até entéo, o MDB controlava apenas a Assembléia Legislativa no grande Rio de Ja- neiro (que pertencia ainda ao Estado da Guanabara). (© que essa vitéria da oposigao significava? O MDB cen- ‘rou sua campanha em trés temas: justiga social (denunciando tendéncia de uma distribuigao de renda cada vez mais desigual), liberdades civis (es violag6es dos direitos humanos que tanto preocupevam a critica da elite) e desnacionalizagio (denuncian- do a penetraglo estrangeira ne economia brasileira)?” Os lide- tes do MDB argumentavam que sua vitétia provava que o elei- torado endossava suas posigbes. No minimo, todos concordavam, as cleigées mostravam uma inesperada falta de apoio & “Revo- ugio”. A reducio do crescimento econémico a partir de 1974 teve seu papel. Mas néo havia duivida de que os eleitores esta- vain mandando um recado ao governo: eles queriam uma mu- danga. © Planalto nfo poderis mais nutrir qualquer esperanga sobre a habilidade da ARENA de vencer eleigées relativamente livres. “Descompressdo” para onde? A idéia de uma liberalizagéo liderada pelo governo era ago- ra bastante complicada. O governo Geisel esperava fazer uma abertura gradual e cuidadosamente controlada, Agora sua pré- ppria legitimidade estava ameagada. O choque entre governo € oposigtio — que se esperava silenciar — estava acentuado, Ha- via um perigo de vitérias do MDB nas eleigdes diretas para go vernador marcadas para 1978, Mesmo se as eleigdes indiretas fossem mantidas, 0 controle oposicionista das assembléias legis- lativas em Estados-chave traziam o perigo de uma quase certa derrota do governo, No fim de dezembro, os assessores de Geise] enfrentavam ‘um panorama politico bem menos controlado do que aquele que cles haviam herdado. O dilema para os moderados no g0- verno militar colocava-se de uma maneira nova: como encon- trar politicos civis que fossem a0 mesmo tempo atraentes 20 cleitorado ¢ aceitaveis aos militares da “linha-dura”? 35 © presidente Geisel agiu rapidamente para assegurar que os resultados daquela eleicdo fossem respeitados. Ele se forta- lecia pelo fato ce que a oposigio no controlava nenhum poder executivo. Além disso, 0 Congresso tinha estado muito tempo alijado do poder para tomar qualquer iniciativa. Uma nova ameaga do MDB, entretanto, era a sua possibilidade — porque agora ele detinha mais que um tergo das cadeiras da Camara dos Deputados — de bloquear es emendas constitucionais. Em 1975 o debate sobre direitos humanos continuava a ple no vapor. Em janeiro a censura de O Estado de S. Paulo foi liberada & tempo para o centendrio do jornal. Essa concesstio marcou o fim de uma longa batalhe entre os donos do jornal, a familia Mesquite, e o governo militar.** Nenhuma das outras publicagdes sujeitas & censura prévia foi removida da lista, O governo havia feito um gesto muito limitado para restabelecer a atmosfera politica. Em fevereiro de 1975, a oposigao novamente fazia presses a favor dos prisioneiros politicos. O MDB e os ativistas da Igreja Catélica Romana renovavam seus pedidos de esclareci- mento a respeito dos “desaparecidos”. Mas em margo uma ba- tida policial no Partido Comunista, considerado pelos “linha dura” como sendo o principal elemento no sucesso eleitoral do MDB, acarretou um grande nimero de prises ¢ novas acu g6es de tortura de detidos. Os criticos da Igreja e do MDB con- tinuavam a protestar contra a tortura e a arbitrariedade da acao policial. O comandante do Terceito Exéreito, general Oscar Luis da Silva, respondeu & oposigao citando 0 exemplo portugués, em que o protesto, dizia ele, levou diretamente & ameaga do contro- le comumnista. No comego de agosto de 1975, Geisel fez um importante pronunciamento, definindo suas atitudes governamentais em re- lagio a liberaliza¢go. Explicava que qualquer mudanga tinha de ser lenta e segura. Significativamente, ele dava a noticia de que (© governo nfo tinha intengdo de desistir de seus poderes excep- cionais, tais como aqueles contidos no Ato Institucional n.° 5. Os oposicionistes mais otimistas esperavam poder de algum modo extinguir aquele ato. Geisel avisou que as presses opo: 36 sicionistas talver. gerassem uma “contrapressio”, que ele nfo se permitia ignorar. O sentido estava claro: qualquer nova politica governamental teria que ser 0 produto do compromisso entre os pontos de vista politicos rivais dentro dar Forgas Armadas. So- ‘mente se os militares sentissem confianga sobre seguranca na- ional, qualquer que fosse a definigo deles sobre isso, poderia 1 oposigao ter esperancas de realizar seus objetivos de retorno ao estado de direito. Ao mesmo tempo, Geisel atacou a infiltra- ‘so comunista nos sindicatos ¢ avisou que aquela censura rigo- rosa poderia ser necesséria em vista da campanha subvetsiva contra 0 seu governo, Os religiosos estavam entre as poucas pes- soas de oposigéo que podiam efetivamente contestar os conti- nuos desmentidos do governo sobre tortura e comportamento arbitrério, Em meados de setembro, os padres estavam novamente ‘no ataque, citando os abusos governamentais feitos aos indios € a tortura dos prisioneiros politicos. Morte em Séo Paulo Tais dentincies foram posteriormente obscurecidas pelo ca- so impressionante de Vladimir Herzog, um importante jornalista, diretor de um canal de televiséio néo-comercial bastante respeita- do, que operava sob 0 patrocinio do governo do Estado de Séo Paulo, Herzog era um’ judeu nascido ne Tugoslévia que imigra- ra para o Brasil bem jovem. Em outubro de 1975 ele soube por amigos que as forgas de seguranca do Segundo Exército es- tavam procurando por ele. Num esforgo de cooperacto, apre- sentou-se voluntariamente ao quartel do Exército. Ele aparente- mente nfo tinha nogo de que a inteligéncia do Segundo Exército © considerava uma ligago direta com os conspiradores comu- nistas, No dia seguinte 0 comando do Exército anunciou que ele havia cometido suicidio em sua cela na pristio, Sao Paulo estava estarrecido, Ninguém acreditava na explicagio do suicfdio, Um importante membro da clite da classe média fore subitamente ‘morto, seguramente pela tortura, Os estudantes entraram em grove na Universidade de Séo Paulo, e @ OAB publicou uma de- a clarago acusando © governo de tortura. O fato de Herzog ser judeu sem divida acrescentava uma reago amedrontada da eli te paulistana, uma vez que houvera vestigios de anti-semitismo no comportamento passado dos “linha-dura”. Quarenta ¢ dois bis- pos assinaram uma declarago denunciando a violéncia gover- namental. © cardeal Ams, a despeito do medo da familia de Herzog © de boa parte da elite cultural de Sao Paulo, orgenizou e pre- sidiu um dramético culto ecuménico cat6lico-judeu por Herzog, na catedral de Sdo Paulo, A polfcia recorreu a estratagemas mesquinhos para afugentar os participantes, revistando todos os carros que se dirigiam para o centro da cidade. Ainda assim a ceriménia aconteceu — um triunfo menor numa comunidade do- minada pelo medo. © choque da morte de Herzog foi ainda maior levando-se fem conta que muita gente tinha tido a esperanga de que o pte- sidente Geisel estivesse mantendo sob controle 0 aparato de se- guranga militar. Geisel ordenou uma investigagao imediata da morte do jornalista. Os incrédulos analistas confirmaram suas opinides quando os investigadores militares anunciaram, no fim de dezembro, que a morte havia sido realmente provocada por suiefdio. © estado de choque permangeia em Sto Paulo. © coman- dante do Segundo Exército, general Ednardo d’Avila Melo, era ‘um “linha-dura” que dera ao aparato de seguranca local uma car- ta branca virtual. No final de 1975 muitos pensavam que a des- compressio estava condenada. Ainda em So Paulo, outro in- cidente eletrizou o ambiente. No comego de janeiro de 1976 0 Segundo Exército estava interrogando Manoel Fiel Filho, um operatic ativo no Sindicato dos Metalirgicos. Subitamente os jornais vazaram a informagdo de que ele havia morrido. Alguém poderia duvidar que ele morrera sob tortura? O presidente Gei- sel estava Ivido, Ele agora parecia ridiculo por haver defendido © general d’Avila no caso de Herzog. Apés certificar-se dos fatos, demitiu d’Avila ¢ substituiu-o pelo general Dilermando Gomes Monteiro, um conhecido moderado e estreitamente ligado a Geisel. 38 © mais significativo de tudo era o fato de que Geisel agira sem 0 assentimento do Alto Comando do Exército, normalmente consultado pata uma mudanga tfo importante no comando. Sua hhabilidade mostrava o grande poder do presidente dentro das corporagdes do Exército. O efeito mais importante dessas duas mortes nos quartéis do Segundo Exército foi colocar a “linha- dura” na defensiva. Os especialistas em seguranga nfo podiam sais estar certos de que a autoridade maior fosse dar cobertura a eles em casos de protesto piblico contra a tortura. © aumento do poder de Geisel entre os militares — como indicava sua capacidade de remover o general Ednardo d’Avila — teve seu prego. Para manter seu apoio, o presidente tinha de demonstrar que no suportaria relaxamento no que se refe- risse & corrupedo € & subversdo civil, que os “linhadura” sen- tiam como determinantes da “Revolugdo de 1964". Assim, iro- nicamente, a possibilidade de o presidente levar adiante a aber- tura politica dependeria, 2 curto prazo, da sua capacidade de provar sua autoridade. As realidades constitucionais Desde 0 inicio do governo Geisel, a oposi¢#o exigia um retorno ao estado de direito, opondo-se & insisténcia do presiden- te em reter os poderes arbitrérios promulgados com o AI-5. Néo obstante, entre 1974-1975 ele foi usado em casos relativamente sem importincia, criando a esperanca de que © Ato pudesse sim- plesmente ser colocado de lado por falta de uso. A oposigio foi desiludida no comego de 1976, pouco de- pois da retirada do general Ednardo d’Avila, Durante o ano de 1975, 0 ministro da Justica tinha se engajado numa caga aos comunistas, os quais, ele supunha, tinham representado o papel principal nas eleigdes do Congresso em novembro de 1974, Em marco de 1975, houve processos nos quais os acusados eram condenados por tentar reconstruir 0 Partido Comunista; outros foram condenados por terem pertencido & guerritha, como ativis- tas da ALN de Carlos Marighela. Em outubro, portavoz mi- litar anunciou a priséo de 76 comunistas, dos quais 63 perten- 38 de 1976, Geisel uso o ALS para cassar os mandatos de dois deputados do Estado de Sao Paulo. Eles foram acusados de terem recebido apoio comunista nas eleigGes anteriores. No fim de margo 0 mesmo ato foi usado contra dois deputados federais que haviam atacado violentamente © governo e os militares. Em. resposta, um inflamado congressista do MDB decidiu Jutar. Lystneas Maciel, ministro metodista ¢ lider critico do re- ime militar, fez um discurso elogiientemente amargo no Con- ‘gresso, fazendo a defesa dos dois deputados que haviam perdido seus mandatos. Ele denunciava que somente @ forga havie per- tmitido a0 governo permanecer no poder. Seu ataque alcangou © gabinete do presidente a tempo de seu nome ser acrescentado a ordem que revogava os mandatos dos dois deputados. A ordem chegou ao Congreso com Lystneas ainda na tribuna. Insultos graves foram trocados numa feie cena que durou algum tempo. A lideranca do MDB, profundamente frustada, fez uma decla- ago atacando 0 governo por recorrer & “violencia”. Poucos politicos surpreenderam-se quando o machado caiu sobte esses jovens deputados, que eram publicamente conheci- dos por beitar o limite da tolerancia militar. Ainda assim, o fato de o presidente ter recorrido ao ALS contra os congressistas federais de menor importéncia sugeria que a esperanca de di. logo setia nublada pelo poder do presidente de silenciar as vo- zes polfticas que Ihe desagradassem. Outros sinais do nervosismo governamental surgiram no co- ‘mego de abril de 1976, quando a censura federal retirou da televisio um programa do Ballet Bolshoi. A censura havia re- centemente diminufdo, e 0 governo pareceu entéo tolo, alvo de piadas sobre a possfvel “contaminagao”, caso os dancarinos comunistas televisionados circulassem livremente. No fim de junho © governo mostrou novamente seu medo do poder dos meios de comunicagdo quando conseguiu arrancar do Congres- 80 uma lei (conhecida como “Lei Falcéo”, nome do ministro da Justiga) restringindo 0 uso do rédio e da televisio para as elei- es municipais de 1976 a difusio apenas de fotos dos candi- datos com resumos falados indcuos sobre cada um. Era uma 40 reagao tardia & campanha de 1974, quando o MDB usou com sucesso a televisio para gerar uma grande vantagem politica nas femanas finais. OQ presidente Geisel referiase agora so MDB como o “inimigo”. Os Iideres do MDB estavam divididos em relagao ao que responder. ‘A importincia da vit6ria eleitoral do partido oposicionista em 1974 levaria tempo para ser absorvida. Quando isso acon- teceu, 0 governo Geisel encontrava-se hé apenas um ano de seu final, e num cul-de-sac politico. A promessa de “descompressao” havia sido obscurecida pelo medo governamental de derrotas cleitorais, que poderiam minar prematuramente controle militar do Executivo. A lideranga do MDB decidiu sabiamente mostrat- se moderada e esperar para colher os frutos da vit6ria nas pré- ximas eleigdes em 1978. Os meses finais de 1978 assistiram 20 surgimento de uma forga que os brasileiros hé muito tempo temiam — o terrorismo de direita. Em setembro, uma bomba explodiu na sede da Asso- ciagio Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, ¢ no comego de outubro houve atentados @ bomba e ameacas telefOnicas vi- sando aos padres conhecidos pelas suas criticas ao governo. Um bispo foi seqiestrado, torturado, e sou carro dinamitado, Um grupo autodenominando-se “Comando de Caga aos Comunistas”, titulo que soava assustador como o do grupo terrorista argentino AAA, assumiu a responsabilidade pela perseguigo a0 bispo. Mas os incidentes no se desenrolaram numa grande campanha nessa época, ¢ os responsdveis (sem davida ligados a polfcia ¢ a0 Exército) ou foram contidos pelos seus superiores ou decidiram parar. Os acontecimentos politicos mais importantes nesse perfo- do vieram das eleig6es municipais de 13 de novembro de 1978. Havia a expectativa de a ARENA sair-se bem, pelo menos nas regides menos desenvolvidas, onde pouca gente ousava disputar contra o partido do governo, 0 que acabou realmente aconte- cendo, Nas reas urbanas maiores, porém, o MDB demonstrou muita forga, ganhando o controle das Cimaras Municipais no Rio de Janeiro, Séo Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Sal- vador, Campinas ¢ Santos. A vitéria da oposigio nas cidades 4 mais importantes indicavam um futuro negro para a ARENA. A eleicgo teve também seu lado divertido: no Rio, em toro de 150.000 cleitores votaram no “feijio preto”, género alimen- ticio da classe trabalhadora cujo desaparecimento dos supermer- cados, um més antes, causara revoltas. Foi mais um sinal de pe- rigo para o regime. Outro atentado a Constiuicéo: 0 “Pacote de abril” No comego de 1977 0 governo Geisel preparou um lance dcisivo para lidar com 0 problema politico criado pelo resul- tado da eleigio de 1974, © governo perdera seus dois tercos majoritérios no Congreso; havia ainda o AI-5, mas o poder de legislar por decreto poderia ser usado apenas se o Congresso no estivesse reuinido, Geisel, assim, fechou 0 Congresso (em 1 de abril de 1977), usando como pretexto a recusa do MDB de apoiar uma lei governamental para reformar o Judicié- rio. Sobre os poderes autoritérios do AI-5, Geisel anunciou uma série de mudancas constitucionais maiores, conhecidas como 0 “Pacote de abril”, todas visando fortalecer a ARENA nas ele ges futuras. A partir dai as emendas constitucionais necessi- tariam somente da aprovagio majorit6ria no Congresso; todos os governadores de Estado e um tergo dos senadores federais se- iam eleitos indiretamente em 1978 por colégios eleitorais (que inclufam as c&maras municipais, onde a ARENA predominava); os deputados federais seriam alocados na base da média da po- pulagio ¢ niio dos eleitores registrados (como em 1970 1974); «, fimalmente, a lei Falcdo de 1976 foi estendida as eleigSes do Congress. © MDB protestou amargamente contra essa nova manipu- ago das regras do jogo politico, Na imprensa eram intmeros 8 comentarios contra a aparente traigo de Geisel ao seu com- promisso com a liberalizacdo. O presidente respondeu marcan- do a reabertura do Congreso para 15 de abril. © final de 1977 viu 0 governo Geisel ser severamente tes- tado. Aqueles que duvidavam de seu comprometimento com a li- beralizacéo néo encontravam falta de evidéncias. Em junho Geisel 42 cassou o lider do MDB na Cémara, Alencar Furtado, ¢ cassou seus direitos politicos por dez anos. Essa foi a resposta do gover- no as acusagées ao presidente, feitas por Furtado num programa de televisio (segundo a lei oposigdo tinha uma hora por ano), em junho3* Aparentemente, Geisel, que era conhecido pelo seu temperamento fechado e autocrético, havia tomado 0 discurso de Furtado como ofensa pessoal, ¢ havia respondido usando o poder arbitrario. Anteriormente, em 1977, houve manifestacdes de oposicio de origem mais familiar — os estudantes. De margo @ maio, pprotestos sobre questies académicas prolongaram-se em demons- tragdes antigovernamentais em vérios campi universitérios. O ministro da Justiga, Armando Falefo, proibiu as demonstragées; uma tentativa de greve na Universidade de Brasflia levou & re- pressio; foram presos 850 estudantes que pediam o restabeleci- mento da democracia, num encontro nacional de estudantes em Belo Horizonte, Embora a repressio ocorresse na maioria dos casos, a policia freqiientemente mostrava hesitaglo. Pela primei- ra ver desde 1968, os estudantes ativistas sentiram que poderiam enfrentar o aparelho de seguranca, ‘Outta fonte de tensio foi o protesto dos in'electuais sobre fa questio da censara. Ainda que a censura prévia tivesse sido suspensa para os grandes jornais em 1975, esta permanéncia, de fato, para outras publicagées, ¢ era especialmente vigilante no radio € na televisio, os meios de comunicagéo com maior im- pacto popular. Em maio, Falco anunciou que a censura seria estendida &s matérias importadas. Dois mil, setecentos e cingiien- ta jornalistas publicaram um protesto por toda a nagdo, o qual havia sido precedido, em janeiro, de um manifesto anticensura, assinado por mil intelectuais. Direitos humanos, tecnologia nuclear e tio Sam © relacionaiiento entre 0 governo Geisel ¢ a oposigao to- ‘mou uma dimensio internacional quando a administrayao Car- ter, reoém-empossada, decidiu fazer dos direitos humanos a preo- cupagio central da politica estrangeira americana. Quando em 6 1977 0 Departamento de Estado publicou seu primeito relato- rio sobre direitos humanos em pafses que recebiam assisténcia militar americana — requerida pelo Congresso sob a Emenda Harkin para a ajuda estrangeira, de 1976 — o relatério foi bas- tante eritico em relaco & situagdo dos direitos humanos no Bre- sil. O governo Geisel ficou furioso com 0 que considerou uma interferéncia intolerével nos assuntos internos do Brasil. Imedia- tamente cancelouse um acordo de ajuda militar que vinha desde 1952, e no final de setembro todos os outros acordos de coope- ragio militar formal foram rompidos. Nao haveria, assim, opor- tunidade de novos relatérios do Departamento de Estado. Com a esperanga de reparar os danos, Carter marcou uma visita a0 Brasil para o fim de novembro, mas sinais negatives vindos de Brasflia forgaram seu cancelamento. A viagem foi et- tao marcada para margo. A primeira-dama americana, Sra. Roe lyn Carter, de fato, fez uma visita oficial ao Brasil em julho d= 1977, e foi imediatamente submetida & controvérsia dos direitos humanos. Representantes estudantis brasileiros entregaram-lhe uma carta denunciando as violagdes dos direitos humanos. Du- rante uma parada em Recife, ela encontrouse com dois missic- nérios americanos, que Ihe deram um relato assombroso dos maus-tratos que sofreram da policia apenas alguns dias antes. A primeira-dama prometeu tratar do assunto com o marido. A vi- gem da Sra. Carter dramatizou mais uma vez a questo da ter- tativa americana de influenciar a politica govemamental brasi- leira. Os militares da “linha-dure” useram a critica estrangeira para explorar os sentimentos nacionalistas entre seus colegas mais moderados. © governo Carter resolveu enfatizar outra questo que tam bém provocou recriminagdes em Washington e Brasilia — a tec: nologia nuclear. Desde 1945, 05 americanos vinham fazendo cam panha para prevenit a proliferacdo da tecnologia de armas nu cleares. A polftica de nao-proliferacio visava particularmente os ‘Paises menores (pelo menos em termos de capacidade tecnol6gi 'ca) que desejassem descnvolver o poder atmico como uma fonte de energia. Os Estados Unidos encorsjavam esses pafses a im ‘Portar a tecnologia nuclear, mas queriam assegurar-se de que ot 4 que a recebiam no alcangassem a capacidade de entique- cimento de urdnio — um passo necessétio para a produgéo de armas at@micas e para manter uma provisdo de combustivel para © reator. Assim, 0s Estados Unidos, como fornecedores do Bra- sil de tecnologia nuclear, garantiam uma proviso de urdinio en- riquecido, vetando 0 pedido da “Westinghouse Electric” para criar oportunidade de enriquecimento no Brasil, com base no fato de que o pats havia se recusado a assinat 0 Tratado de Néo- Proliferagio Nuclear. Em 1974, entretanto, a Comissio de Energia AtSmica ame: ricana anunciou que, devido @ limites de capacidade, ela talvez no pudesse, no futuro, suprir integralmente as necessidades bra- sileiras de urénio enriquecido. Esse recuo na gatantia de forne- cimento de combustivel veio a tempo para causat 0 rompimento de um grande contrato brasileiro com a Westinghouse, a qual forneceria mais de doze reatores © dez bilhdes de délares em vendas. (© choque ante a facilidade com que os Estados Unidos re- vogaram seu compromisso reforgou a posicdo da critica naciona- lista de dependéneia do Brasil de uma fonte estrangeira em érea tecnolégica tao critica. Abriu também a porta ao Brasil para que procurasse em outro lugar 2 seguranca para o suprimento das necessidades projetadas de combustivel at®mico. Em junho de 1975, apés intensas negociagdes entre 0 go- vyerno brasileiro ¢ um consércio da Alemanha Ocidental, um acordo foi assinado garantindo ao Brasil a compra de dois a oito reatores gigantes, que custavam de dois bilhées a oito bi- hoes de délares. Mais importante, a tecnologia a ser fornecida inclufa a capacidade de produzir armas nucleares. Se tudo fosse realizado, esse acordo teria sido a maior transferéncia de tecno- logia nuclear para um pafs em desenvolvimento, © governo bra- sileiro estava triunfante sobre sua iminente introducao no clube exclusivo de nagées que possufam um ciclo completo de com- bustfvel atémico, ‘A administragao Ford ficara preocupada com 0 acordo, mas preferiu no fazer mais protestos em Bonn e Brasilia. O recém- eleito presidente Carter, entretanto, decidiu fazer uma declara: 45 so mais extensa sobre @ proliferagdo nuclear, especialmente no caso brasileiro. No comeco de 1977, a administragio Carter mon- tou uma ofensiva para a revogacio do acordo entre Alemanha Ocidental ¢ Brasil. Mas presso americana apenas reforgou a resolugio de Bonn e Brasflia, e no fim de 1977 os Estados Uni- dos desistiram. O triunfo na questo nuclear desarmou as eriti- ccas internas sobre a politica nuclear brasileira, ¢ deu ao governo Geisel alguma popularidade muito bem-vinda*. Geisel derrota a “linha-dura” © ano de 1977 ainda reservada mais surpresas. No gover no Geisel a luta entre os “Linha-dura” ¢ os moderados (embora as posigdes sejam mais variadas do que esta simples dicotomia su- gere) havia se intensificado. O ministro do Exército, general Sylvio Frota, surgira como o Ifder da “linha-dura”. Ele acreditava ‘que 0 Brasil estava em perigo iminente de subversio comunista, @ considerava a libetalizagdo um artificio para auxiliar os sub- versivos, muitos dos quais escondiam-se sob legendas partidérias legais. Além disso, Frota considerava-se um candidato presiden- cial ¢ estava pteparado para desafiar diretamente a escolha de Geisel, o general Figueiredo. A tuta chegou ao auge no comego de outubro. Em 12 de outubro foi anunciada subitamente a demissio de Frota, No dia seguinte, Frota emitiu um manifesto inflamedo, acusando 0 governo de “complacéncia criminosa” com a “infil tragdo comunista”, mesmo nas altas esferas governamentais. Ele atacou 0 reconhecimento do Brasil, em 1974, da Reptiblica Po- pular da China e, em 1975,-do governo marxista de Angola, ministro do Exército afastado estava apelando aos militantes opo- nnentes da abertura, mas sua principal auditncia, os militares, pareciam reunir-se ao redor do vencedor. A demissio de Frota teve grande significaggo. Primeiro de. ‘monstrara que Geisel tinha acumulado mais poder pessoal que qualquer um dos presidentes anteriores. Ele tinha dado um passo inédito — demitido um ministro do Exército antes de consultar © Alto Comando — mostrando, assim, que, a0 contrétio dos 46 presidentes militares anteriores, seu poder dentro do Exétcito nfo havie diminufdo?" A luta entre Geisel e Frota envolvia realmente a sucesséo presidencial de 1978, além da continuidade da estratégia poli tica Geisel-Golbery. Desde © momento que entrou em seu ga binete, Geisel havis deixado claro a seus homens de confianga gue seu candidato era o general Joo Baptista Figueiredo, chefe do SNI. No comeso de 1978, Geisel tornou piblica sua escolha, © que era decisive para a indicacdo pelo partido. Para a vice- presidéncia Geisel escolheu Aureliano Chaves, um engenheiro ele- trOnico, especialista em energia nuclear, ¢ ex-governador. de ‘Mi- nas Gerais. Em abril, a Convengao Nacional da ARENA. endos- sou obedientemente as indicagGes. Mais. desacordos militares com a indicagéo de Figueiredo vieram.quando o general Hugo Abreu, 0 chefe da.Casa Militar da presidéncia e 0 comandante que tinha liquidado-a ameaga guertilheita no Amazonas, demitiuse em protesto & escolha* Como:novamente os “linhadura” nfo se reagruparam visivel- mente, Geisel mostrou seu controle sobre os militares, pelo ‘menos na questo da sucessio. ‘A eleigéo presidencial tornou-se mais interessante do que 4 prinefpio prometia. A oposi¢ao tinha um candidato plausivel, o general Euler Bentes Monteiro, antigo diretor da SUDENE, Superintendéncia de Desenvolvimento do Nordeste. Euler foi elei- to pela convenggo do MDB, tendo como companheiro de chapa 0 senador emedebista Paulo Brossard (Rio Grande do Sul) para a vicepresidéncia. Houve uma campanha, a qual permaneceu quase exclusivamente nos bastidotes, uma vez que a eleicio estava nas mios de um Colégio Eleitoral dominado pela ARENA. Figueiredo prometia fazer uma democratizagao gradual, enquanto Euler pregava uma Assembléia Constituinte para reescrever a Constituigo. O MDB clamava ainda por uma mudanga na polf- tica econdmica para corrigit a berrante desigualdade econémica. Figueiredo foi eleito pelo Colégio Eleitoral no dia 14 de outubro. ‘Um més depois vieram as eleigdes do Congreso, As mudan- cas da lei eleitoral contidas no “Pacote de abril” de 1977, de Geisel, conseguiram evitar que 0 MDB vencesse ¢ alcangasse 47 maivria nv Cougressv. Uma nova dispusigio lurmera um trys do Senado elegivel indiretamente (os brasileiros, irreverentemen- te, apelidaram esses senadores de “biénicos") e uma revisio da férmula na representagio na Cmara dos Deputados deu & ARENA a continuidade do controle das duas casas. Mas a ten- déncia na sleigao diteta era ébvia — nas eleigdes diretas para 0 Senado, o MDB ganhou 52%, e a ARENA 54%, com 14% de votos nulos ou brancos. Mais cedo ou mais tarde, a abertura parecia fadada a escapar do controle governamental. No fim de 1978, Geisel manteve sua promessa de afastar elementos-chave da estrutura autoritéria. Em setembto 0 Con- ‘gte350 aprovou um conjunto de reformas extensivas, ¢ 0 MDB boicotou a votagio final, com base no fato de que os propésitos governamentais eram demasiadamente limitados. A mais impor- tante dessas medidas foi a aboligéo do AI-5, privando, dessa forma, 0 presidente da autoridade de declarar 0 recesso do Con- agresso, cassar congressistas, ou privar cidadaos de seus direitos. Além disse, © habeas-corpus foi reinstituido para os presos poli- ticos, € a censura prévia foi suspensa do rédio e da televisio. Ao ‘mesmo tempo, novos poderes “de salvaguarda” foram dados ao ‘Executivo, inclusive a autoridade de declarar o estado de emet- -gincia limitado, sem a aprovagio do Congresso. © governo propés ainda uma versio revisada da Lei de ‘Seguranga Nacional, que muitos observadores consideravam uma fonte tio importante do poder arbitrério como o AI-5. Embora © méimero de crimes possiveis contra 2 seguranga de Estado ti vesse sido reduzido, e as penas abrandadas, a lei ainda permit ‘que prisioneitos politicos pudessem permanccer incomunicéveis por oito dias (em vez de dez). Uma vez que havia mais pro- ‘abilidade de torturas nos dez primeiros dias apés a prisfo, © ja que as definiodes de violagdes permaneciam suficientemente -abrangentes para incluir virtualmente qualquer atividade de opo- sigdo, defensores dos direitos humanos rejeitaram a proposta de revisdo, julgando-a uma farsa. De fato, o Congress nunca votou a lei; ela foi promulgada em dezembro por decurso de prazo, ‘cldusula que considerava automaticamente aprovada qualquer lei ‘do votada dentro de 40 dias” 48 No fim de 1978 Geisel dew novo passo pam promover a reconciliagio politica. Ele revogou as ordens de expulsio de mais, de 120 exilados politicos, a maioria dos quais havia deixado 0 Brasil em 1969-1970 em troca de diplomatas estrangeiros que hhaviam sido seqtiestrados pelos guertilheiros. Entretanto, oito cexilados foram especificamente exclufdos, entre cs quais 0 ex- governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola ¢ Luis Carlos Prestes, secretério-geral do Partido Comunista Brasileiro por tum longo tempo. Que espécie de legado Figueitedo receberia de seu firme mentor?” Geisel ¢ Golbery levaram a liberalizagio mais longe do que todos os analistas politicos consideravam possivel desde 1974, Mas importantes poderes arbitrérios permaneciam, especial- mente na Lei de Seguranca Nacional. E, desde 1964, 0 Congreso Federal estava privado de algo que em pafses democréticos ha muito era considerado um poder legislativo funéamental — 0 controle sobre as verbas. O Congreso brasileiro ro podia nem propor uma legislacdo de verbas nem eumentar uma verba propos- ta pelo presidente, Além disso, o enorme aparato de seguranca permanecia intocado. Os politicos de oposicdo tinham, portanto, ‘boas razes para continuar considerando a politica como uma coupago perigosa.” Comecam os anos Figueiredo © novo presidente era um desconhecido, apesar de sua cam- panha nacional de 1978. Na sta posse, em marco de 1979, ele demonstrou uma informalidade muito maior do que « do ceri- monioso Geisel. Na entrada do Palécio, Figueiredo desviow-se para cumprimentar um guarda, dando um exemplo de uma ¢3- pécie de bonomia, considerada um grande recurso pelos seus assessores politicos. © novo ministério mostrou mais continuidade do que mu- danca, O ministro-chave era Mério Simonsen, ministro da Fa- zenda de Geisel, agora ministro do Planejamento, um novo “su- perministério” para a politica econémica. Delfim Netto retornou de Paris para assumir o Ministério da Agricultura, Poucos ana- 49 listas politicos consideravam que Delfim tivesse ficado satisfeito naquele posto, a despeito do novo presidente dizer que .a Agri cultura se tornaria uma pasta muito mais importante. O sinico nome politicamente interessante eta Petronio Portela, o novo ministro da Justica, um senador da ARENA do Estado nordes- tino do Piauf, que adquirira grande respeito por suas habilidades conciliatérias © de lideranga. O personagem mais importante de todos, pelo menos do ponto de vista de influéncia junto 20 presidente, eta 0 general Golbery, que conservara sua posico de chefe da Casa Civil do presidente, Sua influéneia no Planalto parecia garantit que a liberalizagao continuaria presumidamente dentro de pardmetros graduais ¢ estritamente controlados. No cenério econdmico havia sinais de tempestde. © Brasil sonseguira manter um alto crescimento desde 0 choque do pe- troleo em 1977, somente, porém, as custas de um rapido au- ‘mento do endividamento externo e um superaquecimento da eco- nomia. Mério Simonsen, designado como o principal executive da economia, considerava que o Brasil nfo tinha escolha a nao ser a desaceleragio econdmica, em razio do aumento da pressio na balanga de pagamentos. Um sintoma claro do problema eta 4 taxa inflacionéria, agora ultrapassando sua marca de 1978, que fora de 40%. plano qiiingiienal de Simonsen, que o forgava a explicar a necessidade de desaquecimento, transformou-o no alvo de critica de todos os setores. Os estrategistas politicos dentro do novo governo recusavam-se a aceitar que o “milagre” terminar A legitimidade politica dos governos autoritérios dependera, par- cialmente, do alto crescimento desde 1967. A comunidade de ne- ‘g6cios estava igualmente perturbada, mas por razdes mais ime- diatas. Qualquer recessio significativa provocaria a liquidagdo de muitas firmas brasileiras que operavam com capital de giro perigosamente pequeno, Muitos achavam que Delfim poderia fazer um novo mila- sre, © 0 proprio Delfim abertamente encorajave essa idéia. A personalidade inibida de Simonsen tornowo ineficaz tanto para a intriga burocrética (na qual Delfim era um mestre) como para Ses piiblicas. Tss0 acabou por destruir seus esforcos de neutralizar as més noticias de que uma dose de baixo cresci- mento (talvez perto de zero em tetmos per capita) era inevitével se o Brasil no enfrentasse a inflagdo galopante € também o déficit da estropiada balanga de pagementos. Delfim agora fechava 0 cezco em torno de Simonsen, cujo posto ele obviamente cobicava. Sob pressio de todos os lados, dando sinais de indecisio, Simonsen demitiu-se em agosto, com apenas cinco meses de governo Figueiredo. Delfim foi imedi ‘tamente nomeado © novo ministro do Plenejamento. A comta dade empresarisl de Séo Paulo estava exultante, certa de que Delfim poderia encontrar uma maneira de manter um alto cres- cimento. Delfim declarou que poderia catisfazer as expectativas do governo ¢ da comunidade empresarial, e de agosto a dezembro seguiu uma politica de crescimento répido.® Entretanto, seu ri ‘mo estava mais lento que 0 ideal, desde que a OPEP realizara tum segundo “choque do petréleo” para os principais importa- dores desse produto, tais como o Brasil. No comego do ano, 0 g0- verno havia langado um ambicioso programa para desenvolver © lcool como um combustivel alternativo. Mas precisava tempo € recursos — tais como terra e fabricas de destilaria — que teriam de ser retiradas de outros setores, por exemplo, da pto- dugo interna de alimentos. © novo governo enfrentou também acontecimentos impor- tantes na area trabalhiste.%* Em 1978 os trabalhadores da indi tria automobilistica no ABC, cinturdo industrial de Séo Paulo, liderados pelo presidente do Sindicato dos Metalitgicos de Sao Bernardo, Luiz Inécio “Lula” da Silva, entraram em greve, na primeira mobilizagdo operdria significativa desde a repressio das greves de Osasco e Contagem, em 1968. Um ano depois eles fi- zeram nova greve, estabelecendo uma das maiotes ondas de greve na hist6ria do Brasil, afetando cerca de trés milhGes de operarios. Em Sao Paulo, uma campanha maciga de apoio cole- tava dinheiro e alimento para os grevistas. A. Igreja, liderada pelo cardeal Arns, fornecia importante ajuda moral e material, oferecendo as igtejas como pontos de encontro, depois que 0 governo ocupou as sedes dos sindicatos 51 dos metalirgicos. Apés esperar uma quinzena, a policia avangou sobre os metaldrgicos grevistas, prendendo pelo menos 200 pes- soas. Em resposta a mediacio da Igreja, Lula concordou em suspender a greve, que resuliou em um acordo negociado que inclufa um aumento salarial de 63% Uma série de precedentes tinha se estabelecido Primeiro, uum novo quadro de lideranca sindieal havia surgido, desdenhoso das personagens do governo que haviam negociado, desde 1964, a complacéncia operéria com regulamentagGes trabalhistas re- pressivas e com acardos seriamen'e prejudiciais ans interesses dos operérios. A nova lideranca também enfatizava uma orga- nnizacio crescente e um maior contato com os membros da mi- litancia sindical. Um segundo precedente envolvia a descoberta de que alguns empresérios poderiam estar preparados para nego- ciar diretamente com os operérios. As firmas matrizes da Volks- -wagen e General Motors estavam acostumadas a abrir negocia- ‘so coletiva nos seus paises de origem, ainda que a estrutura legal das relagdes trabalhistas brasileiras tornasse as negociagdes dire- tas virtualmente impossiveis. O terceiro precedente era o grau de solidariedade recebido pelos oferétios de outros setores da sociedade civil, tais como a Igreja ¢ os profissionais de classe média que tiveram coragem de acorrer e ajuder os grevistas. Com mais de cem greves em quinze Estados, no fim de 1970 0 protesto operério tinha se tornado uma verdadeira questo na- cional. Anistia para quem? ‘Uma das questdes para a qual a oposicio conseguiu mobi- lizar um enorme apoio foi a anistia. A anulacdo, em dezembro de 1978, por Geisel, da maioria das primeiras ordens de exilio, agora pprosseguia através da lei de anistia do ministro da Justiga PetrOnio Portela, aprovada pelo Congresso em agosto de 1979, Os anistia- dos eram todos aqueles presos ou exilados por crimes politicos desde 2 de setembro de 1961 (a data a da Gltima anistia — elas foram bastante regulares na histéria da Reptblica). Estavam ex- cluidos aqueles culpados de “crimes de sangue” durante a resi 52 téncia armada ao governo. A lei também restabelecia os direitos politicos aos que os tinham perdido em raziio dos Atos Institu- cionais. A nova lei trouxe de volta um grande fluxo de exilad incluindo Leonel Brizola ¢ Luis Carlos Prestes. De volta a0 Brasil estavam também as ovelhas negras para os militares, teis como Miguel Arraes, Marcio Moreira Alves e Francisco Julio, ao lado de figuras-chave do PCB e do PC do B. A anistia era ‘uma t6nica poderosa na atmosfera politica, dando um impulso imediato & popularidade do presidents. Ela mostrava a confianza de Figueiredo em sua capacidade de enfrentar as objegdes dos “linha-dura”, trazendo tantos “subversivos” de volta & politica ‘Ajudou também a reduzir alguns mitos do pasado a suas mensGes reais. Com os antigos militantes comunistas e trotsks- tas de volta ao Brasil ¢ com a imprensa virtualmente sem cen- sura — ainda que sujelta a presses, ameagas, e ocasionalmente violéncie — o Brasil assemelhava-se mais a um sistema politico aberto do que em qualquer outro momento desde 1968. © movimento de anistia, entretanto, néo se satisfazia ape- nas com a nova lei, Ele exigia também uma resposta para os 197 brasileiros mortos nas mos da forgas de seguranca desde 1964. Para muitos havia dossiés detalhedos, incluindo relatos de testemunhas oculares feitos por outros prisioneiros, Nisso, a oposigéo pressionava um ponto nevrélgico — militares temiam que uma investigagdo judicial pudesse algum dia tentar fixar a responsabilidade pela tortura ¢ assassinato de prisioneiros. Um bom exemplo dessa reagdo veio em marco de 1979, quando os militares tentaram fechar a revista Veja porque ela havia pub cado uma reportagem acompanhada de fotografias, sobre supos- tos campos de tortura. A policia também apreendeu o6pias do Em Tempo, um jornal quinzenal de esquetda que publicou uma lista de torturadores. De fato, esse assnto havia sido censurado pela inclusio na lei de anistia de uma definigéo que incluia tanto os que hhaviam perpetrado “crimes politicos” como “crimes conexo:”. Esse viltimo cufemismo era encarado como cobertura para os torturadores. Era uma barganha politica: os Iideres oposicionis- 53 tas sabiam que eles somente poderiam avangar no sentido de um regime aberto com a cooperagio dos militares. Golbery e a solugdo multipartidéria © primeiro ano do governo Figueiredo foi também mar- cado por uma reorganizagao do sistema politico partidério. Gol bery havia hé algum tempo indicado a conclusio dbvia dos re- sultados da eleigao de 1974. Na prética, o sistema bipartidério compulsério tendia a fortalecer a oposigio, e se tornava dificil vencé-la mesmo em eleigdes apenas parcialmente abertas. A solugdo parecia simples — conservar o partido do governo (sob lum novo nome) ¢ facilitar a criago de varios partidos de opo- sigdo. O governo poderia, assim, manter sua posigio, ou atrain- do © voto oposicionista, ou formando uma coalizéo com os ele- mentos mais conservadores da oposigio* Uma lei para cumprir esses propésito foi mandada para o Congreso e eprovada em novembro. No fim de 1979 os novos partidos estavam formados. A ARENA reagrupow-se como Pat- tido Democrético Social (PDS), enquanto a maioria do antigo MDB juntouse no PMDB (Partido do Movimento Democratico Brasileiro), um truque verbal para enquadrar-se nas novas regras so preservata a possibilidade de ser reconhecida pelo nome. ‘A estratégia de Golbery vingou, pelo menos a curto prazo, J que outros pequenos partidos comegaram a surgir. O mais interessante foi a luta pela legenda do PTB, que Leonel Brizola cobicava, com boas credencisis. Mas as autoridades eleitorais, provavelmente por influéncia governamental, atribuiramna a Ivete Vargas, uma personagem politica menor, que era sobrinha- neta de Getilio Vargas. Brizola fundou, entGo, seu préprio par- tido, 0 Partido Democrético Trabalhista (PDT). A esquerda de todos esses partidos estava o Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por Lula!” Fora do campo estava o Partido Popular (PP), um partido oposicionista conservador, liderado por ban- queiros, que se fundiu com o PMDB em novembro de 1981 54 ‘Assim que 0 novo quadto politico pattidério ficou claro, comegaram as manobras para as eleig6es de 1982, embora pou- cos reconhecessem que o Planalto houvesse abandonado a mani: pulago da méquine eleitoral. Governo e oposigio tentavam adi- Vinhar © préximo passo um de outro, principalmente em termos de coalizdes partidérias. A lideranga da ARENA sofreu uma dura perda, quando © ministro PetrOnio Portela, uma figura-chave na construgio da estrutura da forca partidéria no pais, morrew nno comeso de janeiro de 1980. Ele nio tinha nenhum sucessor adequado, nem no Ministério nem entre lideranga arenista.?* Temendo que 0 governo petdesse sc as eleigées viessem muito depressa, a despeito da reorganizacéo partidéria, em malo (© governo cancelou as eleigées municipais em toda a nagio, as quais estavam marcadas para o final do ano. A grande muioria dos prefeitos e vereadores pertenciam a ARENA, ¢ 0 governo desejava conservé-los assim. Ironicamente, os Ifderes do PMDB favorecem o adiamento, pois temiam nfio conseguir se organizer suficientemente répido sob a lei partidéria de 1979. Em setembro, o Congresso aprovou uma lei adiando essas eleigdes até 1982, quando haveria eleigdes diretas para os governos dos Estados, (pela primeira vez. desde 1965) para renovar um tergo do Senado e para toda a Camara dos Deputados ¢ Assembiéias de todos 05 estados. Colocando tantas eleigGes no mesmo dia, 0 governo estava apostando que 0 seu partido, € nio a oposi se beneficiaria dessa vinculagio. Gutta ago governamental aparentemente contréria & libe- ralizagdo foi a severa nova lei que regulava a entrada e residén- cia no Brasil de estrangeiros. Ela dava ao governo uma autori- dade maior para barrar ou expulsar estrangeiros, grupo que inclufa um grande néimero de membros estrangeitos do clero no Brasil, que compreendia zerca de 40% do total de religiosos.” Alguns padres estrangeiros haviam irritado as autoridades locais ¢ esta- uais lidecando protestos populares, tais como a resisténcia & co- fonizagao de terras na fronteira agricola nas regides Oeste ¢ No- roeste e na Amazénia."” A CNBB e os militantes de direitos hu- manos lutaram para que houvesse uma reviséo da lei, argumen- tando que era uma mudanca radical para um pafs com uma lon- 35 ga tradigao ae porta relativamente aberta aos estrangeitos, Entretanto, o governo permanecet firme, quando 0 PMDB ‘e mesmo alguns congressistas do PDS se opuseram 2 lei no Con- agresso. Os opositores conseguiram atrasar a ago pelo prazo limite de 40 dias, apés 0 qual o governo, no comego de agosto, aprovou a lei por decurso de prazo. Aqui est um exemplo claro de quio limitado era o poder Legislativo. A agressividade do governo nessa érea apareceu novamente em outubro, quando deportou um padre italiano por ages supostamente contrérias ao interesse nacional. Delfim enfrenta um caminho dificil No fim de 1979 trouxe uma importante mudanga na politica econémica. Delfim Netto encontrara problemas — principalmente com o déficit da balanca de pagamento ¢ com a inflagéo — bem piores que aqueles que enfrentara em 1967-1974. O Brasil terminou 1979 com 77% de inflagio — a taxa mais alta de qual- quer ano desde 1964. Nao sendo mais possivel seguir a politica de alto crescimento que anunciara quando ocupou o lugar de Simonsen em agosto, Delfim resolveu jogar perigosamente, Em dezembro de 1979 desvalorizou o cruzeiro 30%, ¢ em janeiro prefixou a taxa de desvalorizagio e de indexagéo (sobre todas as obrigagdes financeiras chave) para todo 0 ano de 1980. Se as expectativas inflacionérias caissem, isso poderia reverter a onda inflacionéria. Mas se a inflagdo superasse a prefixacio estabe- Jecida, 0 eruzeiro supervalorizado encotajaria a importacio, desencorajaria a exportacdo ¢ estimulatia os investidores a evitar fos instrumentos financeiros pagando taxas negativas reais. Ao adotar tal politica, Delfim estava em parte seguindo 0 exemplo do ministro das Finangas argentino, Martinez de Hoz, cuja polt- tica similar atraira um forte influxo de capital. Entretanto, as chances no eram favoréveis a0 Brasil, j4 que as forgas por trés da inflagdo e do déficit na balanga de pagamentos estavam pro- fundamente enraizadas na estrutura da economia brasileira e seu relacionamento com a economia mundial,** 56 Em outra frente, o ministto do Trabalho, Mutillo Macedo, convenceu o presidente de que havia nevessidade de importantes ‘mudangas na férmula governamental de calcular os ajustes anuais de salério? Todos os analistas concordavam que os operérios hhaviam sofrido uma perda sigtificativa do valor real do salétio minimo desde 1964, pelos menos 25%, ¢ o DIESE, um instituto independente de pesquisa dos sindicatos dos trabalhadores con- siderava que @ perda havia sido muito maior.*® Macedo elaborou duas mudangas significativas. Primelro, 0 ajuste salarial deveria set semestral, o que era de crucial importincia com uma inflagio alcangando 100%. Segundo, os ajustes deveriam ser escalona- dos de modo a redistribuir @ renda salarial em direco & base da pirimide de salérios. Além da redistribuigio da renda, a intengio de Macedo era minar a crescente mobilizagdo dos ope- rérios demonstrada nas greves de 1978 ¢ 1979. Os setores militantes trabalhistas nfo foram pacificados pela nova lei de Macedo. O ponto de fustio de protesto era no polo industrial de Séo Paulo, onde os metalirgicos do ABC ainda mantinham a iniciativa. Em abril de 1980 comegou uma greve envolvendo 300.000 operdtios. A Tgreja e um piblico simpatizante hovamente apoiatiam os grevistas, que pediam um aumento de salério real (acima da inflagio) de 15%, 0 direito de ter repre- sentago sindical no local de trabalho, semana de 40 horas ¢ estabilidade no emprego. Essa iltima era uma prioridade urgente, porque os empresérios promoviam uma grande rotatividade a fim de diminuir 0 niimero de opsrétios com maiores saldtios por antiguidade. [Nessa época o governo se tornou mais repressive. Os pique- tes eram atacados pela policia, e centenas de grevistas foram presos, incluindo Lula, que permaneceu um més na prisio. (© governo interveio no sindicato, substituindo os representantes leitos por designados e proibindo os antigos de concorrer para 1 eleigio sindical no futuro, No comego de maio, apés 41 dias de greve, os trabalhadores voltaram ao trabalho com suas reivin- dicagdes nio aleangadas. Uma taro foi a felta de fundo de greve suficiente para financier um mevimento longo. Outra era a ameaca de que os empresérios poderiam comegar a contratar operdtios ara substituir aqueles que estavam em greve. Os resultados dessa greve foram muito negatives para os operdrios, Primeiro, a repressio governamental havia retornando 4 usar a forga a despeito do discurso sobre abertura e da nova {6rmule salarial do ministro do Trabalho. Segundo, os limites do novo sindicalismo” tornaram-se claros. Sem reservas financeiras maiores, seria impossivel sustentar uma longa greve. Além disso, © objetivo da negociaglo direta com os empresérios permanecia distante, {6 que a intervengdo governamental sempre mantinha 08 empresérios fora de alcance. Na frente politica, a liberalizagio continuava. Em novembro de 1980, 0 Congresso aprovou uma Emenda Constitucional pa- trocinada pelo governo para reintroduzir as eleig6es diretas para 0s governadores de Estado e todos os senadores (embora os "bid- nicos” no terminassem seus mandatos serio em 1986), Isso era uma anulago parcial do “Pacote de abril” de Geisel, que per- mitira 4 ARENA sobreviver as cleigdes de 1978 com maiorias nas duas casas do Congresso federal. Dada essa maioria, o gover- no sentia-se agora confiante para continuer com a abertura. Os inimigos da abertura contra-atacam Nem todo mundo estava a favor da liberalizagio, e seus opositores clandestinos preparavam uma campanha de violéncia. Durante 0 ano de 1980 ¢ comeco de 1981, 0 Brasil foi sacudido por uma série de incidentes violentos. As bancas de jornal, por exemplo, receberam notas ameacadoras ordenando que parassem de vender publicagdes esquerdistas. Algumas que se recusaram a obedecer tiveram suas bancas explodidas por bombas no meio 4a noite, Nem toda a violencia era seus sangue, Um carta-bomba mandada para a Ordem dos Advogados do Brasil matou a secre- ‘tdria que a abriu, Poucos duvidavam de que o ataque viera da direite, Em 30 de abril de 1981 aconteceu uma exploséo ainda maior. iincidente comegou quando um tenente e um sargento do Exér- cito (@ paisana) da policia politica do DOI-CODI entraram de 58 carto no estacionamento de um teatro do Rio (Riocentro) onde estava ocorrendo um concerto em beneffcio de causas esquer- distas, A bomba explodiu no carro. matando o sargento e ferindo aravemente o tenente. Embora as autoridades do Exército Tibe- rassem mais tarde outras verses diferentes, todas as evidéncias indicavam que os dois carregevam a bomba para interromper 0 concerto, talvez mesmo para criat um pénico na massa. Essa sus- peita foi reforgada pelo fato de outra bombs ter explodido dentro do prédio, perto do gerador de forga. Isso foi aparentemente um ‘movimento desesperado dos militares direitistas, que sentiam que (9 processo politico tinha escapado de suas mios. O Exército ime- ditamente assumiu a jurisdigao sobre a investigaglo © promoveu ‘um acobertamento grosseiro, o que foi muito diffcil pelo fato de 1s autoridades civis {6 terem publicado um relatério médico do sargento morto, Todos os partidos condenaram no Congress 0 terrorismo, ¢ muitos temiam que 0 acobertamento do caso fosse ‘ama evidéncia de que os “linha-dura” ainda poderiam ser capa- zes de sabotar a liberalizagio. ‘Ninguém apostara mais na politica da abertura do que Gol- bery. Imediatamente, ele faz pressbes nos bastidores para que houvesse um ingvérito sem barreiras sobre 0 incidente do Rio- centro, Como o acobertamento tornowse evidente e ele se sen- tiu cada vez mais isolado no Palécio presidencial, renunciou em agosto de 1981. Sua saida provocou importantes movimentos na cena politica Golbery tinha sido um estrategista-chave em varias frentes. ‘Tinha ajudado a langar # politica de redemocratizagdo gradual na presidéncia Geisel ¢ continuava 2 set seu principal articulador defensor entre os assessores de Figueiredo. Sua estratégia polt tica era impor a abertura e assegurar o controle futuro, contribuin- do para o fortalecimento eleitoral do partido do governo através de reorganizagio partidérie, mudancas das leis eleitorais e dos mecanismos de patronato tradicionais, A primeira oposigio a estratégia de Golbery veio dos milita- res “linha-dura”, liderados pelo general Octavio Aguiar de Medei- ros, chefe do NI‘. Ameacados pela abertura, esses oficiais de- fendiam solugGes autoritérias que justificassem de algum modo 59

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