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O TEIXEIRA E A UDF: ‘OES NOS OFERECEM? Maria de Lourdes de Albuquerque Févero Introdugao Estudando a historia das instituigdes uni- versitarias no Brasil, percebemos a partir da década de 1920 um intenso debate a respeito da ~ concepgao e das funcdes da universidade, de- sencadeado na ABE- Associagao Brasileira de Educagao e na ABC- Academia Brasileira de Ci- éncias. Nos anos 30, nao s6 no campo da escola basica, mas também no do ensino superior, as realizagGes mais expressivas resultam de grupos cujas origens esto na ABE. Entre os exemplos mais eloqiientes em termos de universidade, registra-se a criagao da Universidade de Sao Pau- lo (USP) e da Universidade do Distrito Federal (UDF). Nesse periodo, observa-se, também, por parte do Governo Federal, a preocupacao de implementar reformas centralizadoras, atribuin- do ao Estado poder para exercer sua tutela so- bre os dominios do ensino no pais. Tratava-se, como assinala Moraes (1990), de adaptar a edu- cacao a certas diretrizes que, a partir de 1930, vao sendo definidas tanto no campo politico quanto no educacional, com vistas a criar um ensino mais adequado a “moderniza- ¢ao" do pais, com énfase na capacitagao para o trabalho e na formagao de “elites”. “Um ensino que se constituisse no com- plemento da obra revolucionéria, orientan- do e organizando a nacionalidade” (idem, p. 169). A propésito, em seu Manifesto a Nacao, lancado em junho de 1934, Getiilio Vargas afirma explicitamente: “O melhor cidadao é 0 que pode ser mais itil aos seus semelhantes e nao o que mais cabedais de cultura é capaz de exibir. A escola, no Bra- sil, ter de produzir homens praticos, pro- fissionais seguros, cientes dos seus mais variados misteres” (VARGAS, 1938, p. 246, v. III). E acrescenta alguns outros aspec- tos considerados necessarios para que a educaco exerca seu papel: a formacao da nacionalidade ¢ o patriotismo (idem, p. 129, v. IID. E durante a década de 30, que 0 Go- verno Federal elabora seu projeto univer- sitario, adotando uma série de medidas, entre as quais se destacam: a promulga- ¢ao do Estatuto das Universidades Brasi- leiras, a reorganizagao da Universidade do Rio de Janeiro e a criagéo do Conselho Nacional de Educa¢ao, em 1931, passando pela proposta de reestruturac¢ao do Minis- tério da Educagao e Satide Publica, em 1935 e pela institucionalizacao da Univer- - sidade do Brasil, em 1937, como modelo padrao para as demais universidades exis- tentes no pais. A tendéncia centralizadora, em rela- G40 as instituigGes de ensino superior, apa- rece na exposi¢ao de motivos do Ministro Francisco Campos, ao encaminhar seu pro- jeto de reforma, quando deixa claro que com a reorganizaco da Universidade do 88 Maria de Lourdes de Albuquerque Favero Rio de Janeiro ela constituira 0 modelo para as Universidades e Institutos equipa- rados, para os quais foram adotadas as normas destinadas ao regime universita- rio no Estatuto das Universidades Brasi- leiras (CAMPOS, 1931). Essa posi¢ao do Ministro soa mais for- te quando se tem presente, de um lado, que subjacente as suas idéias sobre politica educacional esta a crenca de que a refor- ma da sociedade se faz mediante a refor- ma da escola e, de outro, a certeza de que ao Estado cabe a responsabilidade e 0 con- trole da educagao. Neste sentido, o decre- to que cria e regulamenta o Conselho Na- cional de Educagao, em 1931, associado ao que dispde sobre o Estatuto das Universi- dades Brasileiras e 0 relativo a reorganiza- ¢ao da Universidade do Rio de Janeiro, promulgados no mesmo dia e integrando 0 projeto de reforma do ensino superior do pais, s4o bastante elucidativos ‘Apesar das medidas centralizadoras do Governo em relacao as instituigdes uni- versitarias nos anos 30, houve iniciativas que expressaram posicdes contrarias. Des- tacamos, em especial, a criacao da Univer- sidade de Sao Paulo - USP (1934) e da Uni versidade do Distrito Federal - UDF (1935. essa Ultima, objeto desta comunicagao. Todavia, nao podemos esquecer que, dada anatureza das transformacoes pelas quais passava o pais, nesse periodo, sobretudo a partir de 1935, 0 processo de estru- turagao e direcionamento do sistema de ensino na capital da Republica nao ocorre sem problemas. £ exatamente nesses anos conturbados de nossa historia que a ad- ministragao de Anisio Teixeira 4 frente da Secretaria de Educagao e Cultura do Dis- trito Federal se desenvolve, recebendo RBPAE 0.17, nl, jan./jun.2001 Anisio Teixeira ¢ a UDF: que ligdes nos oferecem? como bem mostra 0 professor Paschoal Lemme, “todo o impacto dos acontecimen- tos contraditérios nele verificados” (LEMME, 1988, p. 122) A estruturagao do sistema pablico de ensino no Distrito Federal se faz, assim perpassada por contflitos, sobretudo com a criagao da Universidade que, para Ant sio, se apresenta como o pice de um pro- cesso. “Exatamente como acontecera quando da introdugao do ensino secunda- rio [técnico] no sistema escolar municipal, nasce a Universidade sob o fogo de seus opositores”(LIMA, 1978, p. 182). Antes mesmo de sua criagio e nos momentos iniciais de sua implantacdo, vive sérios enfrentamentos por parte de grupos exis- tentes na sociedade civil — catélicos, integralistas etc—e de representantes do poder politico instituido. Apesar de todas as controvérsias & dificuldades, Anisio procura implantar, de 1931 a 1935, um verdadeiro sistema publi- co de educagao integrado, que compreen- dia desde a educacao pré-escolar até a universidade (LEMME, 1988, p. 163) A UDF: DA IDEIA AO PROJETO A UDF surge como um empreendimen- to que procura materializar “as concep- ces e propostas da intelectualidade que, ligada 4 ABE e 4 ABC, empunhara, na dé- cada anterior, a bandeira de criagdo da universidade como lugar da atividade ci- entifica livre e da produgao cultural desin- teressada” (ALMEIDA, 1989, p. 195). Instituida no Rio de Janeiro, capital da Repiblica, pelo Decreto Municipal n®5.513/35, apesar de ter existido por pe- riodo inferior a quatro anos, essa institui- ¢ao universitaria marcou significativa- mente a historia da universidade no pais, sobretudo levando-se em conta 0 contex- to em que se dao sua criacao e extincao e a forma-como tais fatos ocorreram. Vale lembrar que, desde 0 inicio, apesar de grandes obstaculos, ela surge nao somen- te com uma definic4o precisa e original do sentido e das funcées da Universida- de, mas também presentifica os mecanis- mos que se fazem necessarios, em termos de recursos humanos e materiais , para a consecugao de seus objetivos. RBPAE 0.17, n. jan. jun. 2001 Enquanto projeto, é de se destacar a dimensao cultural atribuida 4 Universida- de do Distrito Federal, contida nos “considerandos introdutérios”, que acom- panha o Decreto n° 5.513, de 4 de abril de 1935, assinado por Pedro Ernesto, institu- indo a UDF, Vejamos: + acidade do Rio de Janeiro constitui um centro de cultura nacional de ampla irradiagao sobre todo 0 Pais; + 05 recursos financeiros do Distrito Federal so inferiores apenas ao de um dos Estados brasileiros; + 0 desenvolvimento da cultura filo- séfica, cientifica, literaria e artistica € essencial para o aperfeicoamento © 0 progresso da comunidade local e nacional; + a fundagao de uma Universidade é o meio natural de fazer cumprir esses objetivos; * uma nova Universidade no Distrito Federal se pode compor inicialmente de instituigdes de natureza diversa das mantidas pelo governo Federal; 89 Maria de Lourdes de Albuquerque Favero + ontmero de estudantes do Distrito Federal e dos que afluem dos outros estados ao centro de cultura do pais é de tal ordem que justifica a existéncia de mais uma Universidade; + as instituigdes particulares superiores que se vém fundando sao uma demonstragao desta necessidade, que vai sendo, assim, atendida de forma imper- feita e pouco eficiente; + aConstituigdo Federal determina que os Estados e 0 Distrito Fede- ral organizem os seus sistemas escolares compreendendo todos 0s niveis de ensino; + 0 Governo do Distrito Federal j4 mantém ensino de nivel primario, secundario e superior; este, entre tanto, restrito 4 Escola de Profes- sores do Instituto de Educagao; + 0 Conselho consultivo do Distrito Federal j4 autorizou aumentos de despesa correspondentes aos necessrios para a instalagao inicial da Universidade e a serem destinados a fins igualmente culturais; + em conseqiiéncia, torna-se, assim, dever do Estado a fundagao da Uni- versidade do Distrito Federal e que, além disso, essa é a forma de consagrar pela autonomia cultural a atual autonomia politica (apud. Prefeitura do Distrito Federal, 1935, p. 3). Coerente com tais pressupostos, Ani- sio Teixeira finaliza seu discurso proferido na inauguracao dos cursos da Universida- de (31.07.35) com as seguintes palavras: 90 “Dedicada a cultura ealiberdade, a Univer- sidade do Distrito Federal nasce sob um signo sagrado, que a fara trabalhar e lutar por um mundo de amanh, fiel as grandes tradigées liberais e humanas do Brasil de ontem”. (TEIXEIRA, 1998, p.43). Procurando mostrar como se deve processar a relacdo entre universidade, cultura e aperfeigoamento dentro da soc edade brasileira, e como aquela instituigao poder contribuir para superar distorgdes entao presentes nas atividades intelectual e cultural no pais, Anisio adverte: “A cul- tura brasileira se ressente, sobretudo, da falta de quadros regulares para a sua for- macao. Em paises de tradicao universita- ria, a cultura une, socializa e coordena o pensamento e a ago. No Brasil, a cultura isola, diferencia, separa” (ibid, p. 40). E complementa: “a heterogeneidade e a deficiéncia das di- ferentes culturas individuais ¢ individua- listas fazer com que 0 campo de agdo in- telectual e piblica, no pats, se constitua um campo de lutas mesquinhas e pesso- ais, em que se entredevoram, sem britho e sem gl6ria, os parcos homens de inteligen- cia e de imaginagdo que ainda possuimos (ibid, p. 41) A Universidade que se inaugura tem como preocupacao preparar quadros in- telectuais e acabar com 0 isolamento de- nunciado. De acordo com as-palavras de seu idealizador, a Universidade cabe des- truir esse isolamento, porque a ela com- pete socializar “a cultura, socializando os meios de adquirila. A identidade de pro- cessos, a identidade de vida e a propria unidade local far com que nos cultivemos, em sociedade. Que ganhemos em comum RBPAE 017, 1.1, jan /jun.2001 Anisio Teixeira e a UDF: que ligdes nos oferecem? a cultura” (ibid, p. 41-42).£, Anisio insiste: “o isolamento e 0 autodidatismo nacionais fazem-nos incoerentes, paradoxais irritadigos e extravagantes. A opinido in- telectual de um pats é 0 reflexo de seus meios e de processos de cultura, A univer- sidade nos vem dar disciplina, ordem, sen- ido comuns e capacidade de esforco em comum”. (ibid, p. 42). Em suma, de acordo como explicitado nesse discurso, a fonte para a criagao da identidade de um povo e do carater nacio- nal éa universidade. Nada mais natural do que construi-la através da UDF, sediada na capital da Repdblica, indiscutivelmente um. dos grandes pélos nacionais de irradiagao cultural. E necessario, todavia, que a pro- pria universidade contribua para comba- ter 0 autodidatismo e o isolamento inte- lectual. A Universidade que acaba de ser instituida tem como um de seus propési- tos constituir-se em niicleo de formacao intelectual do pais, até aquele momento “formado ao sabor do mais abandonado e precdrio autodidatismo”. Nessa dire¢ao. Anisio é incisivo: a Universidade nao tem “nenhuma ‘verdade’ a dar, a nao ser a tini- ca verdade possivel, que é a de busca-la eternamente”(ibid, p. 42-3). Pois, “o saber nao é um objeto que se recebe das gera- des que se foram,-o saber é¢ uma atitude de espirito:que,se forma lentamente ao contato dos que sabem” (ibid, p. 35). Na perspectiva do eminente educador, trata-se menos de preparar quadros forma- dos por individuos com dominio do saber existente e da experiéncia humana acumu- lada, ou formar pessoas competentes em oficios titeis, do que criar um ambiente de saber, facilitador da participagao de todos RBPAE v.17, n. jan Fjun.2001 na formacio intelectual da experiéncia hu- mana. Na mesma perspectiva, Anisio assi- nala: “A Universidade é, pois, na sociedade moderna, uma das instituicdes caracteris- ticas e indispensaveis, sem a qual nao che- ga a existir um povo. Aqueles que nao as tém, também nao tém existéncia autonoma, vivendo, tao somente, como reflexo dos demais” (ibid, p. 34). E, ressalta: funcdo da Universidade € uma fungao nica e exclusiva, Nao se trata, somente, de difundir conhecimentos. O livro também 08 difunde, Nao se trata, somente, de con- servar a experiéncia humana. O livro tam- bém a conserva, Nao se trata, somente, de preparar prdticos ou profissionais, de ofi- cios ou artes, A aprendizagem direta os prepara, ou, em tiltimo caso, escolas mui- to mais singelas do que as universidades" Trata-se, insiste ainda, “de manter uma atmosfera de saber pelo saber para se preparar 0 homem que 0 ser- ve 0 desenvolve. Trata-se de conservar 0 saber vivo @ ndo morto, nos livros ou no empirismo das __prdticas intelectualizadas. Trate-se de formular in telectualmente a experiéncia humana, sem- pre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva” (ibid, p. 35). ndo Com essas palavras, chama a atencao para um problema fundamental: uma das caracteristicas da universidade é ser um locus de investigacao e de producao de conhecimento. E, uma das exigéncias para a concretizacao de tal proposta é, sem diivida, oexercicio da liberdade e a efetivacao da au- tonomia universitaria. Mas, como pensar em. autonomia universitaria no limiar do Estado oF Novo? Como pensar em liberdade, nos ter- mos defendidos, quando, apés 0 levante de 1935, a abertura, aventada pela Revolugao de outubro de 1930, passa a ser vista como um erro a ser corrigido, tendo sido reduzido “o conceito de seguranga nacional a seguranca contra o comunismo”? (LIMA, 1978, p. 136). Como pensar em liberdade de pensamento e autonomia universitaria, quando a “pecha de comunista” passa a ecoar comoa de umfeiti- ceiro da Idade Média e “o atestado de ideolo- gia converteu-se em complemento da cida- dania prestante”? (bid). Dentro desse contexto, nos tiltimos dias de 1935, Pedro Ernesto, Prefeito da capital da Repiiblica, se vé discriminado por represen- tantes do poder instituido. Mesmo desfrutan- do de especial relacionamento na area politi- ca, esta marcado e ha, antes de tudo, conforme observa Hermes Lima, “um sacrifi- cio-ritual a executar: o afastamento de Anisio Teixeira” (Ibidem, p. 137). Apesar de todas as pressoes, 0 prefeito mantivera-o 4 frente da Secretaria Geral de Educacao e Cultura por quatro anos. No contexto dos acontecimen- tos politicos daquele ano, a permanéncia de Anisio na Secretaria nao é vista com bons olhos por parte dos grupos ligados ao poder € pela ala de educadores conservadores, s0- bretudo a catélica, uma vez que muitos 0 en- caram como conselheiro politico do Prefeito e elemento ligado a insurreigdo comunista. Embora Anisio Teixeira nao tenha sido preso, como pedia a Comissao Nacional de Repressao ao Comunismo, foi forgado ade- mitir-se, sendo substituido pelo ex-Minis- tro de Educacao, Francisco Campos (HOR- TA, 1994, p. 41). “O sacrificio de Anisio corresponde a pri- oridade da politica clerical longamente mobilizada contra sua presenca na lide- 9 Maria'de Lourdes de Albuquerque Favero ranga do sistema educativo carioca. No contexto dos acontecimentos, pura ilusdo pensar que esse sacrificio salvaria o Pre- feito” (LIMA, 1978, p. 137). Como desfe- cho da situacdo, a I°de dezembro de 1935, Anisio pede exoneragdo do cargo, aceita . por Pedro Ernesto, apés enaltecer seus mé- ritos e agradecer 0 trabatho desenvolvido @ frente da Secretaria. Diante do clima de inquietagao e do estado de guerra decretado no pais, 0 des- tino do fundador da UDF nao poderia ser outro: afastamento das fungdes piiblicas que vinha exercendo. Exonerado do cargo de Secretario, Anisio recebe o imediato apoio de colaboradores nos servigos de educacao do Distrito Federal, alguns dos quais integrantes dos quadros da Universi- dades e também demissionarios, como apa- rece registrado no abaixo assinado a seguir: “Espontaneamente demissiondrios, temos @ hombridade de declarar nossa inabalé- vel conviccdo, hauridos em testemunho quotidiano que o Dr. Anisio Teixeira se manteve atheio a qualquer ideologia polt- tica subversiva da ordem constitucional, exclusivamente voltado @ cultura nacional, pela educagao e s6 com a educagdo”.(AT. 35.12.01, série c. CPDOC/FGV) Entre os signatarios, aparecem: Afra- nio Peixoto (ex-Reitor da UDF), Antonio Carneiro Leao (ex-Diretor do Departamen- to'de Educa¢ao do DF), Roberto Marinho iretor da Escola de Ciéncias) e Gustavo Lessa (Diretor do Instituto de Pesquisas Educacionais (/bid.) A partir de 1936, professores da Uni- versidade do Distrito Federal, juntamente com outros intelectuais e educadores, sao RBPAE v.17, n.J, jan./jun.2001 Anisio Teixeira e a UDF: que ligdes nos oferecem? demitidos e presos, como: Hermes Lima - também diretor da Escola de Economia e Direito, Castro Rabello, Leonidas Rezende e Luiz Carpentier. Nesse contexto, a liberdade e a auto- nomia universitaria, princfpios norteado- res do projeto de criacao da UDF, sao atin- gidos e, aos poucos, a Universidade vai ter de se “ajustar” aos padrdes do poder cen- tral. Exemplo bem claro dessa ingeréncia se encontra nos artigos 27 e 37 do Decreto n° 6.215, de 21 de maio de 1938, que reor- ganiza a Universidade do Distrito Federal. Nesses dispositivos é prevista a nomeacao para o cargo de Reitor em comissao, bem como dos diretores dos institutos, tal como era determinado na Lei n® 452, de 5 de julho. de 1937, que instituiu a Universidade do Bra- sil, modelo padrao para as demais institui- des universitarias existentes no pais : importante observar que, de acor- do com 0 Decreto de criacao da Universi- dade do Distrito Federal, 0 reitor, enquan- to a Universidade nao gozasse de autonomia econdmica, “era nomeado pelo Prefeito entre os brasileiros natos, profes- sores de qualquer dos institutos universi- tarios”; o mesmo ocorreria com os direto- res dos institutos. Esses dirigentes exerciam um mandato de trés anos. A UDF: UM OLHAR SOBRE SUAS ATIVIDADES ACADEMICAS Apesar de todos os problemas e difi- culdades enfrentados por essa Universida- de, os anos de 1935 e 1936 sao destinados & constituicao do corpo docente e a orga- nizacao de seus cursos. Com essa preocu- pacao, buscam-se na Europa professores para aquelas reas nas quais considerava nao haver, no Brasil, profissionais sufici- entemente preparados. Carta de Afranio Peixoto (1935), dirigida a Anisio, confirma essa assertiva: “Aqui, em Paris, busquei logo informacdes ¢ estou tomando. Poderiamos ter mesmo 0 melhor da grande Universidade de Paris, que recruta 0 melhor da Franca apenas com um detathe de contrato. Um grande sabio ‘aqui ndo abandonatia sua cadeira por n6s, por alguns anos, nem mesmo um jovem mestre, com esperangas. Mas o fato geogra- fico vem auxiliar-nos, hd que se pensar no seguinte: contratélos de marco a novem- bro, deixando dezembro, janeiro, fevereiro a Franca, ao contato francés, indispensd- RBPAE v.17, n-1, jan./jun.2001 vel a eles, ¢ a nds intitil, dadas as férias. Esse trimestre € 0 mais importarite aqui. O governo francés o permite, assim. Dé-thes 0 ordenado integral; anual ... N6s daremos outro tanto, trés a quatro contos (tanto, por- que, assim 0 faz a desvalorizagao de nossa moeda (...)e 1/3da passagem; outro 1/3. Franga; outro o interessado (...). Assim, te- remos professores jovens ou provectos, os préprios das grandes Universidades ... Con- trato de curto prazo a ensaiar ¢ a renovar Que diz ? Alids s6 deveriamos ter contra- 10s, mesmo para os nacionais, dade é a estagnagao a vitalicie- © que depreendo do espirito univer- sitario francs esta de acordo com que V. pensa o melhor, isto 6, um professor de grego, ou geografia, ou filosofia, tanto faz a filologia, o humanismo, a geografia hu- mana, como o b-a-ba da lingua grega, da geografia descritiva, da sintaxe corrente. Prepara-se completamente. Nao para 0 oF Maria de Lourdes de Albuquerque Favero professor de liceu, como em outros luga- res. Mas para professor que comega no li- ceu e pode ir a Sorbonne ou ao Colégio da Franga. Esta ascensao é funcao das quali- dades individuais, de originalidade ou per- feicao. Na promogao Bergson, Jaurés, Beaudrillard, todos foram professores de liceu e um foi ao cimo universitario, 0 ou- tro ao parlamento e a “Histéria do Soci lismo”, 0 outro ao Instituto Catélico e ao arcebispado. Outros ficaram definitiva- mente nos liceus, culpa de nao terem sido como os outros. Mas todos partiram para tudo. Desta forma nao ha duplicagdo, Para ensinar a meninos, e rapazes, a mestre: indispensavel saber logo tudo. Acha ele que se s6 contratado pode, e deve fazer, No espa¢o, o mesmo que fazem aqui, no tempo, isto é, lecionar simultaneamente a alunos e a mestres em dois cursos, gradu- ados, como assistente discente, mas sem necessidade de dois mestres diferentes. Ora, ouvi, af, a objecao que nao se devia importar 0 grande homem para 0 ensino de alunos, e apenas dos mestres. (....) 0 mestres aqui sao capazes de dois provei- tos, 0 que para nés é magnifico. Ficaram de dar-me as indicagées dos que poderi- am ir para nossa livre escolha ulterior (AT. 35.04.10, doc. 5, série t. CPDOC/FGV). AUDF é instituida, em 1935, com cinco escolas: a Escola de Ciéncias, o Instituto de Educacao, a Escola de Economia e Direito, a Escola de Filosofia e de Letras e olnstituto de Artes, além de instituigdes complementares. Surge sob uma definigdo precisa original do papel e das fungdes da universidade. 0 de- creto que a institui justifica a necessidade de sua instalacao e define como seus fins “promover e estimular a cultura a concor- rer para o aperfeigoamento da comunida- de brasileira; encorajar a pesquisa cienti- fica, literdria e artistica; propagar as aqui- sicdes das ciéncias ¢ das artes pelo ensi- no regular de suas escolas e pelos cursos de extensdo popular; formar profissionais @ técnicos em diversos ramos e prover a formagao do magistério em todos graus” (art. 2, Decreto n°5,513/35). Arespeito das atividades académicas na Universidade do Distrito Federal, pes- quisa realizada por ns, no PROEDES/ UFRJ, da margem a algumas inferéncias. Em um periodo em que a tradi¢ao brasilei- ra de ensino superior se baseava no ensi- no de carater predominantemente profis- sional, a institucionalizagao da USP, em 1934, e da UDF, em 1935, ira redireciond-lo para a énfase na ciéncia basica e para um saber “desinteressado”. Decerto, naquele momento, essa mudanga vai tornar neces- sarias as missdes estrangeiras de profes- sores, que deixam suas marcas, tanto na Faculdade de Filosofia , Ciéncias e Letras da USP, como na UDF e, mais tarde, na Fa- culdade Nacional de Filosofia da Universi- dade do Brasil. Em 1936, as atividades académicas, na Universidade do Distrito Federal, sao ini- ciadas, com a presenga de uma missio francesa. Ha registros da atuagao de pro- fessores lecionando nas Escolas de Econo- mia e Direito ¢ de Filosofia e Letras: Emile Bréhier (Histéria da Filosofia), Eugene Albertini Histéria da Civilizacao Romana), Henri Hauser (Historia Econdmica), Henri Tronchon (Literatura Comparada), Gaston Leduc (Economia Social e Organizagao do Trabalho), Etienne Souriou (Psicologia e Filosofia), Jean Bourciez (Filologia das Lin- guas Romanicas), Jacques Perret (Linguas RBPAE v.17, nf, jan /jun.2001 Anisio Teixeira ¢ a UDF: que licdes nos oferecem? e Literatura Greco-Romanas), Pierre Deffontaines (Geografia Humana) e Robert Garric (Literatura Francesa)! Na Escola de Ciéncias, registra-se a presenca, em 1935 e 1936, de Viktor Leinz (Geologia e Mineralogia) e de Bernhard Gross (Fisica). Em 1937, apenas o primei ro deles permanece. A presenga desses estrangeiros mar- cou a historia dessa Universidade. Carta de Odette Toledo, secretaria da UDI dirigida a Anisio Teixeira, em 1937, confir- ma essa assertiva. Diz ela: “Os cursos dos franceses tiveram grande sucesso. Nota- veis pelos resultados conseguidos com os alunos foram os de Geografia Humana - Deffontaines; Historia Romana - Albertini; Economia Social - Leduc. De grande reper- cussao social: Garric, Souriou e Hauser. Deram curso na Academia Brasileira de Letras e fizeram conferéncias em varios estados em nome da UDF” (Arquivo UDF - PROEDES/UFRJ). : Em que pesem todos os problemas, além dos estrangeiros, os professores des- sa Universidade, até sua extingao, consti- tui um verdadeiro “quem @ quem da cién- cia brasileira fora de Sao Paulo” (SCHWARTZMAN et al., 1984, p. 212). Entre outros, destacamos: Roberto Marinho de Azevedo, Hermes Lima, Lelio Gama, Josué de Castro, Gilberto Freyre, Lauro Travassos, Liicio Costa, Heitor Villa-Lobos, Sergio Buarque de;Holanda, Abgar Renault, Antenor Nascentes, Candido Portinari, He- loisa Alberto Torres, Joaquim Costa Ribei- ro, Lourengo Filho e Antonio Carneiro Ledo. A despeito de todos os reveses, mes- mo apés as demissées ¢ prisdes de pro- fessores, segundo Odette Toledo, “a Uni- versidade funcionou regularmente em RBPAE v.17, n1, jan./jun.2001 1936. Resistiu a nova crise do principio do ano, dando mais uma prova de vitalidade, embora tenha decrescido sensivelmente o ntimero de inscrigées, como era natural” (Ibid.). Mesmo assim, os professores que permaneceram, a partir desse ano, em es- pecial na Escola de Ciéncias, tentaram le- var adiante o projeto inicial de formar um convivio dos mais agradaveis. De acordo com 0 professor Leinz, foi introduzido um sistema, que se usava na Alemanha, de re- alizar excursdes com os alunos. Assim, para mostrar a geologia do Distrito Fede- ral, ele desenvolveu varios trabalhos pra- ticos. Em entrevista, concedida ao CPDOC/ FGV, em 1977, assinala: ‘Nés famos pela manha, ow para Copacabana — pois ainda tinha muitas pedreiras — ou para a praia. Eu explica- va a influéncia do mar, Nossos alunos ten- tavam reconhecer rochas e minerais por métodos simples, mais modernos. Em 1937, fiz uma excursdo muito grande com os alunos, para sua formatura em Minas Gerais (...). Fizemos uma viagem para co- nhecer toda Minas Gerais. Para conhecer 0 manganés, para conhecer ferro, para conhecer Morro Velho, para conhecer ltabira (...). Os alunos jd eram pessoas for- madas (...), mas grande parte nunca tinha saido do Distrito Federal (...). Eu forcava muito 0 trabatho pratico, 0 manuseio do material (...). E extremamente. importan: te, para nao ser livresco: A Universidade permitiu, pois havia-verba, que fosse’ im: portado todo 0 material desejado. E im- portamos, essencialmente da Alemanha, projetores, material de ensino, mapas, mi nerais, (Gminas, microscépios. Os livros foram fornecidos pela Universidade. E, nesse clima, rapidamente tivernos uma ins- talagdo, muito boa para sua época, de Geologia e Mineralogia (Entrevista do prof. Leinz, 1977, p. 214, CPDOC/FGV). O trabalho do professor Leinz, em par- ticular essa excursao de Geologia 4 Minas Gerais, deixou marcas profundas em seus alunos. A respeito, 0 discurso de Newton Dias Santos, graduando do 3° ano de Histd- ria Natural, em 8 de novembro de 1937, € bastante elucidativo, quando registra: “Essa excursao trouxe-nos vantagens de varias ordens... Apoiando-nos sobre conhecimentos ministrados no curso [Mi- neralogia e Geologia], reafirmando ora uns, relembrando ora outros, veio ela ligar fa- tos até entao isolados, e estabelecer, se- guramente, uma cadeia continua que deu a nosso Curso de Geologia uma solidez in- contestavel. Nossa visio ampliou-se; o que vimos em Minas Gerais ligou-se perfeita- mente aos conhecimentos adquiridos em aula e laboratério, consolidando-se efi entemente. A associagao de fatos e de idéi- as foi rica e bastante aproveitavel. Nosso curso de Geologia teria tido uma falha la- mentavel se ndo acrescentasse, ao progra- ma de seu curso, uma visao de Geologia do Brasil (...). Era necessario que nés, fu- turos professores e guias de jovens estu- dantes, tivéssemos visto de perto, com os proprios olhos, o patriménio geolégico e mineraldgico de nosso pais, a fim de sen- tir toda a exuberancia de nossavriqueza, que devemos olhar... Mas nao é s6 esse lado, legado pela natureza, que devemos olhar (...), pois, ao defrontamento com a realidade, inconscientemente, ao mestno tempo que admiramos a prodigalidade da natureza, somos feridos pelo abandono e pela ineficiéncia de nosso trabalho em re- 96 Maria de Lourdes de Albuquerque Favero lacao as possibilidades atingiveis. J4 é tem- po de olharmos nossos defeitos, mais do que nossas qualidades. Sobre o pico do Itabira nossa visio dominava, inteiramente, a vasta regiao fer- rifera brasileira; ali a natureza depositou a maior jazida de ferro do mundo nao para os brasileiros dela se vangloriarem, mas dela se utilizarem”. (SANTOS, 1937). Nesse discurso, o aluno faz uma apre- ciagao do Curso de Historia Natural e ob- serva que, ressalvado o problema da falta de laboratérios proprios’ a Escola tinha pessoal qualificado em condigées de con- tribuir para a formacao de pesquisadores. De forma enfatica, assinala: “Ela [a UDF] preencheu uma lacuna con- siderdvel no ensino universitario do pais, mas parece-me que 0 seu verdadeiro mé- todo reside no espirito realmente cientifi- co, que anima alunos e mestres. A Univer- sidade do Distrito Federal, apesar de suas miiltiplas localizagées, vive; ela é ativa e nao tem o aspecto rotineiro das universi- dades tradicionais." (Ibid.) Uma evidéncia desse carater ativo da Universidade e de suas preocupagoes em formar pesquisadores se manifesta, tam- bém, por meio da criagdo de centros de estudos. Nessa direcdo, gracas 4 presenca de Deffontaines, surge, em 1936, 0 Centro de Estudos Geograficos, tendo como preo- cupagao desenvolver trabalhos e pesqui- sas Com a participagao de professores, alu- nos e ex-alunos, em especial, sobre Geografia do Brasil. Em outubro de 1937, é instituido 0 Centro de Estudos Eugéne Albertini, com o objetivo de intensificar e aprofundar o§ debates sobre a civilizacio romana e propiciar a publicacao de teses RBPAE 0.17, 11, jan /jun.2001 Anisio Teixeira ¢ a UDF: que ligdes nos oferecem? etrabalhos especializados dos sécios. Ain- da em 1936, é criado o Centro de Estudos Sociol6gicos, tendo a sua frente dois pro- fessores brasileiros: Gilberto Freyre e He- loisa Alberto Torres. Como os demais Cen- tros de Estudos da Universidade, é organizado como um espaco de investiga- (0 e discussao. Quanto a organizagao académica, apresentava algumas exigéncias que favo- reciam a formacao de pesquisadores, em comparacao ao que existia, no periodo, em termos de instituicdes de ensino superior, como por exemplo: participacao dos alu- nos em trabathos praticos desenvolvidos pelos professores nos diferentes cursos, participacdo em pesquisas e nas ativida- des dos centros de estudos. Merece regis- tro, também, uma certa preocupagao para que os cursos se realizassem com grande seletividade, o que significou, na Escola de Ciéncias, onde esse processo era mais acentuado, a redugao de cerca de 50% do niimero de alunos da primeira para a ter- ceira série (PENNA JUNIOR, 1937). Confor- me depoimento do professor Herman Lent, no caso da Escola de Ciéncias, embora esta se dissesse formadora de professores para © secundario, seus professores davam maior énfase 4 pesquisa (LENT, 1977, CPDOC/FGV)). Leinz, por sua vez, faz, ainda, referén- cia A presenca de dois assistentes em cada cadeira como fator importante para dar inicio 4 criagao de uma escola. Segundo ele, tal fato contribuiu para que, na Geolo- gia, logo se desse inicio A realizacdo de pesquisas, uma sobre o método utilizado por essa area de conhecimento, outra so- bre o da paleontologia. Mas, com a Lei de Desacumulacao de Cargos, em 1937, os assistentes passaram a ser, em geral, re- cém-formados, 0 que resultou “em grande vantagem para eles e nao grande vantagem para o ensino” (LEINZ, 1977, p. 31) A propésito dessa lei, observa-se que elarepresentou, de imediato, prejuizo para a formacao de pesquisadores na Universi: dade, uma vez que excelentes professores pesquisadores ficaram fora da UDF, res- tringindo-se as possibilidades de experién- cias e de trabalhos de campo, como acon- tecia com professores que eram também de Manguinhos e que podiam levar os alu- nos para la, complementando a parte pra- tica do trabalho nesta institui¢ao. O IMPEDIMENTO DA UDF Uma das hipoteses com a qual traba- Ihamos no estudg sobre a histéria dessa Universidade é a de se tramar, inclusive no nivel do Ministério da Educagao e Satide Publica, 0 seu impedimento, a sua extincao, desde que foi criadla. Anisio, de- certo, percebia isso, Retornemos ao seu discurso: “Muitos julgavam que a Universidaile po- deria existir, no Brasil, nao para libertar, RBPAE v.17, n.1, jan./jun.2001 mas para escravizar. Nao para fazer mar- char, mas para deter a vida, Conhecemos, todos, a linguagem desse reacionarismo. Ela é matusalénica. (..) E que liberdade, meus senhores, é uma conquista que esta sempre por fazer. Desejamoda para nés, mas nem sempre a queremos para os outros. Ha, na liberdade, qualquer coisa de indeterminado e de a imprevisivel, o que faz com que s6 possam amar os que realmente tiverem provado, até o fundo, a insignificancia da vida humana, sem 0 acre sabor desse perigo. Por isso é que a Universidade é e deve ser a mansao da liberdade. Os homens que a servem eos que, aprendendo, se candidatam a servi-la, devem constituir esse fino escol da espé- cie para quem a vida sé vale pelos ideais que aalimentam. Essa bravura é que os tor- na invenciveis. Nao morreram em vao os que morreram por esse ideal de um “pen- samento livre como 0 ar”. Todos os que desapareceram nessa luta, como todos os que hoje nela se batem, cons- tituem a grande comunhao universitaria que celebramos nesta inauguracao solene dos nossos cursos.” (TEIXEIRA, 1998, p. 43). Ao ser instalada, em 1935, a Universi- dade do Distrito Federal surge como um divisor de 4guas em meio a agitagao que marca 0 pais naquele momento e as dis- putas pelo controle dos rumos da educa- ¢40 nacional. As oposi¢des delineadas em nivel oficial séo mais decisivas; a critica 4 UDF é mais profunda do que deixam pre- ver as falas dos que esto no poder. Como da a conhecer Hermes Lima, “brandiam contra a Universidade sobretu- do 0 argumento ideologico. Seria uma Uni- versidade esquerdista, sendo comunista, qualificagdo magica pela qual o sectarismo integralista e a cegueira ultramontana obs- truiam qualquer iniciativa, qualquer atitu- de julgada inconveniente ou prejudicial ao predominio da reagdo que comandavam” (LIMA, 1978, p. 183) : A literatura, sobretudo a oficial, fala na incorporacao dos cursos da UDF pela Universidade do Brasil (UB). Na verdade, 98 Maria de Lourdes de Albuquerque Favero a UDF é extinta e seus cursos sao transfe- ridos para a UB, em 1939, por meio do De- creto n? 1.063, de 20 de janeiro. Em nome da disciplina e da ordem, ca- racteristicas do regime autoritario em vigor, 0 Ministro Gustavo Capanema encaminha ao Presidente exposicao de motivos que acom- panha o decreto acima referido, justifican- do a destruicéo da UDF. O modelo padrao de organizacao universitaria se impoe: “A Universidade do Distrito Federal, mantida pela Prefeitura, ministra cursos (filosofia, ciéncias, letras, economia, poli- tica, pedagogia, etc.) que sdo essenciais a qualquer universidade. A Universidade do Brasil, mantida pela Unido, ndo pode dei- xar de institui-los, @ semethanca das mais acatadas universidades do mundo, sob pena de permanecer indefinidamente como uma entidade anémata, sempre ton- ge de ser uma honra para o pats. Dessa maneira, é fora de divida que o caminho mais simples, mais certo e mais econémi- co é que os cursos da Universidade do Dis- trito Federal se incorporem 4 Universida- de do Brasil". (GC 36.09.18, doc. 13, série g. CPDOC/ FGV). Em 1938, em documento encaminhado ao Diretor do DASP, Luiz Simoes Lopes, sob o titulo “ObservagGes sobre a Universidade do Distrito Federal", 0 Ministro Capanema tece comentarios.a respeito do Decreto Mu- nicipal n° 6.218/38, que reorganiza a UDF, con- siderando- inconstitucional, por faltar com- peténcia para tanto’ ao Prefeito. Nessa ocasiao, observa: “A existéncia da Universidade do Distrito Federal constitui uma situagdo de indisciplina e de desordem no seio da ad- ministragdo piiblica do pais. O Ministério RBPAE o.17, nT, jan /jun.2007 Anisto Teixeira e a UDF: que ligdes nos oferecem? da Educagao é, ou deve ser, o mantenedor da ordem e da disciplina no terreno da educagdo (...). E preciso, a bem da ordem, da disciplina, da economia e da eficién- cia, ou que desapareca a Universidade do Brasil, transferindo-se os seus encargos atuais para a Universidade do Distrito Fe- deral, ou que esta desapareca, passando a Universidade do Brasil a se constituir Gnico aparelho Universitario da capital da Repitblica”. (GC 36.09.18, série g, doc. 3. CPDOC/ FGV). Embora o pais vivesse um de seus pe- riodos de mais acentuada repressao, ha protestos tanto da imprensa como de in- telectuais. A respeito da extingao da UDF, Mario de Andrade, em carta dirigida ao Mi- nistro Capanema, é bastante incisivo: “Nao pude me curvar as razdes dadas por vocé para isso; lastimo dolorosamen- te que se tenha apagado 0 tmico lugar de ensino mais livre, mais moderno, mais pes- quisador que nos sobrava no Brasil, depois do que fizeram com a Faculdade de Filoso- fia, Ciéncias e Letras de Sao Paulo. Esse espirito, mesmo conservados os atuais professores, nao conseguira reviver na Universidade do Brasil, em que a liberdade ¢ fragil, foge 4s pompas, dos pomposos e das pesadas burocra- cias”. (GC filme 01, fotograma 0786 CPDOC/FGV). Posicionamento bastante enfatico @0 de Luiz Camillo de Oliveira Netto, designado para assumir a Reitoria da UDF, na fase da “trans- feréncia” de seus cursos para a Universidade doBrasil. Apés protestar contra a forma como vinha se efetivando essa “transferéncia, con- clui dizendo: “Como resultado, e tnico resul- tado pratico, sera extinta a Universidade do Distrito Federal, ou seja, destruida, definiti- vamente, a instituigao de ensino de maior im- portancia cultural do Rio de Janeiro e possi- velmente de todo o pais” (GC filme 43, fotograma 0631. CPDOC/FGV). A seguir enumera as conseqiténcias dessa destruicao: a) a violacdo dos admiraveis princi- pios que na Constituicdo de 10 de novem- bro de 1937 regulam a iniciativa e a colabo- racao do Estado para o desenvolvimento das ciéncias, das letras e das artes...; b) osacrificio de mais de quinhentos alunos que nao podem ter a sua formacao convenientemente terminada; c) a dispensa de mais de cinqitenta professores, adjuntos e assistentes; d) o recuo consideravel no nosso en- sino superior em sua parte fundamental, isto 6, no ensino de filosofia, ciéncias e le- tras, pois as deficiéncias cansignadas na organizagao da Faculdade Nacional foram de muito eliminadas nas instituigdes congéneres dos paises civilizados e da pro- pria Universidade do Distrito Federal (/bid.) A TITULO DE CONCLUSAO Apés um olhar atento sobre as razdes apresentadas para se decretar 0 impedi- mento da Universidade do Distrito Fede- ral, reiteramos que ela comecava a se afir- mar como um centro de pensamento RBPAE 17, nl, jan jun. 2001 autonomo, de cria¢ao de saber, de produ- do de cultura e de formagao de pesquisa- dores e de professores nos anos 30; pro- curamos desnudar e entender o que se ocultava/exibia por detras do aparente, 99 quando essa Universidade é extinta. Nes- sa busca, observamos que a realidade que perseguimos, as vezes, estava ocultae era distinta dos fendmenos e do discurso ex- presso por aqueles que representavam 0 poder instituido ou a ele estavam ligados. Tais andlises e reflexes nos levaram a pensar 0 hoje, conduzindo-nos a algumas indagacoes, como: * até que ponto aqueles que integram e produzem uma universidade estao conscientes, como fala o mestre Ani- sio, que a fungao da universidade nao € somente a de difundir conhecimen- tos, de conservar a experiéncia huma- na, ou de preparar praticos ou profis- sionais, mas de manter uma atmosfera de saber ? Saber que resulta de uma atitude de espirito que se forma len- tamente no contato com a realidade, através da reflexdo , do debate acadé- mico-cientifico e da pesquisa; * como se expressa, atualmente, o dis- curso sobre as instituigdes universi- tarias pablicas e privadas, por parte dos poderes instituidos e 0 que nos mostra a realidade? + como na pratica nds — professores, alunos e técnicos — temos contribui- do para que a Universidade seja de fato “um locus de saber vivo e nao Maria de Lourdes de Albuquerque Favero morto” ? Um espaco de investigacao e de producao de conhecimento? + até que ponto contribuimos para que nossas faculdades ou centros de edu- cacao se constituam em espacos vi- vos de estudos e pesquisas e de ela- boracao de uma cultura pedagégica, como defende Anisio e nao apenas unidades de ensino e muitas vezes de um saber constituido? Outro ponto a merecer nossa aten¢ao, refere-se 4 questo da autonomia. Anisio nao apenas defende esse principio como parte da esséncia da universidade, mas vai além ao afirmar: “a universidade é e deve ser a mansao da liberdade”. Indagamos: temos presente que a autonomia universi- taria plena nunca existiu no Brasil e que é uma ilusao pensar que ela é uma dadiva ao invés de uma conquista? : Passadas mais de seis décadas, visualizamos a UDF nao apenas como uma experiéncia que apesar de sua curta dura- ¢40, representou em matéria de instituicao universitaria, uma alternativa em rela¢do ao modelo estabelecido, que nos oferece elementos para refletirmos e nos posicionarmos em relacao as instituic¢des universitarias no pais, sobretudo no que se refere ao seu papel atual e a sua contri- buigdo para a sociedade da qual é parte. NOTAS ' A respeito, consultar Universidade do Distrito Federal, Licdes Inaugurais da Missdo Université- ria Francesa durante o ano de 1936. Rio de Janeiro, 1937. ? Os professores que tinham vinculo com outra instituigao, como Manguinhos, Observatorio Nacional etc., procuravam integrar osalunos em grupos e laborat6rios de pesquisa sob sua responsabilidade. 100 RBPAE v.17, n.1, jan./jun.2001 Anisio Teixeira ¢ a UDF: que ligdes nos oferecem? REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALMEIDA, Herminia Tavares de. Dilemas da Institucionalizagao das Ciéncias Sociais no Rio de Janel ro. In: MICELI, Sergio (org.) Histéria das Ciéncias Sociais no Brasil. S40 Paulo: Vértice, Editora dos Tribunais: IDESP, 1989, p.188-216. ANDRADE, Mario. Carta dirigida a Gustavo Capanema, em 23.02.1939. GC/Andrade, M. Doc. 7, 7 série b. CPDOC/FGV ASSOCIACAO BRASILEIRA DE EDUCACAO - ABE, O Problema Universitario Brasileiro, Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929, CAMPOS, Francisco. Exposicao de Motives. Reforma do Ensino Superior. Didrio Oficial da Unido, 15.04.1931, p.5830/4839, CAPANEMA, Gustavo. Observacdes sobre a Universidade do Distrito Federal. GC 36.09.18 doc. 3, série g. 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